COPACABANA

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ISBN 978-85-7326-683-2

ISBN 978-85-9493-078-1

Zuza Homem de Mello

Copacabana A trajetória do samba-canção (1929-1958)

Zuza Homem de Mello

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Novo livro de Zuza Homem de Mello, fruto de mais de dez anos de pesquisas, Copacabana documenta a história completa de um dos gêneros mais importantes da nossa música: o samba-canção. Desde seu surgimento no teatro de revista, com o sucesso da gravação de “Linda flor”, por Aracy Cortes, em 1929, até o advento da bossa nova em 1958, o samba-canção foi um dos gêneros preferidos de compositores da estirpe de Ary Barroso, Caymmi, Cartola, Lupicínio, Tom Jobim e até mesmo Noel Rosa, cuja obra, como demonstra Zuza, inclui várias composições que na verdade já eram legítimos sambas-canção. Com o fechamento dos cassinos em 1946, boa parte do meio artístico da então capital federal migrou para boates e clubes noturnos, que se concentraram especialmente em Copacabana, bairro-ícone do Rio de Janeiro. Entre 1946 e 1958 o samba-canção foi o gênero de maior sucesso da música brasileira. Com seu cativante ritmo, propício para se dançar colado ao parceiro, e sua temática romântica, ele invadiu a noite carioca e conquistou o país nas vozes de intérpretes como Linda Batista, Dick Farney, Dalva de Oliveira, Nora Ney, Elizeth Cardoso, Dolores Duran e Maysa — as duas últimas também excelentes compositoras. Ao mesmo tempo que o samba-canção cultivava harmonias mais sofisticadas e modulações, que abriram caminho para a bossa nova, ele tinha também uma vertente extremamente popular, com campeões de vendas como Angela Maria, Nelson Gonçalves e Cauby Peixoto. Estudo amplo, profundo e fartamente ilustrado, este livro tem mais uma qualidade essencial: ele nos faz reviver uma época áurea do Rio de Janeiro, guiados pelo texto vibrante e caloroso do autor, um dos maiores conhecedores de música em nosso país.

Copacabana

traram após o decreto do presidente Dutra fechando os cassinos. O perfil biográfico de Dick Farney é, aliás, um dos pontos altos do livro, que aborda também a vida de todos os principais compositores do gênero e suas obras, como Ary Barroso, Noel Rosa, Herivelto Martins, Antonio Maria, Dorival Caymmi, Lupicínio Rodrigues, Cartola, Luiz Bonfá, Billy Blanco e Tom Jobim — incluindo nomes menos conhecidos e não menos importantes como Custódio Mesquita, José Maria de Abreu, Luís Antônio e Valzinho; arranjadores e instrumentistas como Radamés Gnattali, Garoto e Fafá Lemos (estes dois integrantes do fundamental Trio Surdina); e intérpretes como Linda Batista, Aracy de Almeida, Dalva de Oliveira, Miltinho, Nora Ney, Doris Monteiro, Elizeth Cardoso, Angela Maria, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto, Os Cariocas, Sylvia Telles e os cantores-compositores Tito Madi, Dolores Duran e Maysa — artistas cuja produção na época foi toda registrada em discos de 78 rotações e LPs de dez polegadas. Outro destaque do livro é a análise das letras e das melodias dos sambas-canção, em que se demonstra que o gênero foi fundamental para a modernização da nossa música popular. Seu ritmo mais lento, além de ideal para o casal dançar juntinho, permitiu aos compositores uma grande sofisticação das harmonias, com os recitativos (espécie de introdução às canções) e, principalmente, com as modulações, em que tonalidades diferentes e cromatismos são introduzidos nas frases musicais, antecipando o advento da bossa nova. Por tudo isso Copacabana deve se tornar obra de referência dentro dos estudos musicais no Brasil, além de permitir a seus leitores o gosto de se transportar para um verdadeiro paraíso sobre a Terra que era o Rio de Janeiro dos anos 30, 40 e 50.

É sempre um prazer enorme ler um texto de Zuza Homem de Mello. Por um lado, o autor dispensa apresentações, sendo um dos maiores conhecedores de música em nosso país. Mas existe algo a mais. É o jeito que ele escreve. O fato de ter sido contrabaixista, técnico de som, apresentador de programas de rádio, jornalista cultural e produtor de shows e discos (sendo que exerce várias dessas atividades até hoje) lhe permitiu um acesso especial aos bastidores do meio artístico e aos próprios músicos. Dessa forma, ele presenciou pessoalmente muito do que conta em seus livros, e isso dá um sabor todo especial a sua escrita. Para os leitores, é como se um velho amigo estivesse confidenciando algo que testemunhou, compartilhando as situações que teve o privilégio de vivenciar. Este novo livro, Copacabana: a trajetória do samba-canção (1929-1958), não é diferente. Zuza consegue a proeza de nos fazer reviver toda uma época do Rio de Janeiro, como se estivéssemos lá com ele, tomando sol na praia mais famosa do mundo, passeando no calçadão, indo ao cinema no Rian, assistindo a um show no Casablanca, tomando um uísque no Vogue ou cavando um convite para o Baile dos Cafajestes. E mesmo os fatos que não pôde presenciar, que recuam aos anos 30 e 40, são recriados por meio das muitas entrevistas que o autor fez com os artistas daquele tempo. É assim que se estrutura esta história do samba-canção, que traça a sua trajetória completa desde o surgimento nos teatros de revista até seu auge entre 1946 e 1958, quando se torna o gênero musical de maior sucesso no Brasil. Como símbolo do livro, Zuza adota a música “Copacabana”, de João de Barro e Alberto Ribeiro, lançada por Dick Farney em 1946 — assinalando aí o icônico bairro do Rio onde as casas noturnas se concen-

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Copacabana

Recitativo (à guisa de prólogo)

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SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli Edições Sesc São Paulo Gerente Marcos Lepiscopo Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Cristianne Lameirinha, Clívia Ramiro, Francis Manzoni Produção editorial Antonio Carlos Vilela Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel

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Copacabana A trajetória do samba-canção (1929-1958)

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Editora 34 Ltda. Rua Hungria, 592 Jardim Europa CEP 01455-000 São Paulo - SP Brasil Tel. 55 11 3811-6777 www.editora34.com.br Edições Sesc São Paulo Rua Cantagalo, 74 - 13º/14º andar CEP 03319-000 São Paulo SP Brasil Tel. 55 11 2227-6500 edicoes@edicoes.sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes /edicoessescsp Copyright © Editora 34 Ltda./Edições Sesc São Paulo, 2017 Copacabana: a trajetória do samba-canção © Zuza Homem de Mello, 2017 a fotocópia de qualquer folha deste livro é ilegal e configura uma apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.

Imagem da capa: Photo by Genevieve Naylor/Corbis via Getty Images Capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Bracher & Malta Produção Gráfica Digitalização e tratamento das imagens: Cynthia Cruttenden Preparação de texto: Ercilia Lobo Revisão: Beatriz de Freitas Moreira 1ª Edição - 2017 CIP - Brasil. Catalogação-na-Fonte (Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ, Brasil) Mello, Zuza Homem de, 1933 M386c Copacabana: a trajetória do samba-canção (1929-1958) / Zuza Homem de Mello. — São Paulo: Editora 34/Edições Sesc São Paulo, 2017 (1ª Edição). 512 p.

ISBN 978-85-7326-683-2 (Editora 34) ISBN 978-85-9493-078-1 (Edições Sesc São Paulo)

1. Samba-canção. 2. Música popular Brasil - História e crítica. I. Título.

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CDD - 780.9

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Copacabana A trajetória do samba-canção (1929-1958)

Recitativo (à guisa de prólogo)..................................................... 9 1. Um paulistano no Rio............................................................ 13 2. A praia................................................................................... 31 3. O teatro de revista................................................................. 47 4. As vozes das rádios................................................................ 69 5. Os cassinos............................................................................ 103 6. O tema, o disco, o cantor....................................................... 127 7. Os cafajestes.......................................................................... 157 8. Os presidentes........................................................................ 169 9. O sambolero.......................................................................... 187 10. O café society......................................................................... 215 11. O mineiro carioca, o baiano carioca, o paraense carioca, os pernambucanos cariocas e os cariocas da gema............................................................. 251 12. As damas e as divas................................................................ 297 13. O refúgio barato dos fracassados no amor............................. 347 14. Os modernistas...................................................................... 411 Agradecimentos............................................................................ 467 Índice das músicas citadas............................................................ 470 Índice onomástico........................................................................ 484 Bibliografia e fontes consultadas.................................................. 501 Créditos das imagens.................................................................... 508 Sobre o autor............................................................................... 510

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Jairo Severiano, meu querido amigo e parceiro leal, este livro é dedicado a você. Não somente por compartilharmos reflexões sem conta, como por ter você abastecido o texto com sugestões e informações preciosas ao longo de sua feitura nesses treze anos. Por sua generosidade, reconhecida pelos que lidam com nossa música no país, sobretudo os mais jovens, sempre atendidos com seus ensinamentos enriquecedores. Por sua vida, exemplo de dignidade. Pela música e pelo futebol, nossas paixões em comum. Saudações tricolores, Zuza Homem de Mello

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O samba-canção “Fósforo queimado” na gravação de Angela Maria em disco de 78 rotações lançada em setembro de 1953.

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A ideia deste livro surgiu em 2002, quando fui convidado a montar o repertório de um CD com canções dos anos 1950. À medida que me embrenhava ouvindo minha coleção de discos, fui revivendo com inebriante prazer os sambas-canção que faziam parte da minha memória desde a juventude. Ali estava o tema para um estudo que constituía uma grande lacuna da nossa literatura especializada, um livro sobre o samba-canção. Seu título já piscava flagrante na minha frente como uma manchete de jornal: Copacabana. Em 2004 ataquei o projeto. Iniciando-se em 1929, o período mais importante do samba-canção vai de 1946 até meados de 1958, antecipando a bossa nova, que o sucedeu. Sua importância se deve à transição ocorrida na canção brasileira em direção à modernidade, que tem um interessante paralelo na história da música clássica. Nos séculos XVI e XVII, o cremonense de nome imponente Claudio Monteverdi é considerado o representante máximo de uma revolução que abalou os princípios da tradição musical de seu tempo, ao introduzir em ­suas óperas harmonias dissonantes, cromatismos, novos intervalos, o recitativo e os trêmulos para cordas. Sua modernidade pode ser definida como o avanço que se deu em relação à sua época. Como em outras ocasiões no universo da arte, o samba-canção foi isso, fez a música brasileira avançar. Registrado em discos de 78 rotações e nos primeiros LPs brasileiros de 10 polegadas, era executado ao vivo nas boates de Copacabana com uma singular cumplicidade da sociedade carioca, dos colunistas sociais e dos cronistas da imprensa que, neste caso, acabaram se vinculando com a música popular como nunca se vira antes. Vinha tudo desse bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro. Ao longo de doze anos, o gênero musical mais cultivado na cidade transformou-se em mania nacional. Recitativo (à guisa de prólogo)

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Dominada pelo samba-canção, a vida noturna do Rio era a sedutora vitrine que o restante do Brasil contemplava e invejava nos derradeiros anos da metrópole como capital federal. Uma vez no Rio de Janeiro, Copacabana é que era bacana. Reproduzo o último parágrafo do encarte daquele CD, do grupo vocal Trovadores Urbanos: “Esse período foi como um preparatório para a revolucionária bossa nova, que explodiria logo a seguir. Foi ainda uma fase inusitada, já que conviveram em harmonia duas gerações diferentes: alguns dos maiores compositores dos anos 1930, como Ary Barroso de um lado, e os novos que surgiam, como Dolores Duran, de outro. Unidos pelo glamour. As melodias dessa época formam um significativo capítulo da memória musical brasileira: ‘Copacabana’, ‘Se queres saber’, ‘Zum-zum’, ‘Bar da noite’, ‘Encontro com a saudade’, ‘Nossos momentos‘, ‘Sábado em Copacabana’ e ‘Kalu’ são preciosidades de uma época de boemia pura, que a neblina do tempo tenderia a desvanecer, não tivessem tais canções o brilho ofuscante das gemas de uma mina da música popular.” Não é que tenha dedicado integralmente treze anos para escrever o livro. Feitos os primeiros capítulos em 2004, quando também colhi alguns depoimentos, acabei sendo impelido a fazer outros três livros, Música nas veias (2007), Eis aqui os bossa-nova (2008) e Música com Z (2014), além de revisar e ampliar com meu querido amigo Jairo Severiano os dois volumes do nosso A canção no tempo (2015). Isso para falar só de livros. Não é a primeira vez. O projeto fica engavetado, aguardando o estalo que nem sempre tem a ver com a oportunidade. De repente o tema reaparece como uma necessidade imperiosa, sem explicação, como não tem explicação por que cargas d’água surgem ideias e soluções nas minhas caminhadas matinais ou no meio da noite, quando desperto com uma frase pronta, acendo a luz, anoto e volto a dormir sossegado. Processos semelhantes, que fazem parte da vida de jornalistas, escritores e compositores, nunca são esclarecidos satisfatoriamente. Neste Copacabana foram vezes sem conta. Peço licença aos leitores para sugerir que tentem entoar a melodia das letras das canções mencionadas no texto. Além de cooperar para o melhor proveito do livro, asseguro que terão grande prazer. Aos que desconhecem uma ou outra, ou querem escutá-las novamente, os apêndices ao final do volume podem oferecer ajuda para acessar as gravações através da internet, ilustrando as canções deste livro. Foram preparadas 10

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playlists das melhores gravações de sambas-canção, que podem ser acessadas no Spotify, na Apple Music e no YouTube, procurando pelo mesmo título deste livro. Quero agora deixar vocês na companhia do bairro e das canções. O bairro projetou o Rio de Janeiro nos anos 1950 para o mundo, e a música foi a mais ouvida no Brasil durante boa parte desses anos. Copacabana e o samba-canção. Zuza Homem de Mello

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Frota de ônibus da Viação Cometa na Via Dutra, estrada que liga São Paulo e Rio de Janeiro, inaugurada em 19 de janeiro de 1951.

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Capítulo 1

Um paulistano no Rio

Mesmo depois de perder o status político, a antiga capital do Brasil continuou sendo uma metrópole incomparavelmente mais charmosa, consideravelmente mais atraente e visivelmente mais chique que sua sucessora do planalto central. A cidade mais cosmopolita do país enredava o visitante em menos de três tempos. Emitia luz faiscante que o atiçava a querer viver como carioca nem que fosse por alguns dias, ou mesmo umas tantas horas. Férias no Rio era uma extravagância cobiçada por todos. As aventuras começavam no dia da partida para a capital brasileira dos sonhos. Nos anos 1950, os reluzentes ônibus prateados com detalhes em azul e bege partiam de São Paulo para o Rio de Janeiro da acanhada agência da Viação Cometa, no térreo do edifício Guanabara, na esquina das avenidas Ipiranga e Rio Branco. Numerados de 501 a 530, os ônibus GM Coach, de sua frota recém-importada, os mais macios do Brasil, eram equipados com ar-condicionado, espaçosas poltronas e quatro grandes janelas panorâmicas de vidro fumê. Pela pista simples da Via Dutra, com uma primeira parada em Roseira e a segunda próxima a Resende, na divisa entre os dois estados, a viagem tinha lá seu estilo. No que se descia para o lanche da terceira parada, ao pé da serra das Araras, já se antecipava em cada degrau as emoções que a brisa quente da baixada fluminense desprendia como um sinal de boas-vindas. Nada se avistava, mas o Rio tropical, quase sempre quatro a cinco graus acima da média costumeira no planalto de Piratininga, estava lá. No horizonte. Além do olhar. Uma tortura, a interminável avenida Brasil, sem a menor afinidade com a ajardinada homônima paulista, era percorrida impacientemente até a chegada ao destino final, a rodoviária carioca, em pleno centro da cidade. A viagem no lotação “E. Ferro-Leblon” era prova de fogo para o paulista provinciano. Ele deveria saber que “E. Ferro” era o ponto final Um paulistano no Rio

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da concorrida linha de lotações e ônibus defronte à estação ferroviária Dom Pedro II. Sem ligar a mínima para uns poucos forasteiros amedrontados a bordo, os motoristas tresloucados dirigiam micro-ônibus multicoloridos, fabricados sobre carrocerias Mercedes, voando baixo pela avenida Rio Branco até atingir a praia do Flamengo. Girando habilidosamente o enorme volante no sentido horário ou anti-horário, abriam caminho entre os automóveis e os ônibus para ocupar sempre a primeira posição diante do semáforo, o sinal luminoso conhecido em São Paulo como farol de trânsito. Não estavam nem aí para as guinadas que por pouco não despachavam os passageiros dos bancos para o corredor do ônibus. Conduziam o veículo de transporte público como se estivessem a bordo de um lotação vazio, dirigindo de calças arregaçadas com as canelas peludas de fora. Trocavam as marchas com tapões na alavanca do câmbio, que era encabeçada por uma esfera de galalite transparente com cadáveres de insetos de pernas para o ar em seu interior. O delicioso vento que invadia a cabine ganhava fácil daquele pavor incontrolável que só se extinguia quando o micro-ônibus atingia a entrada oficial para o mundo de aventuras das férias, o túnel da Zona Sul. A curvatura elíptica do teto cinza de granito polido do túnel lhe conferia mais elegância que o da avenida Nove de Julho, seu único concorrente na capital paulista. Um tio meu dizia que o prefeito paulistano Prestes Maia, seu colega, aproveitou a fôrma estreita e usada de um túnel ferroviário para economizar na sua construção. No final do túnel carioca, o sol invadia novamente o interior do lotação, deixando os temores para trás. Zunindo, o motorista contornava a curva bem aberta para deixar a Princesa Isabel antes de enveredar pela direita e continuar ziguezagueando desembestado no trânsito infernal da Barata Ribeiro. Aí sim, a vida era outra. Bastava se livrar do lotação, caminhar pela calçada de mala na mão e aspirar à glória em cor azul e de gosto salgado. Copacabana. A praia original de Copacabana, a da areia que era uma farinha deslizante cantando em suspiros a cada passada, é agora o cenário diante dos nossos olhos. É a praia das ondas colossais a dar carona aos banhistas que deslizam à flor d’água deitados sobre a tábua de jacaré, a vovó da prancha de surfe. Deliciosas condutoras de um prazer silencioso, as ondas que devem ser abordadas no instante preciso, antes da rebentação, alteiam-se a mais de um metro de altura, vão emagrecendo, perdendo o ímpeto para se espumar como a clara de ovos nevados na beira da praia onde o vozerio impera solto. 14

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A praia de Copacabana no inĂ­cio dos anos 1940. Um paulistano no Rio

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Copacabana A trajetória do samba-canção (1929-1958)

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Novo livro de Zuza Homem de Mello, fruto de mais de dez anos de pesquisas, Copacabana documenta a história completa de um dos gêneros mais importantes da nossa música: o samba-canção. Desde seu surgimento no teatro de revista, com o sucesso da gravação de “Linda flor”, por Aracy Cortes, em 1929, até o advento da bossa nova em 1958, o samba-canção foi um dos gêneros preferidos de compositores da estirpe de Ary Barroso, Caymmi, Cartola, Lupicínio, Tom Jobim e até mesmo Noel Rosa, cuja obra, como demonstra Zuza, inclui várias composições que na verdade já eram legítimos sambas-canção. Com o fechamento dos cassinos em 1946, boa parte do meio artístico da então capital federal migrou para boates e clubes noturnos, que se concentraram especialmente em Copacabana, bairro-ícone do Rio de Janeiro. Entre 1946 e 1958 o samba-canção foi o gênero de maior sucesso da música brasileira. Com seu cativante ritmo, propício para se dançar colado ao parceiro, e sua temática romântica, ele invadiu a noite carioca e conquistou o país nas vozes de intérpretes como Linda Batista, Dick Farney, Dalva de Oliveira, Nora Ney, Elizeth Cardoso, Dolores Duran e Maysa — as duas últimas também excelentes compositoras. Ao mesmo tempo que o samba-canção cultivava harmonias mais sofisticadas e modulações, que abriram caminho para a bossa nova, ele tinha também uma vertente extremamente popular, com campeões de vendas como Angela Maria, Nelson Gonçalves e Cauby Peixoto. Estudo amplo, profundo e fartamente ilustrado, este livro tem mais uma qualidade essencial: ele nos faz reviver uma época áurea do Rio de Janeiro, guiados pelo texto vibrante e caloroso do autor, um dos maiores conhecedores de música em nosso país.

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traram após o decreto do presidente Dutra fechando os cassinos. O perfil biográfico de Dick Farney é, aliás, um dos pontos altos do livro, que aborda também a vida de todos os principais compositores do gênero e suas obras, como Ary Barroso, Noel Rosa, Herivelto Martins, Antonio Maria, Dorival Caymmi, Lupicínio Rodrigues, Cartola, Luiz Bonfá, Billy Blanco e Tom Jobim — incluindo nomes menos conhecidos e não menos importantes como Custódio Mesquita, José Maria de Abreu, Luís Antônio e Valzinho; arranjadores e instrumentistas como Radamés Gnattali, Garoto e Fafá Lemos (estes dois integrantes do fundamental Trio Surdina); e intérpretes como Linda Batista, Aracy de Almeida, Dalva de Oliveira, Miltinho, Nora Ney, Doris Monteiro, Elizeth Cardoso, Angela Maria, Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto, Os Cariocas, Sylvia Telles e os cantores-compositores Tito Madi, Dolores Duran e Maysa — artistas cuja produção na época foi toda registrada em discos de 78 rotações e LPs de dez polegadas. Outro destaque do livro é a análise das letras e das melodias dos sambas-canção, em que se demonstra que o gênero foi fundamental para a modernização da nossa música popular. Seu ritmo mais lento, além de ideal para o casal dançar juntinho, permitiu aos compositores uma grande sofisticação das harmonias, com os recitativos (espécie de introdução às canções) e, principalmente, com as modulações, em que tonalidades diferentes e cromatismos são introduzidos nas frases musicais, antecipando o advento da bossa nova. Por tudo isso Copacabana deve se tornar obra de referência dentro dos estudos musicais no Brasil, além de permitir a seus leitores o gosto de se transportar para um verdadeiro paraíso sobre a Terra que era o Rio de Janeiro dos anos 30, 40 e 50.

É sempre um prazer enorme ler um texto de Zuza Homem de Mello. Por um lado, o autor dispensa apresentações, sendo um dos maiores conhecedores de música em nosso país. Mas existe algo a mais. É o jeito que ele escreve. O fato de ter sido contrabaixista, técnico de som, apresentador de programas de rádio, jornalista cultural e produtor de shows e discos (sendo que exerce várias dessas atividades até hoje) lhe permitiu um acesso especial aos bastidores do meio artístico e aos próprios músicos. Dessa forma, ele presenciou pessoalmente muito do que conta em seus livros, e isso dá um sabor todo especial a sua escrita. Para os leitores, é como se um velho amigo estivesse confidenciando algo que testemunhou, compartilhando as situações que teve o privilégio de vivenciar. Este novo livro, Copacabana: a trajetória do samba-canção (1929-1958), não é diferente. Zuza consegue a proeza de nos fazer reviver toda uma época do Rio de Janeiro, como se estivéssemos lá com ele, tomando sol na praia mais famosa do mundo, passeando no calçadão, indo ao cinema no Rian, assistindo a um show no Casablanca, tomando um uísque no Vogue ou cavando um convite para o Baile dos Cafajestes. E mesmo os fatos que não pôde presenciar, que recuam aos anos 30 e 40, são recriados por meio das muitas entrevistas que o autor fez com os artistas daquele tempo. É assim que se estrutura esta história do samba-canção, que traça a sua trajetória completa desde o surgimento nos teatros de revista até seu auge entre 1946 e 1958, quando se torna o gênero musical de maior sucesso no Brasil. Como símbolo do livro, Zuza adota a música “Copacabana”, de João de Barro e Alberto Ribeiro, lançada por Dick Farney em 1946 — assinalando aí o icônico bairro do Rio onde as casas noturnas se concen-

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