Giselle Beiguelman Artista e professora da FAU-USP, seu trabalho inclui projetos em rede, instalações multimídia e intervenções no espaço público. Foi curadora de Arquinterface: a cidade expandida pelas redes e é autora de Futuros possíveis: arte, museus e arquivos digitais (2014), entre outros.
espaço em obra trata da convergência entre cidade, arquitetura e arte no Brasil e no exterior, e está organizado em três temas principais. O primeiro discute o impasse do urbanismo ante os novos desafios que o desenvolvimento impõe. O segundo estuda esses dilemas globais com foco no Brasil. O terceiro analisa a arte e sua inserção na arquitetura e no urbanismo, concentrandose nas intervenções artísticas que dialogam com a cidade e os cidadãos.
oe ço em aço em o paço em ob spaço em obr espaço em obra ISBN 978-85-9493-076-7
apoio cultural
guilherme wisnik + julio mariutti
Daí a necessidade de chamar atenção para a sustentabilidade, apostando em soluções baseadas na reciclagem e no reaproveitamento como possibilidades construtivas. E é isso que se faz neste livro. Sem ceder à tentação de demonstrar fórmulas e resolver conflitos, este espaço em obra é um convite à interpretação das palavras e das coisas. Ele se abre ao leitor como um original de segunda geração, no qual se descreve em cada retorno um novo centro e outro possível recomeço.
Este livro é resultado da parceria entre uma coletânea de artigos publicados por Guilherme Wisnik, arquiteto, crítico de artes visuais e professor da FAU-USP, e a concepção visual do designer gráfico Julio Mariutti; uma experiência que se materializa na interseção do racional com o sensível.
espaço em obra
da cidade organizada como “Carrópolis”, um dos temas da 10a Bienal de Arquitetura, da qual Wisnik foi curador-geral, e que pontua vários momentos desta coletânea. Esse tipo de cidade é estruturada a partir da ilusão de liberdade que o automóvel nos dá, ainda que nos aprisionando no trânsito, poluindo o ambiente e consumindo desmedidamente combustível fóssil. Símbolo de um life style irresponsável, a Carrópolis corrobora uma tese cara a Wisnik, de que “o conceito de obsolescência programada está se deslocando dramaticamente das mercadorias para o próprio território do planeta”.
espaço em obra spaço em obr paço em ob aço em o ço em oe
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espaço em obra, de Guilherme Wisnik e Julio Mariutti, é um livro palimpsesto. Como os antigos pergaminhos que tinham o texto raspado para serem reescritos, aqui cada página remete a múltiplas camadas. Uma dessas camadas diz respeito ao diálogo autoral que Wisnik e Mariutti mantêm desde os tempos da revista Bamboo. Nela Wisnik escreveu uma coluna de 2012 a 2016, colocando a arquitetura, o urbanismo e a arte em diálogo com o design gráfico a partir das interlocuções com Mariutti. Outra camada aparece nos títulos. Desde o do livro, espaço em obra, referência à interpretação que o crítico Alberto Tassinari dá ao espaço moderno, até os das três partes que organizam o volume. O título da primeira parte, “O que aconteceu com o urbanismo?”, é uma citação de um ensaio do arquiteto Rem Koolhaas. O da segunda, “Gigantesco país da América”, retoma a expressão de Le Corbusier a respeito do Brasil. O último, “Artearquitetura”, é um neologismo que aponta para O complexo arte-arquitetura do crítico e professor emérito da Universidade de Princeton Hal Foster. A camada mais multifacetada é a da edição do conjunto dos textos. Ela apresenta, além dos 42 artigos publicados na Bamboo, cinco inéditos (“A informidade do informal”, “Lazer e jogo”, “Os lugares outros”, “Entre o lugar e o mapa” e “Vazio e sombra”). Reorganizados a partir de três chaves temáticas – os desafios do urbanismo, o Brasil e as relações entre arte e arquitetura –, os textos são articulados à temporalidade da leitura sequencial que o livro proporciona. Dessa forma, apesar de produzidos isoladamente e em diferentes épocas, formam um todo integralmente novo. Nele se avizinham, sem que se criem falsas continuidades, perfis analíticos de cidades como Tóquio, Shenzen, Brasília e São Paulo, e de artistas como Hélio Oiticica, Cildo Meireles, Gordon Matta-Clark e Michael Wesely, para citar alguns. Somam-se a eles verdadeiros portraits de arquitetos e estúdios, como Sérgio Bernardes, Vilanova Artigas, Lina Bo Bardi e Oscar Niemeyer; entre os internacionais, Tadao Ando, Herzog & de Meuron, Diller Scofidio e SANAA. Todos retratados a partir de suas obras. Não menos relevantes são as reflexões sobre o Plano Diretor municipal de São Paulo aprovado na gestão de Fernando Haddad, em 2014, frente aos impasses da cidade pós-industrial. Na mesma direção, vale o olhar retrospectivo para interrogar quais foram os desdobramentos, no campo da urbanização contemporânea, do “espetáculo do crescimento” do governo Lula. Entremeando esses temas, são colocadas discussões que nos levam a repensar a emergência de alguns fenômenos recentes e a persistência de outros. Por um lado, aparece a densidade de movimentos como Ocupe Estelita, no Recife, e Praia da Estação, em Belo Horizonte, que marcaram as formas de ativação do espaço público nas cidades brasileiras. Por outro, a vitalidade paradoxal, porque mortífera,
espaรงo em obra
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli Edições Sesc São Paulo Gerente Marcos Lepiscopo Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha, Francis Manzoni Produção editorial Antonio Carlos Vilela Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel
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© Guilherme Wisnik, Julio Mariutti, 2018 © Edições Sesc São Paulo, 2018 Todos os direitos reservados Preparação Antonio Carlos Vilela Revisão Sílvia Balderama, Karinna A. C. Taddeo Capa, projeto gráfico, diagramação e ilustrações Estúdio Lógos: Julio Mariutti Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) W762e
Wisnik, Guilherme
Espaço em obra: cidade, arte, arquitetura / Guilherme Wisnik; Julio Mariutti. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2018. –
208 p. il.
ISBN 978-85-9493-076-7 1. Artes. 2. Arquitetura. 3. Urbanismo. 4. Cidade. 5. Espaço. I. Título. II. Mariutti, Julio. CDD 710
Edições Sesc São Paulo Rua Cantagalo, 74 – 13º/14º andar 03319-000 – São Paulo SP Brasil Tel. 55 11 2227-6500 edicoes@edicoes.sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes /edicoessescsp
A Clarissa Schneider, que promoveu este encontro, nos deu espaรงo, e o colocou em obra
Sumário
9 10
Espaço em obra Introdução
13
O que aconteceu com o urbanismo?
16 20 24 28 32 36 40 44 48 52 56 60 64 68 72 76
Uma pós-cidade? A informidade do informal Lazer e jogo O que aconteceu com o urbanismo? Tóquio rizoma Negócios da China Valor de troca A obsolescência do mundo O spleen de São Paulo Cidade ou estrada? As bordas invisíveis da cidade Elogio da cidade densa Urbanizar os meios Bye-bye, Brasil Um outro mundo é possível? De volta à aldeia?
79
Gigantesco país da América
82 86 90 94 98 102 106 110 114 118 122 126 130 134 138
Redução poética da natureza A síntese das artes Arquitetura é música Intuição trágica e repouso Moderno indeterminado O inventor social O elogio do peso Arquitetura: modos de usar Antropofagia às avessas Do tabu ao totem Mundo museu Aleph Copan O público em curto-circuito Cortejo glacial Invasores fantasmas
141
Artearquitetura
144 148 152 156 160 164 168 172 176 180 184 188 192 196 200 204
Global roaming A utopia está de volta? Os lugares outros A partilha Entre o lugar e o mapa Artearquitetura Arquitetura: arte para as massas Minimalismo pop Consumo e ruína Mutilações anarquitetônicas Demolir jamais! Vazio e sombra A forma da matéria Ópera do tempo Reunificação sem unidade Sonambulismo lúcido
207
Sobre os autores
Espaço em obra
Em sua contínua metamorfose, a cidade – essa tentativa de espaço organizado de viver – se depara com a necessidade de reconfigurar planos urbanísticos originais para atender a novas realidades. Morar, trabalhar, locomover-se e divertir-se nas metrópoles são desafios para quem tem condições socioeconômicas de melhor equacioná-los e barreiras para aqueles que simples e rudemente sobrevivem nelas. Nesse contexto, fazer-se presente nos espaços públicos, propondo formas de ocupar o território, é uma necessidade premente dos cidadãos. Deles surgem novas ideias e iniciativas espontâneas, nem sempre harmônicas, que tornam a cidade também um lugar de reivindicação, resistência e protesto. Uma região central vocacionada à moradia, ao trabalho e ao lazer emerge, por vezes, como horizonte em destaque neste cenário, demandando-se a participação do poder público para que alternativas urbanísticas possam se fortalecer. Neste Espaço em obra, os artigos de Guilherme Wisnik dialogam com a linguagem visual em que Julio Mariutti reinterpreta os tópicos abordados. Numa interação semiótica entre as formas ensaística e gráfica, os textos foram agrupados a partir da convergência entre arquitetura, cidade e arte no mundo, com ênfase no contexto latino-americano. Nos centros de cultura e de lazer, a arquitetura é um elemento essencial. Ao condensar intencionalidades plásticas e funcionais, potencializa a capacidade de acolhimento, fruição e convivência. É nesse sentido que o Sesc participa do debate público acerca dessa temática, por meio de seminários, palestras e livros, manifestando sua crença de que conceber espaços é, também, criar projeções de futuro. Danilo Santos de Miranda Diretor Regional do Sesc São Paulo
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Introdução
Este livro reúne uma produção crítica de quase quatro anos em uma coluna fixa na revista Bamboo, de maio de 2012 a fevereiro de 20161. Penso que, nesse período, a Bamboo ocupou um espaço relevante na divulgação e na discussão de conteúdos nas áreas de arquitetura e design no Brasil. E isso foi feito a partir de uma linguagem visual ousada, marcada pelo uso de cores especiais e uma inventividade na exploração tipográfica e imagética pouco comum nos demais veículos existentes na área. Daí nasceu uma bela parceria entre os meus textos e a interpretação gráfica que a equipe do Estúdio Lógos, dirigida por Julio Mariutti, dava a eles – o que não deixou de influenciar o conteúdo dos textos seguintes. É essa parceria que está sendo reeditada aqui, pelas Edições Sesc São Paulo, em forma de livro. Muito mais do que uma coletânea de artigos, trata-se de uma particular conversa entre as formas ensaística e gráfica. Formas e conteúdos em diálogo. Ambos têm, aqui, um caráter autoral. O período de redação desses textos foi pleno de acontecimentos importantes, incluindo, por exemplo, a gestão de Fernando Haddad na prefeitura de São Paulo, dois megaeventos esportivos no Brasil, as “jornadas” de junho de 2013, a ocorrência de diversos movimentos de ocupação de espaços públicos no país e no mundo e a realização da 10a Bienal de Arquitetura de São Paulo, da qual fui curador, com Ligia Nobre e Ana Luiza Nobre. Nesse momento, se por um lado o conceito de urbanismo revelava sua exaustão no plano internacional, e o Brasil passava do “espetáculo do crescimento” para a derrocada política e econômica, por outro a gestão Haddad alinhava a cidade com questões de vanguarda na administração das cidades; o ativismo urbano no Brasil, guiado pela efervescência da sociedade civil, florescia sob a bandeira de novas utopias e heterotopias. Ao mesmo tempo, comemorava-se o centenário de figuras como Lina Bo Bardi e Vilanova Artigas, enquanto Oscar Niemeyer – já mais do que centenário – falecia. Organizado em três capítulos, o livro trata da convergência entre cidade, arquitetura e arte, tanto no Brasil quanto fora dele. No primeiro capítulo, “O que aconteceu com o urbanismo?”, tomo o título de um texto de Rem Koolhaas para tratar dos desafios atuais em relação à cidade no mundo, em um arco temporal que vai dos anos 1960 até hoje. No segundo, “Gigantesco país da América”, cito uma expressão de Le Corbusier em Precisões para aludir à particular relação entre território, paisagem e cidade no Brasil, atravessando os meandros das complexas relações entre as esferas pública e privada. E, por fim, no terceiro capítulo, “Artearquitetura”, faço uma contração entre as palavras arte e arquitetura para aludir a uma aproximação conceitual entre elas, tal como se pode deduzir a partir tanto de trabalhos concretos que explodem
10
1. Publicada de 2011 a 2017, a revista Bamboo foi criada e dirigida por Clarissa Schneider, com periodicidade mensal. Minha coluna se chamava “Espaço em obra”.
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e contestam a separação entre esses campos, quanto de conceitos teóricos, como o de “campo ampliado”, desenvolvido por Rosalind Krauss2, e o de “complexo arte-arquitetura”, por Hal Foster3. A relação entre arte e arquitetura envolve uma gama intrincada de questões. Por um lado, a reivindicação de artisticidade para a arquitetura, nos últimos tempos, serviu para cobrir de verniz estético uma produção cara e ostentatória que se afastou cada vez mais de programas sociais. Por outro, a investigação formal e processual que decorre de um engajamento não epidérmico com a arte se revela extremamente profícua para a arquitetura no embate com as questões do mundo contemporâneo, apontando para problemas originais e inquietantes. Do lado da arte, por sua vez, a incorporação da porosidade urbana, bem como da escala arquitetônica e da complexidade dos seus programas, revelou-se uma evidente ampliação de horizontes. Por fim, gostaria de explicitar a origem do título deste livro. Espaço em obra é uma expressão que me agrada, por denotar um ambiente em permanente estado de construção, como um canteiro de obras arquitetônico. Mais especificamente, sua escolha se deve ao impacto que a leitura do livro O espaço moderno4, de Alberto Tassinari, teve em mim. Contestando a recorrente valoração negativa do espaço moderno – a destruição do naturalismo ilusionista –, Tassinari desenvolve um conceito positivo, que denomina de “espaço em obra”. Com esse termo, refere-se a um espaço que, apesar de pronto, é percebido sempre como ainda se construindo. Um espaço para a exposição de determinadas operações que explicitam o fazer da obra e, nesse sentido, o imitam. Na medida em que não imitam mais o mundo visível, os trabalhos de arte moderna e contemporânea passam a imitar o seu próprio fazer, deixando na obra índices dessa reflexividade. Tal inacabamento estruturante, próprio da referencialidade moderna aprofundada na espacialidade contemporânea (chamada por alguns de pós-moderna), me pareceu inspirador para o espaço de uma coluna crítica e para a sua tradução em livro, com autoria compartilhada. Um lugar de disponibilidade, que deseja estimular o surgimento de outras obras. Guilherme Wisnik
2. Rosalind Krauss. “Sculpture in the expanded field”, em The Originality of the Avant-Garde and Other Modernist Myths, Cambridge (Mass.): The MIT Press, 1985. 3. Hal Foster, O complexo arte-arquitetura, São Paulo: Cosac Naify, 2015. 4. Alberto Tassinari, O espaço moderno, São Paulo: Cosac Naify, 2001.
O que aconteceu com o urbanismo?
Uma pós-cidade?
Nos anos 1980, o tema da virtualização do espaço urbano ganhou um real estatuto teórico. No livro O espaço crítico1, Paul Virilio toma o impacto das novas mídias eletrônicas como o motor de uma transformação profunda e inevitável da sociabilidade urbana. Pois, no mundo interconectado por meio de um espaço virtual que se mostra mais como duração temporal do que como espaço propriamente dito, afirma o autor, a superfície deixa de ser um limite e passa a se configurar como interface, inaugurando uma forma de relação em que se apaga o face a face humano, o contato urbano, em detrimento de um aumento da relação homem-máquina. Também no plano de uma vivência cotidiana mais imediata, em particular nos anos 1990, a rápida expansão dos sistemas de entrega e dos serviços de telemarketing, associados à flexibilização crescente dos regimes de trabalho, passando da formalidade à informalidade, dava de fato a impressão de que aquela diminuição da necessidade de compromisso presencial nos lugares esvaziaria num átimo o sentido historicamente herdado do espaço urbano como ambiente de encontro, de conflito, de choque de diferenças e de produção de contrastes e riquezas culturais. Diante do inevitável ocaso do flâneur baudelairiano, parecia que o urbano se converteria, assim, em um lugar de passagem, e que toda a sociabilidade se desenvolveria doravante de modo controlado, segregado e intramuros. Sintomaticamente, no final do século XX a aposta geral parecia estar na criação de uma nova cultura sedentária, pós-urbana e transnacional, paradoxalmente situada em megalópoles cada vez maiores em tamanho – porém destituídas de qualquer sentido coletivo de agregação – e baseada em um aumento vertiginoso dos fluxos reais e virtuais. Outro livro que marcou época, Não lugares2, de Marc Augé, trata exatamente de caracterizar a natureza dos espaços cada vez mais presentes e invisíveis nas cidades contemporâneas. São eles os ditos “não lugares”, isto é, os espaços destituídos de qualquer sentido de história ou pertencimento, como as margens das vias expressas urbanas, os terrenos invadidos, os acampamentos de refugiados, os complexos de hotéis, resorts e colônias de férias, os grandes terminais de transporte e consumo etc. Segundo a caracterização do autor, os “não lugares” compõem a essência da urbanidade no final do século XX, período chamado por ele de supermodernidade. De acordo com Augé, o usuário do não lugar estabelece com o espaço uma relação eminentemente contratual, cifrada no bilhete de embarque, no tíquete de pedágio, ou no carrinho que empurra nos supermercados... Só se conquista o direito ao anonimato após apresentar a prova de identidade, comprovando, assim, sua “inocência”, afirma Augé.
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1. Paul Virilio, O espaço crítico, São Paulo: Editora 34, 1993. 2. Marc Augé, Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade, Campinas: Papirus, 1994.
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Ocorre que, recentemente, uma série de sinais divergentes tem mostrado uma insuspeitada capacidade regenerativa da sociabilidade urbana, amparada pelas novas tecnologias de comunicação, demonstrando não um processo de virtualização alienante das relações, mas uma retomada enviesada do espaço público como lugar de encontro. Pois, com a difusão das redes Wi-Fi ligadas a aparelhos interativos e portáteis, esse novo “espaço público” virtualizado tem redirecionado as pessoas para as ruas. Um exemplo são as nuvens de mensagens SMS e de WhatsApp disparadas instantaneamente pelo celular por grupos de adolescentes em Tóquio, que se tornou um modo de criar novos e imprevistos encontros pela cidade3. Uma insuspeitada “deriva” contemporânea, numa megalópole em que o espaço privado é muitíssimo reduzido. Apesar de se tratar de um exemplo quase naïf, essa espécie de novo situacionismo de adolescentes japoneses incide exatamente sobre a questão tratada anteriormente. Passada a primeira voga apocalíptica dos apóstolos do fim da cidade, percebe-se que a virtualização tecnológica não substitui necessariamente a experiência urbana, podendo, em casos como esse, até atualizá-la em novas bases. Isso porque a miniaturização e a fusão de todos os serviços de comunicação em poucos ou apenas um aparelho eletrônico favoreceram ainda mais a mobilidade, e não o sedentarismo e o isolamento. O que me interessa discutir aqui é que não faz mais sentido pensar o espaço urbano através da dualidade público/privado, herdada da antiguidade clássica e reatualizada no iluminismo europeu. Não é apenas o projeto exemplar de uma praça cívica – como a ágora ateniense, ou o fórum romano – que fará o povo se reunir, exercer a sua liberdade, discutir democraticamente as suas ideias, e fazer valer a sua condição política e cidadã. Basta ver qual é o uso que têm lugares como a Praça dos Três Poderes, em Brasília, ou, ainda, o Parque Anhangabaú, projetado, em 1981, como a grande encarnação consensual de uma certa ideologia do espaço público. Sintomaticamente, essas praças e parques se tornam lugares vazios ou residuais, enquanto importantes nós urbanos de transporte – ainda que sejam recintos urbanos precários –, tais como os Largos 13, da Batata e da Concórdia, ganham inusitada vitalidade. Mais do que pela dicotomia entre praças e edifícios, a cidade contemporânea é atravessada por fluxos heterogêneos pautados pelo sistema infraestrutural, ancorado na sua complexa rede de mobilidade.
3. Cf. Howard Rheingold, Smart Mobs: the Next Social Revolution, Cambridge (Mass.): Basic Books, 2002.
Giselle Beiguelman Artista e professora da FAU-USP, seu trabalho inclui projetos em rede, instalações multimídia e intervenções no espaço público. Foi curadora de Arquinterface: a cidade expandida pelas redes e é autora de Futuros possíveis: arte, museus e arquivos digitais (2014), entre outros.
espaço em obra trata da convergência entre cidade, arquitetura e arte no Brasil e no exterior, e está organizado em três temas principais. O primeiro discute o impasse do urbanismo ante os novos desafios que o desenvolvimento impõe. O segundo estuda esses dilemas globais com foco no Brasil. O terceiro analisa a arte e sua inserção na arquitetura e no urbanismo, concentrandose nas intervenções artísticas que dialogam com a cidade e os cidadãos.
oe ço em aço em o paço em ob spaço em obr espaço em obra ISBN 978-85-9493-076-7
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Daí a necessidade de chamar atenção para a sustentabilidade, apostando em soluções baseadas na reciclagem e no reaproveitamento como possibilidades construtivas. E é isso que se faz neste livro. Sem ceder à tentação de demonstrar fórmulas e resolver conflitos, este espaço em obra é um convite à interpretação das palavras e das coisas. Ele se abre ao leitor como um original de segunda geração, no qual se descreve em cada retorno um novo centro e outro possível recomeço.
Este livro é resultado da parceria entre uma coletânea de artigos publicados por Guilherme Wisnik, arquiteto, crítico de artes visuais e professor da FAU-USP, e a concepção visual do designer gráfico Julio Mariutti; uma experiência que se materializa na interseção do racional com o sensível.
espaço em obra
da cidade organizada como “Carrópolis”, um dos temas da 10a Bienal de Arquitetura, da qual Wisnik foi curador-geral, e que pontua vários momentos desta coletânea. Esse tipo de cidade é estruturada a partir da ilusão de liberdade que o automóvel nos dá, ainda que nos aprisionando no trânsito, poluindo o ambiente e consumindo desmedidamente combustível fóssil. Símbolo de um life style irresponsável, a Carrópolis corrobora uma tese cara a Wisnik, de que “o conceito de obsolescência programada está se deslocando dramaticamente das mercadorias para o próprio território do planeta”.
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espaço em obra, de Guilherme Wisnik e Julio Mariutti, é um livro palimpsesto. Como os antigos pergaminhos que tinham o texto raspado para serem reescritos, aqui cada página remete a múltiplas camadas. Uma dessas camadas diz respeito ao diálogo autoral que Wisnik e Mariutti mantêm desde os tempos da revista Bamboo. Nela Wisnik escreveu uma coluna de 2012 a 2016, colocando a arquitetura, o urbanismo e a arte em diálogo com o design gráfico a partir das interlocuções com Mariutti. Outra camada aparece nos títulos. Desde o do livro, espaço em obra, referência à interpretação que o crítico Alberto Tassinari dá ao espaço moderno, até os das três partes que organizam o volume. O título da primeira parte, “O que aconteceu com o urbanismo?”, é uma citação de um ensaio do arquiteto Rem Koolhaas. O da segunda, “Gigantesco país da América”, retoma a expressão de Le Corbusier a respeito do Brasil. O último, “Artearquitetura”, é um neologismo que aponta para O complexo arte-arquitetura do crítico e professor emérito da Universidade de Princeton Hal Foster. A camada mais multifacetada é a da edição do conjunto dos textos. Ela apresenta, além dos 42 artigos publicados na Bamboo, cinco inéditos (“A informidade do informal”, “Lazer e jogo”, “Os lugares outros”, “Entre o lugar e o mapa” e “Vazio e sombra”). Reorganizados a partir de três chaves temáticas – os desafios do urbanismo, o Brasil e as relações entre arte e arquitetura –, os textos são articulados à temporalidade da leitura sequencial que o livro proporciona. Dessa forma, apesar de produzidos isoladamente e em diferentes épocas, formam um todo integralmente novo. Nele se avizinham, sem que se criem falsas continuidades, perfis analíticos de cidades como Tóquio, Shenzen, Brasília e São Paulo, e de artistas como Hélio Oiticica, Cildo Meireles, Gordon Matta-Clark e Michael Wesely, para citar alguns. Somam-se a eles verdadeiros portraits de arquitetos e estúdios, como Sérgio Bernardes, Vilanova Artigas, Lina Bo Bardi e Oscar Niemeyer; entre os internacionais, Tadao Ando, Herzog & de Meuron, Diller Scofidio e SANAA. Todos retratados a partir de suas obras. Não menos relevantes são as reflexões sobre o Plano Diretor municipal de São Paulo aprovado na gestão de Fernando Haddad, em 2014, frente aos impasses da cidade pós-industrial. Na mesma direção, vale o olhar retrospectivo para interrogar quais foram os desdobramentos, no campo da urbanização contemporânea, do “espetáculo do crescimento” do governo Lula. Entremeando esses temas, são colocadas discussões que nos levam a repensar a emergência de alguns fenômenos recentes e a persistência de outros. Por um lado, aparece a densidade de movimentos como Ocupe Estelita, no Recife, e Praia da Estação, em Belo Horizonte, que marcaram as formas de ativação do espaço público nas cidades brasileiras. Por outro, a vitalidade paradoxal, porque mortífera,