

A leitura, outra revolução
maría teresa andruetto
2a edição
A leitura, outra revolução
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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Conselho Editorial
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Gerente Adjunto Francis Manzoni
Editorial Cristianne Lameirinha
Assistentes: Ana Cristina Pinho, Simone Oliveira
Produção Gráfica Fabio Pinotti
Assistente: Thais Franco
María Teresa Andruetto
A leitura, outra revolução
2a edição
Tradução Newton Cunha
Título original: La lectura, otra revolución
© María Teresa Andruetto, 2014
© Edições Sesc São Paulo, 2017
Todos os direitos reservados
2a edição, 2024
Preparação Tatiane Godoy
Revisão Marcela Vieira, Simone Oliveira
Projeto gráfico e diagramação Negrito Produção Editorial
Capa Carolina Sucheuski
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Andruetto, María Teresa
A leitura, outra revolução / María Teresa Andruetto; tradução de Newton Cunha. – 2. ed. – São Paulo: Edições
Sesc São Paulo, 2017. 172 p.
isbn 978-85-9493-307-2
1. Leitura. 2. Memórias de Leitura. 3. Mediação de Leitura. 4. Acesso à Leitura. 5. Experiências de Leitura. i. Título. ii. Cunha, Newton.
cdd 028
Elaborada por Maria Delcina Feitosa CRB/8-6187
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Nota à edição brasileira
Tãohabitual tem sido a defesa do livro e da leitura que, muitas vezes, ela parece privada de sentido. Isso porque as referências ao objeto livro e ao ato de ler são, comumente, genéricas, permitindo concluir que a leitura de um livro qualquer sem comprometimento algum constitui uma atitude salvadora em si mesma. Neste livro, no entanto, o entendimento da leitura associada à ideia de revolução não crê nessa “liberalidade”.
María Teresa Andruetto considera a palavra uma arma poderosa em sua capacidade de provocar e transformar sujeitos e sociedades. Mas, não seria “transformação” outra palavra vazia, banal? Não, se seu objetivo for o de despertar no indivíduo a capacidade de melhor compreender o que está ao seu redor, de se concentrar e produzir rupturas a partir de determinado incômodo ou mal-estar, a ponto de abandonar certo alheamento e intervir no mundo. Pois, para a autora, ler não é nem poderia ser uma atitude passiva, um mero entretenimento, daí a defesa da leitura de bons livros, que, por serem manifestação estética e política, registro da memória e dos dilemas de uma sociedade, desafiam a ordem das coisas.
Com vasta experiência na promoção e mediação da leitura, a escritora argentina menciona, em diferentes artigos, o texto já clássico de Antonio Candido “O direito à literatura”, no qual ele afirma que a literatura não é inofensiva nem isenta de ideologia, constituindo-se em um elemento fundante na formação de leitores.
Nessa perspectiva, a escola e o professor têm papéis capitais na diminuição da distância entre os livros e os alunos menos favorecidos, filhos
de famílias não leitoras. A escola deve criar oportunidades de acesso à leitura e ao conhecimento. Ela é um território horizontal que não deve realçar as marcas de desigualdade, mas, ao contrário, engajar-se para atenuá-las.
A publicação de A leitura, outra revolução apresenta uma reflexão essencial sobre o papel do livro, da leitura e da literatura, reafirmando ainda mais o trabalho do Sesc São Paulo nesse campo.
Sumário
9 Prefácio à segunda edição
13 Prefácio à primeira edição
17 A própria vida
23 Minha casa
29 Livros sem idade: sobre livros, leitores, dádivas e pontes
41 Em busca de uma língua ainda não ouvida
57 Algumas aproximações para com a poesia e as crianças
65 Liberdade condicional
73 A cena no conto
83 Elogio da dificuldade: formar um leitor de literatura
101 A leitura, outra revolução
117 Ler, direito de todos
139 Que todos signifique todos: mas o que é todos?
151 Literatura e memória
167 Referências
171 Sobre a autora
Comoleitora de María Teresa Andruetto e admiradora de sua obra e de sua trajetória como escritora, ensaísta e mediadora, ao ler A leitura, outra revolução me vejo diante de um denso tratado, obrigatório a quem tem compromisso com a promoção da leitura e a formação de leitores. Ao longo de doze textos independentes, escritos entre 2010 e 2014, a autora expõe, com a radicalidade e a generosidade que a caracterizam, temas-chave vinculados ao mundo da leitura, dos leitores e da literatura.
Contrária a qualquer fetichismo, Andruetto desmonta convenções e derruba mitos a partir não só de uma rica formação teórica e um itinerário invejável, como também de uma reflexão aguda advinda de sua prática como mediadora e promotora do livro e da leitura. Disso resulta uma autobiografia leitora, que deixa transparecer sua dimensão humana e seu compromisso ético e político com os setores sociais mais afetados pelas desigualdades e injustiças, características da barbárie contemporânea. Tal dimensão e compromisso colocam as reflexões sobre o universo do livro em face de sua determinação histórica, distanciando-se de discussões abstratas e/ou mitificadoras. María Teresa desafia concepções e questiona práticas convencionais em vigor.
É partindo do chão, do contexto histórico-social, que ela vai desdobrando o conceito de leitura e seu papel decisivo na formação das individualidades, ao mesmo tempo que defende a urgência de se garantir o acesso a esse mundo, com ênfase na literatura, a todas e todos. Um mundo desprovido de classificações, generalizações ou
A leitura, outra revolução 9 prefácio à segunda edição
estereótipos, onde a escrita e a leitura podem vir a se constituir em férteis territórios de humanização.
Na contramão das concepções atuais, Andruetto fala de uma leitura que, longe de ser meramente prazerosa, supõe dificuldades e pressupõe formação, “atenção, persistência, imprudência ou desobediência”, implicando a existência de um “bom” leitor, “desobediente”, “rebelde”, “insatisfeito”, nas palavras de Graciela Montes. Uma leitura que é ponte e nos leva a mundos, experiências e vidas diferentes dos conhecidos. Uma leitura dos silêncios e do não dito, e não apenas da distração ou do devaneio superficial.
Mas o que é leitura, afinal? O que é a escrita? O que é a língua? O que é a poesia? O que é o conto? O que é a literatura e qual o seu papel? O que é a literatura para as infâncias e as juventudes? Todas essas questões são tratadas em A leitura, outra revolução e constituem o pano de fundo de toda a argumentação da autora. São perguntas e reflexões que desafiam as bases convencionais do trabalho com o livro e a leitura.
Muitos são os contrapontos e alternativas aqui apresentados. Dentre eles, ressalta-se a defesa da diversidade linguística (pensando-se no castelhano, como língua do colonizador, e em suas diversas vertentes na América Latina) contra a demanda pela uniformização da língua, num olhar para as particularidades e a riqueza que derivam dessa pluralidade.
A literatura daí resultante é um grande relato do mundo, uma memória que leva “não à simplificação da vida, e sim à sua complexidade, evitando o pensamento global, uniforme, para ir em busca de um pensamento próprio”. Com a literatura, nos conectamos à diversidade e à riqueza da subjetividade humana, pois ela possibilita encontros entre singularidades.
Ao falar da formação de leitores, a autora destaca que a leitura não se faz apenas pela destreza na decodificação das palavras, mas pela arte da interpretação, pela profundidade, pelo alcance do não dito. A leitura literária é uma prática difícil de se adquirir e não se dá apenas pelo contato com os livros, ainda que esse seja seu passo inicial. Ela requer
María Teresa Andruetto
Trata-se de um processo com menos encantamento e fantasia do que se costuma aventar nos Planos de Leitura e nas formações de professores e mediadores. Entram aí o papel central da escola e a presença de docentes que sejam bons leitores e capazes de ter uma escuta atenta, de se relacionar horizontalmente com pequenos e jovens leitores, imprimindo-lhes a liberdade que a leitura literária pressupõe. É na escola que a democratização do acesso aos livros e ao ato de ler é possível, assim como a construção de consciência se faz possível por meio da leitura e do acesso à literatura.
A leitura, outra revolução é um livro que expande o olhar sobre a teoria e a prática da promoção da leitura de um viés que faz dela e da literatura espaços de humanização – meio caminho para a formação de leitores sujeitos conscientes de seu papel no mundo e, portanto, capazes de transformá-lo. É um livro obrigatório que coloca o caráter humanizador e transformador da leitura literária na ordem do dia. Como se isso não bastasse, ainda nos brinda com “Os rastros do que era”, um conto inédito da autora.
Dolores Prades
Diretora do Instituto Emília, consultora da Feira de Bolonha para a América Latina e especialista em literatura infantil e juvenil pela Universidade Autônoma de Barcelona
A leitura, outra revolução 11 formação, muita escuta por parte de mediadores e leitores, além da formulação de perguntas mais do que de respostas.
prefácio à primeira edição
Liminar
María Teresa Andruetto, a única escritora hispano-americana ganhadora do Prêmio Hans Christian Andersen, é autora de ideias revolucionárias. É ela quem fala que a literatura para crianças não precisa de adjetivos e também quem adverte que, para que isso seja de fato realidade, tal literatura deve exigir de si mesma, sem concessões, ir de encontro aos lugares comuns, ser o contrário do que dela se espera e, ainda, “não dar respostas, mas gerar perguntas”.
Neste livro, Andruetto levanta uma série de interrogações sobre a linguagem; a memória; a tarefa de mediadores, escritores e professores; as convenções que rodeiam os atos de ler e de escrever; e também sobre o publicar, pois há livros que chegam às mãos de leitores nos quais o autor ou o editor nunca havia pensado. Lida por adultos e jovens, com obras consideradas universais, Andruetto sabe muito bem que existe uma voz secreta e profunda na literatura, uma voz que procura, sem preconceitos, o seu leitor.
Nesses textos, María Teresa Andruetto dedica um papel preponderante ao mediador, que pode ser capaz de comunicar mundos distantes. Em seu ensaio sobre a poesia e as crianças, por exemplo, ela mostra alguns poemas dirigidos a adultos que, no entanto, seriam deliciosas experiências para os pequenos. E é aí que se torna determinante o esforço de um mediador de leitura, aquele que consegue estender pontes onde aparentemente não existiria qualquer possibilidade de conexão. Andruetto não apenas nos questiona: ela nos desafia e nos convida a olhar por outro ângulo. Isso se torna claro quando fala sobre a difi-
A leitura, outra revolução 13
culdade de ler. Pondera com frequência sobre o desfrute da leitura que deixa de lado sua complexidade: a dificuldade de nos depararmos com textos que nos superam, que não compreendemos à primeira vista, mas que parecem uma semente que germinará de maneira inesperada num momento de mais maturidade de leitura. Para superar essa dificuldade, é necessário que o mediador também abra caminho para esses textos mais difíceis, que não se conforme que os leitores leiam qualquer coisa, contanto que leiam. Deve aproximá-los dos melhores livros; se não o fizermos, como esperar que rechacem um livro ruim?
“Tirar o aspecto milagroso dos programas de leitura”, pede Andruetto, num momento em que as iniciativas para criar campanhas, organizar congressos e fazer pesquisas se multiplicam. Este chamado me parece importante porque vem de uma mulher cuja primeira vocação foi a de ser professora. Ela trabalhou por muitos anos com crianças e jovens em oficinas de leitura e de escrita. Sua vida e sua obra são testemunhos do sentido social que pode ter o trabalho de um autor.
Compartilho com ela a visão de que ler significa “recuperar a condição humana”, de que é necessário ir adiante e propor, juntamente com o prazer de ler e abraçar as palavras, uma leitura crítica e transformadora. Por sua experiência como docente, Andruetto considera a escola uma igualadora social, pois reduz a brecha entre as crianças que provêm de lares onde o livro está presente e de lares onde o livro está ausente.
Andruetto também escreve sobre o autoconhecimento a partir da criação literária. O significado pessoal do que escrevo, assinala ela, se alimenta de um bem comum, e por isso ele retorna à sociedade. O escritor como testemunha, dono de um olfato para seguir os rastros do mundo, e o escritor como imaginador, que intui o que poderia ter sido: uma espécie de eixo ou de guardião do tempo das palavras, alguém que testemunha e transforma, que empresta a outros a voz que lhes falta.
O caminho da leitura é o da liberdade, mas, na América Latina, contexto abarcado por Andruetto, trata-se de uma liberdade difícil pela grande desigualdade existente em tais países. O direito à leitura não está garantido para todos e, por isso, ganha maior relevância a concepção da
María Teresa Andruetto
Este livro reúne textos escritos por María Teresa Andruetto em momentos distintos e com propósitos diferentes, muitos deles pronunciados em congressos, colóquios e outros encontros sobre a leitura. Todos foram revistos e corrigidos por ela para esta publicação. Como em suas obras de ficção, ao ler esses ensaios temos a sensação de sermos acolhidos num lar. A voz que nos recebe ao calor de uma lareira nos fala e se torna rapidamente próxima e familiar. A leitura, outra revolução é uma autobiografia emocional, intelectual e literária da escritora de Córdoba. Passar destes ensaios para seus contos, seus romances e sua poesia é inevitável.
Para nós, seus leitores, os pensamentos de Andruetto vêm com uma advertência ou uma promessa: “as portas que se abrem trazem consequências”.
Socorro Venegas
Escritora mexicana premiada e editora
A leitura, outra revolução 15 leitura como bem público, como um direito que deve ser de todos. Andruetto resgata a reflexão sobre o tema da inclusão em sua conferência “Que todos signifique todos, mas o que é todos?”. É certo que a leitura não é o que há muito já foi: “uma possibilidade, um privilégio e um poder reservados a poucos”. Entretanto, justamente porque hoje o acesso é maior, ainda que insuficiente, é pertinente voltar a pensar que significado e que possibilidade contém esse ato tão simples e sempre surpreendente que é acompanhar alguém em suas primeiras leituras.
A própria vida
Fuicriada em uma pequena cidade, no país de um continente que divide, em sua quase totalidade, uma só língua. Apesar da esmagadora maioria de falantes, já que se trata da voz de mais de 500 milhões de pessoas, a literatura desta língua ocupa um lugar de certo modo periférico na tradução para outros idiomas. Este meu castelhano, berço do barroco e do conceptismo, é e não é, como sabemos, uma língua única, e sim múltiplas variantes desenvolvidas na Espanha e em nossos países latino-americanos, mestiçados pelas populações originárias e por contribuições africanas, europeias e asiáticas, povos que, escravizados, submetidos, aceitos ou bem-vindos, impregnaram nossos modos de dizer e pensar. Escrevemos, ilustramos, editamos e construímos leitores inseridos numa rede de tensões políticas, culturais e econômicas… A riqueza consiste em vivermos conscientes de nosso lugar no mundo se quisermos aproximar os frutos de nossa subjetividade aos territórios alheios.
Viver conscientes é também defender nossas particularidades como indivíduos e como povos. Persiste a solicitação para que os livros unifiquem seus assuntos e os usos do idioma e para que se tornem um pouco neutros, mas a literatura busca no particular o palpitar da língua, em seu permanente e instável movimento. Muitas vezes, me disseram que meus livros são “muito argentinos”, mas creio que é justamente aí, nos matizes da língua, que reside o desafio de um escritor, seu campo de batalha. Quanto mais nos afundamos no particular e menos padronizada é nossa escrita, mais difícil se torna sua exportação. No meu caso, há mais dificuldade, pois alguns dos meus livros foram escritos
A leitura, outra revolução 17
a partir das diferenças do castelhano argentino nas diversas regiões de meu país, e não porque eu quis fazer um panorama dos modos de falar de minha terra, mas porque, num e noutro caso, foi o narrador eleito quem me pediu. Imagino um narrador e procuro escutar como ele fala; é ele quem abre a porta, quem me indica o caminho a seguir. Tenho vivido o ato de escrever como trincheira da língua, uma defesa do que é mais propriamente meu, uma intenção de capturar esse animal feito de palavras com o desejo de ali encontrar algo para oferecer aos outros, o caminho para o próprio modo de dizer. Descendo de imigrantes, de pobres e desterrados. Desde que me lembro, e certamente antes disso, ouvi histórias de pessoas que há muito haviam chegado à América, homens e mulheres cujos episódios de vida adquiriam relevância no relato. Fui criada por uma mãe que gostava de contar e escutar histórias e por um pai que havia deixado sua família na Itália e contava infinitas vezes sua longa viagem à Argentina, assim como o encontro com minha mãe. Cresci numa pequena cidade da planície argentina, entre pessoas ao mesmo tempo melancólicas e pragmáticas, numa família com fome de conhecimento, numa casa onde sempre existiram livros e na qual se contava com muitos detalhes o passado de quem havia estado ali antes – talvez por isso me fascine o extraordinário que habita a vida de cada um de nós, o extraordinário da própria vida.
Em relação a essa familiaridade com os relatos e os livros, com a ideia de que eu devia saber um pouco de tudo para poder habitar no mundo, lembro-me do momento em que descobri na cozinha da minha casa, num livro da época, que esses desenhos chamados letras podiam se unir e formar palavras e que essas palavras eram os nomes das coisas. Não se tratava de literatura, era a própria vida que, assim supunha eu, se apresentava dessa maneira para todos, em todas as casas e em todas as famílias. Anos mais tarde, compreendi que nem todas as crianças tinham acesso aos livros, e isso fez com que minha vida tomasse certo rumo, ou seja, o de trabalhar na formação de leitores.
María Teresa Andruetto
padeira… e quem vê é o pai, engatinhando por debaixo da árvore e organizando uma pirâmide de pacotes. Ante a evidência, se pergunta: “Sook sabia da verdade e mentiu para mim? Não, Sook nunca me havia mentido… Ela acreditava… ainda que tivesse sessenta e tantos anos, de alguma maneira era tão criança quanto eu”. Sentei-me ali a pensar. “Agora sou eu quem terá de dizer a verdade a Sook”. O que se segue é o menino enganando o pai e o pai que, em seu desespero, bebe e insulta a família de loucos que o cria, um menino de seis anos, quase sete, falando de Papai Noel, tudo isso é culpa dessas velhas solteironas com suas Bíblias… E o doloroso remate, a frase que espeta cada vez que a lemos: “Às vezes, santo céu, penso que tua mãe e eu, os dois, deveríamos nos dar um tiro por ter permitido que isso acontecesse”. No ônibus que o leva de volta para o Alabama, o acomete um estranho mal-estar, uma dor angustiante. Pensei que se tirasse os sapatos pesados da cidade, a dor iria embora, mas a dor ficou ali, nunca mais o abandonou, embora a velha tenha encontrado em sua desconcertante humanidade alguma maneira de liquidar o assunto: é claro que existe Papai Noel. Só que é impossível que uma só pessoa faça tudo o que faz ele. Por isso o Senhor distribuiu o trabalho entre todos nós. Como disse o mesmo Capote, em Música para camaleões, é que uma coisa, mesmo sendo verdade, não significa que seja convincente nem na vida, nem na arte.
O paraíso é uma árvore
Em um de seus poemas fundamentais, Borges diz que imaginava o paraíso sob a forma de uma biblioteca. Eu, quando menina, o imaginava como um exemplar gigantesco da árvore de mesmo nome, sob a qual todas as coisas poderiam acontecer. Uma árvore-do-paraíso maior do que as reais, com suas flores lilases lá em cima, no céu. Havia muitas na minha rua e na minha cidadezinha, até que um prefeito mandou cortá-las para asfaltar. Debaixo dessa sombra em que nada cresce, nós, as meninas do bairro, enfileirávamos colares e pulseiras com os estig-
María Teresa Andruetto
mas de suas flores arroxeadas e decorávamos tortinhas de barro com os carocinhos verdes, mais tarde amarelos, de cheiro putrefato. Éramos proibidas de pôr os frutos na boca porque, embora seja alimento delicioso de papagaios, são venenosos para seres humanos e mamíferos.
A medicina popular os utiliza como purgante ou abortivo, e o extrato obtido por maceração tem propriedades inseticidas usadas para o controle biológico de pragas. Melia azedarach, cinamomo ou amargoseira: assim também é conhecida essa árvore, a primeira a se tornar amarela no outono. Também é chamada de orgulho-da-Índia, lilás-da-Pérsia, lilás-da-China, árvore-sombrinha… Foi debaixo de uma árvore-do-paraíso onde aconteceu o primeiro fato sinistro de que me lembro. A alguns metros da minha casa, em frente à escola, havia um pátio repleto dessas árvores. Num dos primeiros dias de aula, no primeiro ano, correu entre os alunos a notícia de que um homem havia se enforcado num paraíso. Eu não sabia o que significava enforcar-se, e tinha apenas alguma ideia acerca da palavra morrer, mas as vozes baixas, os cochichos dos adultos, falavam de algo obscuro, secreto, inquietante. Cruzamos em bando a rua que nos separava da calçada de terra e do cercado coberto de madressilvas, tratando de ver por trás do tecido de alambrado qual era, entre as muitas árvores, aquela onde estava o homem. Não me recordo de termos visto alguma coisa, talvez já o tivessem retirado e só restava do sinistro a ausência daquele que se havia enforcado. Tenho na memória um ponto escuro no fundo do pequeno bosque, porque tratava de imaginar que era ali, que era aquele, que era lá, como diziam os meninos mais adiantados… Até que a senhorita Herzia (em nossa pequena cidade também habitava o extraordinário) veio por nossa causa e nos fez voltar à escola. Cada vez que vou à casa de minha mãe, passo em frente à escola e em frente ao pátio, de modo que volto um pouco àquela lembrança distante, a do vizinho de todos nós que, certa noite, perdeu o sentido de viver e se enforcou numa árvore no pátio da casa da esquina, a que tinha um bar e um armazém. Sempre soube qual era o nome do homem que envolvia o açúcar cuidadosamente em papel-cartão, mas ainda que agora me pareça insólito,
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nunca me havia dado conta do significado desse nome. Ele se tornou evidente há alguns dias, em minha última visita ao povoado. Don Parola se chamava. Senhor Palavra…
Artigos publicados entre 2011 e 2013 em Deodoro, gaceta de crítica y cultura, Universidade Nacional de Córdoba, Argentina.
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170 María Teresa Andruetto
Sobre a autora
María Teresa Andruetto nasceu na Argentina em 1954 e há mais de três décadas se dedica à literatura infantil. Seus livros são lidos tanto por jovens leitores como por adultos, o que ilustra como sua obra é capaz de romper barreiras geracionais.
Andruetto fundou centros de estudo e revistas especializadas, tomou parte da consolidação de planos de leituras e é professora convidada em muitos cursos de graduação e pós-graduação, além de participar de congressos, seminários, feiras e encontros em seu país e no exterior.
Dentre outros prêmios recebidos, María Teresa Andruetto foi agraciada em 2012 com o Prêmio Hans Christian Andersen, considerado o mais importante prêmio literário da literatura infantojuvenil.
A leitura, outra revolução 171
Fontes Bembo Book mt Pro
Papel Supremo Alta Alvura 250 g/m² (capa), Pólen Natural 80 g/m² (miolo)
Impressão Gráfica Maistype
Data Novembro de 2024
Esta obra reúne textos apresentados em encontros sobre literatura para crianças e jovens e promoção da leitura. Sob uma perspectiva crítica, a premiada escritora María Teresa Andruetto aponta diversos caminhos para refletir sobre o significado da leitura. Em vez de privilegiar a quantidade de livros lidos, ela discorre sobre a qualidade do que lemos. Para isso, afirma que a literatura é um espaço de desacato, capaz de fazer os leitores contornarem riscos e enfrentarem contradições e todo tipo de pergunta. No ato de ler, um livro se converte em ser vivo capaz de nos interrogar, perturbar e ensinar a olhar zonas ainda não compreendidas de nós mesmos. Ler faz com que sejamos capazes de apreender que a única liberdade que se constrói é a liberdade de pensamento. Para a autora, esta é a necessária revolução no terreno da leitura.