
Lugaresdodelírio
Arteeexpressão,loucuraepolítica
TaniaRivera(Autoriaecuradoria)
©EdiçõesSescSãoPaulo,2023 ©n-1edições,2023 isbn978-85-9493-259-4(EdiçõesSescSãoPaulo) isbn978-65-81097-47-9 coordenaçãoeditorialPeterPálPelbarteRicardoMunizFernandes direçãodearteRicardoMunizFernandes assistênciaeditorialInêsMendonça revisãoFernandaMello
ediçãoemLATEXPauloHenriquePompermaiereGuilhermeAraújo capaÉricoPeretta

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1ªedição|Novembro,2023 n-1edicoes.org
ParapensaroOutro,eudeliroouversejo. hildahilst
Ocomeço–eseusfins
AHistóriadaArte,sãomuitas.Apesardenãoserumahistoriadora, atrevo-meadizerqueboapartedelasaindaestáporserescrita,fora dostrilhosdasnarrativashegemônicaselongedoslugaresgeopoliticamentedominantes.Nenhumadelaséneutraeobjetiva;todaspressupõemcertaconcepçãodearte,desuasfronteirasedequemsãoseus protagonistas.Defato,aindaquetentemfornecerumpontodevista externoaoseiopulsantedosacontecimentos,elasestãosempreem estreitarelaçãocomteoriasepropostasartísticas,poéticasecríticas, tantodostempospretéritosdosquaispretendefornecerorelatoquanto domomentoemqueseelaborameinscrevemnacultura.Maisfundamentalmente,cadaumadelascarregatodaumaconcepçãodemundo quecostumaficarlatentesobfatoseobras,masforneceosmodospelos quaiselessãoarticulados.
Alémdisso,querosublinharaquiquetodoescrito–sejaeleteórico, críticoouhistoriográfico–setececomosfiosdasexperiênciasde seuautorouautora,aindaquebusqueocultá-lossobaautoridadede documentoseelaboraçõesdeoutrosautores.Maisdoqueconstituir umpanodefundo,creioquetaisfiosimbricam-seàquelesurdidos pelasnarrativaslatentesquebuscamosextrairdopassadoeexplicitar, formandoumaespéciedetecidovivoaatualizá-lasetalvezmesmoa transformá-las,emalgumamedida.
Estelivrotentamostrartalemaranhado–oumelhor,procuraassumi-locomosuaprópriaestrutura.Neleentrecruzam-sefeixesdiversos quecadaleitoreleitoraseguirá,ounão,deacordocomseuspróprios interesses.UmdelesbuscacontarnãoaHistória–comhmaiúsculo–massimalgumashistóriasdaproduçãoartísticadepacientespsiquiátricosnoBrasil.HistóriasqueenvolvemoHospitaldoJuquery,em
SãoPaulo,eoateliêdepinturadoCentroPsiquiátricoNacional,no RiodeJaneiro–alémdeoutrasiniciativasartísticasmaispontuais,em instituiçõescomoaColôniaJulianoMoreira–,sãoaquientrelaçadas aconstruçõescrítico-teóricas,emnossaparteii,paradelinearointeressedasvanguardasmodernistaspelaartedepacientespsiquiátricos naEuropaapartirdosanos1920eoscaminhossingularesqueeletoma noBrasilnosanos1940e1950,gerandoexperiênciasquesedestacaram docontextointernacionaledeixarammarcassignificativasnaprodução artísticadopaís.Essaseçãodolivrotambémexploraalgumasdesuas derivaçõesnasdécadasseguintes,quevêmreconfigurarsignificativamenteasrelaçõesentreartee“loucura”,noBrasilenoexterior.Mais doqueestabelecerumaversãohistoriográficaunificada,meuobjetivo érefletircriticamentesobretaispráticasesuarelaçãocomomundo artístico“oficial”,digamos,debruçando-mesobreolugaratribuídoa talproduçãoequestionandosuasfronteiras,queimplicamaparadoxalatitudede,aoincluírempacientespsiquiátricosnacategoriados artistas,reafirmaremsuaexclusãocomoartistas“loucos”,“brutos”ou “outsiders”.Aolongodestecaminho,vão-seapresentando,emleitura crítica,asprincipaisreflexõesteóricasarespeitodasrelaçõesentre arteeloucura.
Talposturacríticaalia-seànecessidadederevercategorizaçõese concepçõesnocontextodasaúdemental,assimcomodaartecontemporânea.Recusandofazê-loapartirdeumainstâncianeutradeenunciação,estelivroapresentaerefletesobreminhaposição,entreclínica ecríticadearte,paraelucidarapropostaéticaemetodológicaqueo guia–eissoconstituiumsegundofeixecondutor,queseexplicitae desenvolveprincipalmentenaparteI.Mastalatituderevela-se,mais amplamente,comoaprópriatramadetodoesteescrito,ouseja,omodo comoneleseenodamobraseteorias–ecomoessassedesdobramem experiências,especialmenteaquelastrazidaspelaexposição Lugaresdo Delírio,daqualfuicuradora.
Aidealizaçãodestamostrasobreasrelaçõesentrearteeloucurafoi dePauloHerkenhoff,entãodiretorculturaldoMuseudeArtedoRio mar.Oconviteparadelineareexecutarsuacuradorialevou-mearever minhatrajetóriadeestudoscríticosentrelaçandopsicanálise,artee
filosofiaearetomaraquestãodapsicose,quehaviadeixadodelado hámuitosanos,apesardetersidoaviaqueinicialmentemeconduziu dapsicologiaàarte.
Aexposiçãoesteveemcartaznomardefevereiroasetembrode2017, eemseguidafoiconvidadaaocupar,emversãomodificadaeampliada, oSescPompeia,emSãoPaulo,deabrilajulhode2018.Apresentando ediscutindoaspropostasdamostra,suamaterialidadecomoconjunto deobrasdispostasemdeterminadoespaçoealgumasdasvivências queelaensejounopúblico,esteescritoconstituiumaespéciedelivro-exposição–eissopodeserconsideradoseuterceirofeixecondutor. Destacando-sedotradicionalformatodocatálogodeexposição,que privilegiaoregistroimagéticodasobrasacompanhadodetextoque explicitaecomentaapropostacuratorial,trata-seaquidatentativade transmitirpensamentoseacontecimentosgeradospeloprojetoeque oatravessaram,tomandoamostracomoumaplataformadeaçõese reflexõeseconvidandoaleitoraeoleitoraexperimentarumaespécie deterceiraversãodaexposição,emlivro.
Nestaproposta,obraspresentesnasduasversõesdamostrasão evocadasetrazidasemimagens,combinandooslugaresemqueestavamsituadasparagerarumespaçoquenãoexiste,oumelhor,quesó existecomolivro.Nestaespéciedeexposiçãovirtual,aparteiiipropõe algunstrajetos(nossasVisitasErrantes)nosquaistrabalhosdearte seentrelaçamcominformações,reflexõesehistórias.Algumasoutras obras,quenãofizerampartedaexposição,sãotambémconvocadas,ao longodetodoolivro,comopartedestaplataformadepensamentos eproposições.
Opapelde LugaresdoDelírio nesteescritoestálongedeser,portanto, ameraincitaçãoapesquisasereflexões,ouaaplicaçãodestasaum eventoconcreto.Trata-sedatentativadepensaremato,edeapostarem agenciamentoscomoutros,nomundo,comoreflexãoativa.Creioque essapropostametodológicatalvezsejaaúnicaefetivamentecapazde responderaodesafioderelançarhoje,nocampodaartecontemporânea, aquestãodasligaçõesentrearteeloucura.Emvezdechegaradefinições deumaespéciedenovaArteBrutaousecontentarcomaapresentação denovosartistasidentificadoscomouniversoda“loucura”(queé,de
resto,odetodosnós),trata-se,comaexposição,deagenciarmodosdiversosdeapresentaçãodaquestão,comartistasdiversos,ederecolher comopensamentoaquiloqueissoproduz–emmimenosoutros.
Duranteotrabalhodecuradoria,aolongodemaisdedoisanos, dei-mecontadequearetomadadaquestãodaloucuranarelaçãocom aarteerafundamentalenecessáriaparaoprosseguimentodeminhas reflexões,e,noentanto,nãovinhadepercepçãoedecisãopróprias,mas eraapontadaporumoutro–umoutroprivilegiadoporseuprofundo conhecimentodocampodaArteContemporânea,eaquemdedicoaqui meuprofundoagradecimento:PauloHerkenhoff.Essaconstatação ecoaaideiadeGeorgesBatailledeque“oquepensei,nãoopensei sozinho”,paraacentuarnelaopapeldooutronoreconhecimentode meu“próprio”pensamentoeparaaindicaçãodoscaminhosqueele engendra.1 Defato,nestaspáginascomoforadelas,nãoestousozinha: muitosoutrosestãopresentes,deformaseemmedidasdiversas.Apesquisacuratorialqueaquisedesdobraconfigura-se,assim,comouma investigaçãoexperiencialeprocessual,nacompanhiadeobras,artistas, autores,membrosdasequipesdecuradoriaeprodução,educadorese outraspessoasquecruzaramosespaçosinstitucionaisealideixaram algo–umgesto,umapalavra.Umobjeto(especialmentebarcosde papel,comoveremos).Algumasdesuaspalavras,vivênciaseelaboraçõesestãoaquipresentestextualmente,nostrechosquecitodaequipe responsávelpelotrabalhoeducativodaexposiçãonoSescPompeia, coordenadaporValériaGobatoeValquíriaPrates.Elasdãonotícias,na parteiii,dealgunsdosmicroeventossuscitadospelamostraaolongo desuaduração.Estelivronãosecompletariasemoagradecimentonominalesinceroaessaspessoas,queseencontraemseuanexo,aolado dafichatécnicadasduasversõesde LugaresdoDelírio
Aolongodoprocessodaexposiçãoe,emseguida,daescritadeste livro,foi-seancorandoemmimaideiadequeaexploraçãodasinterseçõesentreocampocontemporâneodasartesedasaúdementalensina hojesobrearte,culturaeconfiguraçõesdesubjetivaçãomuitomais
1.ApudBlanchot,M. LaCommunautéInavouable.Paris:LesÉditionsdeMinuit,1983,p.16.Eu traduzoestaetodasasdemaiscitaçõesemlínguaestrangeira.
amplamente doquesepoderiaimaginar.Efoi-sefixandoacertezade queinvestigar(n)aculturaimplicaumadimensãoperformativa,ouseja, queseassumecomoaçãodealcancemicropolítico,recusandoaposição deneutralidadedoteóricofrenteauminerteobjetodeinvestigação paraafirmarreflexõesqueengajampoliticamenteo/apesquisador/ae ocampodeestudo,inserindo-seemumaredemaisampladepessoas eaçõesnomundoparadelinearnarrativasqueentrecruzemhistórias ereflexões,obrasdearteedepensamento,evitandoareverênciaa grandesnarrativasjáestabelecidasembuscadesituaçõessingulares ecapazesderelançarquestões–edeconvidaroleitor/aaassumi-las, também,porsuaconta.
Reviramentosdosujeitoedomundo
Quandodescobrio Divisor (1968)deLygiaPape,fascinou-measimplicidadecomqueestaobrapareciaencarnarotecidoincorpóreono qualcadaumdenóstemlugarnomundo.Trata-sedeumpano–um quadradobrancodevintemetrosdelado–comfendasregularmente dispostas,nasquaispessoasenfiamsuascabeçasepodemsairacaminharjuntaspelosespaçoseruasdacidade.Neleaarterevela-seuma construçãoanosuniremumatramadefiosincontáveis–que,curiosamente,sobummicroscópio,semostrariaumcruzamentodefibras retas,comoaevocaratradiçãoconcretista,geométrica,naqualPapee seuscompanheirosdeaventuraneoconcretabuscavamenxertargente evida.Nomovimentodotecidoedaspessoas,ageometriaestritae implacáveldenossaestruturasocialprometetornar-seorgânicaefluida comoummardeondassuaves,convidandoaummodolúdicodepertencimentoaumacoletividade.
Intrigava-me,porém,otítulodadopelaartista, Divisor,acontradizer oconviteaocoletivocomoexperiênciadeumprazerosoeuniforme pertencimento.AtéqueumdiaeuassistiaumSuper8,realizadopor Papeem1967,quecontapoucomaisde3minutosenoqualsãocrianças quehabitamessavestecoletiva–meninosemeninas,muitosdeles negros–emumterrenoinclinadoqueseriaodeumafavelapróxima dacasadaartista,comoelaafirmaementrevista.1 Nãoapareceaía arquiteturainformalqueinteressavaàartistaaopontodelhefazer levarseusalunosavisitaremaFaveladaMaréregularmente,nadécada seguinte,edefazerumfilmesobreamesmaem1982,alémdenomear Palafita
(1959/1960).Mastalvezelanãodeixedeexplorar,comainteraçãoentre o Divisor eascriançasdacomunidade,oquepodemosconsideraruma espéciede arquiteturadosujeito.
Naprimeiracenadofilme,oenormelençolestáesticadoemuma clareiracercadaporcopasdeárvoresqueprojetamsuassilhuetassobre asuperfíciebranca.Porentreassombras,nota-sederepenteocorpo deummeninoasemoveredeslizarsobreopano.Nacenaseguinte,o tecidoganharelevosobreoscorposdascriançasqueomovimentamem ondas,fazendovibrarumbelojogodeluzesombras.Asuavoltavemos umavegetaçãoaomesmotemporalaefirme,issoquehabitualmente chamamos“mato”–palavrainteressante,queindicaocampo,mas tambémoagresteremanescenteemnossascidades,comaforçadoque nãosedomestica,doqueficasemprenafronteiraentreohabitadoe umanaturezaquenãoépuraeidílica,masdesaídaruínaefracassodo projetocivilizatório–ouseja,oopostodaestruturageométrica.Neste filme,o Divisor parecemuitodistintodasimagensmaisrecentesquepovoamainternetcomarealizaçãodestaproposiçãoemcidadesepaíses diversosaoredordomundo,nasquaisolençolondula-seaosabordo movimentoentusiasta–porémcontidoequaseuniforme–deamantes daarte,noasfaltopróximoamuseusexpondoaobradaartista.Ofilme de1967prosseguiaemchavemuitodiferente,comaalegrebrincadeira dascrianças,quederepentedescobremapossibilidadedeescorregar porbaixoeparaforadotecidoeterminamporarrastá-lo,aosaborda inclinaçãodoterreno,demodoaformaralgo“comoumgrandeanimal rolandoterrenoabaixo”,naspalavrasdaartista.2
Nofinaldofilme,vemoso Divisor estendidoemumavastaárea depisoplano,decimento.Ascriançasestãoposicionadasnasfendas, obedientementesentadas.Talvezestejamumtantoconstrangidas–o lençolasprende,limita,domestica,eo Divisor parececumprirafunção dadaporseutítulo,mostrandoasfronteiraseexplicitandoastensões quecontrariamecindemaideiadetecidosocialcontínuoehomogêneo. Emumasutildenúncia,aobrafazveracordepeledecadaumde seusintegrantescomoemolduradapelobrancodotecidoaseuredor,
distinguindo-adamultidãonaqualemgeralrostosecoresdepelese misturameperdemasingularidade.Háumjogodefocoentreoplano abertoeumabananeiramaispróxima.Quandoacâmeraaproxima-sedosrostosdascrianças,entretanto,tudopõe-sesubitamenteem movimento:elasvoltamafazervibrarotecidocomasmãos;elogouma cabeçasurgeemumafenda,enquantooutrasubmerge.
Otermo Divisor refere-seprincipalmente,segundoPape,aoatode apartarcadacabeçadorestodocorpo.Emsuaprimeiraversão,projetadaparaagaleriaibeu(InstitutoBrasil-EstadosUnidos),soprariavento quentenapartedebaixoegeladonadecima,ehaveriaespelhosnas paredeslaterais.“Jáimaginouaquelascabeçassemcorpoconversando umascomasoutrasnaquelepanobranco?”,perguntavaaartista.3 Uma multitudedecabeçasunidasformariaassimocoletivo,“conversando”, afirmadasemsuasingularidadeaomesmotempoqueduplicadaspelo espelhoepostasemrelaçãocomasdemaiscabeças–eimagensde cabeças–asuavolta.Seccionadosvisualmenteedivididospelasdiferentessensaçõesdetemperatura,seuscorposestariamparcialmente escondidos,alémdeconfinadosnasaladagaleria.
Porcerto,o Divisor éumplanoquecortaomundo–enoscinde–emdoiscampos.Odecimaéretratadonamaiorpartedasimagensque noschegamdasrecentesexecuçõesdaproposição,enquantoodebaixo apareceraramente,empoucasfotografias,comoconjuntoimpessoal depernasparadasouasemoverememritmoconstante.Naverdade, eunãohaviaatentadoparaessadimensãodaobraatéexperimentá-la, em2010,porocasiãodesuarealizaçãonopátiodomam–Rioparafilmagemqueintegrariaa29ªBienaldeSãoPaulo.Amigosmehaviam encaminhadopore-mailoconviteabertoaquemquisesseparticipar. Quandocheguei,otecidojáflutuavanoargraçasamuitoscorposeretos; lembro-medelamentarquenemtodasasfendasestivessemocupadas equeumadesuaspontastombassenochão.Vibravaumentusiasmo difuso,maseunãoconseguiasentirapresençadetodos,talvezpelo fatodemeucontatovisuallimitar-seaalgumaspessoasàminhavolta. Osobjetivosdaequipedefilmagemnosdirigiamporumbomtempo 3.Ibidem.
apermanecerparadose,aumsinal,andarparaafrenteporalgumas dezenasdemetrosparalogovoltar,decostas,repetidamente.Creio agoraquemesenticerceadaemmeusmovimentos,enquantoansiava porumvoocoletivoquenãoseconcretizava.Nãomelembrobemem quealturadacena,quecomeçavaasetornarumpoucocansativa,algo surpreendenteaconteceu.Docentrodotecidocomeçouavirumsúbito farfalharelogopercebiquealgumaspessoaspunham-seasuspender comosbraçosotecido,emgestovigorosocomumdospunhos,acompanhadodeummeneiodecorpopeloqualacabeçadeslizavaparabaixo eretirava-sedafendaqueatéentãoocupava.Fizomesmo.Pordebaixo dopano,nosentreolhávamosesorríamos,ecadaumsemoviacomoque automaticamenteemdireçãoaoutrorasgonoqualpudesseseencaixar. Foicomoumcontágio:logotodosestávamossaindodenossasfendas etrocandodelugarcomoutros,semparar,emumabelaecomplexa coreografia.Recordo-medaalegriainfantiledosolharescúmplicesque acompanhavamessesmovimentos.Subvertíamosaestrutura,oplano queatribuíaacadaum/umaumdadolugar,erealizávamosalgo porbaixo dospanos,comodizacuriosaexpressãopopular.Estávamosjuntosna medidaexataemqueconseguíamostrocardelugar.
Curiosamente,essaexperiênciaressoouminhapráticaempsicanálise.Comoanalistaassimcomoanalisante,aprendiaolongodemuitos anosque,seapsicanáliseéumapráticadedescobertaserevelaçõesde conteúdospsíquicos–eteria,nestesentido,avercomlevantarvéusencobridores–,nelanãosetrata,emabsoluto,dedesvelaroinconsciente ou“averdade”comonarrativaúnicaedefinitivaaqueseteriaacessopela corretainterpretaçãodeseusdisfarces.Creioquesetrata,fundamentalmente,desuspendernarrativashegemônicasparaquecadaumpossase mover,aindaqueminimamente,paraforadeseulugarhabitual;deabrira possibilidadedenovosgestosquenãosefazemindividualmente,masse entrecruzamcomgestosdeoutros,demodoaeventualmentefranquear novosespaços–einventarocampododesejocomoaqueledoquese passapordebaixodospanos,entrenós.Creioqueapsicanáliseconsiste, nestachave,empráticaindubitavelmentepolítica.
Lugaressemfronteira
Apenasalgunsanosmaistardedesteacontecimentopudemedarconta dequeoquevivino Divisor ensinavatambémsobreoqueeubuscavana arte,desdequecomeceiaestudá-la:buscava lugares,noplural.Lugares dosujeitonacultura,outalvez lugares-sujeito.Outroslugares,distintos dolocalpredeterminadoparacadaumnamalharígidadasociedade. Lugaresmóveis.Formadaempsicologia,euinvestigavaocampoda loucuranaobradeFreud,tentandocontribuirparaumacompreensãodolugarmarginalqueapsicopatologianomeiacomo“psicose”. Incomodava-meomododeficitáriocomoesteamploterrenocostuma sercaracterizadopelaideiaprevalentedequealgofalhounaconstituiçãopsíquicadedeterminadaspessoas.Parecia-meequivocadoencarar osmodospluraisdesofrimentomentalgravecomoinfelizesexceções queconfirmariamaregrada“boa”constituiçãosubjetiva.AReforma Psiquiátricajáespalhavahaviaquasetrêsdécadaspelomundoarevisão nãosódosmodosdetratamentomastambémdaprópriaideiade“loucura”,salientandosuadeterminaçãoculturalesocioeconômica,mas parecia-mequeosteóricosempsicanáliseaindanãohaviamtomado seriamenteparasiatarefadebuscarcaracterizaçõespositivasdesses modosdesubjetivação“desviantes”.
Noentanto,Freudjálançaraumabasefundamentalparatalempreendimentonadécadade1930,comsuaconhecidametáforadocristal. Apatologiatornavisíveisaslinhasdeforçaexistentesem“condições normais”,afirmaopsicanalista,assimcomoumcristalmostrasuaestruturaaosequebrar.Aliondeoadoecimentotrazumafraturaou rachadura,“normalmentepodeestarpresenteumaarticulação”,diz ele.4 Issosignifica,semdúvida,quequandoalguémentraemcrise,em surtopsicótico,revela-seumaestruturaqueatéentãoseencontrava oculta.Oadoecimentocorresponderiaàexacerbaçãodoqueatéentãoeraumacisãocontrolada,apermitiramodulaçãodeaberturase fechamentos–comoasdobradiçasdeumaporta–,emumsúbitoescancaramentocapazdepôraportaabaixo.Estainterpretaçãodoprincípio
4.Freud,S.“NovasConferênciasIntrodutóriassobrePsicanálise”(1933[1932]).In EdiçãoStandard BrasileiradasObrasPsicológicasCompletasdeSigmundFreud.RiodeJaneiro:Imago,1976,vol.xxii,p.77.
docristalcorrespondeàpropostaestruturalistadaqualJacquesLacan retirousuaclínicadiferencial,aodaroimportantepassodemostrarque oanalistadeveiralémdossintomasapresentadospeloanalisando,para buscaridentificarseumododefuncionamentodebase–suaslinhasde clivagem,odelineamentoeaposiçãodesua“porta”–edeleextraira direçãodotratamento.Maspodemospensá-ladeoutraforma,sobo mododeum Bicho deLygiaClark,porexemplo:antesdacrise,ummovimentoerapossível,umentreabrirdaporta,umareconfiguraçãomóvel daescultura.E,desúbito,umgestomaisbruscoofazdesmontar-se (como,aliás,lembro-medejáterexperimentadoaomanipularréplicas dealguns Bichos emexposiçõesdaartista).
ApropostadeFreudnosencoraja,porém,airalémdessasleituras, postoqueelebuscajustamentesuspenderafronteiraentreospretensos“normais”eos“doentesmentais”,demodoaapontarnodelíriode observaçãodaesquizofreniaparanoide,porexemplo,oescancaramento daatividadedejulgamentoqueosupereuexerceriaordinariamente sobreoeu.Énestesentidoqueodito“doentemental”carregaumsaberfundamentalsobretodosnós,dizopsicanalista,comoderestojá atestavaomedoreverencialqueospovosantigostinhamdo“louco”. Nestachave,a“loucura”étidacomoalgoquenosconstitui,subterraneamente,atodos–eessaéalição,radical,quenosimpededetraçar clarasdelimitaçõesentreo“normal”,o“neurótico”eopsicótico.Elevadaa“princípio”fundamentalporJacquesSchotte,psicanalistabelga queorientoumeusestudosdepós-graduaçãoaoladodeJeanFlorence, ametáforadocristalincitaaumaconcepçãobemmaiscomplexado queaqueladasestruturasclínicasbemdeterminadas,dasquaisapenas umacorresponderiaàpsicose.ElalevaSchotteaproporotermo patoanálise pararessaltarqueaspatologiasmentaisesclarecemosfenômenos humanosemgeral.5
AoladodainfluênciadeSchotte,foidecisivaemminhatrajetória apropostadolacanianoAlfredoZenonideuma“clínicacontinuísta”, queacentuaoquehádecomumentreasestruturaseassimafastaa
5.Cf.Schotte,J.“Dela Schicksalanalyse àlaPathoanalyse”.In LesCahiersduCentred’Études Pathoanalytiques.Bruxelas,n.3,s./d.
concepçãodapsicosecomodéficit,emproldaideiadequesetratade “umdestinosubjetivo,positivo,entreoutros”.6 Apartirdacontribuição deambosautores,queroproporaquiumaleituradametáforadocristal queradicalizasuapotênciadesuspensãodasfronteirasentreonormal eopatológico,paraatingirdeformacríticaaprópriaideiadeestrutura enosajudaraconceberumaespéciedeantiestruturaoude estrutura movente,sepudermossuportarooxímoro.Nesta,ocristalseriafragmentadoàmaneiradeumcaleidoscópio,paratornar-seumjogoentre elementoscapazderevelar,acadainstante,umaconfiguraçãosingular. Nestemodelo,asclivagensláestão,correspondendoàsdistinçõesentre oselementos;noentantoasfraturassedãoconformeumaarticulação quenãoéfixaepredeterminada,masserearranjanotempo,aosabor defatoresdiversos,inclusiveaquelesque,de“fora”–acontecimentos variados,emdadocontextosocioeconômicoecultural–,atingem-noe fazemmover-se,tremerouinclinar-se,aindaqueminimamente.
Longedasdelimitaçõesgeométricas–dasretasfronteirasentrenormalepatológico,entreneuróticoepsicóticoetc.–,lidamos,assim,com suspensõesegirosimprevisíveis.Commovimentos,gestosereviramentos,comono Divisor. Comcoisasquesepassam“porbaixodospanos” etendemportantoaserinvisíveis,senãomesclarmosnossoolhar–oumelhor,nossocorpo–nestetecidoenosarriscarmosaomenosa darumaespiadanoqueestádebaixo.Emvezdoestabelecimentode umoualgunspadrõesdenormalidadeedaconsequentecaracterização negativadoquedelesdestoa,propomos,comafiguradocaleidoscópio, aconcepçãodeumcampodeelementos(cristaisdiminutos,digamos) quesearranjamdemodosvariadosnoespaço-tempo–epodemportantorearranjar-seemalgumamedida,emumprocessoanalítico,além desereconfiguraremdiscretamenteaolongodavida,emdinâmicas imprevisíveisemovimentossutis,quandonãoembruscossolavancos.
Éimportantenotarquenãosetrata,contudo,dedefenderaquium relativismoquelevariaapensarosmodospluraisdesubjetivaçãocomo versõesinfinitasdiantedasquaissónosrestariadesistirdequalquer
6.Zenoni,A.“Aclínicadapsicose:otrabalhofeitopormuitos”.In Abrecampos,ano1,n.0,junhode 2000,p.34.Disponívelem:http://www.pbh.gov.br/smsa/biblioteca/concurso/clinica_psicose.pdf.
tentativadecaracterização.Trata-se,antes,derenunciaràteorização segundoomododecompreensãodagrandenarrativaunívocaedefinitiva,emproldeconstruçõesmultidisciplinares,fragmentadaseprovisórias,nasquaissingularidadeecontextopossam,contudo,searticular emnarrativas efetivas –ouseja,capazesdecarrearalgum efeito teórico (epolítico).Lidamos,nopensamentoteórico,comficçõeseversões múltiplas,compalavrascapazesdesetransmitiraoutremdemaneiraa nestegerarnovasficçõeseversões,outraspalavras–deformaanáloga àquelacomosedelineiam,note-sedepassagem,as“construçõesem análise”noléxicofreudiano.Maisdoqueser“verdadeira”oufalsa”, umaintervençãodoanalistamede-seporsuacapacidadedegerarpalavras,deincitaroanalisandoafalarmais,adescarrilharanarrativa emdesviosenovasconfigurações.7 Nissoresidesua“eficácia”–que nuncaestá,portanto,garantidapelateoriaoupelatécnica,sópodendo serconstatadaapósterlevadoatalacontecimentodefalaporpartedo analisando.Similarmente,creioquenossasreflexõesteóricasnãosão constataçõessistematizadasapartirdocontatodiretocomoobjeto deconhecimento–sejaeleoinconsciente,osujeito,aarteetc.–,mas simconstruçõesendereçadasaoutros,equenestespodem–ounão –produzirefeitos,emummodoestético,digamos,de“confirmação”. Talveznãosejaexageradooupretensiososuporqueelaspossameventualmenteteralgumapotênciasubjetivante,ouseja,quesejamcapazes degerar sujeitos –considerandoqueosujeitonãocorrespondeadado indivíduoempírico,massim,comopropõeLacan,acerto efeitodesujeito, aserefazer,repetidaeimprevisivelmente,entrenós.
Versõesinfinitasereviramentosdiscretosestãoprovavelmenteacontecendotodotempoporaí.Masocampoculturalnoqualelescostumamseconfigurar,tornando-seficçõeseconformaçõesquedealguma maneirapodemseefetivarentrenós,parece-meseraquelequedenominamos,umtantovagamente, arte.
Parabuscarcompreenderosmodos“desviantes”desubjetivação, podemosportantorecorreràsproposiçõesartísticas,assimcomo
7.Cf.Freud,S.“Construçõesemanálise”(1937).In EdiçãoStandardBrasileiradasObrascompletas, op.cit.,vol.xxiii.
deveríamos consultarosartistasenossasprópriasexperiênciasdevida parasabermaissobreoinconsciente,segundoFreud.Aprópriapsicanáliseseriaassimlevadaarevirar-separaforadesimesma–desuateoria edeseusconsultórios,deseusestritosestudosdecasos–parabuscar naculturaenoatritocomoutrasdisciplinasaquiloqueadeterminae nelapulsa(suas pulsões,digamos):avida.
Osujeito,semprenacultura
Estamos,éclaro,aanos-luzdousodapsicanálisecomoferramentade interpretaçãodeobrasdearte,ouseja,desubstituiçãodeumanarrativaqueseapresentacomocorrespondenteaosuposto“conteúdo”de umaobraporumaoutranarrativa,autoritariamentetomadacomomais verdadeiraqueaprimeira.Masnãobastahojerecusartalequívoco,que chegouagerar“psicobiografias”eaté“patobiografias”,abordandoartistascomoVanGogheEdvardMunch,naesteiradoestudodeFreud sobreLeonardodaVinci,de1910.8 Comumdurantealgumasdécadas, essaposiçãometodológicafoiamplamentesubstituída,naatualidade, pelocotejamentoentreteoriapsicanalíticaeproduçõesculturais,em atitudemaisrespeitosa,masquemuitasvezesnãofazmaisqueconfirmarouexplicitardidadicamentepontosdateoriapsicanalítica,raramentecolocando-osemriscoetransformaçãodiantedoquecadaobra poderiaensinar.Nocampodacríticadearte,opapeldopsicanalista comointérpretecedeulugaraumaconvocaçãomaisinteressante,mas aindarestritaaocomentáriosobrenarrativas“subjetivas”,comosesua vozfossepertinenteapenasquandosetratamdeobrasintimistas,autobiográficasouautoficcionais,queeventualmenteevocamoideário surrealistaoutrazemmençãoexplícitaàpsicanálise.
Longedeserapanágiodaintimidadeeda“subjetividade”entendida comoatributopessoal,porém,apsicanáliseépráticaeteoriadosujeito foradesi– nacuriosaexpressãoquenomeiaoexcesso,aloucura quepodetomarqualquerumdenós.Osujeitonãoestádentrodesi
8.Cf.Freud,S.“LeonardodaVincieumalembrançadasuainfância”(1910).In EdiçãoStandard BrasileiradasObrascompletas,op.cit.,vol.xi.
mesmo–noindivíduo–massurgenooutro,nosobjetos,nomundo. Eissobastariaparaquesequestioneousodoartigodefinido,antesdo termo.Seriamaisrigorosodizer sujeito –nãouno,dividido–éalgoque acontecenacultura.Sujeito,essapotênciaque (mal)está nacultura–sepudermosparafrasearoconhecidotítulofreudiano Omal-estarna cultura [emsuatraduçãoparaoportuguêstornadaclássica,apesardo termoalemãoempregadoporFreudsignificar,maisrigorosamente,o Desconforto (Unbehagen)nacultura].9 Muitomaisdoquedeterumsaber sobre“osujeito”emsuaintimidade,podemosafirmarqueapsicanálise busca naculturaasingularidadecomosujeito.Eéporessaposiçãometodológicaeepistemológica–namedidaemquepõeemxequeaspróprias condiçõesdeconstruçãodoconhecimento–queelasedistanciada psicologiaedetodopsicologismo,paraafirmar-sedesaídacomoteoria críticadacultura.Defato,umadesuasprincipaistarefas–oquestionamentocríticodolugardosujeitocomosenhordarepresentação–foi compartilhada,aolongodoséculoxx,pelasexperimentaçõesartísticas emdomíniosvariados:artesplásticas,cinema,literatura.Naprimeira metadedoséculo,notadamente,entremearam-seprofusamentedescobertas,questõesepropostasentrepsicanáliseeArteModerna,ainda queosdoiscamposnãochegassemaconfluirexplicitamente–salvo talvezemummomentoespecífico,aqueledaapropriaçãoqueossurrealistasfazemdapsicanálisenadécadade1920.ApartirdaSegunda GuerraMundial,talcompartilhamentodequestõestomoudireçõesdiversasemaisrarefeitas,dentreasquaisdestaca-seareflexãolacaniana sobreoimaginárioeaquestãodoobjeto.
Sobreestepanodefundonoqualsemoviamtambémváriasteorias filosóficas,destaca-senosanos1920afigurado“louco”eaprodução plásticadepacientespsiquiátricos,quevêmencarnaraampliaçãocrítica dosprotocolosacadêmicosderepresentaçãoensejadaeardentemente desejadapelosartistasmodernistas.NaparteiidestelivroapresentaremosumpanoramadosencontrosentrepsiquiatriaeartenaEuropae noBrasil,selecionandodiálogoseacontecimentossingulares,nabusca porexplicitarasquestõesemtornodasquaiselesgirameexploraras
versõesnarrativasqueconstroem.Masantesdevopedirpaciênciaà leitoraeaoleitor,paratrazerumpoucomaisdeminhatrajetóriacomo psicanalistaepesquisadoraeassimpoderpassardaatitudedeinvestigaçãodosujeitoedacultura,comotermosintrinsecamenteentrelaçados, paraapropostadetomarumacuradoriaemartesvisuaiscomotrabalho clínico,nocontextodaproduçãocontemporânea.
(2)
Açõesclínicasnacultura
Artistas,curadoreseprodutoresculturaislidamhojecomadifíciltarefa deefetivaredefenderapotênciaderesistênciaeemancipaçãodaarte diantedaonipresençadaindústriacultural–consolidadanasúltimas décadasdoséculoxxcomoconvergênciaconsumadaentreprodução artísticaemarketing–edaprofissionalizaçãoeinternacionalizaçãodo mercadodearte–quefazdaobraumfeticheeumaespéciedebastião damais-valia,mesmoquandoelabuscaativamentequestionarascondiçõeseconômicasesociaisvigentes.Apartirdofimdoséculopassado, aspropostasrelacionaisquejámarcavamosanos1960ajustaramseu focodemaneiraaencararquestõesgeopolíticasesociais,aomesmo tempoemquetentaramconstruirmodelosdevínculosocialanível micropolítico.Nosúltimosanos,estabuscaajudouaesgarçarasfronteirasdocampodaarteemproldeexperiênciasvivenciaisesociais, atualizandoosonhomodernistadeunirarteevidaemchavepolíticae levandoaumnotávelquestionamentosobreascondiçõesdeexposição etransmissãodetaisações.
Nestecampotãoricoeproblemático,querecolocaemdiscussão oqueéarteequaléseupapelnavidadaspessoas,aomesmotempo emquerecusaatendênciadaarteditaeruditaadelimitarumlugarde exceçãoeprivilégio,vemossurgirrecentementepropostasdiversasna fronteiraentrearteesaúde.Oterrenodaloucuraedasaúdemental nãorarotomanelasoprotagonismo,retomandosobnovoparadigma aimportânciahistóricaexercidapeloencontrodecríticoseartistas modernistascomaproduçãodepacientespsiquiátricosemateliêsde terapiaocupacional.
Comoveremosmaisadiante,adescobertaevalorizaçãodetalproduçãonaEuropa,noiníciodosanos1920,contribuiuparaadefesado valorexpressivodaArteModernacontraoacademicismonaturalistavigente.Atualmente,umavezdenunciadaaarbitrariedadedoisolamento
socialdaspessoasquevivemexperiênciaspsicóticas,torna-seingênuo –senãoclaramenteviolentoesegregador–fazê-lasencarnaremafigura dogêniosubtraídodavidacultural,doartista“bruto”ou“virgem”(para usaraterminologiadeJeanDubuffetcomaexpressão ArtBrut eatraduçãopropostapelocríticobrasileiroMárioPedrosa).Quesentido poderiatertalqualificaçãonocampodaproduçãocontemporânea,no qualnemaformaçãotécnica,nemarecepçãoporpartedacríticagarantemolugardeartista“autêntico”,ounão“bruto”?Apesardeexistirem aindagaleriasdeArteBrutaemdiversospaíses,parece-nosproblemático,hoje,incensaraproduçãodeartistas outsiders ebuscarlançarluz sobreeles,poisissorealça,paradoxalmente,suasupostadistinçãoem relaçãoaos“artistas”emgeral.Masentãodequesetratanaspropostasartísticasatuaisnocampodasaúdemental?Deconfinaraarteaos supostosobjetivoscurativosda“arteterapia”?Enoscasosdeprojetos deresidênciaartísticaououtrasintervençõeseminstituiçõesdesaúde mental?Poderia-setratarde“cuidar”dospacientes?
Cuidarépoder
“Cuidado”parece-meumapalavramuitoperigosanestecontexto.1 Sob suaégideatosterríveisforamcometidos,especialmentenoâmbitoda saúdemental:desdefinsdoséculoxviii,hospíciosforamcriadosde modoaretirarpessoasdeseucontextosocialeafetivoesubmetê-lasa tratamentosarbitráriosedesrespeitosos,quandonãodolorososeaté mutiladoresdesuaintegridadefísicaepsíquica.Alémdisso,osespaços desegregaçãoassimestruturados,quepermaneceramhegemônicosno tratamentodosditosdistúrbiospsiquiátricosatérecentemente(esão aindavigentesemlargamedida,devemosinfelizmenteadmitir),abrigaramnãoapenaspessoasemintensosofrimentopsíquicocomotambém servirameventualmentededepósitoouprisão,noBrasileemboaparte domundo,parapessoasqueagiamdemodoconsideradomoralmente incorretoporsuasfamílias,bemcomoparaopositorespolíticosdegovernosescusos.
1.AgradeçoaJessicaGoganeIzabelaPucuaincitaçãoaproblematizarestetermoepormeiodele explicitaralgumasdaselaboraçõesdestecapítulo.
Porissonãosepodeesquecerqueoatodecuidarimplicasempre umarelaçãodepoder,tantoemsuaincidêncianaáreadasaúde,articulandoprofissionaisepacientes,quantonoquedizrespeitoàsrelações sociais,demodomaisamplo–incluindoasfamiliares.Entreadultoe criança,paiemãeefilhaoufilho,porexemplo,trata-sedeobrigações afetivas,moraisejurídicasqueparecemporvezesesconderojogopolíticoaípresente.Aideologiadocuidadoimplicaquedeumladotemos A–alguémquenecessitadecuidados–edeoutroB,aquelecapazde ministrartaisações,benéficas–presume-se–aoprimeiro.Seriaimportanteesmiuçarcadasituaçãoparticularnaqualseencarnatalesquema genéricoparachegaràsquestõesquesuasimplicidadetentaesconder, taiscomo:quemsupõequeAnecessitadecuidados?Elepróprio,B quedelecuidaouaindaumterceiro,C,sejaeleencarnadoounãopor umrepresentantededeterminadacategoriaprofissional,religiosaou jurídica?E,nocasodeademandadecuidadosvirdeoutrem,Ateriaa prerrogativadeconsentiroucontestá-la?Épossíveltermossituações dereciprocidade,nasquaisaoscuidadosqueBdirigeaAcorrespondam simetricamenteaçõesdemesmoteordeAparaB?E,ainda,qualograu deespecificidadedetaisações,dadasassingularidadesdeAeBeda situaçãoqueentreelesseestabelece?VirádaposiçãoCumaforçaou exigênciadepadronizaçãoquefazdocuidadooutratamentoaçõespredeterminadasquepoucolevamemcontaasparticularidadesdecada situaçãoentreAeB?
Asquestõessãonumerosaselimito-meaquiaesboçaralgumasdelas, buscandomostraracomplexidadedasituaçãopolíticado“cuidado”,do tratamentoouainda,deformamaisespecífica,daterapia.Nesteterreno tambémmuitovasto,aposiçãodopsicanalistatrazumaparticularidade dignadenota:adeenfocarecolocaremquestãoarelaçãoentreAe B–semperderCdevista–deformaexplícitaecentral,atravésdo conceitode transferência.Nestesentido,apsicanálisenãoseconfigura simplesmentecomoumapráticadecuidado,dentrodocampodosserviçosinstitucionais,mascomouma práticacríticadocuidado.Outalvez devamosadmitirqueelanãocheganecessariamenteaaçõescríticas, dependendodoprofissionaledasituaçãonaqualeleeoanalisandose inserem,mastalpotêncialheésemprefundamental.
Nocampodamedicina,aforçadeinfluênciadomédicosobreopacientesemprefoireconhecidacomomotorimplícitodosucessodo tratamento.Atualmenteelaseconjugaaopoderdeprescriçãodemedicamentos,emumcontextobastanteproblemáticonoqualaindústria farmacêuticainfluenciaosprofissionaispormeiodeumsistemamuito eficazdepropagandaedeofertadebenefíciosdiretosouindiretos.As drogaspsiquiátricastornaram-seaferramentaconcretadaafirmaçãode poderdopsiquiatrasobreopacienteedabuscademanutençãodeprivilégiosporpartedaclassemédicaemrelaçãoaosdemaisprofissionaisde saúde,quecontatambémcomaaçãoprotecionistaecorporativistados ConselhosRegionaiseFederaldeMedicina.Umafirmeestruturadepoderarticulaassimapráticamédicaainteressesdocapitalereflete-sena clínicadetodososdiasemnívelmicropolítico,reforçandoahierarquia entreodiscursoeosatosmédicoseafaladaquelequebuscatratamento, queterminaporserreduzidaàdimensãodaqueixaedosintomade modoacalarodireitodeopacienteobterinformaçõesdetalhadaseter vozeescolhanasdecisõesterapêuticas.
Masenquantoaforçasugestivacostumaserocultadanapráticamédicasobodiscursodaciência,demodoamanterintocadoopoder médico,define-secomopsicanálisejustamenteocamponoqualelaé reconhecidaemanejadademaneiraasubverteraestruturadepoder subjacente.Aoocuparolugardesuposiçãodesaberquefazcomquealguémaeleouelaseenderece,um/umapsicanalistaabdicadequalquer saberprévioemproldaescuta.Apenaso“paciente”detémosaberque setratadedesvelar;suaposiçãoéradicalmenteativaedeveserdemarcadadolugardaquelequerecebepassivamente“cuidados”.Alémdisso emaisfundamentalmente,umprocessoanalíticodevelevaràrevisãoe aoreposicionamentodosujeitoemsuarelaçãocomoOutroquedeteria supostamentesuaverdade,implicandoportantoumgironaestrutura depoderealgumgraudeemancipaçãodaposiçãodeassujeitamento.
Masestariatalemancipaçãorestritaaoâmbitoprivadodoconsultórioindividual?Creioqueestaéumaquestãofundamentalparaa psicanálise,hoje,mesmoparaospsicanalistasdepráticaexclusivamenteprivada.Eincontornávelparaaquelesqueatuameminstituições
desaúdementalououtrasespecialidades,sejamelaspúblicasouprivadas,bemcomoemsituaçõesclínicasexpandidasparacontextosde intervençõesemcomunidades,emlocaispúblicosetc.
Cuidar,comocorpo
Acreditoqueapráticapsicanalíticaeminstituiçãodevebuscarpôrem movimentoasrelaçõesdecuidado(ouseja,depoder)aliexistentes. Paraavançarnatentativadecaracterizartalação,voureferir-meauma experiênciaprofissionalprópria,vividahámuitosanos,nadécadade 1990,no FoyerdeL’équipe,emBruxelas,quetemcomoidealizadoro psicanalistaitalianoAlfredoZenoni,aquemjámereferinocapítulo anterior.Aentidadedefine-secomoumacomunidadeterapêuticade pós-crise,residencial,querecebeadultoscomdificuldadesporum períododeseismesesadoisanosparaprepararseuretornoàvida foradeinstituições.Apresençadapsicanáliseénelafundamental,não comoumadasmodalidadesdecuidadosalipostosemprática,massim comoinstrumentode“deslocamentododispositivoinstitucional”,na expressãodeZenoni.2 Nãopodereiaquidetalharcomoseumodode funcionamentovairealizandonocotidianopequenosdesviosecomo essesparecem-meterumaincidência“terapêutica”muitomaisampla doqueameraremissãodesintomas.Contentarei-meemmencionar,de formapessoal,algumasdasexperiênciasquealiviviequesãobalizasde minhapráticaclínica,bemcomodeminhaposturaintelectual,apesarde algunsanosdepoisterdeixadodetrabalhardiretamenteeminstituições desaúdemental.
Comojádisse,apsicanálisenãoestavapresentenestainstituição atravésdeatendimentospsicanalíticosemconsultório,emborapartede suaequipefosseformadaporpsicanalistas,aoladodeprofissionaiscom formaçõesdiversascomopsiquiatras,enfermeirosesocioterapeutas, entreoutros.Tendoemvistaareestruturaçãodavidadosujeitofora dequalquerinstituição,encorajava-sequeestebuscassetratamentoindividualforado Foyer. Dentrodele,cadaumcontavacomummembro
daequipecomoreferênciaparaestabelecimentoeacompanhamento deseuprojetoindividualizadodetratamento,escolhendoentreasatividadescoletivasvariadasquemarcavamocotidianodainstituição,asseguravampartedesuasnecessidadespráticas(comocortaragramado jardim,porexemplo)eeventualmentedavam-seforadesuaáreafísica.
Assim,ofuncionamentodainstituiçãonãoaconteciademodocentrípetoebemdelimitado,maseramarcadoporvetorescentrífugos.Uma dasestratégiasdeventilaçãodoambienteinstitucionaleraapresença deestagiárioseestagiáriascomoeu,quenãotinhamtarefasclarasa cumprirealipassavammuitashorasdeconvivência,devendoassimse haver–comoos“pensionistas”–comseudesejonaquelecontexto,e assumi-lonapropostadeoficinaseatividades.Apósalgumtempode deriva,ofereciumaatividadedecinemaàssextas-feirasànoite.Apropostafoibemaceitaedesenrolou-secomentusiasmoaolongodassemanas:discutíamosquefilmequeríamosverepegávamosometrôatéo local,juntos.Éramosentreseteedezeninguém–eumesmaououtros membrosdaequipe,ouosprópriospensionistas–jamaissepreocupou comapossibilidadedeaconteceralgumaintercorrênciaouincidenteou decomoeuseriacapazdemanejá-lo,tendoemvistaminhapoucaidade eexperiênciaemeulimitadoconhecimentodacidadeedesuaredede saúdemental(cabelembrarque,ademais,aindanãoeracomumouso detelefonescelulares).
Talsituaçãopoderiaservistaporalgunscomoumafaltade“cuidado”.Maselaparece-mejustamenteservircomoexemplodeuma posturaéticaderespeitodosujeitoqueeventualmentepodepropiciarefeitosterapêuticosemesmotransformadoresdesuaposiçãono mundo.Talposturaimplicavaoesvaziamentodatarefade“curar”em proldeaçõesprosaicasnavidacotidiana,eseacompanhavadeuma dolorosa(auto)críticadaminhapretensão(demeupoder)de“tratar” edaagudaconsciência–eaceitação–deminhaimpotênciadianteda complexidadedadoredabelezahumanasescancaradaspelaexperiênciapsicótica.Alémdisso,talposturaéticaimplicavaumcertorisco, correlatoàquiloqueZenoniconsiderafundamentalparaopensamento eaclínicadapsicose:aradicalfaltadegarantiadocamposimbólicoou,
emoutraspalavras,“oproblemadainconsistênciadoOutro”.3 Nodia adiainstitucional,defato,bordejávamosconstantementetalinconsistência,emvezdeaelaresponderneuroticamentecomoNomedoPai, atravésderegraseevitamentos.Atalatitudeéticaeclínicacorrespondia,assim,umaradicalapostanaautonomiaecapacidadedosujeito. Eessaapostaseacompanhava,noquemediziarespeito,deumato subjetivoqueforneceuadireçãoparameucaminhocomopsicanalista, desdeentão:oatodeacolherosofrimentodeumoutrosembuscardele “protegê-lo”,masencarandoadordemaneiraaassumir(comocorpo, emmeuprópriocorpo)osriscosqueelacarreia.
Umaoutrabrevelembrançareforçaaquestãodoperigoeaforma comoainstituiçãonãocompactuavacomailusãodeextirpá-lododia adia:naatividaderegulardeculinária,todososutensíliosficavamao alcancedospensionistas,ecertavezpresencieiumdelesempunhar umagrandefacaparaameaçarumcolega.
Noslimitesdocorpo
Estaexperiênciaformadorasemdúvidaressoou,anosmaistarde,em 2012,nodelineamentodeumaresidênciaartísticanoHospitaldaMulherHeloneidaStudart,emSãoJoãodeMeriti,naBaixadaFluminense. Oprojetopartiudoconvitedadra.AnaTeresaDerraik–entãodiretoraclínicadessamaternidadeestadualqueassistepacientesdealto risco–econtoucomseuatentoacompanhamento.Ainiciativainseria-seno objetivo de“humanizar”aassistêncianohospital,epareceu-me simplesmenteirrecusável.Eradignodenotaqueelepartissedaprópriainstituição,graçasavisãoeconhecimentodeArteContemporânea deAnaTeresa,equeestivesseinseridoemumprojetoclínico,gerencialepolíticodedefesadosdireitosdamulher.Comojáapontamos, aproduçãocontemporâneaemartebusca,comfrequência,umalargamentodesuasfronteiras,explorandoarelaçãocomooutroemuma incidênciasocialepolíticamaisabrangente.Trata-se,paramuitosartistasetrabalhadoresdocampodaarte,depautarsuasaçõesporum
direcionamentoéticoquerecolocaemoutrasbasesasquestõesestéticaseasdeslocado“mundodaarte”,circunscritopormuseus,galerias, escolaseuniversidades,paracontextosmuitodiversos,envolvendo questõessociaisetrabalhandocomgruposecomunidadesespecíficos. Rarassãoassituações,contudo,emquetaltrabalhosedesenvolveem instituiçõescomoumhospital,eéaindamenosfrequentequeelese originedeumconvitedaprópriainstituição.Alémdisso,amaternidade representava,naquelemomento,umararidadenocontextodesaúdeno país,consistindoemumserviçodeexcelênciarealizadoemumaárea urbanaextremamentecarenteecomgravesproblemasquantoaviolênciaurbanaeextremismoreligioso,e,portanto,víamo-nosnodeverde apoiarseufuncionamentoetentarparaelecontribuir.4
Ainstiganteprovocaçãodamédicamefezsonharcomumfuturono qualaartenãoapenassemisturariaàvida–comoqueriamequerem tantosartistashámaisdeumséculo–comosetornariaumaespécie de poesiaprática,capazdecolaborarativamentenaconstruçãodeuma sociedademaisjustae“humanizada”.Estetermo,queeuconheciabem porminhaexperiêncianocampodasaúdemental–poismuitosefalava, nosanos1990enocomeçodosanos2000,em“humanizar”asinstituiçõespsiquiátricas–,nãodeixoudemesurpreendernocontextodeste projeto.Teriamosdispositivossociopolíticos–eosequipamentosde saúde–chegadodefatoaonívelda“desumanização”?Ecomoissose darianocontextodaassistênciamédicaàgravidezeaoparto?
Parecia-mebelo,detodomodo,pensaraartecomoalgocapazde nos“humanizar”.Talveznossahumanidadejamaisestejadadade saída,masdevaserbuscada,incitadaporintervenções,invenções,gestos.Encontros.
ParamimeparaacríticaecuradoraVivianeMatesco,quecomigo coordenouaprimeiraetapadoprojeto,nãosetratava,nessa“humanização”,deosartistascumpriremqualquerfunçãodiretanainstituição, massimdeestarempresentes“humanamente”,ouseja,deforma gratuita edesinteressada.Nãonospareciaprofícuo,poroutrolado,
4.Naetapafinaldoprojetojásesentia,infelizmente,odeclíniodetalexcelênciadevidoàgrave crisefinanceiraeinstitucionalqueatingiuoestadodoRiodeJaneiro.
levarmanifestaçõesartísticasparadentrodohospitalnointuitode divertiraequipeeospacienteseseusacompanhantes,nemtampouco organizarateliêsouoficinasparalevaraspessoasaseenvolveremelas própriasemalgumtipodeproduçãoartísticaouartesanal.Decidimos apostarnasimplespresençadeartistas–domodosingularcomocada umadelasiriaconstruindoaliseulugar–comocapazdeativaralgono hospital,emnívelmicropolítico.Eoptamosporconceberotrabalhode curadoriacomoumatentativa–bastantesingela–dedarlugarevozà vivênciadecadaum,compartilhandoexperiênciasequestõesaolongo detodooprojeto.Eraimpossívelprevercomotaisaçõesmicropolíticas eartísticasemumsentidomuitoamploviriamasedesenvolvereeventualmentematerializar,masapostávamosqueelassedisseminariam, dealgumaforma,entreosatoressociaisemjogo–artistas,pacientes, equipe,instituição,cidade–,ativandoquestõesfundamentaissobre corpo,gêneroesexualidade,relaçõesdepodernocampodasaúdeefora dele,políticasdecontracepção,opressãoesegregaçãoreligiosaetc.
Iniciou-seentãoaprimeiraetapadoprojeto,queduroucercadeoito mesesecontoucomaparticipaçãodetrêsartistas:BárbaraBoaventuraFriaça,LetíciaCarvalhoeRobertaBarros.Astrêsacompanharam inicialmenteequipesdeplantãoemsuasjornadasdedozehoras.Em reuniõesnasquaistambémestavapresenteAnaTeresa,conversávamos sobreasquestõesquesurgiamdessavivência.Oincômodoeofascínio diantedacruezadacarnehumananassalasdeparto,oambienteeas conversasdaequipeduranteasintervenções,asrelaçõesdepoderentre osdiversosprofissionaisedestescomaspacienteseseusfamiliares,o sofrimentoeaalegriadasmães,asperdas,oluto.Aviolênciaeocuidado,dentroeforadohospital,expandindo-sepelarealidade(social, econômica,sexual,emsuma:humana)quepareciagiraremostrara cadamomentonovasesurpreendentesfacetas.
Duasartistasfizeramintervençõesartísticasnohospital(aterceira, comoquecontaminadapeloambiente,engravidoueinterrompeusua participaçãonoprojeto).BárbaraFriaçaconcebeuumaveste-útero quependiaemumdoscorredoresdainstituiçãoeumdiaserviude totemimprovisadoparaumajocosabrincadeiraderoda,registradapelas câmerasdesegurança,deumaequipemédicaesgotadapeloplantãoda
madrugada.RobertaBarrosrefletiusobreatendênciadeosmédicos sugeriremnomesparaosrecém-nascidos,desqualificandoopoderde mãesepaisdebaixarendadeescolheremum“bom”nomeparaseus filhos,erealizouumaperformancenaqualnomesdediversaspessoas –funcionários,pacientesetc.–eramcuidadosamenteguardadosem luvascirúrgicassopradaseenchidascomobalões.
Asartistasconduziramsuaaventurademodosdiversos,deacordo comseusdesejoseasdinâmicasrelacionaisqueestabeleciamcom equipeepacientes.Oprocessosematerializariaemalgummomento comoperformanceouinstalaçãonohospital,masoqueestavaemprimeiroplanoeramnossosencontros–artistas,curadorasediretora clínica–paradiscutiroqueacontecianodiaadiadasartistasnamaternidadeeforadela,navidaenocontextosocial,políticoereligioso noqualsedavaessaexperiência,queentãonospareciaumaespéciede caldeirãonoqualseexplicitavammuitosvetoresdarealidadebrasileira eseencarnavamespecialmente,comsofrimentomastambémcombeleza,asquestõesdegêneroquenóspróprias,cincomulheres,vivemose vivíamos,sim,tambémnacarne.Admitindoquesetratavaaídecuidado, aperguntaseimpõe,nestecaso:dequemcuidávamos?
Creioqueopressupostobásicodenossaatuaçãoeraodequenão setratavadocuidadoàspacientes.Nãoestávamosalipara“humanizar”oambientenosentidodelevarartee“sensibilidade”,“beleza” ou“diversão”paraumhospital.Nãonosvíamoscomoagentesdealgumaaçãobenéficaparaumpúbliconecessitado.Estávamosenvolvidas comosujeitos,comnossashistórias(queincluíam,paraalgumasde nós,violênciaearbitrariedadeobstétrica),oquenãosignificaquemenosprezávamosasdiferençassocioeconômicasexistentesentrenósea médiadopúblicoatendido,massimqueoescoposociopolíticonoqual seinseriaoprojetoeraamploecomplexoeneledevíamosreconhecer nossasposiçõessingulares,parapodermosverolugardos/dasoutros/as –asgestantesemães,mastambémoseasprofissionais,alémdosbebêsrecém-nascidos.Víamo-noscomoagentes,sim,agentesestranhos aocotidianodaquelainstituição,quecomnossoscorposepresenças talvezpudéssemosdeslocaroucolocaremquestãoalgumasrelações padronizadas(especialmenteasquestõesdehierarquiaepoderentre
osdiferentesmembrosdaequipeedopessoaldeapoio)ealgunsprocedimentos“desumanizados”.Nossaesperançaeradequeassituações micropolíticasvividaspelasartistasepelosdemaisatoressociaisali presentespudessemirradiaralgo,levantarsubitamentealgumvéu,suscitaralgumgestoestranhooudeslocadoealgumquestionamento–e espalhá-loporaí,deformaimprevisível.
Nãopossoaquidetalharessavivênciaemostrarcomo,nomomento desuaconclusão,asfalasperformáticasdasartistasemumcongresso médicosobredireitosdamulhernocontextohospitalar,realizadona instituição,nospareceupotentepordeslocaraartedeseuslugares tradicionaiseatingiroutropúblico–aomesmotempoemque,deforma muitocomplexa,tinhasuaforçaesvaziadaportratar-sede“arte”,e, portanto,sersumariamentequalificadapelosprofissionaisdesaúde como“bela”,semgerardiscussõesnemmesmoaoexplicitarproblemas concretosvividosnainstituição.
Tampoucotereiespaçopararelatarasegundaetapadoprojeto,que conduzicomocuradoreartistaLuizSérgiodeOliveiraecontoucom osartistasCristinaSalgado,HélioCarvalho,GabrielaMurebeRoberta Barros–equecontinuousendoacompanhadaporAnaTeresaDerraik, semprepróxima,conscienteeimplicadanadimensãopolíticadesua atuaçãocomomédicaeprontaaassumirosriscosoriundosdeseu posicionamentopelosdireitosdamulher.Graçasaofinanciamento oriundodeeditaldefomentodaSecretariaMunicipaldoRiodeJaneiro, estasegundaetapadaresidênciadeuorigemàexposição Noslimitesdo corpo,realizadanoCentroMunicipaldeArteHélioOiticicadenovembro de2016afevereirode2017.5
Antesdefecharamençãoaestaexperiência,querorecolherdela umaquestãopessoalquelatejaemmimdesdeentão,eparaaqual nãotenhorespostaclara:comoincidiunestetrabalhocomocuradora minhaformaçãoeexperiênciacomopsicanalista?Poderia-sedizerque oacompanhamentoedelineamentodoprocessoteriaincluídouma dimensãoclínica?Acreditoquesim,emcertamedida,masdemaneira
algumanosentidodeeventualmenteocuparaposiçãodequemconduz processosdefalaemgrupo,comoumaespéciede“terapeuta”.Creio que,searesidênciatevealgumaincidênciaclínica,issosedeveaofato detersedadocomoumprocessoemtornodaescutaediscussãoda posição(desejante)decadaumdeseusparticipantes,emdadocontexto deforçaspolíticas.
Lugaresdodelírio
Emdezembrode2014,PauloHerkenhoff,entãodiretorculturaleartísticodoMuseudeArtedoRio
mar,convidou-meparatrabalharnacuradoriadaexposiçãoque tinhacomotítulopreliminar LugaresdaLoucura. Oprojetofaziaparte deumdoseixoscuratoriaisdainstituição, ArteeSociedadenoBrasil, quevisavaadebaterquestõesfundamentaisparaasociedade.Levantar naatualidadeotabudaloucuraeretomarodebateemcompanhiada arte–quedesempenhoupapelrelevanteparaaReformaPsiquiátrica –parecia-meimportanteemesmourgente(eessanecessidadeganha hojenovoscontornos,comacriseatingindoduramenteosserviços desaúdementaleatendênciaconservadoraereligiosadepartedo CongressoNacionallevandoàrevisãodealgumasconquistasbásicas dalutaantimanicomialnoBrasil).Eunãoconcordava,contudo,com aideiadetera“loucura”portema,poistomá-lacomoobjetoparecia-meconvergircomsuareificaçãocomopatologia.Serianecessário,ao contrário,dar-lhevoz,entendendo-acomocomplexaemultifacetada construçãosocial.
ExpusaHerkenhoffanoçãodedelíriotalcomoFreudaconcebe, comotentativadecura,defendendocomelaapossibilidadedeabordarmososofrimentopsíquicocomosituaçãoqueenvolveprocessosque podemsercaracterizadospositivamente,equedizemrespeitoatodos nós.Eleimediatamenteaacolheu,renomeandoaexposição Lugaresdo Delírio.Euretomava,poressavia,umapropostafreudianamuitoimportanteemminhaformaçãoecentralparaminhatesededoutorado,que defendipoucotempoapósaexperiênciano FoyerdeL’Équipe econsistiu
emumestudosobreanoçãode“perdaderealidade”naobradeFreud.6 Esseestudopartia,éclaro,daquestãodapsicose,masterminoupor levar-meàarte,atravésdaideia–tambémfreudiana–dequetodos perdemos“realidade”enãosetratadenãoaceitá-laourechaçá-lapatologicamente,massimdetransformá-la,emalgumamedida–comofaz oartistaemsuasobras.Nestesentido,odelíriopsicóticoseriacapaz dedenunciaro“poucoderealidade”(naexpressãodopoetaeartista francêsAndréBreton)7 quetodosvivemosedemostrarnossopoderde transformá-la.Substituir“loucura”por“delírio”significava,nessalinha depensamento,umgestoteóricodeafirmaçãodocampodapsicose comopotênciatransformadoraederecusadesuadelimitaçãopatológicaemtermosdeficitários.Esperavaquetalgestopudessereivindicar umalcancepolítico–eperceboagoraqueeletalvezsejaintrinsecamente clínico,nosentidodarevisãodaquestãodo“cuidado”queestou tentandoaquidelinear.Eleretomava,semdúvida,aposiçãodeaposta quehaviavivenciadono FoyerdeL’Équipe,trazendotalposturaclínica comodispositivocentraldereflexãoeproposiçãocuratorial.
Abrindoaperspectivadesteprojetoparaalémdasaúdemental, parecia-meimportantesalientartambémqueocampodaprodução artísticapodeserrigorosamentetomadocomolugarculturalde construçãoderealidade,emchavepolítica.Podemosdizerquenaarte,delira-se –ouseja,opensamentosaidostrilhoshabituais,doseixosimaginários quefixamarealidade“comum”naqualnosalienamos.Aarteensaia modelosdemundoenosconvidaareviraroseixosimagináriosprevalentes,colocando-nosforadenósmesmos–noslugaresmúltiplosnos quaiscadaumencontraooutroeencontra-se comooutro.
Otermodelírioparecia-meassimnomearumaespéciedeinterseção entrearteepsicose,eservirdemotorpararepensarhojeasrelações–historicamentemuitoricas–entreessescampos,evitandoaidealizaçãosimplistadoloucocomo“artista”eoclichêqueaproximao artista
6.Rivera,T. LaPertedeRealitédansl’ŒuvreFreudienne.EntreNévrose,PsychoseetPerversion,L’Art?, 1996.TesedeDoutoradodefendidanaUniversitécatholiquedeLouvain,Bélgica,soborientação doProf.dr.JeanFlorence.
7.Breton,A.“IntroductionauDiscourssurlePeudeRéalité”(1924).In PointduJour.Paris: Gallimard,1992(FolioEssais).
do“louco”.Alémdisso,otermo“delírio”tomanalínguacorrente umsentidomuitointeressantedeexcesso,deprazeretransgressão, emumaconvocaçãoradicaldocorpodecadaumedojogoqueele estabelececomoutroscorposemlugaresculturaiscomoodocarnaval,porexemplo.
Noentrecruzamentopluralentrearteeloucuranocampodacultura, natentativaderecusarcategorizaçõeseetiquetas,borrarfronteirase multiplicardireções,tratava-sedeafirmaradiversidadedelugaresea singularidadedecadasujeito.Talabordagem–clínica,emseusentido pleno–incidianoprópriodelineamentoteórico,comojáapontei,ao proporumolharvalorativosobreoquecomumenteseriatomadocomo patologiaedéficit.Elaincidiatambém,fundamentalmente,naescolha dasobras–quemesclavaemhorizontalidadeartistasidentificados comouniversopsiquiátrico,comoArthurBispodoRosário,Fernando DinizeRaphaelDomingues,anomesimportantesnomundodaArte Contemporânea,comoCildoMeireles,AnnaMariaMaiolinoeLaura Lima,salientandoemtodosapotênciadereflexãoetransformaçãoda realidade.Oprojetocuratorialmisturavatambémartistasdereconhecimentointernacionalcomoutrospoucoconhecidos,queapresentavam ounãoligaçõesinstitucionaiscomarededesaúdemental.Nestecontextodediversidade,nãodeixavadetrazertrabalhosexecutadosem âmbitoinstitucional–emoficinaspermanentesquesedãonafronteira entrearteetratamento,porexemplo,entreasquaisdestacamosa Psiquiatriapoética realizadaporLulaWanderleyeseuscolaboradores noEspaçoAbertoaoTempo(eat)–eprojetosrealizadosporartistas emparceriacomarededesaúdemental,comoresidênciasartísticas, filmeseentrevistas(especialmentecomumprogramaderesidências artísticasnoAteliêGaia,noMuseuBispodoRosário).
Nestaproposta,maisumavez,recusávamosaideiade“cuidar”de determinadosegmento–aspessoasquepassamporexperiênciasde sofrimentopsíquicointenso–edesimplesmentevalorizarasobras deartistasquedelefariamparte.Emvezdisso,tentamosadotaruma posiçãoéticaepolíticaquerecusassetalcategorizaçãoebuscasseestabelecerumaplataformadedeslocamentodasfronteirasedelimitações
estabelecidas.Apostávamosnafricção–nocorpoacorpoentreobras deartistasquedificilmenteseriamaproximadosnodiscursoartístico vigente–comogeradoradenovosvetoresdepercepçãoepensamento.
Talvezsejadesnecessárioressaltarquenesteprojetootermo“delírio”,nomeandoapossibilidadedesurgiremcaminhosdesviantes,deslocamentosemrelaçãoapadrõesjáestabelecidos,consisteemuma espéciedenoçãoperformativaoumetodológica,quecarregariaemsi umapotênciadesubversãopolíticaededefesaradicaldasingularidade, contratodapadronizaçãoautoritáriaeuniversalizante.Naexpressão lugaresdodelírio,taldimensãosereforçaaindapelaafirmaçãodeuma pluralidadeindefinidade“locais”nosquaisseencontrariaapotência delirante.Qualolugardodelírio?Ohospitalpsiquiátrico?Omuseu? Aarte?Omundo?
Minhapropostadeposiçãoclínicaemcuradoriaereflexãonocampo daartetalvezseja,simplesmente,adefesadeumaação delirante,na tentativadepôrarealidadeemmovimentotransformador.Epolítico.
Nunca mais se poderá falar sobre a relação entre arte e loucura sem passar por este estudo luminoso. Ao historiar o cruzamento entre ambas as esferas, Tania Rivera se instala na terceira margem do rio: o delírio.
Não lhe falta experiência clínica, trânsito nas artes ou referências filosóficas para sustentar seu ponto de vista. Na esteira de Freud e mais além, ela postula que o delírio não deve ser pensado como distorção, porém como ação – ele é uma operação do sujeito na cultura.
Os desdobramentos de tal abordagem são de grande riqueza. É o próprio estatuto da loucura que se vê revirado, com sua carga histórica e científica tão comprometida. Abre-se assim o que a autora chama, tão belamente, de uma micropolítica do delírio, com incidência nas práticas estéticas.
A exposição Lugares do delírio, curada pela autora, e cujas belas imagens estão aqui disponíveis, revela como podem ser questionadas as fronteiras entre normal e patológico, arte e vida, museu e mundo.
Não há neste trajeto falsa isenção. Tania Rivera toma posição a cada tópico, análise, obra, situação – pois a questão é ética, sempre. Haverá postura mais digna e aguda do que essa, quando se trata do desatino e de suas expressões? [Peter Pál Pelbart]

n-1 edições
ISBN 978-65-81097-47-9

Edições Sesc São Paulo
ISBN 978-85-9493-259-4
