LUGARES DO DELÍRIO: arte e expressão, loucura e política

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Lugaresdodelírio

Arteeexpressão,loucuraepolítica

TaniaRivera(Autoriaecuradoria)

©EdiçõesSescSãoPaulo,2023 ©n-1edições,2023 isbn978-85-9493-259-4(EdiçõesSescSãoPaulo) isbn978-65-81097-47-9 coordenaçãoeditorialPeterPálPelbarteRicardoMunizFernandes direçãodearteRicardoMunizFernandes assistênciaeditorialInêsMendonça revisãoFernandaMello

ediçãoemLATEXPauloHenriquePompermaiereGuilhermeAraújo capaÉricoPeretta

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Areproduçãoparcialdestelivrosemfinslucrativos,parauso privadooucoletivo,emqualquermeioimpressooueletrônico,está autorizada,desdequecitadaafonte.Sefornecessáriaareprodução naíntegra,solicita-seentraremcontatocomoseditores.

1ªedição|Novembro,2023 n-1edicoes.org

partei 9 (0) Ocomeço–eseusfins 11 (1) Reviramentosdosujeitoedomundo 17 (2) Açõesclínicasnacultura 29 parteii 45 (3) AArteModernaencontraaloucura 47 (4) Paranoia,poesiaeArteBruta 87 (5) OHospitaldoJuqueryeacenamodernista 113 (6) OEngenhodeDentro:imagensegente 153 (7) Expressãoegeometria.Aloucuracomo modeloparaaArteContemporânea 189 (8) O outsider eaéticadasmargens:Hélio OiticicaeFernandDeligny 213 (9) A a(re)presentação deArthurBispodoRosário 251 parteiii 299 (Antes) Emtodaparte 301 (Visita1) ArteBruta,ArteConceituale reviramentosdacultura 303 (Visita2) Oinconscienteéumbarquinho.Arteàderiva321 (Visita3) Ponto,linhaemapa:desenhoeescrita desinomundo 337 (Visita4) Alinha–eogiro 355 (Visita5) Arteeclínica(concluindo) 371 Agradecimentos 389 Créditosdasimagens 393 Créditosde LugaresdoDelírio 395 Listadeimagens 399

ParapensaroOutro,eudeliroouversejo. hildahilst

partei

Ocomeço–eseusfins

AHistóriadaArte,sãomuitas.Apesardenãoserumahistoriadora, atrevo-meadizerqueboapartedelasaindaestáporserescrita,fora dostrilhosdasnarrativashegemônicaselongedoslugaresgeopoliticamentedominantes.Nenhumadelaséneutraeobjetiva;todaspressupõemcertaconcepçãodearte,desuasfronteirasedequemsãoseus protagonistas.Defato,aindaquetentemfornecerumpontodevista externoaoseiopulsantedosacontecimentos,elasestãosempreem estreitarelaçãocomteoriasepropostasartísticas,poéticasecríticas, tantodostempospretéritosdosquaispretendefornecerorelatoquanto domomentoemqueseelaborameinscrevemnacultura.Maisfundamentalmente,cadaumadelascarregatodaumaconcepçãodemundo quecostumaficarlatentesobfatoseobras,masforneceosmodospelos quaiselessãoarticulados.

Alémdisso,querosublinharaquiquetodoescrito–sejaeleteórico, críticoouhistoriográfico–setececomosfiosdasexperiênciasde seuautorouautora,aindaquebusqueocultá-lossobaautoridadede documentoseelaboraçõesdeoutrosautores.Maisdoqueconstituir umpanodefundo,creioquetaisfiosimbricam-seàquelesurdidos pelasnarrativaslatentesquebuscamosextrairdopassadoeexplicitar, formandoumaespéciedetecidovivoaatualizá-lasetalvezmesmoa transformá-las,emalgumamedida.

Estelivrotentamostrartalemaranhado–oumelhor,procuraassumi-locomosuaprópriaestrutura.Neleentrecruzam-sefeixesdiversos quecadaleitoreleitoraseguirá,ounão,deacordocomseuspróprios interesses.UmdelesbuscacontarnãoaHistória–comhmaiúsculo–massimalgumashistóriasdaproduçãoartísticadepacientespsiquiátricosnoBrasil.HistóriasqueenvolvemoHospitaldoJuquery,em

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SãoPaulo,eoateliêdepinturadoCentroPsiquiátricoNacional,no RiodeJaneiro–alémdeoutrasiniciativasartísticasmaispontuais,em instituiçõescomoaColôniaJulianoMoreira–,sãoaquientrelaçadas aconstruçõescrítico-teóricas,emnossaparteii,paradelinearointeressedasvanguardasmodernistaspelaartedepacientespsiquiátricos naEuropaapartirdosanos1920eoscaminhossingularesqueeletoma noBrasilnosanos1940e1950,gerandoexperiênciasquesedestacaram docontextointernacionaledeixarammarcassignificativasnaprodução artísticadopaís.Essaseçãodolivrotambémexploraalgumasdesuas derivaçõesnasdécadasseguintes,quevêmreconfigurarsignificativamenteasrelaçõesentreartee“loucura”,noBrasilenoexterior.Mais doqueestabelecerumaversãohistoriográficaunificada,meuobjetivo érefletircriticamentesobretaispráticasesuarelaçãocomomundo artístico“oficial”,digamos,debruçando-mesobreolugaratribuídoa talproduçãoequestionandosuasfronteiras,queimplicamaparadoxalatitudede,aoincluírempacientespsiquiátricosnacategoriados artistas,reafirmaremsuaexclusãocomoartistas“loucos”,“brutos”ou “outsiders”.Aolongodestecaminho,vão-seapresentando,emleitura crítica,asprincipaisreflexõesteóricasarespeitodasrelaçõesentre arteeloucura.

Talposturacríticaalia-seànecessidadederevercategorizaçõese concepçõesnocontextodasaúdemental,assimcomodaartecontemporânea.Recusandofazê-loapartirdeumainstâncianeutradeenunciação,estelivroapresentaerefletesobreminhaposição,entreclínica ecríticadearte,paraelucidarapropostaéticaemetodológicaqueo guia–eissoconstituiumsegundofeixecondutor,queseexplicitae desenvolveprincipalmentenaparteI.Mastalatituderevela-se,mais amplamente,comoaprópriatramadetodoesteescrito,ouseja,omodo comoneleseenodamobraseteorias–ecomoessassedesdobramem experiências,especialmenteaquelastrazidaspelaexposição Lugaresdo Delírio,daqualfuicuradora.

Aidealizaçãodestamostrasobreasrelaçõesentrearteeloucurafoi dePauloHerkenhoff,entãodiretorculturaldoMuseudeArtedoRio mar.Oconviteparadelineareexecutarsuacuradorialevou-mearever minhatrajetóriadeestudoscríticosentrelaçandopsicanálise,artee

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filosofiaearetomaraquestãodapsicose,quehaviadeixadodelado hámuitosanos,apesardetersidoaviaqueinicialmentemeconduziu dapsicologiaàarte.

Aexposiçãoesteveemcartaznomardefevereiroasetembrode2017, eemseguidafoiconvidadaaocupar,emversãomodificadaeampliada, oSescPompeia,emSãoPaulo,deabrilajulhode2018.Apresentando ediscutindoaspropostasdamostra,suamaterialidadecomoconjunto deobrasdispostasemdeterminadoespaçoealgumasdasvivências queelaensejounopúblico,esteescritoconstituiumaespéciedelivro-exposição–eissopodeserconsideradoseuterceirofeixecondutor. Destacando-sedotradicionalformatodocatálogodeexposição,que privilegiaoregistroimagéticodasobrasacompanhadodetextoque explicitaecomentaapropostacuratorial,trata-seaquidatentativade transmitirpensamentoseacontecimentosgeradospeloprojetoeque oatravessaram,tomandoamostracomoumaplataformadeaçõese reflexõeseconvidandoaleitoraeoleitoraexperimentarumaespécie deterceiraversãodaexposição,emlivro.

Nestaproposta,obraspresentesnasduasversõesdamostrasão evocadasetrazidasemimagens,combinandooslugaresemqueestavamsituadasparagerarumespaçoquenãoexiste,oumelhor,quesó existecomolivro.Nestaespéciedeexposiçãovirtual,aparteiiipropõe algunstrajetos(nossasVisitasErrantes)nosquaistrabalhosdearte seentrelaçamcominformações,reflexõesehistórias.Algumasoutras obras,quenãofizerampartedaexposição,sãotambémconvocadas,ao longodetodoolivro,comopartedestaplataformadepensamentos eproposições.

Opapelde LugaresdoDelírio nesteescritoestálongedeser,portanto, ameraincitaçãoapesquisasereflexões,ouaaplicaçãodestasaum eventoconcreto.Trata-sedatentativadepensaremato,edeapostarem agenciamentoscomoutros,nomundo,comoreflexãoativa.Creioque essapropostametodológicatalvezsejaaúnicaefetivamentecapazde responderaodesafioderelançarhoje,nocampodaartecontemporânea, aquestãodasligaçõesentrearteeloucura.Emvezdechegaradefinições deumaespéciedenovaArteBrutaousecontentarcomaapresentação denovosartistasidentificadoscomouniversoda“loucura”(queé,de

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resto,odetodosnós),trata-se,comaexposição,deagenciarmodosdiversosdeapresentaçãodaquestão,comartistasdiversos,ederecolher comopensamentoaquiloqueissoproduz–emmimenosoutros.

Duranteotrabalhodecuradoria,aolongodemaisdedoisanos, dei-mecontadequearetomadadaquestãodaloucuranarelaçãocom aarteerafundamentalenecessáriaparaoprosseguimentodeminhas reflexões,e,noentanto,nãovinhadepercepçãoedecisãopróprias,mas eraapontadaporumoutro–umoutroprivilegiadoporseuprofundo conhecimentodocampodaArteContemporânea,eaquemdedicoaqui meuprofundoagradecimento:PauloHerkenhoff.Essaconstatação ecoaaideiadeGeorgesBatailledeque“oquepensei,nãoopensei sozinho”,paraacentuarnelaopapeldooutronoreconhecimentode meu“próprio”pensamentoeparaaindicaçãodoscaminhosqueele engendra.1 Defato,nestaspáginascomoforadelas,nãoestousozinha: muitosoutrosestãopresentes,deformaseemmedidasdiversas.Apesquisacuratorialqueaquisedesdobraconfigura-se,assim,comouma investigaçãoexperiencialeprocessual,nacompanhiadeobras,artistas, autores,membrosdasequipesdecuradoriaeprodução,educadorese outraspessoasquecruzaramosespaçosinstitucionaisealideixaram algo–umgesto,umapalavra.Umobjeto(especialmentebarcosde papel,comoveremos).Algumasdesuaspalavras,vivênciaseelaboraçõesestãoaquipresentestextualmente,nostrechosquecitodaequipe responsávelpelotrabalhoeducativodaexposiçãonoSescPompeia, coordenadaporValériaGobatoeValquíriaPrates.Elasdãonotícias,na parteiii,dealgunsdosmicroeventossuscitadospelamostraaolongo desuaduração.Estelivronãosecompletariasemoagradecimentonominalesinceroaessaspessoas,queseencontraemseuanexo,aolado dafichatécnicadasduasversõesde LugaresdoDelírio

Aolongodoprocessodaexposiçãoe,emseguida,daescritadeste livro,foi-seancorandoemmimaideiadequeaexploraçãodasinterseçõesentreocampocontemporâneodasartesedasaúdementalensina hojesobrearte,culturaeconfiguraçõesdesubjetivaçãomuitomais

1.ApudBlanchot,M. LaCommunautéInavouable.Paris:LesÉditionsdeMinuit,1983,p.16.Eu traduzoestaetodasasdemaiscitaçõesemlínguaestrangeira.

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amplamente doquesepoderiaimaginar.Efoi-sefixandoacertezade queinvestigar(n)aculturaimplicaumadimensãoperformativa,ouseja, queseassumecomoaçãodealcancemicropolítico,recusandoaposição deneutralidadedoteóricofrenteauminerteobjetodeinvestigação paraafirmarreflexõesqueengajampoliticamenteo/apesquisador/ae ocampodeestudo,inserindo-seemumaredemaisampladepessoas eaçõesnomundoparadelinearnarrativasqueentrecruzemhistórias ereflexões,obrasdearteedepensamento,evitandoareverênciaa grandesnarrativasjáestabelecidasembuscadesituaçõessingulares ecapazesderelançarquestões–edeconvidaroleitor/aaassumi-las, também,porsuaconta.

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Reviramentosdosujeitoedomundo

Quandodescobrio Divisor (1968)deLygiaPape,fascinou-measimplicidadecomqueestaobrapareciaencarnarotecidoincorpóreono qualcadaumdenóstemlugarnomundo.Trata-sedeumpano–um quadradobrancodevintemetrosdelado–comfendasregularmente dispostas,nasquaispessoasenfiamsuascabeçasepodemsairacaminharjuntaspelosespaçoseruasdacidade.Neleaarterevela-seuma construçãoanosuniremumatramadefiosincontáveis–que,curiosamente,sobummicroscópio,semostrariaumcruzamentodefibras retas,comoaevocaratradiçãoconcretista,geométrica,naqualPapee seuscompanheirosdeaventuraneoconcretabuscavamenxertargente evida.Nomovimentodotecidoedaspessoas,ageometriaestritae implacáveldenossaestruturasocialprometetornar-seorgânicaefluida comoummardeondassuaves,convidandoaummodolúdicodepertencimentoaumacoletividade.

Intrigava-me,porém,otítulodadopelaartista, Divisor,acontradizer oconviteaocoletivocomoexperiênciadeumprazerosoeuniforme pertencimento.AtéqueumdiaeuassistiaumSuper8,realizadopor Papeem1967,quecontapoucomaisde3minutosenoqualsãocrianças quehabitamessavestecoletiva–meninosemeninas,muitosdeles negros–emumterrenoinclinadoqueseriaodeumafavelapróxima dacasadaartista,comoelaafirmaementrevista.1 Nãoapareceaía arquiteturainformalqueinteressavaàartistaaopontodelhefazer levarseusalunosavisitaremaFaveladaMaréregularmente,nadécada seguinte,edefazerumfilmesobreamesmaem1982,alémdenomear Palafita

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umdostrabalhosempapelquecompõemo Livrodacriação
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1.Machado,V.R. LygiaPape:espaçosderuptura.DissertaçãodeMestrado,FaculdadedeArquitetura eUrbanismo–usp,SãoPaulo,2008.

(1959/1960).Mastalvezelanãodeixedeexplorar,comainteraçãoentre o Divisor eascriançasdacomunidade,oquepodemosconsideraruma espéciede arquiteturadosujeito.

Naprimeiracenadofilme,oenormelençolestáesticadoemuma clareiracercadaporcopasdeárvoresqueprojetamsuassilhuetassobre asuperfíciebranca.Porentreassombras,nota-sederepenteocorpo deummeninoasemoveredeslizarsobreopano.Nacenaseguinte,o tecidoganharelevosobreoscorposdascriançasqueomovimentamem ondas,fazendovibrarumbelojogodeluzesombras.Asuavoltavemos umavegetaçãoaomesmotemporalaefirme,issoquehabitualmente chamamos“mato”–palavrainteressante,queindicaocampo,mas tambémoagresteremanescenteemnossascidades,comaforçadoque nãosedomestica,doqueficasemprenafronteiraentreohabitadoe umanaturezaquenãoépuraeidílica,masdesaídaruínaefracassodo projetocivilizatório–ouseja,oopostodaestruturageométrica.Neste filme,o Divisor parecemuitodistintodasimagensmaisrecentesquepovoamainternetcomarealizaçãodestaproposiçãoemcidadesepaíses diversosaoredordomundo,nasquaisolençolondula-seaosabordo movimentoentusiasta–porémcontidoequaseuniforme–deamantes daarte,noasfaltopróximoamuseusexpondoaobradaartista.Ofilme de1967prosseguiaemchavemuitodiferente,comaalegrebrincadeira dascrianças,quederepentedescobremapossibilidadedeescorregar porbaixoeparaforadotecidoeterminamporarrastá-lo,aosaborda inclinaçãodoterreno,demodoaformaralgo“comoumgrandeanimal rolandoterrenoabaixo”,naspalavrasdaartista.2

Nofinaldofilme,vemoso Divisor estendidoemumavastaárea depisoplano,decimento.Ascriançasestãoposicionadasnasfendas, obedientementesentadas.Talvezestejamumtantoconstrangidas–o lençolasprende,limita,domestica,eo Divisor parececumprirafunção dadaporseutítulo,mostrandoasfronteiraseexplicitandoastensões quecontrariamecindemaideiadetecidosocialcontínuoehomogêneo. Emumasutildenúncia,aobrafazveracordepeledecadaumde seusintegrantescomoemolduradapelobrancodotecidoaseuredor,

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2.Pape,L. LygiaPape (ColeçãoArteBrasileiraContemporânea).RiodeJaneiro:Funarte,1983,p.46.

distinguindo-adamultidãonaqualemgeralrostosecoresdepelese misturameperdemasingularidade.Háumjogodefocoentreoplano abertoeumabananeiramaispróxima.Quandoacâmeraaproxima-sedosrostosdascrianças,entretanto,tudopõe-sesubitamenteem movimento:elasvoltamafazervibrarotecidocomasmãos;elogouma cabeçasurgeemumafenda,enquantooutrasubmerge.

Otermo Divisor refere-seprincipalmente,segundoPape,aoatode apartarcadacabeçadorestodocorpo.Emsuaprimeiraversão,projetadaparaagaleriaibeu(InstitutoBrasil-EstadosUnidos),soprariavento quentenapartedebaixoegeladonadecima,ehaveriaespelhosnas paredeslaterais.“Jáimaginouaquelascabeçassemcorpoconversando umascomasoutrasnaquelepanobranco?”,perguntavaaartista.3 Uma multitudedecabeçasunidasformariaassimocoletivo,“conversando”, afirmadasemsuasingularidadeaomesmotempoqueduplicadaspelo espelhoepostasemrelaçãocomasdemaiscabeças–eimagensde cabeças–asuavolta.Seccionadosvisualmenteedivididospelasdiferentessensaçõesdetemperatura,seuscorposestariamparcialmente escondidos,alémdeconfinadosnasaladagaleria.

Porcerto,o Divisor éumplanoquecortaomundo–enoscinde–emdoiscampos.Odecimaéretratadonamaiorpartedasimagensque noschegamdasrecentesexecuçõesdaproposição,enquantoodebaixo apareceraramente,empoucasfotografias,comoconjuntoimpessoal depernasparadasouasemoverememritmoconstante.Naverdade, eunãohaviaatentadoparaessadimensãodaobraatéexperimentá-la, em2010,porocasiãodesuarealizaçãonopátiodomam–Rioparafilmagemqueintegrariaa29ªBienaldeSãoPaulo.Amigosmehaviam encaminhadopore-mailoconviteabertoaquemquisesseparticipar. Quandocheguei,otecidojáflutuavanoargraçasamuitoscorposeretos; lembro-medelamentarquenemtodasasfendasestivessemocupadas equeumadesuaspontastombassenochão.Vibravaumentusiasmo difuso,maseunãoconseguiasentirapresençadetodos,talvezpelo fatodemeucontatovisuallimitar-seaalgumaspessoasàminhavolta. Osobjetivosdaequipedefilmagemnosdirigiamporumbomtempo 3.Ibidem.

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apermanecerparadose,aumsinal,andarparaafrenteporalgumas dezenasdemetrosparalogovoltar,decostas,repetidamente.Creio agoraquemesenticerceadaemmeusmovimentos,enquantoansiava porumvoocoletivoquenãoseconcretizava.Nãomelembrobemem quealturadacena,quecomeçavaasetornarumpoucocansativa,algo surpreendenteaconteceu.Docentrodotecidocomeçouavirumsúbito farfalharelogopercebiquealgumaspessoaspunham-seasuspender comosbraçosotecido,emgestovigorosocomumdospunhos,acompanhadodeummeneiodecorpopeloqualacabeçadeslizavaparabaixo eretirava-sedafendaqueatéentãoocupava.Fizomesmo.Pordebaixo dopano,nosentreolhávamosesorríamos,ecadaumsemoviacomoque automaticamenteemdireçãoaoutrorasgonoqualpudesseseencaixar. Foicomoumcontágio:logotodosestávamossaindodenossasfendas etrocandodelugarcomoutros,semparar,emumabelaecomplexa coreografia.Recordo-medaalegriainfantiledosolharescúmplicesque acompanhavamessesmovimentos.Subvertíamosaestrutura,oplano queatribuíaacadaum/umaumdadolugar,erealizávamosalgo porbaixo dospanos,comodizacuriosaexpressãopopular.Estávamosjuntosna medidaexataemqueconseguíamostrocardelugar.

Curiosamente,essaexperiênciaressoouminhapráticaempsicanálise.Comoanalistaassimcomoanalisante,aprendiaolongodemuitos anosque,seapsicanáliseéumapráticadedescobertaserevelaçõesde conteúdospsíquicos–eteria,nestesentido,avercomlevantarvéusencobridores–,nelanãosetrata,emabsoluto,dedesvelaroinconsciente ou“averdade”comonarrativaúnicaedefinitivaaqueseteriaacessopela corretainterpretaçãodeseusdisfarces.Creioquesetrata,fundamentalmente,desuspendernarrativashegemônicasparaquecadaumpossase mover,aindaqueminimamente,paraforadeseulugarhabitual;deabrira possibilidadedenovosgestosquenãosefazemindividualmente,masse entrecruzamcomgestosdeoutros,demodoaeventualmentefranquear novosespaços–einventarocampododesejocomoaqueledoquese passapordebaixodospanos,entrenós.Creioqueapsicanáliseconsiste, nestachave,empráticaindubitavelmentepolítica.

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Lugaressemfronteira

Apenasalgunsanosmaistardedesteacontecimentopudemedarconta dequeoquevivino Divisor ensinavatambémsobreoqueeubuscavana arte,desdequecomeceiaestudá-la:buscava lugares,noplural.Lugares dosujeitonacultura,outalvez lugares-sujeito.Outroslugares,distintos dolocalpredeterminadoparacadaumnamalharígidadasociedade. Lugaresmóveis.Formadaempsicologia,euinvestigavaocampoda loucuranaobradeFreud,tentandocontribuirparaumacompreensãodolugarmarginalqueapsicopatologianomeiacomo“psicose”. Incomodava-meomododeficitáriocomoesteamploterrenocostuma sercaracterizadopelaideiaprevalentedequealgofalhounaconstituiçãopsíquicadedeterminadaspessoas.Parecia-meequivocadoencarar osmodospluraisdesofrimentomentalgravecomoinfelizesexceções queconfirmariamaregrada“boa”constituiçãosubjetiva.AReforma Psiquiátricajáespalhavahaviaquasetrêsdécadaspelomundoarevisão nãosódosmodosdetratamentomastambémdaprópriaideiade“loucura”,salientandosuadeterminaçãoculturalesocioeconômica,mas parecia-mequeosteóricosempsicanáliseaindanãohaviamtomado seriamenteparasiatarefadebuscarcaracterizaçõespositivasdesses modosdesubjetivação“desviantes”.

Noentanto,Freudjálançaraumabasefundamentalparatalempreendimentonadécadade1930,comsuaconhecidametáforadocristal. Apatologiatornavisíveisaslinhasdeforçaexistentesem“condições normais”,afirmaopsicanalista,assimcomoumcristalmostrasuaestruturaaosequebrar.Aliondeoadoecimentotrazumafraturaou rachadura,“normalmentepodeestarpresenteumaarticulação”,diz ele.4 Issosignifica,semdúvida,quequandoalguémentraemcrise,em surtopsicótico,revela-seumaestruturaqueatéentãoseencontrava oculta.Oadoecimentocorresponderiaàexacerbaçãodoqueatéentãoeraumacisãocontrolada,apermitiramodulaçãodeaberturase fechamentos–comoasdobradiçasdeumaporta–,emumsúbitoescancaramentocapazdepôraportaabaixo.Estainterpretaçãodoprincípio

4.Freud,S.“NovasConferênciasIntrodutóriassobrePsicanálise”(1933[1932]).In EdiçãoStandard BrasileiradasObrasPsicológicasCompletasdeSigmundFreud.RiodeJaneiro:Imago,1976,vol.xxii,p.77.

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docristalcorrespondeàpropostaestruturalistadaqualJacquesLacan retirousuaclínicadiferencial,aodaroimportantepassodemostrarque oanalistadeveiralémdossintomasapresentadospeloanalisando,para buscaridentificarseumododefuncionamentodebase–suaslinhasde clivagem,odelineamentoeaposiçãodesua“porta”–edeleextraira direçãodotratamento.Maspodemospensá-ladeoutraforma,sobo mododeum Bicho deLygiaClark,porexemplo:antesdacrise,ummovimentoerapossível,umentreabrirdaporta,umareconfiguraçãomóvel daescultura.E,desúbito,umgestomaisbruscoofazdesmontar-se (como,aliás,lembro-medejáterexperimentadoaomanipularréplicas dealguns Bichos emexposiçõesdaartista).

ApropostadeFreudnosencoraja,porém,airalémdessasleituras, postoqueelebuscajustamentesuspenderafronteiraentreospretensos“normais”eos“doentesmentais”,demodoaapontarnodelíriode observaçãodaesquizofreniaparanoide,porexemplo,oescancaramento daatividadedejulgamentoqueosupereuexerceriaordinariamente sobreoeu.Énestesentidoqueodito“doentemental”carregaumsaberfundamentalsobretodosnós,dizopsicanalista,comoderestojá atestavaomedoreverencialqueospovosantigostinhamdo“louco”. Nestachave,a“loucura”étidacomoalgoquenosconstitui,subterraneamente,atodos–eessaéalição,radical,quenosimpededetraçar clarasdelimitaçõesentreo“normal”,o“neurótico”eopsicótico.Elevadaa“princípio”fundamentalporJacquesSchotte,psicanalistabelga queorientoumeusestudosdepós-graduaçãoaoladodeJeanFlorence, ametáforadocristalincitaaumaconcepçãobemmaiscomplexado queaqueladasestruturasclínicasbemdeterminadas,dasquaisapenas umacorresponderiaàpsicose.ElalevaSchotteaproporotermo patoanálise pararessaltarqueaspatologiasmentaisesclarecemosfenômenos humanosemgeral.5

AoladodainfluênciadeSchotte,foidecisivaemminhatrajetória apropostadolacanianoAlfredoZenonideuma“clínicacontinuísta”, queacentuaoquehádecomumentreasestruturaseassimafastaa

5.Cf.Schotte,J.“Dela Schicksalanalyse àlaPathoanalyse”.In LesCahiersduCentred’Études Pathoanalytiques.Bruxelas,n.3,s./d.

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concepçãodapsicosecomodéficit,emproldaideiadequesetratade “umdestinosubjetivo,positivo,entreoutros”.6 Apartirdacontribuição deambosautores,queroproporaquiumaleituradametáforadocristal queradicalizasuapotênciadesuspensãodasfronteirasentreonormal eopatológico,paraatingirdeformacríticaaprópriaideiadeestrutura enosajudaraconceberumaespéciedeantiestruturaoude estrutura movente,sepudermossuportarooxímoro.Nesta,ocristalseriafragmentadoàmaneiradeumcaleidoscópio,paratornar-seumjogoentre elementoscapazderevelar,acadainstante,umaconfiguraçãosingular. Nestemodelo,asclivagensláestão,correspondendoàsdistinçõesentre oselementos;noentantoasfraturassedãoconformeumaarticulação quenãoéfixaepredeterminada,masserearranjanotempo,aosabor defatoresdiversos,inclusiveaquelesque,de“fora”–acontecimentos variados,emdadocontextosocioeconômicoecultural–,atingem-noe fazemmover-se,tremerouinclinar-se,aindaqueminimamente.

Longedasdelimitaçõesgeométricas–dasretasfronteirasentrenormalepatológico,entreneuróticoepsicóticoetc.–,lidamos,assim,com suspensõesegirosimprevisíveis.Commovimentos,gestosereviramentos,comono Divisor. Comcoisasquesepassam“porbaixodospanos” etendemportantoaserinvisíveis,senãomesclarmosnossoolhar–oumelhor,nossocorpo–nestetecidoenosarriscarmosaomenosa darumaespiadanoqueestádebaixo.Emvezdoestabelecimentode umoualgunspadrõesdenormalidadeedaconsequentecaracterização negativadoquedelesdestoa,propomos,comafiguradocaleidoscópio, aconcepçãodeumcampodeelementos(cristaisdiminutos,digamos) quesearranjamdemodosvariadosnoespaço-tempo–epodemportantorearranjar-seemalgumamedida,emumprocessoanalítico,além desereconfiguraremdiscretamenteaolongodavida,emdinâmicas imprevisíveisemovimentossutis,quandonãoembruscossolavancos.

Éimportantenotarquenãosetrata,contudo,dedefenderaquium relativismoquelevariaapensarosmodospluraisdesubjetivaçãocomo versõesinfinitasdiantedasquaissónosrestariadesistirdequalquer

6.Zenoni,A.“Aclínicadapsicose:otrabalhofeitopormuitos”.In Abrecampos,ano1,n.0,junhode 2000,p.34.Disponívelem:http://www.pbh.gov.br/smsa/biblioteca/concurso/clinica_psicose.pdf.

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tentativadecaracterização.Trata-se,antes,derenunciaràteorização segundoomododecompreensãodagrandenarrativaunívocaedefinitiva,emproldeconstruçõesmultidisciplinares,fragmentadaseprovisórias,nasquaissingularidadeecontextopossam,contudo,searticular emnarrativas efetivas –ouseja,capazesdecarrearalgum efeito teórico (epolítico).Lidamos,nopensamentoteórico,comficçõeseversões múltiplas,compalavrascapazesdesetransmitiraoutremdemaneiraa nestegerarnovasficçõeseversões,outraspalavras–deformaanáloga àquelacomosedelineiam,note-sedepassagem,as“construçõesem análise”noléxicofreudiano.Maisdoqueser“verdadeira”oufalsa”, umaintervençãodoanalistamede-seporsuacapacidadedegerarpalavras,deincitaroanalisandoafalarmais,adescarrilharanarrativa emdesviosenovasconfigurações.7 Nissoresidesua“eficácia”–que nuncaestá,portanto,garantidapelateoriaoupelatécnica,sópodendo serconstatadaapósterlevadoatalacontecimentodefalaporpartedo analisando.Similarmente,creioquenossasreflexõesteóricasnãosão constataçõessistematizadasapartirdocontatodiretocomoobjeto deconhecimento–sejaeleoinconsciente,osujeito,aarteetc.–,mas simconstruçõesendereçadasaoutros,equenestespodem–ounão –produzirefeitos,emummodoestético,digamos,de“confirmação”. Talveznãosejaexageradooupretensiososuporqueelaspossameventualmenteteralgumapotênciasubjetivante,ouseja,quesejamcapazes degerar sujeitos –considerandoqueosujeitonãocorrespondeadado indivíduoempírico,massim,comopropõeLacan,acerto efeitodesujeito, aserefazer,repetidaeimprevisivelmente,entrenós.

Versõesinfinitasereviramentosdiscretosestãoprovavelmenteacontecendotodotempoporaí.Masocampoculturalnoqualelescostumamseconfigurar,tornando-seficçõeseconformaçõesquedealguma maneirapodemseefetivarentrenós,parece-meseraquelequedenominamos,umtantovagamente, arte.

Parabuscarcompreenderosmodos“desviantes”desubjetivação, podemosportantorecorreràsproposiçõesartísticas,assimcomo

7.Cf.Freud,S.“Construçõesemanálise”(1937).In EdiçãoStandardBrasileiradasObrascompletas, op.cit.,vol.xxiii.

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deveríamos consultarosartistasenossasprópriasexperiênciasdevida parasabermaissobreoinconsciente,segundoFreud.Aprópriapsicanáliseseriaassimlevadaarevirar-separaforadesimesma–desuateoria edeseusconsultórios,deseusestritosestudosdecasos–parabuscar naculturaenoatritocomoutrasdisciplinasaquiloqueadeterminae nelapulsa(suas pulsões,digamos):avida.

Osujeito,semprenacultura

Estamos,éclaro,aanos-luzdousodapsicanálisecomoferramentade interpretaçãodeobrasdearte,ouseja,desubstituiçãodeumanarrativaqueseapresentacomocorrespondenteaosuposto“conteúdo”de umaobraporumaoutranarrativa,autoritariamentetomadacomomais verdadeiraqueaprimeira.Masnãobastahojerecusartalequívoco,que chegouagerar“psicobiografias”eaté“patobiografias”,abordandoartistascomoVanGogheEdvardMunch,naesteiradoestudodeFreud sobreLeonardodaVinci,de1910.8 Comumdurantealgumasdécadas, essaposiçãometodológicafoiamplamentesubstituída,naatualidade, pelocotejamentoentreteoriapsicanalíticaeproduçõesculturais,em atitudemaisrespeitosa,masquemuitasvezesnãofazmaisqueconfirmarouexplicitardidadicamentepontosdateoriapsicanalítica,raramentecolocando-osemriscoetransformaçãodiantedoquecadaobra poderiaensinar.Nocampodacríticadearte,opapeldopsicanalista comointérpretecedeulugaraumaconvocaçãomaisinteressante,mas aindarestritaaocomentáriosobrenarrativas“subjetivas”,comosesua vozfossepertinenteapenasquandosetratamdeobrasintimistas,autobiográficasouautoficcionais,queeventualmenteevocamoideário surrealistaoutrazemmençãoexplícitaàpsicanálise.

Longedeserapanágiodaintimidadeeda“subjetividade”entendida comoatributopessoal,porém,apsicanáliseépráticaeteoriadosujeito foradesi– nacuriosaexpressãoquenomeiaoexcesso,aloucura quepodetomarqualquerumdenós.Osujeitonãoestádentrodesi

8.Cf.Freud,S.“LeonardodaVincieumalembrançadasuainfância”(1910).In EdiçãoStandard BrasileiradasObrascompletas,op.cit.,vol.xi.

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mesmo–noindivíduo–massurgenooutro,nosobjetos,nomundo. Eissobastariaparaquesequestioneousodoartigodefinido,antesdo termo.Seriamaisrigorosodizer sujeito –nãouno,dividido–éalgoque acontecenacultura.Sujeito,essapotênciaque (mal)está nacultura–sepudermosparafrasearoconhecidotítulofreudiano Omal-estarna cultura [emsuatraduçãoparaoportuguêstornadaclássica,apesardo termoalemãoempregadoporFreudsignificar,maisrigorosamente,o Desconforto (Unbehagen)nacultura].9 Muitomaisdoquedeterumsaber sobre“osujeito”emsuaintimidade,podemosafirmarqueapsicanálise busca naculturaasingularidadecomosujeito.Eéporessaposiçãometodológicaeepistemológica–namedidaemquepõeemxequeaspróprias condiçõesdeconstruçãodoconhecimento–queelasedistanciada psicologiaedetodopsicologismo,paraafirmar-sedesaídacomoteoria críticadacultura.Defato,umadesuasprincipaistarefas–oquestionamentocríticodolugardosujeitocomosenhordarepresentação–foi compartilhada,aolongodoséculoxx,pelasexperimentaçõesartísticas emdomíniosvariados:artesplásticas,cinema,literatura.Naprimeira metadedoséculo,notadamente,entremearam-seprofusamentedescobertas,questõesepropostasentrepsicanáliseeArteModerna,ainda queosdoiscamposnãochegassemaconfluirexplicitamente–salvo talvezemummomentoespecífico,aqueledaapropriaçãoqueossurrealistasfazemdapsicanálisenadécadade1920.ApartirdaSegunda GuerraMundial,talcompartilhamentodequestõestomoudireçõesdiversasemaisrarefeitas,dentreasquaisdestaca-seareflexãolacaniana sobreoimaginárioeaquestãodoobjeto.

Sobreestepanodefundonoqualsemoviamtambémváriasteorias filosóficas,destaca-senosanos1920afigurado“louco”eaprodução plásticadepacientespsiquiátricos,quevêmencarnaraampliaçãocrítica dosprotocolosacadêmicosderepresentaçãoensejadaeardentemente desejadapelosartistasmodernistas.NaparteiidestelivroapresentaremosumpanoramadosencontrosentrepsiquiatriaeartenaEuropae noBrasil,selecionandodiálogoseacontecimentossingulares,nabusca porexplicitarasquestõesemtornodasquaiselesgirameexploraras

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9.Cf.Freud,S. Omal-estarnacultura (1930).PortoAlegre:l&pm,2010.

versõesnarrativasqueconstroem.Masantesdevopedirpaciênciaà leitoraeaoleitor,paratrazerumpoucomaisdeminhatrajetóriacomo psicanalistaepesquisadoraeassimpoderpassardaatitudedeinvestigaçãodosujeitoedacultura,comotermosintrinsecamenteentrelaçados, paraapropostadetomarumacuradoriaemartesvisuaiscomotrabalho clínico,nocontextodaproduçãocontemporânea.

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(2)

Açõesclínicasnacultura

Artistas,curadoreseprodutoresculturaislidamhojecomadifíciltarefa deefetivaredefenderapotênciaderesistênciaeemancipaçãodaarte diantedaonipresençadaindústriacultural–consolidadanasúltimas décadasdoséculoxxcomoconvergênciaconsumadaentreprodução artísticaemarketing–edaprofissionalizaçãoeinternacionalizaçãodo mercadodearte–quefazdaobraumfeticheeumaespéciedebastião damais-valia,mesmoquandoelabuscaativamentequestionarascondiçõeseconômicasesociaisvigentes.Apartirdofimdoséculopassado, aspropostasrelacionaisquejámarcavamosanos1960ajustaramseu focodemaneiraaencararquestõesgeopolíticasesociais,aomesmo tempoemquetentaramconstruirmodelosdevínculosocialanível micropolítico.Nosúltimosanos,estabuscaajudouaesgarçarasfronteirasdocampodaarteemproldeexperiênciasvivenciaisesociais, atualizandoosonhomodernistadeunirarteevidaemchavepolíticae levandoaumnotávelquestionamentosobreascondiçõesdeexposição etransmissãodetaisações.

Nestecampotãoricoeproblemático,querecolocaemdiscussão oqueéarteequaléseupapelnavidadaspessoas,aomesmotempo emquerecusaatendênciadaarteditaeruditaadelimitarumlugarde exceçãoeprivilégio,vemossurgirrecentementepropostasdiversasna fronteiraentrearteesaúde.Oterrenodaloucuraedasaúdemental nãorarotomanelasoprotagonismo,retomandosobnovoparadigma aimportânciahistóricaexercidapeloencontrodecríticoseartistas modernistascomaproduçãodepacientespsiquiátricosemateliêsde terapiaocupacional.

Comoveremosmaisadiante,adescobertaevalorizaçãodetalproduçãonaEuropa,noiníciodosanos1920,contribuiuparaadefesado valorexpressivodaArteModernacontraoacademicismonaturalistavigente.Atualmente,umavezdenunciadaaarbitrariedadedoisolamento

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socialdaspessoasquevivemexperiênciaspsicóticas,torna-seingênuo –senãoclaramenteviolentoesegregador–fazê-lasencarnaremafigura dogêniosubtraídodavidacultural,doartista“bruto”ou“virgem”(para usaraterminologiadeJeanDubuffetcomaexpressão ArtBrut eatraduçãopropostapelocríticobrasileiroMárioPedrosa).Quesentido poderiatertalqualificaçãonocampodaproduçãocontemporânea,no qualnemaformaçãotécnica,nemarecepçãoporpartedacríticagarantemolugardeartista“autêntico”,ounão“bruto”?Apesardeexistirem aindagaleriasdeArteBrutaemdiversospaíses,parece-nosproblemático,hoje,incensaraproduçãodeartistas outsiders ebuscarlançarluz sobreeles,poisissorealça,paradoxalmente,suasupostadistinçãoem relaçãoaos“artistas”emgeral.Masentãodequesetratanaspropostasartísticasatuaisnocampodasaúdemental?Deconfinaraarteaos supostosobjetivoscurativosda“arteterapia”?Enoscasosdeprojetos deresidênciaartísticaououtrasintervençõeseminstituiçõesdesaúde mental?Poderia-setratarde“cuidar”dospacientes?

Cuidarépoder

“Cuidado”parece-meumapalavramuitoperigosanestecontexto.1 Sob suaégideatosterríveisforamcometidos,especialmentenoâmbitoda saúdemental:desdefinsdoséculoxviii,hospíciosforamcriadosde modoaretirarpessoasdeseucontextosocialeafetivoesubmetê-lasa tratamentosarbitráriosedesrespeitosos,quandonãodolorososeaté mutiladoresdesuaintegridadefísicaepsíquica.Alémdisso,osespaços desegregaçãoassimestruturados,quepermaneceramhegemônicosno tratamentodosditosdistúrbiospsiquiátricosatérecentemente(esão aindavigentesemlargamedida,devemosinfelizmenteadmitir),abrigaramnãoapenaspessoasemintensosofrimentopsíquicocomotambém servirameventualmentededepósitoouprisão,noBrasileemboaparte domundo,parapessoasqueagiamdemodoconsideradomoralmente incorretoporsuasfamílias,bemcomoparaopositorespolíticosdegovernosescusos.

1.AgradeçoaJessicaGoganeIzabelaPucuaincitaçãoaproblematizarestetermoepormeiodele explicitaralgumasdaselaboraçõesdestecapítulo.

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Porissonãosepodeesquecerqueoatodecuidarimplicasempre umarelaçãodepoder,tantoemsuaincidêncianaáreadasaúde,articulandoprofissionaisepacientes,quantonoquedizrespeitoàsrelações sociais,demodomaisamplo–incluindoasfamiliares.Entreadultoe criança,paiemãeefilhaoufilho,porexemplo,trata-sedeobrigações afetivas,moraisejurídicasqueparecemporvezesesconderojogopolíticoaípresente.Aideologiadocuidadoimplicaquedeumladotemos A–alguémquenecessitadecuidados–edeoutroB,aquelecapazde ministrartaisações,benéficas–presume-se–aoprimeiro.Seriaimportanteesmiuçarcadasituaçãoparticularnaqualseencarnatalesquema genéricoparachegaràsquestõesquesuasimplicidadetentaesconder, taiscomo:quemsupõequeAnecessitadecuidados?Elepróprio,B quedelecuidaouaindaumterceiro,C,sejaeleencarnadoounãopor umrepresentantededeterminadacategoriaprofissional,religiosaou jurídica?E,nocasodeademandadecuidadosvirdeoutrem,Ateriaa prerrogativadeconsentiroucontestá-la?Épossíveltermossituações dereciprocidade,nasquaisaoscuidadosqueBdirigeaAcorrespondam simetricamenteaçõesdemesmoteordeAparaB?E,ainda,qualograu deespecificidadedetaisações,dadasassingularidadesdeAeBeda situaçãoqueentreelesseestabelece?VirádaposiçãoCumaforçaou exigênciadepadronizaçãoquefazdocuidadooutratamentoaçõespredeterminadasquepoucolevamemcontaasparticularidadesdecada situaçãoentreAeB?

Asquestõessãonumerosaselimito-meaquiaesboçaralgumasdelas, buscandomostraracomplexidadedasituaçãopolíticado“cuidado”,do tratamentoouainda,deformamaisespecífica,daterapia.Nesteterreno tambémmuitovasto,aposiçãodopsicanalistatrazumaparticularidade dignadenota:adeenfocarecolocaremquestãoarelaçãoentreAe B–semperderCdevista–deformaexplícitaecentral,atravésdo conceitode transferência.Nestesentido,apsicanálisenãoseconfigura simplesmentecomoumapráticadecuidado,dentrodocampodosserviçosinstitucionais,mascomouma práticacríticadocuidado.Outalvez devamosadmitirqueelanãocheganecessariamenteaaçõescríticas, dependendodoprofissionaledasituaçãonaqualeleeoanalisandose inserem,mastalpotêncialheésemprefundamental.

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Nocampodamedicina,aforçadeinfluênciadomédicosobreopacientesemprefoireconhecidacomomotorimplícitodosucessodo tratamento.Atualmenteelaseconjugaaopoderdeprescriçãodemedicamentos,emumcontextobastanteproblemáticonoqualaindústria farmacêuticainfluenciaosprofissionaispormeiodeumsistemamuito eficazdepropagandaedeofertadebenefíciosdiretosouindiretos.As drogaspsiquiátricastornaram-seaferramentaconcretadaafirmaçãode poderdopsiquiatrasobreopacienteedabuscademanutençãodeprivilégiosporpartedaclassemédicaemrelaçãoaosdemaisprofissionaisde saúde,quecontatambémcomaaçãoprotecionistaecorporativistados ConselhosRegionaiseFederaldeMedicina.Umafirmeestruturadepoderarticulaassimapráticamédicaainteressesdocapitalereflete-sena clínicadetodososdiasemnívelmicropolítico,reforçandoahierarquia entreodiscursoeosatosmédicoseafaladaquelequebuscatratamento, queterminaporserreduzidaàdimensãodaqueixaedosintomade modoacalarodireitodeopacienteobterinformaçõesdetalhadaseter vozeescolhanasdecisõesterapêuticas.

Masenquantoaforçasugestivacostumaserocultadanapráticamédicasobodiscursodaciência,demodoamanterintocadoopoder médico,define-secomopsicanálisejustamenteocamponoqualelaé reconhecidaemanejadademaneiraasubverteraestruturadepoder subjacente.Aoocuparolugardesuposiçãodesaberquefazcomquealguémaeleouelaseenderece,um/umapsicanalistaabdicadequalquer saberprévioemproldaescuta.Apenaso“paciente”detémosaberque setratadedesvelar;suaposiçãoéradicalmenteativaedeveserdemarcadadolugardaquelequerecebepassivamente“cuidados”.Alémdisso emaisfundamentalmente,umprocessoanalíticodevelevaràrevisãoe aoreposicionamentodosujeitoemsuarelaçãocomoOutroquedeteria supostamentesuaverdade,implicandoportantoumgironaestrutura depoderealgumgraudeemancipaçãodaposiçãodeassujeitamento.

Masestariatalemancipaçãorestritaaoâmbitoprivadodoconsultórioindividual?Creioqueestaéumaquestãofundamentalparaa psicanálise,hoje,mesmoparaospsicanalistasdepráticaexclusivamenteprivada.Eincontornávelparaaquelesqueatuameminstituições

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desaúdementalououtrasespecialidades,sejamelaspúblicasouprivadas,bemcomoemsituaçõesclínicasexpandidasparacontextosde intervençõesemcomunidades,emlocaispúblicosetc.

Cuidar,comocorpo

Acreditoqueapráticapsicanalíticaeminstituiçãodevebuscarpôrem movimentoasrelaçõesdecuidado(ouseja,depoder)aliexistentes. Paraavançarnatentativadecaracterizartalação,voureferir-meauma experiênciaprofissionalprópria,vividahámuitosanos,nadécadade 1990,no FoyerdeL’équipe,emBruxelas,quetemcomoidealizadoro psicanalistaitalianoAlfredoZenoni,aquemjámereferinocapítulo anterior.Aentidadedefine-secomoumacomunidadeterapêuticade pós-crise,residencial,querecebeadultoscomdificuldadesporum períododeseismesesadoisanosparaprepararseuretornoàvida foradeinstituições.Apresençadapsicanáliseénelafundamental,não comoumadasmodalidadesdecuidadosalipostosemprática,massim comoinstrumentode“deslocamentododispositivoinstitucional”,na expressãodeZenoni.2 Nãopodereiaquidetalharcomoseumodode funcionamentovairealizandonocotidianopequenosdesviosecomo essesparecem-meterumaincidência“terapêutica”muitomaisampla doqueameraremissãodesintomas.Contentarei-meemmencionar,de formapessoal,algumasdasexperiênciasquealiviviequesãobalizasde minhapráticaclínica,bemcomodeminhaposturaintelectual,apesarde algunsanosdepoisterdeixadodetrabalhardiretamenteeminstituições desaúdemental.

Comojádisse,apsicanálisenãoestavapresentenestainstituição atravésdeatendimentospsicanalíticosemconsultório,emborapartede suaequipefosseformadaporpsicanalistas,aoladodeprofissionaiscom formaçõesdiversascomopsiquiatras,enfermeirosesocioterapeutas, entreoutros.Tendoemvistaareestruturaçãodavidadosujeitofora dequalquerinstituição,encorajava-sequeestebuscassetratamentoindividualforado Foyer. Dentrodele,cadaumcontavacomummembro

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2.Cf.Zenoni,A. L’AutrePratiqueClinique.PsychanalyseetInstitutionThérapeutique. Toulouse:Érès,2009.

daequipecomoreferênciaparaestabelecimentoeacompanhamento deseuprojetoindividualizadodetratamento,escolhendoentreasatividadescoletivasvariadasquemarcavamocotidianodainstituição,asseguravampartedesuasnecessidadespráticas(comocortaragramado jardim,porexemplo)eeventualmentedavam-seforadesuaáreafísica.

Assim,ofuncionamentodainstituiçãonãoaconteciademodocentrípetoebemdelimitado,maseramarcadoporvetorescentrífugos.Uma dasestratégiasdeventilaçãodoambienteinstitucionaleraapresença deestagiárioseestagiáriascomoeu,quenãotinhamtarefasclarasa cumprirealipassavammuitashorasdeconvivência,devendoassimse haver–comoos“pensionistas”–comseudesejonaquelecontexto,e assumi-lonapropostadeoficinaseatividades.Apósalgumtempode deriva,ofereciumaatividadedecinemaàssextas-feirasànoite.Apropostafoibemaceitaedesenrolou-secomentusiasmoaolongodassemanas:discutíamosquefilmequeríamosverepegávamosometrôatéo local,juntos.Éramosentreseteedezeninguém–eumesmaououtros membrosdaequipe,ouosprópriospensionistas–jamaissepreocupou comapossibilidadedeaconteceralgumaintercorrênciaouincidenteou decomoeuseriacapazdemanejá-lo,tendoemvistaminhapoucaidade eexperiênciaemeulimitadoconhecimentodacidadeedesuaredede saúdemental(cabelembrarque,ademais,aindanãoeracomumouso detelefonescelulares).

Talsituaçãopoderiaservistaporalgunscomoumafaltade“cuidado”.Maselaparece-mejustamenteservircomoexemplodeuma posturaéticaderespeitodosujeitoqueeventualmentepodepropiciarefeitosterapêuticosemesmotransformadoresdesuaposiçãono mundo.Talposturaimplicavaoesvaziamentodatarefade“curar”em proldeaçõesprosaicasnavidacotidiana,eseacompanhavadeuma dolorosa(auto)críticadaminhapretensão(demeupoder)de“tratar” edaagudaconsciência–eaceitação–deminhaimpotênciadianteda complexidadedadoredabelezahumanasescancaradaspelaexperiênciapsicótica.Alémdisso,talposturaéticaimplicavaumcertorisco, correlatoàquiloqueZenoniconsiderafundamentalparaopensamento eaclínicadapsicose:aradicalfaltadegarantiadocamposimbólicoou,

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emoutraspalavras,“oproblemadainconsistênciadoOutro”.3 Nodia adiainstitucional,defato,bordejávamosconstantementetalinconsistência,emvezdeaelaresponderneuroticamentecomoNomedoPai, atravésderegraseevitamentos.Atalatitudeéticaeclínicacorrespondia,assim,umaradicalapostanaautonomiaecapacidadedosujeito. Eessaapostaseacompanhava,noquemediziarespeito,deumato subjetivoqueforneceuadireçãoparameucaminhocomopsicanalista, desdeentão:oatodeacolherosofrimentodeumoutrosembuscardele “protegê-lo”,masencarandoadordemaneiraaassumir(comocorpo, emmeuprópriocorpo)osriscosqueelacarreia.

Umaoutrabrevelembrançareforçaaquestãodoperigoeaforma comoainstituiçãonãocompactuavacomailusãodeextirpá-lododia adia:naatividaderegulardeculinária,todososutensíliosficavamao alcancedospensionistas,ecertavezpresencieiumdelesempunhar umagrandefacaparaameaçarumcolega.

Noslimitesdocorpo

Estaexperiênciaformadorasemdúvidaressoou,anosmaistarde,em 2012,nodelineamentodeumaresidênciaartísticanoHospitaldaMulherHeloneidaStudart,emSãoJoãodeMeriti,naBaixadaFluminense. Oprojetopartiudoconvitedadra.AnaTeresaDerraik–entãodiretoraclínicadessamaternidadeestadualqueassistepacientesdealto risco–econtoucomseuatentoacompanhamento.Ainiciativainseria-seno objetivo de“humanizar”aassistêncianohospital,epareceu-me simplesmenteirrecusável.Eradignodenotaqueelepartissedaprópriainstituição,graçasavisãoeconhecimentodeArteContemporânea deAnaTeresa,equeestivesseinseridoemumprojetoclínico,gerencialepolíticodedefesadosdireitosdamulher.Comojáapontamos, aproduçãocontemporâneaemartebusca,comfrequência,umalargamentodesuasfronteiras,explorandoarelaçãocomooutroemuma incidênciasocialepolíticamaisabrangente.Trata-se,paramuitosartistasetrabalhadoresdocampodaarte,depautarsuasaçõesporum

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3.Zenoni,A.“AClínicadapsicose:otrabalhofeitopormuitos”,op.cit.,p.33.

direcionamentoéticoquerecolocaemoutrasbasesasquestõesestéticaseasdeslocado“mundodaarte”,circunscritopormuseus,galerias, escolaseuniversidades,paracontextosmuitodiversos,envolvendo questõessociaisetrabalhandocomgruposecomunidadesespecíficos. Rarassãoassituações,contudo,emquetaltrabalhosedesenvolveem instituiçõescomoumhospital,eéaindamenosfrequentequeelese originedeumconvitedaprópriainstituição.Alémdisso,amaternidade representava,naquelemomento,umararidadenocontextodesaúdeno país,consistindoemumserviçodeexcelênciarealizadoemumaárea urbanaextremamentecarenteecomgravesproblemasquantoaviolênciaurbanaeextremismoreligioso,e,portanto,víamo-nosnodeverde apoiarseufuncionamentoetentarparaelecontribuir.4

Ainstiganteprovocaçãodamédicamefezsonharcomumfuturono qualaartenãoapenassemisturariaàvida–comoqueriamequerem tantosartistashámaisdeumséculo–comosetornariaumaespécie de poesiaprática,capazdecolaborarativamentenaconstruçãodeuma sociedademaisjustae“humanizada”.Estetermo,queeuconheciabem porminhaexperiêncianocampodasaúdemental–poismuitosefalava, nosanos1990enocomeçodosanos2000,em“humanizar”asinstituiçõespsiquiátricas–,nãodeixoudemesurpreendernocontextodeste projeto.Teriamosdispositivossociopolíticos–eosequipamentosde saúde–chegadodefatoaonívelda“desumanização”?Ecomoissose darianocontextodaassistênciamédicaàgravidezeaoparto?

Parecia-mebelo,detodomodo,pensaraartecomoalgocapazde nos“humanizar”.Talveznossahumanidadejamaisestejadadade saída,masdevaserbuscada,incitadaporintervenções,invenções,gestos.Encontros.

ParamimeparaacríticaecuradoraVivianeMatesco,quecomigo coordenouaprimeiraetapadoprojeto,nãosetratava,nessa“humanização”,deosartistascumpriremqualquerfunçãodiretanainstituição, massimdeestarempresentes“humanamente”,ouseja,deforma gratuita edesinteressada.Nãonospareciaprofícuo,poroutrolado,

4.Naetapafinaldoprojetojásesentia,infelizmente,odeclíniodetalexcelênciadevidoàgrave crisefinanceiraeinstitucionalqueatingiuoestadodoRiodeJaneiro.

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levarmanifestaçõesartísticasparadentrodohospitalnointuitode divertiraequipeeospacienteseseusacompanhantes,nemtampouco organizarateliêsouoficinasparalevaraspessoasaseenvolveremelas própriasemalgumtipodeproduçãoartísticaouartesanal.Decidimos apostarnasimplespresençadeartistas–domodosingularcomocada umadelasiriaconstruindoaliseulugar–comocapazdeativaralgono hospital,emnívelmicropolítico.Eoptamosporconceberotrabalhode curadoriacomoumatentativa–bastantesingela–dedarlugarevozà vivênciadecadaum,compartilhandoexperiênciasequestõesaolongo detodooprojeto.Eraimpossívelprevercomotaisaçõesmicropolíticas eartísticasemumsentidomuitoamploviriamasedesenvolvereeventualmentematerializar,masapostávamosqueelassedisseminariam, dealgumaforma,entreosatoressociaisemjogo–artistas,pacientes, equipe,instituição,cidade–,ativandoquestõesfundamentaissobre corpo,gêneroesexualidade,relaçõesdepodernocampodasaúdeefora dele,políticasdecontracepção,opressãoesegregaçãoreligiosaetc.

Iniciou-seentãoaprimeiraetapadoprojeto,queduroucercadeoito mesesecontoucomaparticipaçãodetrêsartistas:BárbaraBoaventuraFriaça,LetíciaCarvalhoeRobertaBarros.Astrêsacompanharam inicialmenteequipesdeplantãoemsuasjornadasdedozehoras.Em reuniõesnasquaistambémestavapresenteAnaTeresa,conversávamos sobreasquestõesquesurgiamdessavivência.Oincômodoeofascínio diantedacruezadacarnehumananassalasdeparto,oambienteeas conversasdaequipeduranteasintervenções,asrelaçõesdepoderentre osdiversosprofissionaisedestescomaspacienteseseusfamiliares,o sofrimentoeaalegriadasmães,asperdas,oluto.Aviolênciaeocuidado,dentroeforadohospital,expandindo-sepelarealidade(social, econômica,sexual,emsuma:humana)quepareciagiraremostrara cadamomentonovasesurpreendentesfacetas.

Duasartistasfizeramintervençõesartísticasnohospital(aterceira, comoquecontaminadapeloambiente,engravidoueinterrompeusua participaçãonoprojeto).BárbaraFriaçaconcebeuumaveste-útero quependiaemumdoscorredoresdainstituiçãoeumdiaserviude totemimprovisadoparaumajocosabrincadeiraderoda,registradapelas câmerasdesegurança,deumaequipemédicaesgotadapeloplantãoda

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madrugada.RobertaBarrosrefletiusobreatendênciadeosmédicos sugeriremnomesparaosrecém-nascidos,desqualificandoopoderde mãesepaisdebaixarendadeescolheremum“bom”nomeparaseus filhos,erealizouumaperformancenaqualnomesdediversaspessoas –funcionários,pacientesetc.–eramcuidadosamenteguardadosem luvascirúrgicassopradaseenchidascomobalões.

Asartistasconduziramsuaaventurademodosdiversos,deacordo comseusdesejoseasdinâmicasrelacionaisqueestabeleciamcom equipeepacientes.Oprocessosematerializariaemalgummomento comoperformanceouinstalaçãonohospital,masoqueestavaemprimeiroplanoeramnossosencontros–artistas,curadorasediretora clínica–paradiscutiroqueacontecianodiaadiadasartistasnamaternidadeeforadela,navidaenocontextosocial,políticoereligioso noqualsedavaessaexperiência,queentãonospareciaumaespéciede caldeirãonoqualseexplicitavammuitosvetoresdarealidadebrasileira eseencarnavamespecialmente,comsofrimentomastambémcombeleza,asquestõesdegêneroquenóspróprias,cincomulheres,vivemose vivíamos,sim,tambémnacarne.Admitindoquesetratavaaídecuidado, aperguntaseimpõe,nestecaso:dequemcuidávamos?

Creioqueopressupostobásicodenossaatuaçãoeraodequenão setratavadocuidadoàspacientes.Nãoestávamosalipara“humanizar”oambientenosentidodelevarartee“sensibilidade”,“beleza” ou“diversão”paraumhospital.Nãonosvíamoscomoagentesdealgumaaçãobenéficaparaumpúbliconecessitado.Estávamosenvolvidas comosujeitos,comnossashistórias(queincluíam,paraalgumasde nós,violênciaearbitrariedadeobstétrica),oquenãosignificaquemenosprezávamosasdiferençassocioeconômicasexistentesentrenósea médiadopúblicoatendido,massimqueoescoposociopolíticonoqual seinseriaoprojetoeraamploecomplexoeneledevíamosreconhecer nossasposiçõessingulares,parapodermosverolugardos/dasoutros/as –asgestantesemães,mastambémoseasprofissionais,alémdosbebêsrecém-nascidos.Víamo-noscomoagentes,sim,agentesestranhos aocotidianodaquelainstituição,quecomnossoscorposepresenças talvezpudéssemosdeslocaroucolocaremquestãoalgumasrelações padronizadas(especialmenteasquestõesdehierarquiaepoderentre

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osdiferentesmembrosdaequipeedopessoaldeapoio)ealgunsprocedimentos“desumanizados”.Nossaesperançaeradequeassituações micropolíticasvividaspelasartistasepelosdemaisatoressociaisali presentespudessemirradiaralgo,levantarsubitamentealgumvéu,suscitaralgumgestoestranhooudeslocadoealgumquestionamento–e espalhá-loporaí,deformaimprevisível.

Nãopossoaquidetalharessavivênciaemostrarcomo,nomomento desuaconclusão,asfalasperformáticasdasartistasemumcongresso médicosobredireitosdamulhernocontextohospitalar,realizadona instituição,nospareceupotentepordeslocaraartedeseuslugares tradicionaiseatingiroutropúblico–aomesmotempoemque,deforma muitocomplexa,tinhasuaforçaesvaziadaportratar-sede“arte”,e, portanto,sersumariamentequalificadapelosprofissionaisdesaúde como“bela”,semgerardiscussõesnemmesmoaoexplicitarproblemas concretosvividosnainstituição.

Tampoucotereiespaçopararelatarasegundaetapadoprojeto,que conduzicomocuradoreartistaLuizSérgiodeOliveiraecontoucom osartistasCristinaSalgado,HélioCarvalho,GabrielaMurebeRoberta Barros–equecontinuousendoacompanhadaporAnaTeresaDerraik, semprepróxima,conscienteeimplicadanadimensãopolíticadesua atuaçãocomomédicaeprontaaassumirosriscosoriundosdeseu posicionamentopelosdireitosdamulher.Graçasaofinanciamento oriundodeeditaldefomentodaSecretariaMunicipaldoRiodeJaneiro, estasegundaetapadaresidênciadeuorigemàexposição Noslimitesdo corpo,realizadanoCentroMunicipaldeArteHélioOiticicadenovembro de2016afevereirode2017.5

Antesdefecharamençãoaestaexperiência,querorecolherdela umaquestãopessoalquelatejaemmimdesdeentão,eparaaqual nãotenhorespostaclara:comoincidiunestetrabalhocomocuradora minhaformaçãoeexperiênciacomopsicanalista?Poderia-sedizerque oacompanhamentoedelineamentodoprocessoteriaincluídouma dimensãoclínica?Acreditoquesim,emcertamedida,masdemaneira

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5.Remetooleitoraocatálogodamostra:Rivera,T.eOliveira,L.S.de(orgs.). Noslimitesdocorpo. ResidênciaartísticanoHospitaldaMulherHeloneidaStudart. RiodeJaneiro:Relacionarte,2016.

algumanosentidodeeventualmenteocuparaposiçãodequemconduz processosdefalaemgrupo,comoumaespéciede“terapeuta”.Creio que,searesidênciatevealgumaincidênciaclínica,issosedeveaofato detersedadocomoumprocessoemtornodaescutaediscussãoda posição(desejante)decadaumdeseusparticipantes,emdadocontexto deforçaspolíticas.

Lugaresdodelírio

Emdezembrode2014,PauloHerkenhoff,entãodiretorculturaleartísticodoMuseudeArtedoRio

mar,convidou-meparatrabalharnacuradoriadaexposiçãoque tinhacomotítulopreliminar LugaresdaLoucura. Oprojetofaziaparte deumdoseixoscuratoriaisdainstituição, ArteeSociedadenoBrasil, quevisavaadebaterquestõesfundamentaisparaasociedade.Levantar naatualidadeotabudaloucuraeretomarodebateemcompanhiada arte–quedesempenhoupapelrelevanteparaaReformaPsiquiátrica –parecia-meimportanteemesmourgente(eessanecessidadeganha hojenovoscontornos,comacriseatingindoduramenteosserviços desaúdementaleatendênciaconservadoraereligiosadepartedo CongressoNacionallevandoàrevisãodealgumasconquistasbásicas dalutaantimanicomialnoBrasil).Eunãoconcordava,contudo,com aideiadetera“loucura”portema,poistomá-lacomoobjetoparecia-meconvergircomsuareificaçãocomopatologia.Serianecessário,ao contrário,dar-lhevoz,entendendo-acomocomplexaemultifacetada construçãosocial.

ExpusaHerkenhoffanoçãodedelíriotalcomoFreudaconcebe, comotentativadecura,defendendocomelaapossibilidadedeabordarmososofrimentopsíquicocomosituaçãoqueenvolveprocessosque podemsercaracterizadospositivamente,equedizemrespeitoatodos nós.Eleimediatamenteaacolheu,renomeandoaexposição Lugaresdo Delírio.Euretomava,poressavia,umapropostafreudianamuitoimportanteemminhaformaçãoecentralparaminhatesededoutorado,que defendipoucotempoapósaexperiênciano FoyerdeL’Équipe econsistiu

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emumestudosobreanoçãode“perdaderealidade”naobradeFreud.6 Esseestudopartia,éclaro,daquestãodapsicose,masterminoupor levar-meàarte,atravésdaideia–tambémfreudiana–dequetodos perdemos“realidade”enãosetratadenãoaceitá-laourechaçá-lapatologicamente,massimdetransformá-la,emalgumamedida–comofaz oartistaemsuasobras.Nestesentido,odelíriopsicóticoseriacapaz dedenunciaro“poucoderealidade”(naexpressãodopoetaeartista francêsAndréBreton)7 quetodosvivemosedemostrarnossopoderde transformá-la.Substituir“loucura”por“delírio”significava,nessalinha depensamento,umgestoteóricodeafirmaçãodocampodapsicose comopotênciatransformadoraederecusadesuadelimitaçãopatológicaemtermosdeficitários.Esperavaquetalgestopudessereivindicar umalcancepolítico–eperceboagoraqueeletalvezsejaintrinsecamente clínico,nosentidodarevisãodaquestãodo“cuidado”queestou tentandoaquidelinear.Eleretomava,semdúvida,aposiçãodeaposta quehaviavivenciadono FoyerdeL’Équipe,trazendotalposturaclínica comodispositivocentraldereflexãoeproposiçãocuratorial.

Abrindoaperspectivadesteprojetoparaalémdasaúdemental, parecia-meimportantesalientartambémqueocampodaprodução artísticapodeserrigorosamentetomadocomolugarculturalde construçãoderealidade,emchavepolítica.Podemosdizerquenaarte,delira-se –ouseja,opensamentosaidostrilhoshabituais,doseixosimaginários quefixamarealidade“comum”naqualnosalienamos.Aarteensaia modelosdemundoenosconvidaareviraroseixosimagináriosprevalentes,colocando-nosforadenósmesmos–noslugaresmúltiplosnos quaiscadaumencontraooutroeencontra-se comooutro.

Otermodelírioparecia-meassimnomearumaespéciedeinterseção entrearteepsicose,eservirdemotorpararepensarhojeasrelações–historicamentemuitoricas–entreessescampos,evitandoaidealizaçãosimplistadoloucocomo“artista”eoclichêqueaproximao artista

6.Rivera,T. LaPertedeRealitédansl’ŒuvreFreudienne.EntreNévrose,PsychoseetPerversion,L’Art?, 1996.TesedeDoutoradodefendidanaUniversitécatholiquedeLouvain,Bélgica,soborientação doProf.dr.JeanFlorence.

7.Breton,A.“IntroductionauDiscourssurlePeudeRéalité”(1924).In PointduJour.Paris: Gallimard,1992(FolioEssais).

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do“louco”.Alémdisso,otermo“delírio”tomanalínguacorrente umsentidomuitointeressantedeexcesso,deprazeretransgressão, emumaconvocaçãoradicaldocorpodecadaumedojogoqueele estabelececomoutroscorposemlugaresculturaiscomoodocarnaval,porexemplo.

Noentrecruzamentopluralentrearteeloucuranocampodacultura, natentativaderecusarcategorizaçõeseetiquetas,borrarfronteirase multiplicardireções,tratava-sedeafirmaradiversidadedelugaresea singularidadedecadasujeito.Talabordagem–clínica,emseusentido pleno–incidianoprópriodelineamentoteórico,comojáapontei,ao proporumolharvalorativosobreoquecomumenteseriatomadocomo patologiaedéficit.Elaincidiatambém,fundamentalmente,naescolha dasobras–quemesclavaemhorizontalidadeartistasidentificados comouniversopsiquiátrico,comoArthurBispodoRosário,Fernando DinizeRaphaelDomingues,anomesimportantesnomundodaArte Contemporânea,comoCildoMeireles,AnnaMariaMaiolinoeLaura Lima,salientandoemtodosapotênciadereflexãoetransformaçãoda realidade.Oprojetocuratorialmisturavatambémartistasdereconhecimentointernacionalcomoutrospoucoconhecidos,queapresentavam ounãoligaçõesinstitucionaiscomarededesaúdemental.Nestecontextodediversidade,nãodeixavadetrazertrabalhosexecutadosem âmbitoinstitucional–emoficinaspermanentesquesedãonafronteira entrearteetratamento,porexemplo,entreasquaisdestacamosa Psiquiatriapoética realizadaporLulaWanderleyeseuscolaboradores noEspaçoAbertoaoTempo(eat)–eprojetosrealizadosporartistas emparceriacomarededesaúdemental,comoresidênciasartísticas, filmeseentrevistas(especialmentecomumprogramaderesidências artísticasnoAteliêGaia,noMuseuBispodoRosário).

Nestaproposta,maisumavez,recusávamosaideiade“cuidar”de determinadosegmento–aspessoasquepassamporexperiênciasde sofrimentopsíquicointenso–edesimplesmentevalorizarasobras deartistasquedelefariamparte.Emvezdisso,tentamosadotaruma posiçãoéticaepolíticaquerecusassetalcategorizaçãoebuscasseestabelecerumaplataformadedeslocamentodasfronteirasedelimitações

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estabelecidas.Apostávamosnafricção–nocorpoacorpoentreobras deartistasquedificilmenteseriamaproximadosnodiscursoartístico vigente–comogeradoradenovosvetoresdepercepçãoepensamento.

Talvezsejadesnecessárioressaltarquenesteprojetootermo“delírio”,nomeandoapossibilidadedesurgiremcaminhosdesviantes,deslocamentosemrelaçãoapadrõesjáestabelecidos,consisteemuma espéciedenoçãoperformativaoumetodológica,quecarregariaemsi umapotênciadesubversãopolíticaededefesaradicaldasingularidade, contratodapadronizaçãoautoritáriaeuniversalizante.Naexpressão lugaresdodelírio,taldimensãosereforçaaindapelaafirmaçãodeuma pluralidadeindefinidade“locais”nosquaisseencontrariaapotência delirante.Qualolugardodelírio?Ohospitalpsiquiátrico?Omuseu? Aarte?Omundo?

Minhapropostadeposiçãoclínicaemcuradoriaereflexãonocampo daartetalvezseja,simplesmente,adefesadeumaação delirante,na tentativadepôrarealidadeemmovimentotransformador.Epolítico.

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Nunca mais se poderá falar sobre a relação entre arte e loucura sem passar por este estudo luminoso. Ao historiar o cruzamento entre ambas as esferas, Tania Rivera se instala na terceira margem do rio: o delírio.

Não lhe falta experiência clínica, trânsito nas artes ou referências filosóficas para sustentar seu ponto de vista. Na esteira de Freud e mais além, ela postula que o delírio não deve ser pensado como distorção, porém como ação – ele é uma operação do sujeito na cultura.

Os desdobramentos de tal abordagem são de grande riqueza. É o próprio estatuto da loucura que se vê revirado, com sua carga histórica e científica tão comprometida. Abre-se assim o que a autora chama, tão belamente, de uma micropolítica do delírio, com incidência nas práticas estéticas.

A exposição Lugares do delírio, curada pela autora, e cujas belas imagens estão aqui disponíveis, revela como podem ser questionadas as fronteiras entre normal e patológico, arte e vida, museu e mundo.

Não há neste trajeto falsa isenção. Tania Rivera toma posição a cada tópico, análise, obra, situação – pois a questão é ética, sempre. Haverá postura mais digna e aguda do que essa, quando se trata do desatino e de suas expressões? [Peter Pál Pelbart]

n-1 edições

ISBN 978-65-81097-47-9

Edições Sesc São Paulo

ISBN 978-85-9493-259-4

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