Hierofania - Cap. 22

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Mariangela alves de liMa

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Sebastião Milaré acompanha o trabalho de Antunes Filho desde a fase inaugurada com a estreia de Macunaíma (1978) e a subsequente instituição do CPT – Centro de Pesquisa Teatral do SESC. Estes eventos marcaram uma mudança nas investigações estéticas do encenador, embora sua ideologia permanecesse inalterada. Fruto de dez anos de pesquisa, Hierofania documenta e discute o método criado por Antunes, as referências estéticas, os meios desenvolvidos, os exercícios, a bibliografia, a prática e a ideologia, bem como reflete sobre os espetáculos resultantes deste trabalho. Por meio de documentos publicados e inéditos, análise do autor e depoimentos de Antunes e de atores, a primeira parte do livro aborda a fundação do Grupo Macunaíma e do CPT, sua organização e suas alterações ao longo do tempo no que se refere às técnicas e meios expressivos para o ator. A segunda parte traz o método sistematizado e a descrição de seus exercícios, sempre fundamentada na ideologia de que é preciso formar e transformar o ser humano para que se forme o ator.

Hierofania O teatro segundo Antunes Filho SebaStião Milaré

Lembremos, portanto, que, além de relator cuidadoso dos procedimentos de transmissão do conhecimento dentro do Centro de Pesquisa Teatral do SESC e pesquisador infatigável de fontes teóricas correlatas, o autor é também testemunha presencial dos processos criativos liderados por Antunes Filho. Proximidade calorosa, empatia e por vezes sincera identificação do autor do livro com o desejo de transcendência que anima a obra artística e a missão pedagógica do criador do CPT foram instrumentos indispensáveis para descrever a semântica de um método em aperfeiçoamento contínuo. Para Antunes Filho, a formulação de um vocabulário específico adequado à instrução teórica e ao treinamento psíquico e físico do ator emula o percurso “deambulatório” da invenção artística. Não há linhas retas porque é a partir da perspectiva ampla do enigma humano que a arte deseja expressar que emergem os diferentes instrumentos teóricos e práticos. Embora premissa central na formalização de uma obra do repertório, um conceito pode tornar-se complementar ou secundário em encenações posteriores. Só a intimidade do autor com o trabalho possibilitou historiar a emergência de determinado conceito ou técnica e inscrevê-los em relações hierárquicas flutuantes no interior do método. Ao longo de três décadas Antunes Filho, discípulos e colaboradores produziram e divulgaram para círculos restritos de aprendizes as fontes filosóficas, as premissas estéticas e as práticas experimentais do CPT. Entretanto, é neste livro de Sebastião Milaré que essas sistematizações periódicas se amalgamam em um tratamento a um só tempo “histórico e transcendental”. Pela primeira vez, o método idealizado para formação de atorescriadores é apresentado na sua dupla natureza de meio de acesso ao plano estético e código de conduta ideológico ou espiritual. No texto de Milaré não se compreende uma coisa sem a outra e esta perspectiva faz com que a pedagogia de Antunes Filho interesse aos atores, aos aprendizes de todas as linguagens artísticas e aos leitores cujo interesse maior é a educação no sentido amplo.

Hierofania

O teatro segundo Antunes Filho SebaStião Milaré

Com a estreia do espetáculo Macunaíma, em 1978, a ressonância do trabalho do encenador Antunes Filho ultrapassou as fronteiras do país e tornou-se uma importante referência do teatro mundial. Em um livro publicado em 1994 pela Editora Perspectiva com o título de Antunes Filho e a Dimensão Utópica, o crítico e pesquisador Sebastião Milaré circunstanciava e refletia sobre a trajetória deste profissional formado em meio às condições excepcionais do teatro paulistano dos anos 1950, período cujo ponto de inflexão é o entretenimento fundindo-se ao propósito mais elevado da arte. Assinatura forte desde o início da carreira, saudado como um dos primeiros rebentos brasileiros a se destacar do tronco europeu, sua biografia artística é também exemplar ao confrontar a obsessão com identidade nacional que animou boa parte das discussões modernistas. Preparando o terreno da superação dos dilemas modernistas, Milaré, nesse primeiro estudo, seguiu a pista cada vez mais nítida de uma vontade de transcender as fronteiras territoriais, linguísticas, filosóficas e estilísticas da arte cênica. Detendo-se em um limiar, no exato momento em que o diretor de teatro discute sua função autoral e propõe outro modo de organizar a produção da sua arte, o livro prefigurava a deliberada ultrapassagem do artista “de vanguarda” e do encenador de prestígio internacional. O filho dileto do moderno teatro brasileiro ensaiava sua transfiguração em mestre. Pois é do ministério que trata este segundo livro do autor dedicado a Antunes Filho. Passo a passo, em boa ordem nos primeiros capítulos, o estudo relata a vigência e os desdobramentos do processo criativo instaurado a partir de Macunaíma. Seguindo até o presente a formulação de uma poética em que se entrelaçam em mútua fertilização as questões do repertório e da teorização do processo criativo, o autor de Hierofania registra minuciosamente as prospecções estéticas antes de se aproximar do que constitui seu objetivo central: a filosofia e a pedagogia do encenador. Enquanto o estudo da primeira etapa da carreira recuperava informações, organizava-as e extraía conclusões a partir de fontes secundárias, este livro funda-se na observação direta e na coparticipação na escritura de uma poética exigente e singular na história do nosso teatro.

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s e rv i ç o s o c i a l d o c o m é rc i o – s e s c s p Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Superintendentes Comunicação Social  Ivan Giannini Técnico­‑social  Joel Naimayer Padula Administração  Luiz Deoclécio Massaro Galina Assessoria Técnica e de Planejamento  Sérgio José Battistelli

Gerente  Marcos Lepiscopo Adjunto  Évelim Lúcia Moraes Coordenação Editorial  Clívia Ramiro Produção Editorial  Juliana Gardim, Ana Cristina F. Pinho Colaboradores da Edição  Marta Colabone, Iã Paulo Ribeiro

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SebastiĂŁo MilarĂŠ

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Preparação de texto Adir de Lima Revisão de provas Adriane Gozzo, Adir de Lima Capa Moema Cavalcanti Composição Neili Dal Rovere Ilustrações Juliana Russo Fotografias Amílcar Claro, Carlos Rennó, Carlos Sanchez, Célia Thomé de Souza, Claudia Mifano, Derli Barroso, Emidio Luisi, Fred Mesquita, Gabriel Cabral, Paquito e Rafael Issa.

Ficha Catalográfica elaborada pelo Departamento Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da usp An89h Milaré, Sebastião Hierofania: o teatro segundo Antunes Filho / Sebastião Milaré. – São Paulo : Edições SESC SP, 2010. – 411 p.: il. Fotografias.

Fontes e Bibliografia ISBN 978­‑85­‑7995­‑002­‑5

1. Teatro. 2. Teatro – Método. 3. Antunes Filho, José Alves. I. Título. II. Subtítulo. CDD 792

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s e s c são pau l o Edições sesc sp Av. Álvaro Ramos, 991 03331­‑000 – São Paulo – sp Tel. (55 11) 2607­‑8000 edicoes@edicoes.sescsp.org.br www.sescsp.org.br

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Para Eva Wilma Laura Cardoso Stênio Garcia e In memoriam Raul Cortez Primeiros artistas­‑discípulos do mestre, que o estimularam ao mergulho profundo na arte do ator.

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Sumário

Apresentação. Um lugar para o sagrado, 9 Introdução. Origens do trabalho, 13 Parte I. O sistema 1. Questão de método, 23 2. Macunaíma, 43 3. Nelson Rodrigues, o eterno retorno, 59 4. Romeu e Julieta entre anjos e marinheiros, 79 5. O método anunciado, 95 6. Matraga & Xica da Silva, 115 7. O salto quântico e a melopeia, 129 8. Paraíso, zona norte, 147 9. Sinergia do Mal, 163 10. Realidades metafísicas e individuação, 177 11. Poética da imortalidade, 189

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Parte II. O método 12. Abertura. Corpo e espírito, 207 13. Do esqueleto à alma: o sistema L, 219 14. A preparação do corpo I: como chegar ao estado yin e yang perfeito, 235 15. A preparação do corpo II: em busca de repertório expressivo, 247 16. A respiração, 261 17. No princípio era o Verbo, 273 18. Função das vogais e das consoantes, 285 19. A construção da fala, 297 20. A viagem I: programação e gênese, 309 21. A viagem II: performance, 323 22. Prêt­‑à­‑porter ou a outra volta do parafuso, 337 23. Epílogo. A estrada sem fim, 351 Anexo. Diário de bordo do cpt, 377 Fontes e bibliografia, 385

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Prêt­‑à­‑porter é a busca de um novo tipo de teatro, um teatro da sensibilidade, no qual não existem mais certezas, estereótipos e macetes, mas onde cada um de seus criadores está ali com suas dúvidas, sua precariedade, com seus limites. Antunes Filho1

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á um momento no evoluir da técnica Antunes Filho que se converteu em uma das mais discutidas e festejadas manifes‑ tações do teatro brasileiro contemporâneo: o prêt­‑à­‑porter. Sob o signo do “ser e não ser é a questão”, Antunes transformou o exercício de naturalismo em “manifesto” permanente da escola teatral baseada em seu método para o ator. Ao desembocar no prêt­‑à­‑porter, o velho exercício de natura‑ lismo indicou este porto de chegada como o diferenciador de dois modelos estéticos: o naturalismo ainda praticado em nosso teatro, eco do século xix, mantenedor da emoção e do sentimento como ferramentas expressivas; e o recém­‑nascido falso naturalismo, que permite ao ator desenvolver na cena grandes emoções, não se dei‑ xando contaminar por elas. Há breve registro do exercício de naturalismo no manual escrito em 1987, O ator do Centro de Pesquisa Teatral, com a advertência de que esse naturalismo “não se refere ao movimento estético, mas ao nome adotado no cpt para um processo prático do método utilizado no de‑ senvolvimento dos atores”.

1. “Criação no cpt”, em Prêt­ ‑à­‑porter 12345, p.18.

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Hierofania Antunes e os atores discutem uma apresentação de prêt­‑à­‑porter Arieta Corrêa, Leandro Paixão, Antunes Filho e Lee Taylor. Foto: Carlos Rennó

Afirmam os redatores do manual que “o naturalismo não é arte”; porém, “para se chegar à arte, necessitamos do naturalismo”, repetindo desse modo as pregações de Antunes Filho. A cada passo do trabalho, certamente estimulados pelo mestre, eles recorrem a Platão e a Aristóte‑ les na tentativa de estabelecer respaldo histórico­‑filosófico à nova pro‑ posta de mimese. Ideia obscura, que se refere a uma prática em gestação e classifica o naturalismo como simples cópia do “que está presente e visível, o natural”, ao passo que o “realismo é a seleção que o homem faz do natural”. Na sequência é descrito o desenvolvimento do exercício: dois ou mais atores escolhem uma situação do cotidiano. Feita a opção, têm uma semana para elaborar a cena. Devem, então, avaliar se a situação imaginada pode de fato ocorrer, assim como responder às dúvidas ge‑ radas por ela e dar forma à ação dos personagens, seja no plano indi‑ vidual ou na inter­‑relação dos mesmos. Exemplifica­‑se, no parágrafo seguinte, com uma situação hipotética, os passos necessários para a realização do exercício: “Duas amigas se encontram após anos de separação”, eis o tema colocado. “Uma delas está com problemas”, continua a argumentação. E a cena vai sendo gerada a partir de questões como:

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1. 2. 3. 4. 5.

Aonde vão se encontrar? Há quanto tempo estão separadas? Qual é o nível da amizade? Qual é o problema da amiga? Como vão solucionar esse problema?

Há certamente uma infinidade de perguntas e respostas implícitas na situação. E com prazer os intérpretes buscavam mais perguntas para que o trabalho com o corpo e a voz, baseado na intuição e na sensibi‑ lidade, pudesse expressar respostas... e também novas dúvidas. O con‑ ceito estava colocado, mas não ia à frente, porque faltavam ferramentas para criar a expressão naturalista sem o uso direto da emoção. O último parágrafo do capítulo, naquele manual, resume a dinâ‑ mica do exercício: “A realização da cena é entregue aos atores. Eles montam o cenário e não há um texto preconcebido, sendo a atuação movida pelas necessidades da situação. [...] O objetivo é colocar o ator no estado de observador dele mesmo e do personagem. Realiza‑ do o exercício, outros atores, que estavam assistindo, fazem a crítica do mesmo”. Antes da redação desse manual, mais precisamente durante a tem‑ porada de A hora e vez de Augusto Matraga, os atores/alunos apresen‑ tavam os exercícios no palco do Teatro sesc Anchieta, aos sábados à tarde, para todos os interessados que lá comparecessem, fossem ou não ligados ao cpt. Apresentada a cena, Antunes fazia a sua crítica e esti‑ mulava tanto atores do grupo quanto pessoas que lá estavam apenas assistindo a se manifestarem sobre a mesma, pensando sempre, é claro, numa estética naturalista, no sentido de a cena ser um pedaço da vida. Não por acaso integrantes de grupos de teatro amador, ou em vias de se profissionalizar, frequentavam com muito interesse essas sessões: era um modelo para a descoberta, a reflexão e a compreensão da maté‑ ria dramática; entretanto, apesar do interesse despertado, os exercícios de naturalismo não apresentavam perspectivas de evolução. Havia certa fratura entre os meios interpretativos praticados no cpt, já num estádio avançado de elaboração, e a aridez daquele ato imitativo. No processo do grupo, com a introdução da melopeia e da bolha pareceu perder sentido e propósito o espontaneísmo daquela concep‑ ção naturalista. As técnicas já desenvolvidas achavam­‑se respaldadas na

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ideologia aplicada aos treinos exaustivos do corpo e da voz, coisa que ainda não encontrara seus encaixes naturalistas. Daí vem, por certo, o pouco relevo que mereceu o exercício de na‑ turalismo naquele manual de 1987. Parece ter apenas o propósito de registrar que Antunes permanecia fiel ao pressuposto da constituição realista, embora sem vislumbrar meios para integrar efetivamente essa constituição no sistema dramático. E, na verdade, a atualização do exer‑ cício de naturalismo se daria bem mais tarde, quando novos elementos da técnica interpretativa se estendessem até ele. No passo seguinte do processo, à época, o grupo mergulhou no exercício da bolha, que tanta importância teve para a criação de Pa‑ raíso, zona norte. Graças à bolha conquistou­‑se o estado de flutuação, distanciando o realismo e reivindicando para os acontecimentos cênicos a condição de pronunciamentos metafísicos. Depois de Paraíso, zona norte, a bolha se desintegrou e surgiu a per‑ formance, um meio para pesquisa e criação do personagem. Na mesma altura, houve empenho na investigação da nova técnica vocal, baseada no exercício de russo (fonemol), que, com a performance, responderia pela estética de Nova velha estória. Neste andar da carruagem, aparentemente o exercício de natura‑ lismo fora descartado, mas as aparências enganam, diz a sabedoria popular, e com razão: sempre esteve presente no cpt a necessidade de encontrar meios técnicos para a constituição realista – meios compa‑ tíveis com o sistema desenvolvido. Às vezes o exercício de naturalismo vinha à baila e era praticado respondendo a necessidades específicas. Por fim, quando Antunes e os atores deram início à sistematização do método, o velho exercício ressurgiu vigoroso para sofrer sua mais im‑ portante metamorfose visando ao falso naturalismo e se transformando em prêt­‑à­‑porter.

Foi, portanto, a busca por um naturalismo de referência, útil à cons‑ tituição realista da narrativa e do personagem, que conduziu Antunes ao falso naturalismo. Falso porque nele o ator se apoia na sensibilidade da emoção e não na própria emoção, como acontece na técnica natu‑ ralista tradicional. E falso naturalismo também porque na verdade é realismo, uma vez que foi elaborado por meio de sínteses.

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O próprio caminho o determina: para chegar ao falso naturalismo o ator deve recorrer a procedimentos que o distanciem dos estereóti‑ pos e lhe propiciem fingir a expressão do personagem no plano meta‑ físico. Uma questão técnica que se manifesta como princípio estético: ao dispensar estereótipos, o ator afasta­‑se da velha escola realista que deles é aliada. Mantendo a técnica, buscou­‑se o aprimoramento do produto esté‑ tico. Desde que tiveram início as jornadas de prêt­‑à­‑porter, no que diz respeito ao espírito que o produz e à técnica que o determina, o traba‑ lho não sofreu alterações, já o modo de apresentar as obras à plateia mudou significativamente. O exercício saía da sala de ensaio como um manifesto dessa escola teatral, para tornar pública a ideia de teatro desenvolvida no cpt, não apenas nas apresentações de prêt­‑à­‑porter, por sua manifestação cênica, mas também pelas exposições verbais dos intérpretes. Exposições que abordavam suas experiências desde o primeiro contato com a plateia, discorrendo sobre o processo criativo instaurado, e prosseguiam no debate com os espectadores sobre as três micropeças encenadas. Era, enfim, uma forma de solicitar ao espectador a sua participação na cria‑ ção e/ou no registro da obra. A apresentação acontecia em espaço comum, uma sala qualquer, sem iluminação cênica e com cenários improvisados pelos atores, que opera‑ vam também a sonoplastia usando equipamentos domésticos. A plateia, instalada à beira da cena, permitia contato quase físico entre espectadores e intérpretes. O formato da sessão, nos primeiros tempos, era o seguinte: 1. Um ator apresentava o trabalho falando da técnica e da ideolo‑ gia do cpt na busca da nova teatralidade. Tecia considerações sobre as diferenças entre o que se iria ver e o teatro convencio‑ nal e explicava a mecânica da apresentação. 2. A dupla de intérpretes da micropeça a ser apresentada sentava­ ‑se em cadeiras diante do público e cada qual expunha a gênese do seu personagem usando a primeira pessoa, como se fosse o próprio personagem. 3. Terminada a exposição das gêneses, os atores se levantavam, recolhiam as cadeiras, examinavam a cena e, sem alteração da luz ou qualquer outro efeito, começavam suas performances.

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4. Um ok proferido por alguém de fora da cena marcava o final da peça. Sem fechamento de pano ou escurecimento os intérpretes abando‑ navam as características dos respectivos personagens, traziam no‑ vamente as cadeiras e sentavam­‑se diante do público para o debate. 5. Na sequência entravam os atores da segunda obra, observando o mesmo esquema, e por fim a última dupla, porque a jornada do prêt­‑à­‑porter sempre se realiza com repertório de três micropeças. No Prêt­‑à­‑porter 3 (2000) esse formato sofreu alterações que per‑ maneceram em vigor nas edições seguintes. O texto do apresentador restringiu­‑se à explicação da mecânica do espetáculo; foi eliminada a exposição das gêneses e o debate passou a acontecer somente após a apresentação da terceira obra. Posteriormente, desapareceu o apresen‑ tador e nem sempre se fazia o debate. As jornadas passaram a se realizar num espaço mais teatral, permitindo algum efeito de luz e sonoplastia executada fora de cena. Tais alterações refletem a dinâmica do prêt­ ‑à­‑porter, iluminando a variante que o levou das origens, quando era exercício de classe, à condição de produto estético.

Todavia, o prêt­‑à­‑porter mantém sua condição de exercício de clas‑ se, por ser uma técnica, antes de ser forma estética. Os atores do cpt rotineiramente trabalham o falso naturalismo, criando cenas que são mostradas ao grupo e discutidas por todos. O procedimento se inclui entre outros tantos que caracterizam o método. Antunes não interfere na criação das cenas, mas coordena a ação dos intérpretes e, se entende que este ou aquele exercício apresenta po‑ tencialidade dramatúrgica, faz a crítica estimulando os intérpretes a tra‑ balhar melhor a ideia. Do conjunto de cenas selecionadas saem as três micropeças que compõem o repertório. Periodicamente se renovam as peças, por isso seguem­‑se ao nome Prêt­‑à­‑porter os números 1, 2, 3, etc. Não se deve esquecer a função primeira do prêt­‑à­‑porter, que é sua condição de exercício de classe; assim como não se pode ignorar a for‑ ma estética em que resultou. Uma forma original e renovadora, o que explica estarem as jornadas de prêt­‑à­‑porter sempre atraindo público, lotando o espaço onde são apresentadas aos sábados, no sesc Conso‑ lação. O trabalho percorreu cidades, deixou marcas em artistas de vá‑

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22. Prêt­‑à­‑porter ou a outra volta do parafuso Leque de Inverno Emerson Danesi e Silvia Lourenço. Foto: Emidio Luisi

rias partes do país e causou entusiasmo em Havana, Cuba, quando foi apresentado no evento Mayo Teatral de 20042. O que confere ao prêt­‑à­‑porter fascínio – não pelo que os diálogos dizem, mas pelo que a cena sugere – é a qualidade bem lograda por An‑ tunes Filho na sua busca de uma técnica para o ator. A encenação revela a transcendência da realidade objetiva e consequente invasão ao terri‑ tório metafísico. Percurso dramático que rompe as fronteiras da lógica formal e lança o espectador, aprisionado nas redes do vir a ser, ao plano das imanências, onde realmente ocorre o drama dos personagens – que está permanentemente em processo. A questão da forma faz lembrar a ideia de Antonin Artaud, segun‑ do a qual a encenação e não o texto é que deve materializar e atualizar os velhos conflitos: “esses temas serão transportados diretamente para o teatro e materializados em movimentos, expressões e gestos antes de serem veiculados pelas palavras”3. O surpreendente, no entanto, é que prêt­‑à­‑porter conduz a um esta‑ do semelhante a esse, mas por meio de cenas onde duas pessoas falam de coisas simples do dia a dia, ou de suas preocupações, de suas alegrias e tristezas, na linguagem realista gerada pelo falso naturalismo e não por procedimentos como os imaginados por Artaud, expressos em termos de

2. Nessa ocasião, a Casa de las Américas homenageou Antunes Filho e o Grupo de Teatro Macunaíma com El Gallo de La Habana. Pela oitava vez em sua história foi outorgado El Gallo, prêmio instituído em 1966 para destacar o mérito de grupos, personalidades, publicações ou acontecimentos cênicos que representem avanços do teatro da América Latina e do Caribe. 3. Antonin Artaud, O teatro e seu duplo, p. 156.

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4. Idem, p. 157. 5. Idem, p. 156. 6. Marici Salomão, “Para além da representação”, in Prêt­‑à­‑porter 12345, p. 152. Dramaturga e jornalista, Marici Solomão foi coordenadora do Círculo de Dramaturgia do cpt entre 2000 e 2003.

um “encavalamento das imagens e dos movimentos”, visando alcançar, “através de colisões de objetos, silêncios, gritos e ritmos, a criação de uma verdadeira linguagem física à base de signos e não mais de palavras”4. Fórmulas e preceitos antigos do teatro são superados no prêt­‑à­ ‑porter, e a criação dramática parece colocar em xeque a função da pró‑ pria dramaturgia, trazendo de novo à lembrança manifestações artau‑ dianas: “Renunciaremos à superstição teatral do texto e à ditadura do escritor”5. Tal postura torna o trabalho dramatúrgico do prêt­‑à­‑porter desconcertante, para quem o vê com as premissas e dogmas convencio‑ nais. Na verdade, a dramaturgia é consequência de um processo criativo que une duas entidades – autor e intérprete – em uma só. Normalmente o autor, na sua solidão criativa, conta apenas com as palavras por ferramenta e meio de expressão; já o intérprete, igual‑ mente na solidão criativa, pode escrever a partitura dramática a partir do significante, exteriorizando com o corpo, o gesto, o movimento e a expressão facial um universo impossível de ser verbalizado. O intér‑ prete usa as palavras (significados) como meras indicações, fragmentos de ideias atirados sobre a superfície plana do ato representado, porém atua para lá dessa superfície, em meio a tensões dramáticas, das quais as palavras são simples reflexos, lançando­‑se aos abismos da alma do ser fictício que faz viver em cena. Assim agindo, o ator supera a representação, atualiza mitos e ma‑ terializa no palco uma nova realidade, porém o texto dramático prati‑ camente deixou de existir, pelo menos do ponto de vista formal como é concebido tradicionalmente. Lembra Marici Salomão que Antunes quis formar parcerias entre os atores, naturais criadores das micropeças, e os dramaturgos do Círculo de Dramaturgia do cpt para a elaboração de prêt­‑à­‑porter, porém não se lograva êxito. Porque “as cenas geralmente resultavam como se fos‑ sem camisas largas em corpos pequenos ou o contrário; havia sempre muitos ou poucos diálogos, sequências bem marcadas de começo, meio e fim”. A experiência convenceu Antunes de que o “prêt­‑à­‑porter saía satisfatório [somente] quando elaborado e desenvolvido pelos próprios intérpretes”6. Depois Marici fala de Leque de inverno, peça do Prêt­‑à­‑porter 2, criada por Sílvia Lourenço e Emerson Danesi, enfatizando que “toda exposição física fazia parte da dramaturgia”. E acrescenta:

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Sobre o autor

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ebastião Milaré é jornalista, crítico e pesquisador de teatro. Des‑ de 1994 é curador de teatro do Centro Cultural São Paulo. Por 20 anos foi crítico teatral na revista artes: e nas últimas décadas tem publicado ensaios em periódicos do Brasil e do exterior. Criou e edita desde 2000 a revista teatral eletrônica www.antaprofana.com.br. É autor dos livros Antunes Filho e a dimensão utópica (Ed. Perspectiva, 1994) e Batalha da quimera (Ed. Funarte, 2009). Participou de várias obras co‑ letivas, com destaque para Estrategias postmodernas y postcoloniales em el teatro latinoamericano, organizada por Alfonso de Toro (Madrid: Iberoamericana / Frankfurt: Vervuert Verlag, 2004). É autor das peças A trupe futurista conta o bumba-meu-boi modernista (1992, dir. Gilber‑ to Gawronski) e A solidão proclamada (1998, dir. e coreografia Sandro Borelli); e dramaturgo de A flor e o concreto (São Paulo, 2000) e Quem come quem (Coimbra, 2001, dir.Stephan Stroux). É roteirista das séries O teatro segundo Antunes Filho (STV/TV Cultura, 2001) e Teatro e cir‑ cunstância (sesctv, 2009), dirigidas por Amílcar Claro.

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