Coeducação entre Gerações

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José Carlos Ferrigno

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Preparação de texto Beatriz de Freitas Moreira Revisão Ana Lúcia Sesso, André Albert Composição Suzana Coroneos Capa Bress Design Editorial

Ficha Catalográfica elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da usp F416c Ferrigno, José Carlos Coeducação entre gerações / José Carlos Ferrigno. – 2a ed. São Paulo : Edições SESC SP, 2010. 256 p. Bibliografia. 978-85-98112-96-1

isbn

1. Educação. 2. Educação de Idosos. 3. Relações entre gerações. 4. Coeducação. I. Título. F416c

cdd-374.7

Copyright © 2010 Edições Sesc sp Todos os direitos reservados sesc são pau l o Edições Sesc sp Av. Álvaro Ramos, 991 03331-000 – São Paulo – sp Tel. (55 11) 2607-8000 edicoes@edicoes.sescsp.org.br www.sescsp.org.br

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Enquanto os pais se entregam às atividades da idade madura, a criança recebe inúmeras noções dos avós, dos empregados. Estes não têm, em geral, a preocupação do que é “próprio” para crianças, mas conversam com elas de igual para igual, refletindo sobre acontecimentos políticos, históricos, tal como chegam a eles através das deformações do imaginário popular. Eventos considerados trágicos para os tios, pais, irmãos mais velhos são relativizados pela avó enquanto não for sacudida sua vida miúda ou não forem atingidos os seus. Ela dirá à criança que já viu muitas revoluções, que tudo continua na mesma: alguém continuou na cozinha, servindo, lavando pratos e copos em que os outros beberam, limpando banheiros, arrumando camas para o sono de outrem, esvaziando cinzeiros, regando plantas, varrendo o chão, lavando a roupa. Alguém curvou suas costas atentas para os resíduos de outras vidas. O que poderá mudar enquanto a criança escuta na sala discursos igualitários e observa na cozinha o sacrifício constante dos empregados? A verdadeira mudança dá-se a perceber no interior, no concreto, no cotidiano, no miúdo; os abalos exteriores não modificam o essencial. Eis a filosofia que é transmitida à criança, que a absorve junto com a grandeza dos socialmente “pequenos” a quem votamos nossa primeira afeição e que podem guiar nossa percepção nascente do mundo. Ecléa Bosi

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Sumário

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Apresentação Aprender com o outro e surpreender-se Danilo Santos de Miranda

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Prefácio Cultura solidária e coeducação de gerações Paulo de Salles Oliveira

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Introdução Em busca de uma convivência educativa A CONSTRUÇÃO SOCIAL DAS GERAÇÕES

capítulo 1 33

As gerações em um permanente processo de construção cultural capítulo 2

43

O relacionamento intergeracional como fenômeno constantemente modificado pela cultura capítulo 3

55

O conflito e o poder na relação entre as gerações capítulo 4

61

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As alterações na estrutura familiar

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capítulo 5 65

A juventude na sociedade contemporânea capítulo 6

73

A velhice na sociedade contemporânea capítulo 7

77

A crise de identidade na adolescência e na meia-idade capítulo 8

81

As diferentes formas de reação ao envelhecimento ESCOLAS ABERTAS DA TERCEIRA IDADE: UM ENCONTRO DE GERAÇÕES

capítulo 1 87

O sesc sp e o trabalho social com idosos capítulo 2

103

Um fértil encontro de gerações capítulo 3

109

Investigação, hipóteses e metodologia no trabalho intergeracional capítulo 4

119

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O relacionamento entre professores e alunos da terceira idade

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GERAÇÕES COMPARTILHANDO EXPERIÊNCIAS

capítulo 1 129

Condições éticas para o processo de coeducação entre “diferentes” capítulo 2

143

O que é educação? capítulo 3

145

Relações de poder e reciprocidade nas relações intergeracionais capítulo 4

153

A coeducação de educandos e educadores capítulo 5

157

O conteúdo das trocas intergeracionais capítulo 6

175

Uma experiência singular de troca intergeracional: os grupos de reflexão sobre o envelhecimento a coeducação de gerações para uma sociedade mais tolerante, justa e solidária

capítulo 1 179

A noção de coeducação, sua caracterização e aplicações capítulo 2

183

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O que é transmitido de uma geração a outra? O que é cultura?

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capítulo 3 187

A contribuição dos velhos: a transmissão da memória cultural capítulo 4

195

A contribuição dos jovens: educação para os novos tempos capítulo 5

201

sesc, ambiente compartilhado por pessoas de todas as idades capítulo 6

207

Favorecendo as relações entre gerações capítulo 7

213

Experiências intergeracionais em outras instituições capítulo 8

215

Estratégias para aproximar as gerações capítulo 9

229

Uma nova experiência, o programa sesc Gerações capítulo 10

231

O compromisso com as gerações futuras

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Posfácio para a 2a edição Bibliografia Apêndice Sobre o autor

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Em busca de uma convivência educativa

Este estudo trata do relacionamento entre duas gerações no cotidiano de trabalho dos centros de atividades de uma instituição cultural, o sesc sp − Serviço Social do Comércio de São Paulo. Em um de seus programas sociais, denominado Trabalho Social com Idosos, há vários anos os alunos da chamada Escola Aberta da Terceira Idade convivem com seus professores, pessoas pertencentes a uma geração mais jovem. A constatação da ocorrência de uma rica troca intelectual e afetiva entre tais indivíduos, e a consequente transformação deles a partir de uma influência recíproca, determinou a sistematização e o aprofundamento das observações dessa interação. Assim, busca-se descobrir quais os benefícios trazidos por um processo de coeducação de gerações àqueles nele diretamente envolvidos e à sociedade de modo geral. Inúmeras investigações sobre o relacionamento intergeracional têm como pano de fundo os estudos sobre a família. Das relações familiares, são frequentes aqueles que envolvem crianças ou adolescentes e seus pais. Talvez a profusão dessas publicações se deva aos problemas sociais gerados pelas crianças consideradas “difíceis” e pela chamada “delinquência juvenil”, configurando o comentado conflito de gerações. Trata-se de assunto que preocupa autoridades, políticos, sociólogos,

Introdução

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psicólogos, educadores e, é claro, os pais de modo geral. Por isso, muitos livros e artigos de revistas têm um caráter de manual de orientações sobre como educar adequadamente os filhos. Sobre a interação entre os segmentos etários em outros espaços sociais, os estudos são raros. Ainda no âmbito familiar, o relacionamento entre avós e netos começa a receber mais atenção dos estudiosos, mas ainda são poucos. Destacam-se as pesquisas de Paulo de Salles Oliveira1, que estudou a coeducação de avós e netos de famílias humildes da cidade de Marília, interior de São Paulo, e de Myriam Lins de Barros2, que investigou as relações entre avós e netos em famílias da classe média do Rio de Janeiro. Como vivem e convivem as gerações? Em nossos tempos as gerações vivem segmentadas em espaços exclusivos. A exceção se dá na família. Sem dúvida, é no contexto familiar que ocorrem mais frequentemente os encontros entre as gerações, ao menos por proximidade física, já que em muitas prevalece o distanciamento afetivo. Por isso, a qualidade dessas relações tem sido alvo de muitas discussões entre especialistas e pessoas em geral. A eficácia da família como instância formadora de novos cidadãos tem sido muito criticada nos últimos anos. Ao que parece, o conflito entre pais e filhos tem se caracterizado como o mais importante emblema do conflito de gerações. Com o aumento da longevidade humana, têm surgido várias investigações, em especial nos Estados Unidos, sobre o relacionamento entre idosos e seus filhos, pessoas maduras e, às vezes, já entrando na velhice, assim como relações entre uma terceira e uma quarta idade, como são chamados os muito velhos. Com essa temática podemos citar os trabalhos de Elizabeth S. Johnson & Barbara J. Bursk3, M. Valora Long & 1 Paulo de Salles Oliveira, Vidas compartilhadas, 1999. 2 Myriam Lins de Barros, Autoridade e afeto, 1987. 3 Elizabeth S. Johnson & Barbara J. Bursk, O relacionamento entre os idosos, s.d.

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Peter Martin4, V. A. Freedman et al.5, Karen Fingerman6 e Diane Lye7. O aumento de ocorrências patológicas físicas e mentais típicas da velhice (principalmente aquelas que comprometem a autonomia do indivíduo), decorrente do aumento populacional desse segmento etário, explica o crescente número de pesquisas sobre essa relação. Doenças incapacitantes como o Mal de Alzheimer, bem como outros tipos de demências senis, nas últimas décadas adquiriram visibilidade social com a elevação do tempo médio de vida. Esse fato explica o tom de orientação das publicações voltadas a esses filhos “quarentões” e “cinquentões”, que se tornam “cuidadores” de seus próprios pais, usando uma expressão que tem se popularizado. Partindo-se da premissa de que o encontro de gerações é algo benéfico e positivo e que pode ser estimulado com a perspectiva de um enriquecimento mútuo, estuda-se uma forma de relacionamento intergeracional peculiar, exatamente porque ocorre fora da família: a já mencionada interação entre professores do sesc e seus alunos da terceira idade. Para isso, foram entrevistados 12 alunos idosos de vários centros do sesc sp na capital e no interior, bem como seis técnicos que são, ao mesmo tempo, coordenadores e professores do Trabalho Social com Idosos, programa desenvolvido pela instituição. Na reflexão sobre esse relacionamento entre gerações, também foram recolhidos dados de observações das atividades do sesc. Para a elaboração desse estudo, foram levadas em conta inúmeras situações vividas, banhadas de alegrias e tristezas, na coordenação de atividades para homens e mulheres da terceira idade nos 22 anos de trabalho junto a essa população. Nesse processo de envolvimento pessoal e profissional, ensina-se algo, mas principalmente aprende-se muito com esses velhos. 4 M. Valora Long & Peter Martin, Personality, relationship closeness, 2000. 5 V. A. Freedman, et al., Intergerational transfer: a question of perspective, 1991. 6 Karen Fingerman, We had a nice little chat, 2000. 7 Diane Lye, Adult child-parent relationships, 1996.

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Paralelamente, incluiu-se neste estudo uma análise da aproximação verificada entre associados do sesc sp pertencentes a diferentes gerações durante as atividades culturais e esportivas. Essas interações provocaram férteis reflexões sobre a oportunidade de fomentar tais encontros, pela possibilidade e importância que há no desenvolvimento de sentimentos solidários entre velhos e moços. Essa análise foi desenvolvida com base em observações informais e sistematizadas, em conversas com os jovens e com os idosos, e também nas várias experimentações introduzidas na forma e no conteúdo dos cursos e oficinas que compõem a programação dessa entidade. Claro está que o fator geração é apenas mais um dos muitos determinantes do comportamento social, assim como classe, gênero, etnia etc. Também nunca é demais lembrar que a própria organização da sociedade é determinada por uma complexa gama de fatores econômicos, políticos e culturais. Todavia, parece que a importância da variável geracional (lembremos de sua força no movimento estudantil dos anos 1960 e na luta dos aposentados brasileiros pelos “147%” de reajuste das aposentadorias) foi pouco reconhecida até o momento, considerando-se o relativamente pequeno conjunto de estudos realizados. Essa constatação torna relevante o esforço em construir algum conhecimento nessa área. Na primeira parte aborda-se o processo da construção social das gerações e do relacionamento entre elas. As gerações, embora também definidas pelas peculiaridades biológicas do ciclo do desenvolvimento humano, apresentam-se claramente como um produto cultural. Para essa discussão recorre-se a Berger & Luckmann8, Karl Mannheim9, Georges

8 Peter Berger & Thomas Luckmann, A construção social da realidade, 1986. 9 Karl Mannheim, The problems of generation, 1952.

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Lapassade10, Simone de Beauvoir11 e Ecléa Bosi12, entre outros autores da psicologia social, da sociologia e da antropologia que direta ou indiretamente pensaram sobre a questão das gerações. Nos depoimentos dos próprios sujeitos dessa ação, ou seja, professores e alunos da terceira idade do sesc, foram buscadas suas vivências e observações sobre as mudanças de expectativas de conduta para os diversos grupos etários, a partir de comparações entre a vida de moços e velhos no passado e no presente. As mudanças nas relações entre os grupos etários também foram avaliadas pelos entrevistados. Na segunda parte descreve-se o ambiente da pesquisa, ou seja, as finalidades, a estrutura, a dinâmica de funcionamento, as instalações e os equipamentos do sesc sp que possibilitam o desenvolvimento das atividades sociais e culturais para todas as faixas etárias. Pela educação não-formal, o sesc busca não apenas o entretenimento dos usuários através do lazer, mas principalmente seu desenvolvimento a partir de uma ocupação criativa do tempo livre. Trata-se de um processo de educação pelo lazer e para o lazer, no qual, portanto, as pessoas, além de aprender prazerosamente, também têm a oportunidade de aprender a planejar e realizar seu próprio lazer. Ainda nesse contexto relata-se um pouco da história do Trabalho Social com Idosos, programa pioneiro no Brasil que abriga as Escolas Abertas da Terceira Idade, nas quais se desenvolve a interação, aqui investigada, entre jovens professores e velhos alunos. São apresentados depoimentos dessas duas gerações a respeito da importância do sesc na vida dos idosos. Ao descrever e refletir sobre o relacionamento entre esses alunos e seus educadores, lança-se mão de observações, de entrevis10 Georges Lapassade, A entrada na vida, 1975. 11 Simone de Beauvoir, A velhice, 1990. 12 Ecléa Bosi, Memória e sociedade – Lembranças de velhos, 1979.

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tas realizadas e de rememorações de experiência direta nas atividades junto a pessoas idosas. Em seguida comenta-se a noção de “comunidade de destino” e a opção metodológica que norteou esta pesquisa, baseada nos caminhos trilhados por Ecléa Bosi13. Na terceira parte discute-se o resultado da interação geracional no trabalho que o sesc sp realiza com a terceira idade. Tenta-se responder se há efetivamente um processo de coeducação de gerações entre professores jovens e alunos idosos, como se caracteriza e quais seus principais conteúdos. Realiza-se essa análise a partir de experiência profissional e da fala dos sujeitos. Foram utilizadas como apoio as contribuições de Paulo Freire14, Hannah Arendt15, Kurt Lewin16, Carl Jung17 e Erving Goffman18, entre outros. Amplia-se a discussão sobre coeducação de gerações à sociedade de modo geral, à luz de autores como Walter Benjamin19, Margareth Mead20, Simone Weil21 e Agnes Heller22. Mencionam-se experiências de atividades intergeracionais que ocorrem ou ocorreram em outras instituições. A seguir, por suas características singulares, descreve-se o sesc como um local privilegiado de aproximação de gerações, não só por aquilo que já foi realizado na instituição, mas principalmente por suas potencialidades. Analisam-se as inúmeras atividades culturais, artísticas e esportivas entre pessoas de diferentes faixas etárias, agregando às observações as falas dos sujeitos da pesquisa e também de outros idosos e adolescentes entrevistados, protagonistas de experiências na área teatral e musical. 13 Id., ibid. 14 Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, 1977. 15 Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro, 1997. 16 Kurt Lewin, Problemas de dinâmica de grupo, 1978. 17 Carl G. Jung, Tipos psicológicos, 1991. 18 Erving Goffman, Estigma, 1982. 19 Walter Benjamin, Magia e técnica, arte e política, 1994. 20 Margaret Mead, Cultura e compromisso, 1971. 21 Simone Weil, A condição operária, s.d. 22 Agnes Heller, O cotidiano e a história, 1985.

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Com programação voltada para todos os segmentos etários em espaços físicos compartilhados, ao longo da história dessa instituição têm surgido interessantes episódios de encontros geracionais, aqui relatados de modo sucinto. Muitos deles têm sido não intencionais, mas outros, frequentemente, são provocados pelos técnicos da entidade, que se mostram sensibilizados e determinados a sistematizar tais experiências por meio de um programa permanente, que vem se desenhando aos poucos. Com o aval da direção do sesc sp e a motivação de seus educadores, um projeto de atividades intergeracionais está sendo cuidadosamente elaborado, e as reflexões para o presente trabalho têm sido mais um fator de impulsão dessa iniciativa. Por fim, em um exercício de imaginação apoiado em observações pessoais sobre a realidade social contemporânea e sobre as reflexões da prática profissional, é expresso o pensamento acerca das promessas e perspectivas da coeducação de gerações em instituições culturais do tipo do sesc sp e também em outros espaços públicos. Para essas conclusões, sempre provisórias, é claro, também são levados em conta os pontos de vista dos sujeitos entrevistados. Se pensarmos que a classificação dos indivíduos em faixas etárias e as “invenções” da infância, adolescência e velhice são fenômenos da modernidade, podemos supor que nos albores dos tempos pós-modernos em que estamos situados possam estar sendo criadas condições para uma reaproximação de gerações, favorecidas pela diversidade cada vez maior de estilos de vida de jovens e idosos. Há alguns indícios dessa abertura para outras gerações, principalmente pelas novas formas de se vivenciar a velhice e o processo de envelhecimento. Essa reflexão se apoia na certeza de que o compartilhamento das experiências de velhos e moços, ao combater o preconceito etário, pode efetivamente contribuir para a edificação de uma sociedade mais justa, tolerante, democrática e solidária.

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1. As gerações em um permanente processo de construção cultural

Nascemos, crescemos e morremos, como tudo o que é vivo. Por uma imposição da natureza, uma complexa série de fenômenos biológicos marca o percurso da vida repetido em cada espécime, seja uma bactéria, em sua efêmera existência de algumas horas, uma sequoia, que atinge milênios de existência, ou um ser humano, cuja longevidade vem aumentando e, por vezes, ultrapassa um século. O desenvolvimento biológico no ser humano pode ser visualizado ao longo de uma sucessão de etapas: a infância, a adolescência, a do adulto jovem, a meia-idade e a velhice. Essas fases são decorrentes de singularidades orgânicas, mas também produzidas pela cultura. Para além das determinações naturais, as culturas humanas pré-históricas e históricas produziram e prosseguem produzindo significações para cada uma das etapas da existência do Homem. Regras de conduta são institucionalizadas para as diferentes fases da vida e são expressas no desempenho de papéis sociais. Segundo Peter Berger e Thomas Luckmann, “a sociedade é um produto humano. A sociedade é uma realidade objetiva. O homem é um produto social. Torna-se desde já evidente que qualquer análise do mundo social que deixe de lado algum destes três momentos será uma análise distorcida. Pode-se acrescentar, além disso,

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que, somente com a transmissão do mundo social a uma nova geração (isto é, a interiorização efetuada na socialização), a dialética social fundamental aparece em sua totalidade. Repetindo, somente com o aparecimento de uma nova geração é possível falar-se propriamente de um mundo social”1. Desprovidos de um saber teórico, mas tendo aprendido as muitas lições da vida, nossos sujeitos confirmam à sua maneira a garantia de permanência de uma determinada organização social a partir da transmissão de conhecimentos: Meus pais e meus avós me ensinaram que a coisa mais importante é o caráter da pessoa, e isso eu procurei ensinar para os meus filhos e espero que eles transmitam para os meus netos... e assim a vida continua (Sr. Luiz, 75 anos). Podemos, pois, considerar que as gerações são socialmente construídas, porque, antes de tudo, o indivíduo é que é socialmente construído. Para Berger e Luckmann, o ser humano nasce organicamente imaturo, já que somente ao final do primeiro ano de vida atinge o nível de desenvolvimento biológico dos recém-nascidos das outras espécies animais. No entanto, apesar da precocidade física, desde os primeiros meses o filhote humano já se relaciona de modo complexo com o ambiente. Nas palavras desses autores, O processo de tornar-se homem efetua-se na correlação com o ambiente. Esta afirmativa adquire significação se refletirmos no fato de que este ambiente é, ao mesmo tempo, um ambiente natural e humano. Isto é, o ser humano em desenvolvimento não somente se correlaciona com um ambiente 1 Peter Berger & Thomas Luckmann, A construção social da realidade, 1986, pp. 87-88.

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natural particular, mas também com uma ordem cultural e social específica, que é mediatizada para ele pelos outros significativos que o têm a seu cargo. Não apenas a sobrevivência da criança depende de certos dispositivos sociais, mas a direção de seu desenvolvimento orgânico é socialmente determinada. Desde o momento do nascimento, o desenvolvimento orgânico do homem, e na verdade uma grande parte de seu ser biológico enquanto tal, está submetido a uma contínua interferência socialmente determinada2.

Mais adiante, ao considerarem que as maneiras do tornar-se humano são tão numerosas quanto o são as culturas humanas, esses autores afirmam não haver uma natureza humana como um substrato biológico fixo, mas sim entendida como um conjunto de constantes antropológicas, dentre as quais se destacam a abertura para o mundo e a plasticidade de nossa estrutura instintiva. Portanto, melhor que dizer que o homem tem uma natureza é dizer que ele constrói sua natureza, ou seja, que produz a si mesmo. A respeito dessa plasticidade e dessa abertura para o mundo, que configuram inúmeras possibilidades de percursos, assim declara uma aluna idosa: Eu acho que as pessoas não têm um destino certo. O futuro só Deus sabe. Eu não acredito muito em destino. Mesmo quando a gente está velha pode mudar. Eu mesma mudei bastante nos últimos anos. Agora, quando se é moço, Nossa Senhora!, dá pra fazer tanta coisa! Cada um escolhe seu caminho e faz a sua vida (Dona Vilma, 76 anos). Berger e Luckmann chamam de universo simbólico “a matriz de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais. A

2 Id., ibid., p. 71.

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sociedade histórica inteira e toda a biografia do indivíduo são vistas como acontecimentos que se passam dentro deste universo” (grifo dos autores). Sobre uma das funções do universo simbólico, que interessa mais de perto a este estudo, dizem esses pesquisadores: O universo simbólico permite também ordenar as diferentes fases da biografia. Nas sociedades primitivas, os ritos de passagem representam esta função nômica (ordenadora, poderíamos dizer), em forma primitiva. A periodização da biografia é simbolizada em cada estágio pela referência à totalidade dos significados humanos. Ser criança, ser adolescente, ser adulto etc., cada uma dessas fases biográficas é legitimada como um modo de ser no universo simbólico (...). Não é preciso insistir no aspecto evidente de que esta simbolização conduz a sentimentos de segurança e participação.

Sobre o caráter metacultural da função social reguladora do universo simbólico, dizem ainda: Seria, porém, um erro pensar aqui somente a respeito das sociedades primitivas. Uma moderna teoria psicológica do desenvolvimento da personalidade pode desempenhar a mesma função. Em ambos os casos, o indivíduo, ao passar de uma fase biográfica a outra, pode julgar estar repetindo uma sequência que é dada na natureza das coisas, ou em sua própria natureza, isto é, adquire a segurança de estar vivendo ‘corretamente’ (grifo dos autores). A ‘correção’ de seu programa de vida é assim legitimada no nível mais alto de generalidade. Quando o indivíduo contempla sua vida passada, sua biografia torna-se inteligível para ele nesses termos. Quando se projeta no futuro, pode conceber sua biografia desenvolvendo-se em um universo cujas coordenadas últimas são conhecidas3.

3 Id., ibid., pp. 132-136.

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Sobre essa realização de expectativas sociais e a consequente manutenção de valores e costumes “corretos”, disse uma entrevistada: Muitos jovens se perdem porque não têm uma boa orientação. Uma boa educação depende muito dos pais, dos professores, dos mais velhos. Se esse jovem se conduzir bem ouvindo os mais velhos, vai evitar encrenca na vida, não vai ter problemas (Dona Lígia, 69 anos). Karl Mannheim4 nota que não se pode considerar uma geração como um grupo concreto, como uma família ou uma tribo, já que não possui uma estrutura organizacional visível. Obviamente, tampouco a ideia de classe de idade se confunde com o conceito de classe social, já que, nesse caso, os indivíduos são identificados pelo lugar que ocupam nas relações de produção de uma sociedade complexa e com esse tipo de estratificação, como a nossa. Todavia, pertencer a uma mesma geração determina certos pensamentos e comportamentos. Seus membros pensam e atuam de certo modo porque ocupam o mesmo lugar em uma estrutura global. Por isso, a análise deve ser estrutural: as ações têm de ser estudadas em termos do lugar que elas ocupam dentro de um processo dinâmico. Ele introduz o termo Lagerung, locação ou localização social, para conceituar geração. Diz esse autor que a geração se constitui a partir de uma mesma locação de indivíduos em determinado contexto social e dentro de um mesmo processo histórico, não por uma escolha consciente, mas por estar localizado aqui e não ali. Os membros do mesmo grupo apresentam certas similaridades apenas porque suas primeiras e cruciais experiências colocam-nos em contato com as mesmas coisas. Ao mesmo tempo, grupos de jovens e velhos 4 Karl Mannheim, The problems of generation, 1952, p. 288.

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experimentam os mesmos acontecimentos em uma dada sociedade, mas os efeitos desses eventos serão diferentes, dependendo se forem vivenciados pela primeira vez ou dentro de um quadro já formado de experiências semelhantes. Às diferentes interpretações que as diversas gerações formulam sobre os mesmos eventos sociais, Pinder5 chama de “a não contemporaneidade dos contemporâneos”. Referindo-se tanto às peculiaridades de geração quanto às divergências entre elas, assim se manifestou um dos sujeitos: Sabe, os moços são diferentes dos adultos porque eles têm mais ousadia, eles têm mais ideais. Sempre foi assim. Eu sei porque já fui moço. Mas, às vezes, eles se precipitam porque não têm a experiência da gente, e aí é que surgem os conflitos (Sr. Jaime, 68 anos). Todavia, o mero fato de pertencer a um grupo etário não determina por si só uma orientação geral. Nada haverá de comum, caso não pertençam a uma mesma cultura e sociedade, já que geração é uma sobredeterminação de outros fatores históricos e culturais. Além disso, dentro de uma comunidade, o mesmo grupo pode ter subdivisões. Na sociedade contemporânea temos como exemplo uma diversidade significativa de valores e estilos nas várias “tribos” juvenis, conforme analisaremos mais adiante. Sobre essa diversidade de comportamentos, assim se expressa uma depoente: Cada um é de um jeito, seja velho, seja moço. Por exemplo, tem idoso que não sai de casa. Eu já gosto de sair. Tem aquele jovem que é estudioso, educado, e tem os que estão perdidos nas drogas (Dona Elisa, 65 anos). 5 W. Pinder, Kunstgeschichte..., 1952, p. 283.

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No entender de Marialice Foracchi, Os membros de uma mesma geração compartilham um acervo comum de experiências, situações de vida e oportunidades de trabalho. Usufruem, juntos e contemporaneamente, os benefícios e a opressão, as vantagens e a vilania, a tensão e a alegria do destino prefigurado pelo seu modo de inserção na estrutura social. Essa vivência compartilhada não é, contudo, desordenada e difusa. Apresenta um modo de ordenação característico ou, como diz Mannheim, é uma experiência estratificada. Sendo compartilhada, a estratificação da experiência é responsável pela afinidade de localização social. Os mesmos acontecimentos que compõem o acervo de experiências de uma geração, essa identidade de vivência que, no limite, é estratificada de modo semelhante, conduz a mesma localização social, forma o estilo de conhecimento e de atuação característicos de uma geração6.

Merece destaque a observação de Lapassade de que pertencer a uma geração define apenas uma potencialidade de vivências comuns. Diz o autor: “O fato de ser da mesma idade implica a possibilidade de participar de uma experiência comum. Porém, essa possibilidade, de origem biológica, não se atualiza senão na medida em que a situação histórica apela e de algum modo exige. Os jovens alemães lançados contra Napoleão tornam-se imediatamente verdadeiros membros de uma geração”7. Ao pensarmos em uma ação conjunta e articulada de toda uma geração, inevitavelmente nos vêm à lembrança as massivas manifestações estudantis dos anos 1960, nas quais havia um forte desejo de liberdade, de participação nas decisões e de profundas mudanças na estrutura social, tanto no Brasil como em vários países capitalistas e socialistas do Ocidente.

6 Marialice Foracchi, A juventude na sociedade contemporânea, 1972, pp. 21-22. 7 Georges Lapassade, A entrada na vida, 1975, p. 225.

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Uma das professoras entrevistadas reflete sobre as mudanças de atitudes e engajamento entre jovens do passado e do presente: Quando me formei, em meados dos anos 1980, a juventude ainda estava mais mobilizada politicamente. Hoje, eu acho que os jovens estão meio parados, não estão satisfeitos, mas também não fazem nada. Acho que isso se deve ao momento social, não sei bem... (Professora Sofia, 38 anos). Desenvolvendo um raciocínio parecido, um dos idosos reafirma a influência do momento histórico, ao mesmo tempo em que observa o que é, em seu modo de ver, inerente à juventude: Os jovens no fundo são os mesmos. Têm diferenças, mas são circunstâncias de época. No fundo, é a mesma coisa, é a inovação, é a esperança desbragada, é poder tudo, é não perder nada (Sr. Antonio, 72 anos). A construção social das gerações, como vimos, concretiza-se através do estabelecimento de valores morais e expectativas de conduta para cada geração, em diferentes etapas da história. Como um dos sintomas da modernidade, as gerações são “descobertas”. Philippe Ariès8 fala de uma invenção social da infância, a partir do século xvii, em que há a fundação de um estatuto para essa faixa etária. Mike Featherstone9 menciona algumas “invenções” que se constituíram em marcações simbólicas do ciclo vital: a “invenção” da adolescência, termo cunhado por Stanley Hall no fim do século xix, a aposentadoria, também dessa mesma época, assim como a “criação” da crise da meia-idade ou crise dos 40-50 anos, na esteira da “invenção” da velhice, a partir de meados do século xx. 8 Philippe Ariès, História social da criança e da família, 1981, pp. 275-279. 9 Mike Featherstone, A velhice e o envelhecimento na pós-modernidade, 1998, p. 10.

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Concordando ou não com os novos valores para a juventude e para a velhice, e emitindo pareceres que refletem suas próprias histórias de relacionamento com outras gerações, nossos entrevistados testemunham mudanças de atitudes e comportamentos de velhos e moços. A partir de suas falas, constatamos importantes alterações de valores, em um período relativamente curto. Vejamos alguns depoimentos. Um novo estilo de vida dos idosos e uma nova imagem da velhice se manifestam também pelo consumo de novos produtos, típicos, até há pouco tempo, dos jovens: O idoso de hoje participa mais do que o idoso do passado. Bom, pelo menos é o exemplo que eu tenho. Agora, ainda tem muito idoso que fica em casa de chinelo e assistindo televisão. Os filhos e os netos dos idosos davam a eles chinelo de lã, gorrinho de lã; hoje meus filhos me dão camiseta escrita em inglês, tênis... Então, houve uma mudança, uma evolução na juventude e nos idosos (Sr. Luiz, 75 anos). A percepção dos velhos de que atualmente os jovens são mais livres: Os jovens hoje em dia têm liberdade, muita liberdade, primeiro eles eram muito reprimidos, eu mesma era muito punida, não fazia coisas, não podia sair. Hoje, não, eles têm mais liberdade. Mesmo os pais mudaram, a educação atual é diferente da nossa (Dona Raquel, 83 anos). O acesso à educação mais facilitado agora do que no passado: Ah, hoje a juventude tem mais oportunidade de crescer do que nós tínhamos na nossa época. Não tinha tantas escolas assim, tantas oportunidades de crescimento como de incentivo (Dona Francisca, 78 anos).

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Sobre o desenvolvimento das responsabilidades no jovem de ontem e de hoje e a relação entre responsabilidade e trabalho na visão de um idoso: A gente pegou responsabilidade mais cedo do que hoje, mais novo a gente pegou responsabilidade: nós todos da nossa época. (...) Hoje é mais tarde. Quem estuda se forma com 21 anos, 22, 23. A gente com 14 anos de idade já ia trabalhar. Então você sabia quanto custava o dinheiro, não é? A responsabilidade vinha mais rápido para os jovens de antigamente (Sr. João, 73 anos). Recuperando a fala do Sr. Antonio (72 anos) sobre o fato de que “Os jovens no fundo são os mesmos”, quando refletia sobre a influência do momento histórico como um contraponto a tantas mudanças comportamentais percebidas, Dona Francisca (78 anos) nos lembra de novo que o jovem interiormente é o mesmo em todas as épocas. Assim, faz com que nos remetamos a algo ligado à evolução da espécie humana, algo que diz respeito à evolução biológica e filogenética e que permanece por muito tempo. Em outras palavras, algo que é substrato orgânico e que transcende o cultural, apresentando características próprias em cada faixa etária: Eles (os jovens de hoje) são diferentes. Eu acho que eles são diferentes no conhecimento, no progresso, na cultura, mas nas brincadeiras não, são iguais, né, quanto a isso não, a diferença é nisso, na liberdade que eles têm hoje em dia de sentar em barzinho e... Eles têm mais liberdade, mas acho que interiormente não existe diferença, não. O ser humano é tudo igual, as oportunidades é que mudam, as ocasiões, os ambientes é que mudam (Dona Francisca, 78 anos).

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2. O relacionamento intergeracional como fenômeno constantemente modificado pela cultura

Se as gerações são continuamente construídas, desconstruídas e reconstruídas, a relação entre elas também está sendo sempre refeita. Novas relações, por sua vez, determinam novos comportamentos das gerações, em um movimento dialético e de retroalimentação permanente. Ficamos, então, instigados a saber o que ocorre na relação entre gerações. Conflito? Competição? Cooperação? Afetividade? Indiferença? Autoritarismo? Igualitarismo? Afinal, como se relacionavam e como se relacionam os diversos grupos etários? A compartimentalização de espaços sociais para as diversas gerações no mundo moderno dificilmente nos chama a atenção, já que muitas vezes somos tentados a considerar tal fenômeno como algo esperado, natural, inevitável e até, por diversas razões morais e pedagógicas, adequado. Por exemplo, nos diz uma idosa: Precisa tirar a criançada da rua. Hoje em dia é muito perigoso, criança tem que ficar na escola para estudar e não correr perigo de ser influenciada por maus elementos, pessoas desocupadas, traficantes de drogas... (Dona Elisa, 65 anos).

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Outra entrevistada lamenta a reclusão dos jovens e a considera incentivada pela violência urbana: Eu sei que a cidade está mais violenta. Agora, eu acho ruim essa situação da molecada não poder mais brincar na rua como antigamente. Ficam todos fechados nas escolas, nos condomínios, em shopping... (Professora Carla, 42 anos). Acostumamo-nos com a situação. As coisas se passam como se sempre tivesse sido assim: crianças de um lado, adolescentes de outro, adultos jovens aqui, adultos idosos acolá. Na verdade, em outros momentos da História, como durante a Idade Média – antes, portanto, da escolarização das crianças –, estas e os adultos compartilhavam com mais frequência os mesmos lugares e situações, fossem eles domésticos, de trabalho ou de festa. Nas palavras de uma das professoras entrevistadas: Você não vê jovens em bailes de velhos, em locais onde tem velhos, e não vê velhos em locais de jovens. É difícil, e não vê junto também, em outras atividades. É complexo isso, sei lá, acho que é porque os interesses são diferentes. O adolescente não se relaciona com o avô porque tem a turma dele. Minha mãe outro dia se queixou que meu filho não quer mais ir com ela ao shopping (Professora Helena, 39 anos). O fenômeno social de gerações segregadas é relativamente recente na história da civilização ocidental. Segundo Philippe Ariès, Na Idade Média, no início dos tempos modernos, e por muito tempo ainda nas classes populares, as crianças misturavam-se com os adultos assim

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que eram consideradas capazes de dispensar a ajuda das mães ou das amas, poucos anos depois de um desmame tardio, ou seja, aproximadamente aos sete anos de idade. A partir desse momento, ingressavam imediatamente na grande comunidade dos homens, participando com seus amigos jovens ou velhos dos trabalhos e dos jogos de todos os dias. O movimento da vida coletiva arrastava numa mesma torrente as idades e as condições sociais, sem deixar a ninguém o tempo da solidão e da intimidade1.

Em outro trecho, diz ainda esse historiador: (...) essa sociedade via mal a criança, e pior ainda o adolescente. A duração da infância era reduzida a seu período mais frágil, enquanto o filhote do homem ainda não conseguia bastar-se; a criança, então, mal adquiria algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena, ela se transformava imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude, que talvez fossem praticadas antes da Idade Média e que se tornaram aspectos essenciais das sociedades evoluídas de hoje2.

Ariès nos chama a atenção para a transitoriedade das formas de interação entre os grupos etários. Diferentemente de sociedades anteriores e posteriores, como a nossa, ele fala especificamente de uma sociedade em que não havia divisão territorial e de atividades em função da idade dos indivíduos. Naquela época, não havia, usando as palavras do autor, um “sentimento de infância”, ou, diríamos nós, uma representação elaborada dessa fase da vida. Apenas no final do século xvii essa situação começa lentamente a ser alterada, através da escolarização das crianças, ou seja, da institucionalização da escola. Podemos, então, a partir do desenvolvimento de uma pedagogia para as crianças, falar em uma construção social da infância. 1 Philippe Ariès, op. cit., p. 275. 2 Id., ibid., p. 10.

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Completando essa ideia, Featherstone se pergunta: Como era a vida nas sociedades pré-modernas? Relativamente igual, ou seja, não havia muitos estágios e os que existiam não eram tão claramente demarcados. Por exemplo, as crianças tinham muito menos poder do que atualmente têm em relação aos adultos. Elas apanhavam mais frequentemente sem conseguir se defender muito bem. Tinham, portanto, um déficit de poder sobre seus corpos. Algumas pouquíssimas crianças podiam ter um poder imenso, como Luís xvi, rei da França, a ponto de ser tratado como adulto por seus criados e cortesãos. Também havia o caso de pessoas que não conseguiam, durante a vida toda, sair da infância, como os escravos. No sul dos Estados Unidos, os escravos eram tratados como meninos. ‘Come here, boy’. Como eram classificados como dependentes, eram tidos como seres inferiores3.

As crianças, atualmente escolarizadas logo cedo, muitas desde os primeiros meses, passam todo o dia em creches e instituições assemelhadas, porque pais e mães trabalham durante todo o período. Na falta destes, ou por outros motivos, inúmeras vivem permanentemente internadas em estabelecimentos especializados. Embora nesses locais haja contato com adultos, estes são poucos e aí estão principalmente para delas cuidar, fato que estabelece uma convivência restrita e restritiva, porque é marcada por papéis bem definidos. Menos que amigos, esses adultos são cuidadores, figuras de autoridade. A propósito, uma das idosas entrevistadas mostra um lado negativo, a seu ver, da emancipação da mulher, que por trabalhar intensamente fora de casa é obrigada a deixar os filhos em creches: A emancipação da mulher eu achei que foi uma coisa ótima, mas eu acho que a mulher extrapolou um pouco. Foi muito rápida, ela teria que 3 Mike Featherstone, op. cit., p. 12.

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ser mais dosada. E com essa emancipação veio aflorar todo o potencial cultural que a mulher tem condições de ter, que antigamente não tinha. E com isso ela ocupa lugares de chefia, que antigamente só os homens ocupavam. Então, com isso veio o casamento, ou às vezes, hoje em dia, casa cada vez mais tarde, e ela naturalmente, às vezes, não quer deixar o trabalho, o que pra ela de um lado é positivo, mas falta, vamos dizer, a parte principal na infância de uma criança, que é a presença da mãe, então vai pra creche, pra hotelzinho... Eu acho que é um círculo vicioso tão grande, que vai mudando, então aí não tem a mãe próxima pra uma educação alimentar, contato, carinho... Então eu acho que muitos desses desajustes que existem vêm dessa falta de convívio. Então, e a geração que vem aí vai mudando pra pior (Dona Lígia, 69 anos). E os adolescentes, como vivem? Além da obrigatória circunscrição ao espaço da escola (para aqueles que têm condições de estudar), onde a convivência é prioritariamente com seus pares, os adolescentes parecem especialmente motivados a formar grupos de amizade compostos por indivíduos de mesma idade ou de idade bem próxima. Aliás, nas décadas mais recentes, parece estar havendo uma ênfase maior na formação de grupos com ideias, valores e hábitos bem semelhantes, fato que explica a significativa profusão das chamadas “tribos juvenis”, identificadas já na aparência, pelos trajes e adereços. Mauricinhos e patricinhas, punks, carecas, darks, góticos, hippies tardios, clubbers, metaleiros, além das turmas do rap, hip-hop, pagode, axé e funk, são algumas dessas tribos, que contam com muitas subdivisões curiosas, como os “anarco-punks”, e até impensáveis, como os “nazi-punks”. Entre os jovens há, portanto, uma grande variedade de estilos e de filosofias de vida, sem falarmos das muitas e complexas combinações desses estilos. Certamente há muita coisa a ser estudada sobre esses novos e cada vez mais diversificados comportamentos da juventude, principalmente nos grandes centros urbanos.

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Relativamente a essa diversidade de estilos juvenis, esta observação: Na minha época os jovens eram mais assentados. Hoje a gente vê cada moço esquisito, se vestem de um jeito estranho... não sou contra, mas... acho esquisito (Dona Leonor, 68 anos). O universo do adulto é formado em grande parte pelo mundo do trabalho, no qual as relações se dão basicamente com outros adultos. Também em sua maioria com outros adultos são os relacionamentos desenvolvidos em espaços dedicados ao estudo, ao lazer ou a alguma atividade de militância social, política ou religiosa. Essa faixa etária costuma ser dividida em subfaixas, como as de adulto jovem, meia-idade e velhice, com expectativas de desempenho de papéis mais ou menos definidos para cada uma delas. Cabe observar que muitos autores estabelecem uma descontinuidade entre as noções de “adulto” e de “idoso”. Trata-se de preconceito que vê no adulto a fase “áurea” ou plena da vida, desmerecendo quem ainda não chegou a esse momento e também aqueles que já ultrapassaram determinada faixa etária. Segundo Paulo de Salles Oliveira, para as crianças se pergunta: “O que você vai ser ou fazer?”, enquanto para os velhos se pergunta: “O que você foi ou fez?”4. Portanto, tanto para as crianças (que só têm futuro) quanto para os velhos (que só têm passado) não há presente. São todos marginalizados, privilegiando-se a figura do adulto. Lapassade analisa profunda e amplamente o mito do adulto como um ser pleno e acabado, identificado com atributos não alcançados pelos mais jovens, como “domínio de si, capacidade de manter compromissos, desempenhar seu ofício e transmitir a vida”5. Nessa perspectiva, a velhice 4 Paulo de Salles Oliveira, Vidas compartilhadas, 1999, p. 31. 5 Georges Lapassade, op. cit., 1975, p. 8.

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é tida como sinônimo de decadência, daquilo que já foi ou que “já era”, expressão bastante usada, principalmente pelos jovens. Deveríamos falar de adultos jovens e adultos velhos. O idoso não deixa de ser um adulto; continua sendo um adulto, um adulto mais velho. Reafirmando as expectativas em torno da figura do adulto: Os moços devem ser bem orientados para se transformarem em homens de bem, respeitados e respeitadores. Devemos educar os jovens para serem pessoas corretas e responsáveis (Sr. João, 73 anos). No caminho em direção à fase da terceira idade, em decorrência de inúmeros fatores culturais contemporâneos, os contatos sociais tendem a rarear. Isto é, assiste-se a um progressivo esvaziamento de papéis, fato que determina ao idoso um crescente isolamento ou recolhimento ao espaço doméstico. A aposentadoria, a viuvez, a perda de amigos e a chamada “síndrome do ninho vazio”, esta última caracterizada pela debandada dos filhos emancipados, são fenômenos que impõem aos mais velhos uma expressiva diminuição de funções. Todavia, como veremos adiante, um contingente cada vez maior de idosos tem reagido a essas vicissitudes e vem desenvolvendo um estilo de vida cada vez mais participativo e integrado, conforme veremos ao longo deste estudo, como nos depoimentos a seguir: Quando eu estava com 57 anos de idade, a minha filha mais nova também se casou. Aí a casa ficou vazia, vazia. Só eu e meu marido. É engraçado porque, ao mesmo tempo em que eu fiquei contente por ela, eu fiquei triste de ficar com a casa mais vazia ainda. Por sorte eu descobri o sesc e aí... arrumei o que fazer! (ri) (Dona Vilma, 76 anos).

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Depois que me aposentei caí em depressão. Não logo de cara, não. No começo até que curti não fazer nada. Mas, depois de uns meses, foi batendo uma tristeza... aí a minha mulher insistiu para eu ir ao sesc. Foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida. Nasci de novo (Sr. Jaime, 68 anos). Na esteira dos estudos sobre o envelhecimento, vêm ocorrendo importantes reflexões sobre o relacionamento do idoso com sua família. Como exemplo, podemos lembrar a já citada pesquisa de Elizabeth S. Johnson e Barbara J. Bursk6, que analisaram a qualidade afetiva do relacionamento entre pais com idade acima de 45 anos e seus filhos com 21 anos ou mais. Esse estudo concluiu que, quanto mais positiva a atitude do idoso em relação à velhice, e quanto melhor seu estado de saúde, melhor será a qualidade do relacionamento com seus filhos. Outra conclusão, que nos interessa mais diretamente, é a de que, quanto mais semelhantes forem os valores de vida de pais e filhos, mais satisfatório será o relacionamento entre ambos. Lidando diariamente com muitos idosos no sesc a gente percebe que os problemas de família são menores para aqueles que sempre conversam com filhos e netos, mesmo não morando junto, ou até por isso (ri). Eu acho que quando os interesses e os valores são parecidos, o relacionamento é melhor (Professora Maura, 38 anos). Fericgla7, em sua pesquisa sobre idosos da região da Catalunha, Espanha, constatou a baixa frequência de contatos entre jovens e velhos. O autor perguntou aos idosos se eles se relacionavam com pessoas abaixo 6 Elizabeth S. Johnson & Barbara J. Bursk, op. cit., s.d., pp. 33-34. 7 Josep Fericgla, Envejecer, 1992, pp. 183-185.

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dos trinta anos de idade e obteve os seguintes resultados: 52,5% só se relacionavam com netos e filhos; 23,7% não se relacionavam com nenhum jovem; 16,4% disseram possuir amigos jovens; para 4%, os contatos com jovens era muito ocasional; 2,3% dos entrevistados declararam algum relacionamento desse tipo em asilos e centros de convivência; e 0,6% o tinha em bares. Tais porcentagens evidenciam a carência de relações geracionais fora do âmbito familiar, isto é, cerca de 80% dos entrevistados não se relacionam com gente jovem que não seja parente próximo. Além desse fato, é possível supor que tais contatos familiares sejam, em grande parte, ocasionais e instrumentais. O mesmo autor verificou que os contatos dos idosos com adultos mais velhos reduzem-se também ao círculo familiar e que, na maior parte das vezes, caracterizam-se por relações de ajuda material e afetiva aos anciãos. Ele destaca o comportamento das idosas que, em suas saídas diárias ao mercado, estabelecem um contato descontraído e até divertido com vendedores em geral. De acordo com nossas observações do cotidiano, entre nós a situação não é diferente. Percebemos como é importante para as idosas o relacionamento com os feirantes (e, é claro, com outros vendeiros), que já as conhecem e para quem já reservam as frutas, verduras e legumes que costumam comprar. Relação marcada pela afetividade, a ausência do feirante é sentida pela idosa e a recíproca é verdadeira. Isso nos faz refletir sobre quão terrível é para o velho ter de mudar-se de sua casa, de seu bairro, dado o profundo enraizamento de suas relações sociais. Moro aqui há 37 anos. Conheço vários vizinhos que envelheceram nesta mesma rua e também me relaciono com gente mais jovem, principalmente na feira e no mercado, e acabo fazendo amizades (Dona Raquel, 83 anos).

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Mesmo reconhecendo que esse tipo de relacionamento não é tão próximo, Dona Lígia ressalta sua importância: Olha, eu não tenho muito contato com jovens, mas no dia a dia, no supermercado, no comércio, me relaciono bem com os jovens, de modo distante, vamos dizer, mas me relaciono bem (Dona Lígia, 69 anos). Todavia, as relações entre gerações são problemáticas, se analisadas em uma perspectiva mais ampla. Segundo Dirceu Nogueira Magalhães, Na relação entre jovens e velhos, é notória, em nosso país, sobretudo nas classes médias e nas elites, uma visão distorcida e preconceituosa em relação à velhice. Uma situação carregada de distanciamento ou indiferença ou, muitas vezes, de preconceitos ostensivos e velados em relação à competência para o trabalho, para a vida social, política e cultural ou para a simples convivência no lazer. Suas experiências e seu saber são dispensados, quando não desprezados na sociedade que valoriza a inovação e subestima o antigo. Tudo que é novo é bom, bonito e interessante. Tudo o que é velho é ruim, feio e desprovido de interesse. O antigo tem de lutar para sobreviver: seja um ser humano, uma casa, uma praça, uma rua. Tudo tende a ser destruído e substituído pela última moda. A sociedade contemporânea parece perder o sentido e a importância da memória histórica, cultural, artística ou até mesmo natural. Tudo se destrói com rapidez e sem escrúpulos. Tudo se alija sem maiores discussões em nome da expansão econômica e do progresso. De que progresso? O progresso que interessa ao consumo inesgotável e à destruição de tradições e valores e bens urbanos e rurais. Essa destruição faz os mais velhos sentirem-se como ‘imigrantes perdidos no espaço’ (...) Não se pode dizer que esse seja um fenômeno típico de classes médias ou mesmo de elites, uma vez que, mesmo nas camadas de menor renda e que conservam atitudes mais tradicionais em relação a muitos tabus e mitos re-

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ligiosos, mágicos, sexuais etc., podem ser claramente identificadas as linhas de conduta e comportamento que se observam nas camadas médias e nos setores de elite8.

Sobre a qualidade do relacionamento entre jovens e velhos, nos fala Simone de Beauvoir: A relação dos jovens, dos adolescentes, com os velhos reflete menos a relação que têm com o pai do que a que têm com o avô: desde o século passado, há frequentemente entre o avô e o neto uma afeição recíproca. Aos jovens, revoltados contra os adultos, os idosos parecem tão oprimidos quanto eles próprios, o que faz com que se solidarizem com aqueles. Na Tchecoslováquia, foram os jovens que, a partir de janeiro de 1968, lançaram uma campanha indignada em favor da velhice9.

Sobre essa afeição recíproca, uma entrevistada ressalta o papel protetor de seu avô: Ah, eu adorava o meu avô. Ele foi a criatura mais doce que eu encontrei. Ele me protegia demais. Cada vez que a mamãe corria atrás de mim para me bater, eu corria para ele e ele me abraçava e dizia para a minha mãe: “Bate em mim, mas não bate nela”. Eu lembro que ele brigava, falava em italiano com ela: “Criança não tem culpa das coisas!”. Então, para mim... eu lembro dele, parece que ele tem asas, sabe? Parece que era um anjo, que estava sempre ali, disposto a me proteger e... eu adorava ele (chora comovida). A imagem do vovô não me sai da mente (Dona Leonor, 68 anos).

8 Dirceu Nogueira Magalhães, A invenção social da velhice, 1989, pp. 99-100. 9 Simone de Beauvoir, A velhice, 1990, p. 270.

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Sobre a relação entre avós e netos, prossegue Simone de Beauvoir: Quando os netos se tornam adolescentes ou adultos, nada, em sua história anterior, pesa nas relações que mantêm com seus avós. Estes últimos encontram, na afeição que os netos lhes manifestam, uma desforra contra a geração intermediária; sentem-se rejuvenescer ao contato de sua juventude. Fora de qualquer ligação familiar, a amizade dos jovens é preciosa para as pessoas idosas: ela lhes dá a impressão de que esse tempo em que vivem permanece o seu tempo, ela ressuscita sua própria juventude, transportando-os para o infinito do futuro: é a melhor defesa contra a melancolia que ameaça a vida avançada. Infelizmente, tais relações são raras, uma vez que jovens e velhos pertencem a dois mundos entre os quais há pouca comunicação10.

10 Id., ibid., p. 582.

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3. O conflito e o poder na relação entre as gerações

As considerações anteriores de Simone de Beauvoir, corroboradas pelo depoimento de Dona Leonor a respeito de possíveis alianças entre algumas gerações perante uma terceira, nos fazem pensar sobre os arranjos das forças políticas em jogo em uma sociedade complexa, como a nossa. Muito se fala atualmente sobre conflito de gerações. Antes, porém, é conveniente refletir sobre a própria noção de embate. Enquanto o marxismo fala de conflitos sociais amplos, como o de classe social, a psicanálise e a psicologia analisam os nossos conflitos internos e aqueles que se dão nas relações interpessoais. Atritos, contradições e antagonismos fazem parte de nosso cotidiano, da cultura e da natureza humana. Sua inevitável presença pode ser a mola propulsora e indispensável para gerar mudanças. Por isso, o conflito não pode ser negado. É preciso que seja compreendido, enfrentado e superado. A ideia de consenso nas relações sociais é perigosa, pois pode ser encobridora da realidade. Claro está que a busca de acordo e de interesses comuns tem inegável importância, mas é preciso que as diferenças não sejam escamoteadas nem tampouco os conflitos negados. Veremos mais adiante a importância da descoberta de interesses comuns para a aproximação de gerações. Conflitos e contradições intra-

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pessoais, interpessoais e familiares reproduzem disputas presentes na sociedade global. Se em algumas circunstâncias podemos falar de conflito de gerações, parece que este é mais consequência do que causa de embates sociais mais amplos, como explica Ecléa Bosi: “A noção que temos da velhice decorre mais da luta de classes que do conflito de gerações. É preciso mudar a vida, recriar tudo, refazer as relações humanas doentes para que os velhos trabalhadores não sejam uma espécie estrangeira”1. Desenvolvendo raciocínio semelhante, Ricardo Moragas Moragas considera que “a variável crítica nas relações intergeracionais não é a idade, mas a situação social. A idade tem importância, como outras variáveis sociais, para se conseguir uma relação amistosa ou conflituosa. Contudo, hoje, é menos crucial que outras variáveis, como sexo, etnia, personalidade, preferências pessoais, predileções e classe econômica”2. Além desse complexo conjunto de determinações do relacionamento entre as gerações, certamente, conforme já comentamos, não é difícil perceber a transitoriedade histórica das atitudes de uma geração perante a outra. Nesse sentido, nossos entrevistados relatam as mudanças de regras de comportamentos para as gerações, ao compararem a qualidade da relação que tiveram em suas infâncias com pessoas mais velhas (pais, avós etc.) com a situação dos jovens de hoje. Os sujeitos destacam principalmente o autoritarismo que marcou suas relações e a maior liberalidade no tratamento dispensado ao adolescente em nossos dias. A minha mãe e meu avô tinham um relacionamento de medo, não de respeito. Eu acho que antigamente o jovem tinha... não é respeito, era mais um medo, “tem que respeitar o velho”, coisa que parecia respeito, mas não era, era imposição da sociedade. Hoje não tem mais essa impo1 Ecléa Bosi, Memória e sociedade: lembranças de velhos, 1979, p. 36. 2 Ricardo M. Moragas, Gerontologia social..., 1997, p. 133.

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sição tão declarada, então eu acho que os jovens dizem o que pensam. Quando acha que o velho é legal, ele toca violino junto com o velho, como lá no sesc Consolação, numa boa, tem a maior amizade, a Gilda, que tem 84 anos, está lá até hoje, tocando o violoncelo dela com os meninos de 18 anos, vivem numa boa (Professora Carla, 42 anos). A minha juventude era muito presa, os pais, os avós prendiam muito a gente, seguravam muito. Hoje já é mais aberto, os jovens de hoje têm uma vida muito mais aberta, muito mais livre. Tá certo que tem aqueles que se excedem por causa disso também... mas eu acho que agora é melhor para o jovem do que foi na minha época. Em tudo, mesmo em conversar com o pai, com a mãe, mesmo isso. Antigamente era mais difícil o relacionamento, os idosos daquele tempo eram mais enérgicos, eles queriam se impor muito, hoje já não, tratam de igual pra igual. Então, isso ajuda muito. Acho que ajuda os dois lados, tanto o jovem como o velho, né? Naquela época, se entrasse uma visita dentro de casa, a criança tinha que ficar escutando quietinha, não podia dar palpite. Hoje não, hoje é de igual pra igual, naquele tempo não era, não (Sr. João, 73 anos). O relacionamento com os mais velhos era diferente porque, por exemplo, nós estávamos na sala, chegava uma visita... não ficávamos por perto. Tínhamos que sair, porque a conversa era dos adultos, não era pra criança. Hoje a criança toma parte (Dona Raquel, 83 anos). Eu não tive oportunidade de gostar de baile, porque o papai não deixava a gente sair. A gente era obediente e mais submisso, a submissão era maior, eu mesma fui ao primeiro baile com mais de vinte anos, que meu pai não deixava ir a baile, né, então a gente era muito, muito

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pressionada assim, segura, mas nem por isso a gente era rebelde, a gente aceitava aquela submissão deles, depois casei e fiquei viúva, quer dizer, imagine se, naquela época, uma viúva de 25 anos iria a um baile? Que horror, né? (Dona Francisca, 78 anos). Então, na minha juventude, os pais eram donos dos filhos, eu sentia muito isso. Não se fazia nada sem o pai autorizar ou sem a mãe autorizar. E eles se sentiam mesmo proprietários dos filhos. Eu me lembro que tinha um senhor que espancava muito o filho e, uma vez, não sei quem foi que chamou a atenção do pai... e foi na minha casa que eu ouvi isso: “O pai pode até matar! É filho, ele faz o que ele quiser”. Agora eu acho que os pais soltam muito também, então eu acho que foi do oito ao oitenta, né? Na minha época, se eu quisesse dançar, eu podia dançar durante o dia, escondido. Eu mentia que ia na casa de uma amiga e ia dançar, eu gostava de dançar. Tinha um namoradinho, então tinha que ser escondido, porque se a minha mãe visse, ou se meu pai visse, eu apanhava. Até, às vezes, eu dizia: “Eu acho que eu nunca vou casar, porque eles não me deixam namorar com ninguém!” (ri). Eu tinha um namorado que... a gente escrevia carta um para o outro, porque não dava para a gente se encontrar. Eu tinha colchão de palha... então, vinha a carta... e vinha sempre com uma florzinha, ou uma folha, alguma coisa que eu guardava, e no colchão tinha uma abertura que era para a gente enfiar a mão e revolver as palhas, e eu escondia as cartas ali, porque eu tinha pena de rasgar. Era um romantismo muito bonito!... Não tinha nada de excesso, de exagero, não se falava nada em beijo, nada dessas coisas, só dizia que gostava, que me achava bonita, eu por minha vez também escrevia... e (ri) um dia a minha mãe foi virar o colchão, e foi me acordar com as cartas na mão. Levei uma surra! (ri) Apanhei... ela me bateu de todo o jeito, eu já era mocinha, eu não era uma criança.

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Eu não sei... hoje eu vejo também o despertar da sexualidade nas meninas, principalmente nas meninas, muito cedo. Meninas de 10 anos! Eu, com dez anos, brincava de boneca! Eu gostava de brincar de casinha... então, namorado mesmo, eu fui ter com uns 15 anos, namorado assim que a gente conversava, senão era bilhetinho de escola, essas bobagens que a gente dizia: “Meu namorado”... E agora eu vejo meninas de 10, 11 anos com homens! Noutro dia, eu tive vontade de chamar a mãe porque... mas não sei se devo, se não devo, não sei como a mãe encara isso, né? (Dona Leonor, 68 anos).

A construção social das gerações

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Sobre o autor

José Carlos Ferrigno é mestre e doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Especialista em Gerontologia Social pela Universidade de Barcelona, Espanha e pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia – SBGG. Atua como assessor e pesquisador na Gerência de Estudos e Programas da Terceira Idade do sesc sp, onde coordena a revista A terceira idade e o programa sesc Gerações. Ainda no âmbito dos estudos sobre a intergeracionalidade defendeu, na Universidade de São Paulo, a tese de doutorado intitulada O conflito de gerações: atividades culturais e de lazer como estratégia de superação com vistas à construção de uma cultura intergeracional solidária.

Sobre o autor

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