pela impossibilidade jusfilosófica de uma “escravidão jurídica”, o que só poderia ser creditado à ignorância e ao despotismo. A segunda é acerca do uso estratégico da imprensa. Luiz Gama sabia que o destino de seus clientes dependia de como os juízes se sentiam moralmente à vontade para negar a liberdade aos escravizados que a pleiteavam. Era preciso, portanto, criar uma brecha no consenso social sobre a escravidão em uma sociedade na qual tudo funcionava contra os escravos. Daí seus artigos de jornal, que de forma inteligente e indignada denunciavam a imoralidade desse sistema. Por fim, a terceira consideração diz respeito ao impressionante conhecimento da técnica jurídica. Destaca-se nesse ponto a interpretação de Luiz Gama das leis de 26 de janeiro de 1818 e de 7 de novembro de 1831, manuseando com habilidade questões relacionadas à aplicação das leis no tempo e no espaço. E não se poderia deixar de mencionar o trecho que serve de epígrafe para este livro: ao alertar os juízes sobre a falta de compromisso com a justiça, diz que aconselhará e promoverá não a “insurreição”, mas a “resistência”. Com isso demonstra seu profundo conhecimento e retórica genial, pois sabia que a insurreição era conduta criminosa punível com a pena capital, mas a resistência é um direito/dever contra qualquer tirania e visa a preservação de nosso bem mais precioso: a liberdade.
SILVIO LUIZ DE ALMEIDA é doutor em direito pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), professor da Fundação Getúlio Vargas e da Universidade Presbiteriana Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama.
Luiz Gama foi jornalista, advogado, defensor do direito, maçom, republicano e abolicionista. Não bastassem todas essas características que adjetivam o homem público, podemos acrescentar que ele era negro, ex-escravo e autodidata, fatos que o tornam uma das figuras mais admiráveis da história do Brasil. Este livro reúne artigos publicados na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, durante as décadas de 1860 a 1880, em que Gama traz ao conhecimento público a história de mulheres e homens anônimos que permaneceram sob o regime de escravidão mesmo após a Lei do Ventre Livre, de 1831, com a conivência de advogados, juízes e até mesmo liberais e republicanos. Com introdução e notas da organizadora Ligia Fonseca Ferreira e, ainda, um prefácio do historiador Luiz Felipe de Alencastro, os textos são contextualizados e atualizados aos leitores do século XXI, que podem com preender que as lições de resistência deixadas por Luiz Gama ainda hoje são imprescindíveis à defesa dos direitos humanos.
Lições de resistência
Artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro Ligia Fonseca Ferreira [org.]
Nos últimos anos, tem se observado um ressurgimento, inclusive pelas mãos das novas gerações, do interesse pelo legado de Luiz Gama. Isso em muito se deve ao trabalho de Ligia Fonseca Ferreira, cuja trajetória acadêmica tem na vida e na obra de Luiz Gama um dos pontos nodais. Luiz Gama foi de fato um homem notável, mas Ferreira o tira do pedestal dos grandes heróis lendários para, em seguida, reposicioná-lo como um dos grandes intelectuais e construtores do pensamento nacional. Para tanto, empreende uma pesquisa rigorosa de seus escritos, indo além da história do ex-escravo que se tornou advogado provisionado; apresenta o homem de erudição, o advogado de técnica apurada e o jornalista combativo. Neste novo livro, coletânea inédita de artigos publicados na imprensa abolicionista e republicana, emerge, cristalina, a figura do jurista Luiz Gama. E aqui a palavra jurista deve ser entendida como o sujeito da práxis, aquele que se debruça sobre a técnica, mas compreende as repercussões científicas e sociopolíticas de seu mister. Gama sabia que a técnica jurídica se prestava à interdição da liberdade, já que a escravidão era constituída pela linguagem do direito. Mas sabia, igualmente, que a linguagem do direito era atravessada por contradições, e uma delas era sua filiação ao liberalismo político e ao universalismo iluminista. Não por outro motivo, dedicou-se a desvendar os meandros da técnica jurídica, a mesma utilizada pelos defensores da escravidão. É notável a destreza demonstrada pelo grande jurista negro em seus textos. Luiz Gama coloca-se como um mensageiro entre dois mundos: de um lado, o jusnaturalista, baseado na tradição do antigo direito romano da busca pela “essência” das coisas; do outro, o jusracionalista iluminista, sustentado pela ideia revolucionária da liberdade como condição universal. Se puderam servir de base para a escravidão, ele aproveitava o potencial crítico de ambas as tradições, argumentando