ESTER GRINSPUM: Coleção Arte, Trabalho e Ideal

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michel favre marcia zoladz ester

org. fabiana de barros

grinspum arte, trabalho e ideal

ester grinspum arte, trabalho

e ideal

SEM NOME, NANQUIM SOBRE PAPEL, 42 X 29,4 CM, 2016. COLEÇÃO DA ARTISTA.

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO

Administração Regional no Estado de São Paulo

Presidente do Conselho Regional

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Assistente: Antonio Carlos Vilela

Produção Gráfica Fabio Pinotti

Assistentes: Ricardo Kawazu, Cristina Nogueira da Silva

ester grinspum arte, trabalho e ideal

org. fabiana de barros michel favre marcia zoladz

© Fabiana de Barros, Michel Favre e Marcia Zoladz, 2023

© Edições Sesc São Paulo, 2023

Todos os direitos reservados

English Version Rodrigo Maltez Novaes

Preparação Leandro Rodrigues

Revisão Rosane Albert e Sílvia Balderama Nara

Projeto gráfico, capa e diagramação Rico Lins +Studio, Julieta Sobral Imagens de capa Estudo para as Mesas do Fausto, Sem título e J... Créditos das fotografias

Gustavo Scatena/Imagem Paulista: capa, págs. 2-3, 8-9, 15, 34-35, 38, 41, 47, 56, 62, 69, 74-82, 84-85, 89-93, 98-99, 102-111, 120-121, 164. Ester Grinspum: págs. 94-97. Marcia Zoladz: págs. 36, 48, 66. Claude Joray: págs. 86-87. Nelson Kon: págs. 70-71. Luciana Nicolau: págs. 72-73. Everton Ballardin: págs. 100-101. Riã Duprat: pág. 83. Michel Favre: pág. 116.

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)

Es853

Ester Grinspum: arte, trabalho e ideal / Organização: Fabiana de Barros; Michel Favre; Marcia Zoladz. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2023. –(Coleção Arte, Trabalho e Ideal, 4). 164 p. il.: fotografias, bilíngue (português/ inglês).

ISBN: 978-85-9493-271-6

1. Artes Plásticas. 2. Instalação. 3. Escultura. 4. Desenho. 5. Trabalho. 6. Ideal. 7. Ester Grinspum. 8. Biografia. I. Título. II. Barros, Fabiana de. III. Favre, Michel. IV. Marcia Zoladz. V. Coleção Arte, Trabalho e Ideal.

CDD 730

Ficha catalográfica elaborada por Maria Delcina Feitosa CRB/8-6187

Edições Sesc São Paulo

Rua Serra da Bocaina, 570 – 11º andar

03174-000 – São Paulo SP Brasil

Tel. 55 11 2607-9400

edicoes@sescsp.org.br

sescsp.org.br/edicoes

/edicoessescsp

sumário

apresentação . 10

Danilo Santos de Miranda

introdução . 13

Fabiana de Barros

Michel Favre

Marcia Zoladz

essências que são vísceras: os céus aconchegados de Ester Grinspum . 16

Miriam Chnaiderman

entrevista . 34 por Régis Bonvicino

obras . 70

verbetes . 112

biografias . 117

english version . 121

SOBRE UMA TÊMPERA EGÍPCIA III , AQUARELA E GRAFITE SOBRE PAPEL ARTESANAL, 50 X 64 CM, 1982. PINACOTECA DE SÃO PAULO.

apresentação

Arte como lugar

O trabalho desenvolvido pelo Sesc nas searas das artes e do livro, bem como em suas intersecções, tem como premissas a promoção do acesso, a mediação com públicos variados e o favorecimento de aproximações entre saberes distintos. Daí a busca da instituição em estimular, permanentemente, o intercâmbio de repertórios entre aqueles que frequentam os territórios da cultura artística, seja como criadores, seja como fruidores. A coleção Arte, Trabalho e Ideal – que chega a seu quarto volume – reflete tal perspectiva ao proporcionar aos leitores incursões livres de formalidades no ambiente (poético, conceitual e físico) de criação de cada artista enfocado. Nessas “visitas”, o fazer artístico se revela por diferentes ângulos, mediante visadas complementares. Para fomentá-las, a série adota os enquadramentos do ofício, da condição artística e da idealidade, sugerindo que se dedique atenção aos gestos transformadores da matéria, à relação entre produção e pensamento e, ainda, aos vãos entre intenção e concretização.

Por essa tríade, a obra plástica de Ester Grinspum, objeto deste volume, se deixa adentrar em seu caráter construtivo e arquitetônico, nos procedimentos gráficos e escultóricos de delineamento de espaços. Fazendo jus a uma das abordagens desta coleção, de cruzar produção artística com aspectos biográficos, é possível situar parte da gênese da poética de Grinspum, desde a infância, em seu processo de educação escolar, extracurricular e universitária. Destacam-se, em sua trajetória formativa, a graduação em arquitetura e, nos ciclos básicos, a frequentação do colégio judaico progressista Scholem

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Aleichem, no Bom Retiro – no edifício em que, hoje, funciona a Casa do Povo. Ali, a futura artista visual aprendeu os idiomas iídiche e hebraico, cuja configuração das letras do alfabeto, comum entre as duas línguas, lhe inspirou uma sintaxe visual marcada por formas desenhadas e hieráticas.

Grinspum define suas obras como “lugares”, os quais ela conforma para abrigar entes indeterminados, incluindo coisas, pensamentos e possibilidades de existência. Na esteira desse vislumbre, é factível aventar uma hipótese: suas faturas gráficas e tridimensionais se prestam a prover, de maneiras diversas, morada para o olhar e o corpo de quem se relaciona, por exemplo, com O lugar da ilusão, desenho aquarelado realizado em 1987, e Balzac, conjunto de esculturas monumentais em cerâmica desenvolvido em 1995. Diante das peças, o espectador é de algum modo convidado a se projetar no interior da composição linear e do volume escultórico, respectivamente. A arte, ali e na presente publicação, é apresentada como um lugar a ser habitado, onde os “recintos” comportam imaginários já constituídos e aqueles em estado de devir.

DANILO SANTOS DE MIRANDA

Diretor do Sesc São Paulo (1984 a outubro de 2023)

Texto escrito em junho de 2023

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arte arte não é arte está

o que outros consideram não é bem assim ou nem é e vice-versa o que para mim era arte poderia ter esse valor para mais e tudo se repetir por isso arte mas

percebemos se estamos

por isso está onde

de ver

antes de tudo para ser olhada olhando para nós ser arte para mim pelas mesmas razões antes ou não revisado ou para menos não é um objeto uma experiência arte receptivos arte nos apreende

1 “Seeing Art”, Yale Literary Magazine, n. 129, mai. 1960, p. 54. Tradução do inglês por Michel Favre e Fabiana de Barros.

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JOSEF ALBERS1

introdução

A coleção Arte, Trabalho e Ideal convida o leitor para um passeio pelo ateliê do artista, permitindo ao visitante observar, de um ponto de vista privilegiado, o fazer artístico. O Trabalho é abordado como um ato de transformação, feito de tensões e resistências entre intenção e gesto, entre ideia e Ideal, a partir de contextos continuamente redefinidos. A Arte é produção, mas também é pensamento, frequentemente concebida em continuidade entre o íntimo e o público, entre o artista, os meios que ele implementa e a coletividade.

Ao favorecer a troca entre um artista e um crítico de sua escolha, ao aprofundar a biografia por meio do que ela revela da obra e das resistências que ela encontra ou provoca, a coleção Arte, Trabalho e Ideal acompanha a prática para torná-la acessível, livre de obrigações de referências e afastada de posturas dominantes.

Os três primeiros livros da coleção apresentaram a trajetória de cada artista de acordo com os eixos que eles próprios escolheram desenvolver.

Desse modo, com Evandro Carlos Jardim, exploramos a potência da gravura como um ato íntimo e político. Confrontamo-nos em seguida com a força conceitual e multidisciplinar de Anna Bella Geiger, com todas as técnicas que ela cruza, hibridiza e questiona. Com os filmes de Gabriel Abrantes, tomamos a medida do nosso tempo e abordamos a arte cinematográfica como uma prática que se assume impura, atravessada por um pensamento crítico sobre seus meios e modos de produção.

Neste volume, com Ester Grinspum, nosso ponto de vista sobre o território formado pelo triângulo Arte, Trabalho e Ideal se desloca para nos situar no centro de sua geometria, no qual se revela a infância da arte como condição de sobrevivência.

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A entrevista exclusiva que integra este volume, conduzida em um diálogo aberto entre a artista e o poeta Régis Bonvicino, é primeiramente uma busca da palavra certa para evocar o gesto da artista, seu traço, sua linha, que, ainda que se apague, conserva o “traço de seu devir”. O futuro é aqui um território que se desenha.

Ester define seu trabalho em escultura, assim como em desenho, por uma aproximação arquitetônica, tridimensional:

Para mim, a escultura é um lugar, seja ela fechada, seja aquela primeira grande escultura do vaso, que é um vaso aberto, que é a minha obsessão, está em todos os lugares na casa. Que é uma coisa de um lugar. É como se estivesse guardando alguma coisa, né? Eu sempre falo assim: “Ah, guardando isso, guardando aquilo”. Guardando nada, guardando pensamento, guardando um lugar pra alguma coisa, nem que seja pra uma possibilidade de alguma coisa.

Mais uma vez, estas três dimensões, Arte, Trabalho e Ideal, nos permitem abordar uma obra rara, ao mesmo tempo íntima e pública, obra que a artista questiona ao mesmo tempo que a elabora.

FABIANA DE BARROS

MICHEL FAVRE

MARCIA ZOLADZ

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CADERNO DE PROJETOS “COISAS QUE FAZEM PARTE”, DESENHO SOBRE PAPEL, 21,4 X 21,4 CM, 2012. COLEÇÃO DA ARTISTA.

essências que são vísceras: os céus aconchegados de Ester Grinspum

Desfazeres encantantes

Em sua obra, Ester Grinspum revela um caminho que é o da própria história da arte. Como se, partindo das imagens rupestres, chegássemos à abstração de formas recortando espaços infindos.

No início de sua carreira, já não se viam desenhos presos a qualquer referencial. Havia sempre o trituramento das formas, a experimentação, o referente passando a ser a própria obra. Mas, havia, isto sim, o partir de um objeto, que ia então se desfazendo. Um objeto que podia ser uma obra de arte, um emblema da arte popular ou algo do cotidiano. Em entrevista a Tadeu Chiarelli em 1986, ao falar de sua primeira exposição em uma galeria de arte, na Suzana Sassoum, Ester conta ter exposto suas identificações: “Miró, Matisse, arte rupestre, o desenho infantil...”1. Chamou-me a atenção que eu falasse em arte rupestre antes de conhecer essa entrevista. Arte rupestre, feita em cavernas. Rastros na pedra de um cotidiano ancestral marcando o nascimento da escritura e da possibilidade de qualquer linguagem. Derrida nos mostrou, na Gramatologia2, como a escritura é a condição para que qualquer linguagem se forme. A linguagem nasce da inscrição.

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Há uma linda aquarela de 1986, O arco e a caverna, exposta na mostra Stultifera Navis. Stultifera Navis, o barco que carregava a esmo os loucos, aqueles sem lugar no mundo, não podendo parar em nenhum porto. Momento trágico descrito por Michel Foucault em sua História da loucura3 . Stultifera

Navis reafirma um não lugar. Um não lugar onde se afirmam desidentificações. Na aquarela de Ester, há um arco cinzento, sem contorno definido, separando dois círculos. Um dos círculos parece ter profundidade, tem um amareloclaro na superfície e um amarelo-ouro sustentando o objeto redondo. O outro círculo, do outro lado do arco cinzento, é apenas um risco tênue, e é necessário algum esforço para enxergá-lo. O arco é cinzento, seu contorno tem uma reentrância no alto, uma de suas pernas é fininha e a outra é mais grossa, com um retângulo na base. Entre as duas pernas, no cimo do arco, um retângulo verde-claro, que parece estar tapado. Apenas uma parte dele é visível. Esse verde-claro nos fala de mundos por trás do arco, mundos que passam por pedras maciças e que apenas imaginamos. A aquarela se desprende de qualquer representação e passamos a viver um exercício do olhar. Esse exercício também é um processo de desidentificação: as palavras não mais designam aquilo a que estamos acostumados em nossa linguagem do dia a dia. Somos sugados pela aquarela e encontramos uma linguagem das coisas, do mundo.

Sabemos que a aquisição da linguagem acontece através de um processo de identificação. Nomeio com o mesmo nome os objetos que são análogos. Parece então que a linguagem vem do mundo que nos olha... E nesse mundo posso inventar as analogias que bem entender. Para criar é necessário desidentificar objetos e palavras.

Lorenzo Mammi escreveu, na apresentação à exposição Os duplos, de 19894: “Nos trabalhos mais antigos de Ester Grinspum, elas (as figuras) tinham uma referência precisa: eram estilização de objetos, ou combinações de diversos objetos estilizados ou ainda citações de outros objetos extraídos de outros contextos figurativos. Enfim, remetiam a um conteúdo e esse conteúdo não era ambíguo”. Mammi reconhece que a linguagem de Ester se torna cada vez mais autônoma e mais ambígua. Mas, afirma, embora não remetam a

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um conteúdo, continuariam a representar: “Ao se traçar um retângulo sobre uma folha, duas coisas são produzidas: um desenho em forma de retângulo e o retângulo”. E retângulo seria o conteúdo de uma representação. Segundo Mammi, a escolha da abstração não implicaria uma “maior liberdade de signo”5.

Parece-me que a prisão representacional não é de Ester Grinspum, que sempre rompeu e fragmentou o referente, mas sim de toda a metafísica ocidental, conforme denuncia Jacques Derrida em sua Gramatologia. Sim, há uma remissão ao retângulo (e tanto faz se é retângulo ou outra forma qualquer). Toda sua obra, partindo ou não do figurativo, marca uma ruptura com o representacional. Em seu desenho dos duplos, Ester desmascara o que Merleau-Ponty nomeou como sendo o “ver-me vendo”. A artista faz aqui, no desenho do retângulo, uma poderosa crítica à noção de representação.

Neste ponto, é interessante voltar a Merleau-Ponty:

O que nos importa é precisamente saber o sentido do ser no mundo; a esse propósito nada devemos pressupor, nem a ideia ingênua do ser em si, nem a ideia correlata de um ser de representação, de um ser para a consciência, de um ser para o homem: todas essas são noções que devemos repensar a respeito de nossa experiência do mundo, ao mesmo tempo que pensamos o ser do mundo6

Nunca uma percepção do si-mesmo é esse si-mesmo que o percebe.

O desenho

Não por acaso, a primeira linguagem de Ester é o desenho – e “desenho é o que a linguagem confia ao olhar quando o olhar deixa-se conduzir por aquilo que vê”, nos diz Fédida7. O desenho tem o poder de fazer a linguagem entrar em crise, “no abandono da banalidade”. Fédida fala em “desfascínio de vista no cotidiano”. E que é preciso resgatar a sensação, a sensorialidade, o que se dá a partir do tornar visível.

O desenho torna visível a linguagem das coisas, a linguagem do mundo. E é isso que Ester faz em toda a sua obra. É importante lembrar aqui que Ester desponta na cena das artes no Brasil em pleno florescimento da pintura.

Reproduzo aqui um trecho da entrevista dada a Tadeu Chiarelli em 1986:

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TC: Como é impor uma produção artística individual por meio do desenho, num circuito em que a norma é a valorização excessiva da pintura?

EG: Talvez ela atraia por não ser a norma [...]. Acho que hoje a pintura passa um pouco pela postura do espetáculo [...] E o desenho vai contra isso. Ele é intimista, quase um texto. [...]

A crítica de arte Marta Traba certa vez falou do desenho como uma arte de resistência dentro do circuito mercadológico. Ester afirma, na entrevista a Régis Bonvicino: “E aquilo ficou na minha cabeça, eu achava aquilo lindo de morrer. Um desenho da resistência."8 A Tadeu Chiarelli, sobre o tema, dissera: “Isso vai ao encontro da minha postura. Você resiste, não se entrega, não se seduz por um apelo imediato...”9.

Adiante na entrevista, porém, Ester se diz mais reflexiva e introvertida. Nesse registro, chamou-me a atenção ainda o fato de Ester definir o desenho como texto, como escritura.

Em 2007, Edith Derdyk reuniu inúmeros artistas e pensadores da arte em uma belíssima publicação que nomeou Disegno. Desenho. Desígnio10. Em texto presente nesse livro, Paulo Pasta11 identifica o desenho a uma “honestidade primeira”. Afirma caber ao desenho “um papel ético, como se fosse uma espécie de depositário da verdade...”. Cita Mário de Andrade, para quem “o desenho seria irremediavelmente analítico [...] princípio libertador...”. Paulo Pasta quer entender por que, sendo pintor, ele sempre desenha. Afirma: “Se a pintura manda em mim, no desenho mando eu”. E, adiante: “O desenho me faz ver mais rapidamente as coisas”. Doce ilusão, ter o comando sobre o desenho... O desenho é comandado pelas coisas – e, por isso, permite o acesso mais rápido a elas.

A série dos duplos de Ester Grinspum demonstra o que acabamos de expor. Embora o tema do duplo sempre tenha estado presente em seu trabalho, como aponta Agnaldo Farias, nessa série, em especial, podemos ver toda uma reflexão sobre sua obra. Agnaldo fala em “dessemantização, na abstração das formas utilizadas. Desvinculando-se de qualquer relação com o exterior, seu trabalho emancipa-se, descola-se e fica sujeito ao jogo da sua própria lógica interna”12 . O autor comenta também sobre o fato de os dípticos já conterem um núcleo conflitante.

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Notemos que Ester Grinspum privilegia o branco, e marca o desenho como linha em movimento. O branco, em Derrida, é o espaçamento, aquilo que dá origem ao signo. Nesse sentido, Sônia Salzstein Goldberg vê movimentos decisivos do pensamento, “tão capazes de espacialização como o corpo”13. O branco faz da obra de Ester um corpo em movimento. Resgatemos a linda frase de Agnaldo Farias: “Silencioso, este se revela como labirinto em negativo, labirinto discreto que esconde o seu avesso, sob sua aparência monótona”14. Esconde e mostra seu avesso. O esconder sempre aponta para o que está escondido.

Freud tem um belíssimo ensaio de 1919, “O infamiliar”15, ou “O estranhamente familiar” – em diferentes traduções para o termo Unheimlich16 –, no qual reflete sobre a questão do duplo através da análise do conto “O homem de areia”, de E. T. A. Hoffmann. Inicialmente, Freud analisa o significado da palavra alemã “Unheimlich”. Heimlich é lar, aquilo que é habitual. O “unheimlich” é aquela variedade do terrorífico que remonta ao já sabido há muito tempo, ao familiar. Como é possível que o familiar se torne terrorífico? Ao dar ao “unheimlich” tamanho destaque, Freud misturou os limites do positivo e do negativo, levando a estética a se situar nas bordas, em um lugar “entre” a vida e a morte. Freud conclui que em tudo que é familiar está sempre contida a ideia de ocultação. O “unheimlich” diz respeito a um efeito de estranheza que atinge o conhecido e familiar, tornando-o motivo de ansiedade. A frase de Schelling citada por Freud sintetiza tal vivência: “Chama-se ‘unheimlich’ a tudo que, destinado a permanecer em segredo, oculto [...] veio à luz"17.

O tema do duplo se radicaliza na série nomeada como “Os duplos”, mas está presente em toda a obra de Ester. Inclusive nas esculturas. Ou seja, a presença de um lado que subjaz a toda percepção e que é infamiliar, obscuro. É uma linguagem das coisas a que só o desenho pode chegar. Chegar até as coisas sempre produzirá estranheza.

Afirma Agnaldo Farias, sobre o trabalho de Ester: “O seu propósito era o de depurar as coisas do mundo, chegando até sua estrutura fundamental”18. Concordo com essa leitura da obra de Ester como depuração das coisas do mundo, embora não ache que ela busque uma estrutura que estaria além

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deste. Vejo a radicalidade da imanência desvelando mundos inusitados nas próprias coisas. As essências em Ester são entranhas que gritam, ainda que no apagamento das imagens que vão sumindo. Mário de Andrade falou do caráter inacabado de todo desenho. Ou seja, todo desenho aponta para o infinito.

A linguagem das coisas

No livro Disegno. Desenho. Desígnio, Ester Grinspum apresentou o trabalho “Do desenho”19. Ela consegue fazer ali um desenho do desenho, uma reflexão que é um ícone do desenho. Na primeira página, o “D”, como pictograma original, se repete infinitamente. Sobressai um “D”, depois. D E S E N H O. E, uma linha abaixo, DE. D, o D E S E N H O e o DE estão em negrito em meio à infinidade de D(s).

Na segunda página, na parte de cima, está escrito I D E A L. No início do que seria a segunda linha: I D E I A S. A seguir, linhas e linhas de um caderno vazio.

Na terceira página, os “O”(s) se sucedem sem intervalo e, no centro, um pouco abaixo do meio da página, lemos C I R C U N S C R I T O.

A quarta página, preenchida infinitamente com L(s), tem no topo direito a palavra L I M I T E de ponta-cabeça e, no topo inferior, ao centro, L I M I T E.

A quinta página é preenchida com U(s). Na quarta linha, à esquerda, lemos C O N T I N E N T E. Sete linhas abaixo, também no início da linha, lemos L U G A R.

A sexta página está dividida em duas metades, separadas pelo branco da página. As duas metades são preenchidas pela sequência de I(s). Na sexta linha de cada uma das metades, lemos a frase D E S E N H A R U M D E S E N H O?

É esse o texto que Ester apresentou a Edith Derdyk. Ester desenhou o desenho.

Ao final, em algumas poucas linhas sobre o que é desenhar, afirma: “É criar relações entre coisas, dando pesos e valores. É falar de objetos e fazê-los falar”.

Nesse “sobretexto” – signo que produz signo –, Ester faz do desenho seu objeto, e esse desenho fala. Iconicamente, faz o desenho do desenho.

Para Peirce, o ícone é um signo, independentemente da existência do

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objeto ao qual se liga. O desenho que fala do desenho é um desenho.

São as características do desenho que são expostas no próprio desenho do desenho. Não é necessária qualquer organização discursiva.

As letras são marcas, são pictogramas, marcas originais, “figuração pela qual se apresentam os objetos”20, em momentos em que o sujeito ainda não está submetido às leis do dizível. São significantes sem significado, é o que não cabe na linguagem e o que nos constitui desde os primórdios. É o domínio da escrita, que não é o do significante; é o domínio da letra. Falar em letra é falar no real do corpo. Já dizia Leclaire, em seu livro Psicanalisar21 , que, à luz da psicanálise, o corpo aparece como o limite que transgride a ordem do discurso. É marca no corpo.

Se o desenho é letra, e a letra é inscrição no corpo, a escultura é continuidade inevitável no percurso de Ester. O desenho do desenho no “sobretexto” do livro de Edith Derdyk não deixa de ser uma escultura. Ou um roteiro para o desenho/escultura. Sônia Salzstein Goldberg fala dos desenhos de Ester como “esculturas sem escultura, [...] sem a intermediação do objeto”22.

Lembrei aqui de Francis Ponge, com seus textos visuais, e de uma citação que Haroldo de Campos usa no ensaio “Francis Ponge, a aranha e sua teia”23: “O poeta não deve jamais propor um pensamento, mas um objeto, quer dizer que, mesmo ao pensamento, ele deve assumir uma posição de objeto”. Substituiria aqui “objeto” por “desenho”. E aí Ester se encontraria com Ponge.

Há um livro de Francis Ponge chamado A mesa24. Para os tradutores desse livro visual, “a mesa é a coisa de Francis Ponge”25. Reproduzo aqui um dos poemas que compõem o livro:

Nota para a Mesa (2) (de 2 2 de outubro de 1971) planitude

Não seria, pois, tanto a horizontalidade quanto a platitude, a planeza (obrigatória) de sua superfície, (a atitude plana)? [Eu preferiria planitude a platitude (pois esse segundo termo é Infelizmente)

afetado por um coeficiente (depreciativo) pejorativo

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O poema continua – e, quando terminamos, tornamo-nos mesa, adquirimos a forma da mesa. Cito Deleuze, em A lógica do sentido26: debaixo das próprias coisas “não haveria ainda este elemento louco que subsiste, que sub-vem, aquém da ordem imposta pelas ideias e recebida pelas coisas”. Derrida, em seu livro sobre Ponge, Signeponge27, no qual Ponge se torna sua “coisa”, assim discorre: “A coisa não é qualquer coisa que se conforma às leis... Antes de mais nada a coisa é o outro, o todo outro que dita ou escreve a lei, uma lei que não é simplesmente natural, mas uma injunção infinitamente, insaciavelmente imperiosa à qual devo me assujeitar”.

Assim são também as esculturas de Ester. Tomemos como exemplo sua escultura Sombra, de 1991, de ferro e madeira. Acompanhamos nela o movimento das sombras que se entortam, e nosso corpo fica disforme ou fantasmagórico. As leis de Newton são desafiadas. A desordem universal como revolução. O mesmo acontece na exposição Do lugar. Tornamo-nos blocos de ferro soldado, nossas almas escancaradas naqueles blocos. Ponge tem um livro inteiro sobre A mesa . Ester tem uma exposição que se chama O chão e as mesas . Como aponta Tadeu Chiarelli 28, “a familiaridade contida no título da instalação não confere com os elementos que a integram”. Não é possível qualquer familiaridade com o que na exposição é apresentado como chão e mesa. O chão é de cobre e lâminas – algumas retas e outras tortas. Como diz Tadeu Chiarelli, “é uma área sobre a qual, em primeiro lugar, podemos passear nossos olhos, não nossos corpos” 29. O cobre esquenta, é transmissor – de eletricidade, de calor... Tadeu fala que as chapas buscam verticalidade, não estão simplesmente no chão, ou sendo chão. “Totalmente em suspensão, aqueles planos de metal irradiam, refletem, conduzem energia para o espaço, e o calor que deles emana está ali para imantar o ambiente de luz, contrastando, de maneira implacável, com os planos, as mesas da artista 30." As mesas também são estranhas, nada usuais. Nelas, pendurados, estão sacos de seda, introduzindo leveza, pois são brancos e absorvem a luz. Para Tadeu, esses sacos seriam o único indício de alguma interioridade... Aliás, a maioria dos críticos e estudiosos que se detiveram na obra de Ester afirma a predominância de um movimento

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introspectivo. Ou seja, sua obra não interagiria com o mundo de fora.

Penso que a distinção entre o fora e o dentro também é fruto de uma dualidade platônica. Deleuze escreveu A lógica do sentido movido por sua paixão pela filosofia estoica, e os estoicos eram amantes dos paradoxos.

Afirma Deleuze: “O paradoxo aparece como destituição da profundidade, exibição dos acontecimentos na superfície, desdobramento da linguagem ao longo deste limite” 31. “A antiga profundidade se desdobrou na superfície, converteu-se em largura” 32 .

Esses sacos brancos pendurados nas mesas me remetem à exposição Estigmas, na qual objetos de madeira maciça eram embrulhados em papel de seda. A profundidade está toda posta no papel de seda que encobre o núcleo. O que é o profundo e o que é superfície? “Estigma”, aliás, tem um duplo sentido: são chagas que levam à identificação com Cristo e é também aquilo que diferencia, marca uma pessoa ou um grupo. Os paradoxos são a obra de Ester Grinspum.

Espaço e lugar

Uma das exposições marcantes de Ester é Do lugar. Nela, o diálogo do desenho com a escultura fica claro e torna-se instrumento de trabalho. Sua primeira escultura apareceu na instalação O duplo e o tempo, em 1989, na Bienal de São Paulo. Depois, seus trabalhos aparecem na exposição Os duplos. Nos trabalhos com vidro, vemos uma clara continuidade em relação aos seus desenhos. Essa continuidade se mostra no reflexo, nas diversas formas reentrantes e contorcidas provocando diferentes transparências e sombras. Paulo Herkenhoff, em texto para o catálogo de Os duplos, aponta “uma alusão à ideia aristotélica do ‘lugar’ como vasilha”. Afirma também: “Tal como aquelas esculturas gregas, esses vasos esculturas têm uma forma orgânica, fruta ou corpo, lugar do olhar [...]. O ponto de vista afeta profundamente a percepção, como se o lugar se estendesse ou se contraísse, dando elasticidade ao tempo”33.

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Herkenhoff afirma que, assim como o desenho “se libertou da retórica”, na escultura tudo “foi reduzido à necessidade de desnudar o espaço, de transformá-lo em lugar. Para Grinspum, o lugar está onde habita o transitório da luz”34.

Transformar o espaço em lugar ou o lugar em espaço?

O espaço, para Michel de Certeau, é um lugar praticado, um cruzamento de forças motrizes: são os passantes que transformam em espaço a rua, geometricamente definida pelo urbanismo como lugar. “O espaço seria para o lugar o que se torna a palavra quando é falada, isto é, quando é apreendida na ambiguidade de uma efetivação, transformada num termo dependente de múltiplas convenções, colocado como o ato de um presente (ou de um tempo) e modificado pelas transformações devidas a mudanças sucessivas35." Certeau cita ainda Merleau-Ponty, para quem o espaço é existencial, a existência é espacial: “Essa experiência é relação com o mundo; no sonho e na percepção, e por assim dizer, anterior à sua diferenciação, ela exprime ‘a mesma estrutura essencial do nosso ser, como ser situado em uma relação com o meio’ – um ser situado por um desejo, indissociável de uma ‘direção de existência’ e plantado no espaço de uma paisagem”36. Para Certeau, os relatos de percursos buscam transformar os lugares em espaços ou os espaços em lugares.

As esculturas de Ester, e mesmo sua obra como um todo, seriam, então, como afirma Sônia Salzstein Goldberg, “o espaço mesmo se presentificando para o pensamento”. Salzstein, ao falar das esculturas, utiliza a expressão “demarcando áreas monumentais”37. A primeira escultura de Ester é enorme, apontando para o mundo. Sim, há esculturas gigantes... mas o que chama a atenção é a utilização do termo “monumental”, ou seja, a referência ao monumento. Talvez um antimonumento, mas, ainda assim, um monumento. Monumento a quê? À humanidade, à criação, à origem do mundo. A uma ancestralidade que nos constitui, a uma memória protozoária. E, aí, interior e exterior se misturam. O céu é sugado na forma do vaso que marca o lugar que se transforma em espaço. Céu aconchegado. O dentro e o fora deixam de ser categorias estanques.

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Nós também somos sugados e aconchegados nessa imensa urna que não é funerária, que é vida. Vida pulsante de magmas do centro da Terra. Afirma Sônia Salzstein: “Curiosamente, experimentamos aqui uma ideia de vastidão que não é a do horizonte a perder de vista, mas a de uma percepção aterradora do espaço, contínua e inqualificável”38. É isso mesmo... Sônia fala em um “ruminar do tempo”. Sim, a história infinita do que nos constitui.

Paulo Herkenhoff menciona uma “instância sensorial que vive da luz”. Refere-se à obra de Ester como um desejo de “alcançar a luz”39. Ester, por sua vez, afirma: “A luz é o eco da forma no espaço”40. As esculturas seriam jogos de luz. Herkenhoff encerra seu texto afirmando que é no “maravilhamento perante a luz que Grinspum acolhe o Outro, o público, como sujeito epistemológico”41. É assim que Ester cria um espaço que é também político.

É interessante pensar em suas esculturas ao ar livre, feitas para se fundir com a natureza. Realização do sonho do romantismo. Que, de fato, se realiza na escultura que fez em Bienne, na Suíça. Era uma escultura a céu aberto. Deu à obra o nome de Entrada livre. As pessoas deveriam entrar, como se entra em uma caverna, e olhar para cima, e ver o céu. Paulo Herkenhoff assim a descreve: “Aí só existe quando um corpo a visita e a visão da luz do céu se produz através de seus espaços, como se um olho estabelecesse sua conexão com o mundo”42 . Ester operou uma hipertrofia do olho, que tanto caracteriza sua obra, como aponta Catherine Millet. A escultura “casa ambulante” (expressão de Paulo Herkenhoff) acabou se desmanchando com o vento e a chuva. Fundiu-se, de fato, com a natureza.

Identidades, identificações e desidentificações

Na entrevista a Tadeu Chiarelli em 1986, ao ser indagada sobre seu processo criativo, Ester fala sobre sua série de 1986 “Amor Ícone”, em que discutiu sua forma de criação. Afirma: Queria discutir eu mesma enquanto personagem, enquanto criadora, e pensei que a forma de discutir isso era contando uma história... fiz toda essa dinâmica de pensar e demonstrar o processo, as questões que são colocadas enquanto se está criando. [...]

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Utilizar a narrativa para pensar as relações entre personagem e criador. [...]

Penso que isso passa pela questão da identidade. Quando uso como modelo um trabalho do Hélio Oiticica, como tinha nas Inacabadas, discuto minha identidade enquanto artista... onde estou nessa história toda?

A psicanálise vem pensando a questão da identificação. Evita falar que identidade pressuporia uma essência. As identificações são inconscientes e vão constituir o Eu do sujeito. Lacan teorizou sobre todo esse processo de formação do Eu no seu clássico texto “O estádio do espelho”43. É sempre através de um outro que o Eu se constitui. É por me reconhecer no olhar do outro que posso constituir uma imagem corporal.

A questão do Eu está bastante discutida na exposição que Ester Grinspum denominou Onde um eu era havia um círculo desenhado a lápis. O Eu passa a ser um círculo desenhado a lápis. E, para Lacan, não deixa de ser assim, pois ele é sede da instância que nomeou como sendo o Imaginário. Lacan pensava o sujeito como constituído por três instâncias: o Simbólico, o Real e o Imaginário. No Simbólico, está a cadeia de significantes que constitui a linguagem. No Real, aquilo que não cabe na linguagem. E, no Imaginário, as fantasias, as formas ilusórias que o Simbólico tomaria. Frederico Moraes fala do desenho de Ester como “o estrutural básico da vida, este mínimo que permite ao mundo se mover” 44 . Assim ele descreve esse trabalho: “Esta série de 49 desenhos divide-se em subséries compostas de três a oito desenhos. No primeiro desenho de cada série, a narrativa se estrutura em dois planos”. No fundo, uma cidade ou um país. Sozinho ou entre os edifícios, ou marcos dessa cidade, vemos “o círculo desenhado a lápis” 45. Frederico diz tratar-se de uma iconografia amorosa. Na horizontal, aparecem formas primitivas, esculturas africanas, figurações que podem ser citações de muitos artistas, inclusive de Brancusi, tão pesquisado por Ester quando da ida dela a Paris.

A identificação só pode se tornar consciente através de uma desidentificação, afirma Octave Mannoni em seu ensaio “A desidentificação” 46. Podemos ver todo o processo de criação na obra de Ester Grinspum como uma

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desidentificação que vai se radicalizando, na qual, cada vez mais, entranhas vão sendo trabalhadas. Entranhas que nos levam a um trabalho com as nossas próprias entranhas. Entranhas cruas e essenciais. Obra que leva a estranhos processos identificatórios, nos quais nos tornamos coisa. Isso tudo a partir de desidentificações de Ester. Não por acaso, quando apresenta a questão da identidade (que prefiro nomear como “identificações”), Ester se refere à exposição Inacabadas . Um lindo texto de Gilda de Mello e Souza 47 mostra como Ester escolhe um objeto do mundo e vai “decompondo-o, virando pelo avesso ou de cabeça para baixo, subtraindo elementos, alterando-lhe a ordem ou a proporção”. Para Gilda, nesse proceder de Ester é o jogo da memória que toma forma: “É como se o jogo ambíguo da memória, feito de fidelidade e fantasia, só quisesse reter o essencial, o irredutível”. Aqui, Gilda quase mostra claramente o processo de desidentificação na obra de Ester. Afirma: “O retângulo vazio, desenhado à esquerda [...] indica que daqui para a frente o motivo será abolido [...] e a artista poderá entregar-se livremente a outras grafias”. É interessante Gilda falar de Ester Grinspum como uma artista “que ama as metamorfoses” e “possui a doçura e a curiosidade perversa de uma criança”. Freud já nos mostrara que todo criador tem dentro de si a capacidade de brincar como uma criança. Chama a atenção, também, o fato de Gilda falar em uma “curiosidade perversa”. Seria todo artista um curioso perverso? Perverso porque transgressor ou perverso porque comanda nosso olhar?

Em entrevista a Tadeu Chiarelli em 2004, Ester afirma seu amadurecimento em relação à sua responsabilidade “enquanto artista, enquanto produtora de cultura”:

Quando falo em responsabilidade, penso na responsabilidade de um artista num país como o Brasil, isto é, responsabilidade de estar construindo uma identidade, responsabilidade de fazer caminhar uma pergunta, uma pesquisa. Responsabilidade de encarar uma situação de pobreza absurda e saber que está numa situação de privilégio porque está podendo pensar. Responsabilidade sobre o que fazer nessa situação.48

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A permanência do tema da desidentificação nos trabalhos de Ester Grinspum faz pensar em algo da ordem do traumático em infinita necessidade de elaboração. Trauma é o que nos invade com intensidades de que o Eu não consegue dar conta, e se conecta a uma cadeia simbólica. É o que permanece como corpo estranho no psiquismo. E que grita. Leva a uma repetição infinda na busca de um escoamento impossível.

Ester relata como o assassinato de Carlos Marighella a marcou. Era o tio Carlos, casado com sua tia. Não sabemos que silêncios sua família teve de viver. Nem Ester, que era menina.

Maurice Blanchot afirma: “A fuga é o engendramento do espaço sem refúgio”49. Continua: “a pertinência à fuga faz do ser uma multidão, uma multiplicidade impessoal, uma não presença sem sujeito: o eu único que sou dá lugar a uma indefinidade que paradoxalmente sempre que cresce me arrasta e dissolve na fuga. Ao mesmo tempo, na multidão fugitiva, o eu vazio que aí se desfaz permanece solitário”50.

De fato, a fuga gerou espaço ao infinito. Os trabalhos ganham infinidades no mundo, a partir do momento em que Ester deixa de contar uma história – foi a partir do contato com Mira Schendel que “o aspecto narrativo dos desenhos acabou”51.

Contudo, a questão do rastro da memória, do rastro da caverna, acompanha sua obra. Talvez a escultura seja seu urro libertador. O grito em que o céu e a terra encontram continentes, e onde é possível conviver com sombras. Jogando-se nas sombras que passam a constituir nossos espaços de mergulho.

Memórias eruptivas

Em trabalho distribuído quando de sua vinda a São Paulo52 , em 1991, a convite do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, Monique Schneider indaga-se sobre o impacto das descobertas geológicas sobre o modo de compreender os processos e o espaço psíquicos. Assim

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como na controvérsia geológica, “também os explanadores do psiquismo vão privilegiar seja um modelo plutoniano, centrado sobre a ação do fogo, das forças vivas (Bergson), seja um modelo netuniano, fazendo do psiquismo uma superposição de camadas sedimentares (Freud)”.

Humaniza-se, assim, um terreno da pesquisa que parecia ser físico, como se, através da exploração das estratificações e dos movimentos telúricos, o homem tenha atingido a descoberta de seus espaços internos.

Freud já havia apontado, em seu texto “Visão de conjunto das neuroses de transferência”53, a ideia de que o desenvolvimento do homem originário aconteceu sob a influência dos destinos geológicos da Terra. Analisando o modo como Freud vai situando os pontos de fixação das neuroses em eras pregressas do desenvolvimento da Terra, Fédida mostra que ocorre aqui uma identificação do psíquico com a mineralidade: a construção do psíquico passa a ter relação com a memória indestrutível de um acontecimento filogenético. O geológico é, então, a matéria imaginária deste tempo da memória, sendo que o psíquico só é concebível a partir da visão de um tempo fora do tempo54. A arqueologia freudiana conduz a uma geologia, tempo próprio do devir da alma-fóssil. O psíquico, para Freud, é o silencioso e inanimado, sendo que sua leitura dos sintomas o leva às formações de linguagem, únicas capazes de restituir as figuras e, portanto, o memorável.

Assim é que a memória, mineralizando a subjetividade, leva ao encontro do inumano. Se é para além do humano, só pode ser eruptiva, movimento cósmico de buracos negros. O fóssil é sempre o que resta da erupção.

O trabalho de Ester Grinspum nos traz essa nossa história geológica, de um tempo fora do tempo. Isso se aplica inclusive a seus primeiros trabalhos, nos quais toda história da arte se faz presente. Por exemplo, a série que ela produz a partir de uma têmpera egípcia que vira no Metropolitan, de Nova York. Como aponta Sônia Salzstein Goldberg, nos desenhos e aquarelas de Ester é impossível “restringirmos o desenho à moldura do papel”. Ester sempre investigou as possibilidades da forma e da representação.

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Jacques Leenhardt afirma que as superposições “são apenas a espuma visível de uma desenfreada busca da forma”. Ele fala em uma renovação do “próprio gesto da cultura”55.

Superposições presentes em toda a obra; trespassamento de ancestralidades que tomam forma. Assim é a obra de Ester Grinspum.

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fontes kuunari rounded e acumin pro papel supremo alta alvura 250g/m2 (capa)

alta alvura 120g/m2 (miolo)

impressão Gráfica Elyon data dezembro de 2023

coleção arte, trabalho e ideal

Esta coleção proporciona aos leitores incursões livres de formalidades no ambiente de criação de cada artista enfocado. Para fomentá-las, os livros adotam os enquadramentos do ofício, da condição artística e da idealidade, sugerindo que se dedique atenção aos gestos transformadores da matéria, à relação entre produção e pensamento e, ainda, aos vãos entre intenção e concretização.

Ester Grinspum, objeto deste volume, define suas obras como “lugares”, os quais ela conforma para abrigar entes indeterminados, incluindo coisas, pensamentos e possibilidades de existência. Diante das peças, o espectador é de algum modo convidado a se projetar no interior da composição linear e do volume escultórico. A arte, ali e nesta publicação, é apresentada como um lugar a ser habitado, onde os “recintos” comportam imaginários já constituídos e aqueles em estado de devir.

ISBN 978-85-9493-271-6

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