Na história moderna do teatro brasileiro, entre os críticos historiadores, isto é, aqueles não eventuais, o nome de Macksen Luiz se faz presente como um vocacionado analista da nossa cena. Macksen é um testemunho pleno de trinta anos do que realizamos em nossos palcos. [...] É um observador sempre bem informado sobre o que vai julgar, cujo vocabulário crítico nunca é primário. Há nele uma visão crítica resguardada, mas humanizada. Não é benevolente, nem tampouco detrator. É isento e solidário mesmo numa avaliação negativa. Tem uma compreensão existencial e social da sobrevivência cênica em nosso país. [...] Na coletânea Macksen Luiz et alii, o leitor encontrará um panorama do que de mais importante os palcos do Rio de Janeiro apresentaram por meio de análises vindas de um crítico absolutamente integrado com a resistência da nossa expressão cultural.
FE RN A N DA M O N T E N EGRO
M ACKS E N LU I Z
Formado em sociologia na PUC-Rio, é jornalista profissional desde 1967. Foi crítico teatral do Jornal do Brasil de 1982 a 2010. Entre 1975 e 1982, colaborou nas seguintes publicações: jornal Opinião e revistas Visão, Manchete e Isto É. Participou das curadorias do Festival de Curitiba (1992-2005) e do Festival de Recife (1999-2003). Foi jurado do Prêmio Molière (até o fim, em 1994), do Troféu Mambembe (até 1988) e do Prêmio Zilka Sallaberry de Teatro Infantil (2008-10); atualmente, é jurado dos prêmios Shell, Cesgranrio e Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR). Participou de comissões de projetos teatrais da Eletrobras e da Petrobras e das secretarias de cultura do Rio de Janeiro e de Salvador. Nas últimas décadas, foi colaborador dos periódicos Revista da SBAT e Folhetim, e escreveu o livro Sesi 50 anos (1996). Na prática de crítica na imprensa nacional, Macksen Luiz é um espectador da produção teatral brasileira por mais de quatro décadas, em análises que registram a ascensão de movimentos, inflexões de técnicas interpretativas, reposições de linguagens cênicas e a atuação do ambiente político-social na dramaturgia do palco. Percorre em cobertura abrangente e permanente esse amplo espectro de tempo, com análises que procuram a reflexão e o registro extensivo das temporadas cariocas e algumas de outros estados.
C O L EÇ ÃO
ET ALII
MACKSEN LUIZ
ET MACKSEN ALII LUIZ
A palavra “crítica” advém da forma latina “criticus”. Esta se originou, por sua vez, do vocábulo grego “kritikós”, cujo amplo campo lexical não somente abrange as noções de separação, seleção, julgamento e interpretação (ações, vale notar, realizadas a partir do estabelecimento de certos “critérios”) como também se relaciona com a forma grega “krisis” – entendida a partir de quatro traços semânticos diversos, mas complementares: ação ou faculdade de separar, de discernir; luta, litígio, processo; decisão, juízo, sentença; resultado, desenlace, crise. Assim é que compete a um crítico julgar determinado objeto de sua contemplação sem, entretanto, deixar de entrar em crise com os modos de expressão desse mesmo objeto, com a maneira como ele os percebe, com os critérios que irão orientar sua interpretação e com seus próprios valores estéticos e pessoais. O que chama a atenção na coletânea de críticas Macksen Luiz et alii – um belo título, aliás, para representar o gregarismo inerente à arte do teatro e sua inegável prontidão para com a ideia de alteridade – é a capacidade de discernimento do crítico, que cuidadosa e diletantemente se põe a serviço da fruição e da compreensão do fenômeno teatral, avaliando, sem ser arbitrário; arbitrando, sem soar idiossincrático. Ao separar muitas vezes o joio do trigo, ele faz que o texto crítico, por nunca se furtar à controvérsia e ao debate, entre em legítimo processo de investigação litigiosa com o complexo espectro de elementos flagrados em cena, de modo que o resultado, o desenlace, para além da observação pontual de determinados espetáculos, constitua um exercício epistemológico de maior envergadura, voltado ao exame atento de uma arte ancestral, desde sempre comprometida em radiografar a presença do homem no mundo e as sucessivas crises que o atravessam. Um livro disposto a cobrir um arco temporal tão vasto – no qual se registra a pujante (embora quixotesca) criação teatral brasileira das últimas três décadas – é também um testemunho de como Macksen Luiz ama o teatro. Não na condição de juiz severo, mas como defensor público de sua potencialidade e de suas virtudes.
ISBN 978-85-9493-005-7
W E L I N GTON A N D R A D E
Doutor em literatura brasileira pela USP na área de dramaturgia, crítico de teatro e editor da revista Cult.
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S E RVI ÇO S O C IAL DO CO MÉ R C IO Administração Regional no Estado de São Paulo
P re s id e nte do C on s e l h o Re gi on al Abram Szajman D ire to r Re gi on al Danilo Santos de Miranda
Co n s e lh o E di t ori al Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli
E diç õ e s S e s c São P au l o Gerente Marcos Lepiscopo Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha, Francis Manzoni Produção editorial Bruno Salerno Rodrigues Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel
Co le ç ã o S es c C rí t i cas Coordenação Marta Colabone Colaboração Iã Paulo Ribeiro Apoio José Olímpio Zangarine
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© Macksen Luiz, 2017 © Edições Sesc São Paulo, 2017 Todos os direitos reservados
Preparação Pedro Paulo da Silva Revisão André Albert e Silvia Balderama Pesquisa Lucia Cerrone Revisão técnica Renata Bühler Projeto gráfico Ricardo van Steen Diagramação Saul Sales
M219m
Macksen Luiz Macksen Luiz et alii / Macksen Luiz do Rozario Filho. - São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017. 516 p. ISBN 978-85-9493-005-7 1. Teatro. 2. Crítica teatral. 3.Macksen Luiz I. Título. II. Rozario Filho, Macksen Luiz do. CDD 792
Edições Sesc São Paulo Rua Cantagalo, 74 – 13 o/14 o andar 03319-000 – São Paulo SP Brasil Tel.: 55 11 2227-6500 edicoes@edicoes.sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes /edicoessescsp
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Apresentação
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“Todo grande poeta [...] é um grande crítico, ao menos na perspectiva [...], como todo grande crítico é um poeta, ou em perspectiva ou em ação.” Alceu Amoroso Lima
O papel da crítica, no âmbito das expressões artísticas, é de fundamental importância por criar parâmetros de fruição e de execução das obras que chegam ao público. Independentemente do campo em que atua, a crítica é uma das formas mais contundentes de manter e elevar o padrão dos que fazem e dos que elaboram as mais diversas formas de arte. Num voo raso pela história da arte, podemos perceber que a crítica toma corpo e é difundida nas sociedades no momento em que as artes passam a fazer parte não somente de uma elite social, mas também da vida daqueles que, embora não pertencendo à chamada “alta cultura”, passam a ter contato direto com elas. Com a Modernidade e o advento de uma abertura do fazer e do gozar artísticos, a crítica passa a se fazer necessária, já que a quantidade de obras toma um vulto nunca antes visto. Como um bem elitizado, para os poucos que, com tempo livre e poder aquisitivo, dela usufruíam, a cultura já serviu de oposição à barbárie que, segundo a elite da época, poderia se sobrepor à sua condição elevada de civilização. Supor que o caminho da crítica se abriu para que os “mais civilizados” (termos que hoje não fazem sentido e carregam forte tom de uma pretensa arrogância de superioridade) pudessem conduzir o que seriam os moldes de uma ou outra expressão artística não diminuiu nem diminui em nada seu valor; ele somente aponta os poderes sociais dirigindo, moldando, formando aqueles que começaram a enveredar pelo fazer artístico numa relação mais profissional, dentro de um amplo terreno demarcado pelas transações mercantis, como até hoje acontece. As expressões artísticas, porém, começaram a tomar outros caminhos, a andar por vontades alheias a esses poderes e a se disseminar por todos os cantos. Nesta época de pós-modernidade, cuja venalidade real pode ser apontada, avaliada e chancelada para os produtos mais subjetivos, nesta época de capitalismo avançado, as artes eclodiram com força total. Não se trata mais de ver a crítica como balizadora de conceitos, ideologias, como um objeto que cerca e protege uma civilidade de poucos. Por mais que as diferenças socioeconômicas ainda estejam presentes, na arte elas passam a não ser mais elementos de descarte desta ou daquela obra.
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Com as expressões artísticas em constante procura por sensações e elementos novos, o certo é que a crítica continua tendo relevância para a evolução dos movimentos que surgem a todo instante. A crítica, no caso, não faz um papel de rechaçar ou de tentar moldar os fazeres artísticos; seu papel é o da reflexão, do embasamento teórico, histórico e prático, que faz do crítico um elemento necessário, um ponto de referência ao desenvolvimento das artes. O Sesc São Paulo reconhece na função do crítico sua relevância para formar públicos e refletir a respeito do papel da arte na sociedade. Vê em seu trabalho um modo de fixar e apontar a história para que possamos enxergar o que há de repetições travestidas de inovações e o que há de real inovação nos meios artísticos. Se a crítica pode ser vista como a construção de barreiras a emperrar uma passagem, seu significado toma mais força no instante em que propõe que tais obstáculos sejam transpostos. É nessa perspectiva que apresentamos a Coleção Sesc Críticas, agora trazendo à luz parte significativa das críticas teatrais de Macksen Luiz. danilo santos de miranda Diretor Regional do Sesc São Paulo
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Para um crítico vocacionado, não há vida fora do teatro. Com essa determinação, ele é parte do ato teatral assim como são os atores, os encenadores, os autores. Na dimensão dessa entrega votiva, sua crítica se amplia como um documento que permanecerá além daquele ato tão efêmero, já que a ação cênica é de vida e morte nela mesma. Nos meus setenta anos de ofício passei, como tantos outros colegas, por inúmeras avaliações críticas. Positivas e negativas. Relendo o que guardei desses julgamentos, revejo a minha própria vida nesse ofício e essa visão crítica me reposiciona dentro da minha história como atriz. Na distância dos anos, a minha memória se reacende. Sabemos que, quando desaparece uma geração de teatro, principalmente os atores, é por meio dessa documentação crítica que o futuro poderá saber de nós além de nós. Toda crítica teatral é material histórico. O crítico é um historiador. O crítico teatral é a nossa testemunha imprescindível. Na história moderna do teatro brasileiro, entre os críticos historiadores, isto é, aqueles não eventuais, o nome de Macksen Luiz se faz presente como um vocacionado analista da nossa cena. Macksen é um testemunho pleno de trinta anos do que realizamos em nossos palcos. Sua estreia, como crítico, aconteceu em 1974 no jornal Opinião. Durante mais de duas décadas foi o único especialista em teatro do Jornal do Brasil, que esteve presente praticamente em todas as encenações cariocas e também nas que chegaram ao Rio de Janeiro. Hoje, assina a coluna especializada do jornal O Globo, mantendo a mesma perseverança e objetividade. No seu leque de opções profissionais, já que sua formação vem da Escola de Sociologia e Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Macksen Luiz bem poderia ter se fechado no atendimento a outras atividades jornalísticas, que também exerce, mas o teatro é o espaço no qual ele se sente solidamente integrado. É um observador sempre bem informado sobre o que vai julgar, cujo vocabulário crítico nunca é primário. Há nele uma visão crítica resguardada, mas humanizada. Não é benevolente, nem tampouco detrator. É isento e solidário mesmo numa avaliação negativa. Tem uma compreensão existencial e social da sobrevivência cênica em nosso país. Na coletânea Macksen Luiz et alii, o leitor encontrará um panorama do que de mais importante os palcos do Rio de Janeiro apresentaram por meio de análises vindas de um crítico absolutamente integrado com a resistência da nossa expressão cultural. Macksen Luiz comprova as palavras de Sábato Magaldi: “O amor pelo teatro e a boa-fé [são] as qualidades primeiras da função do crítico”. Acrescento, a propósito, a definição sucinta e essencial da crítica Barbara Heliodora: “Sou simplesmente uma espectadora de teatro”. O crítico Macksen Luiz é basicamente um devotado espectador do teatro. fernanda montenegro
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A per ma nĂŞnc ia do e fĂŞmero
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A efemeridade do ato teatral não compromete a sua eternização. Total, quando se completa na cena e se projeta na plateia, se faz permanente nos traços que deixa em cada um dos que o constroem e assistem a ele. É fugaz na dificuldade de se reproduzir como registro histórico, visual ou jornalístico. Estreitamente relacionado com seu tempo e amplo na revitalização milenar dos seus meios expressivos, o ato teatral se deixa capturar pelas sensibilidades do momento, pelas emoções do instante e pela longevidade do pensamento. Reviver no presente as progressões do passado é da natureza da criação, que extrapola da documentação dramatúrgica para a contemporaneidade da cena. Acompanhar esse avanço é assistir à invenção em estado inquietante. Ficar cara a cara com a experiência humana em sua beleza e sordidez, percorrer memórias com alegria e melancolia, ter a inteligência provocada pelo desafio do desconhecido e a ruptura com o já sabido, num exercício infindo de se descobrir a cada ida ao teatro. O tempo da cena é finito; os sentimentos que provoca são infinitos. Tentar capturá-los em palavras, divulgá-los como atividade profissional, dispor-se a vivê-los como atos generosamente oferecidos são práticas de uma vida de espectador que se confundem com a impermanência de uma arte inesgotável na mutabilidade com que enfrenta a passagem dos séculos. Um curto período da atividade de crítica teatral no Jornal do Brasil (1982-2010) expõe a tentativa de me debruçar sobre o palco como vivência – reflexiva, amorosa, definitiva. Em tão pouco tempo, é possível reter somente os fragmentos de uma experiência artística que nunca se desvinculou da vida real. É tentar reter a extensão da sua complexidade técnica e o prazer de usufruir de tudo o que cabe no humano. E, no teatro, o humano se mostra na totalidade. macksen luiz
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AS LÁGRIMAS AMARGAS DE PETRA VON KANT Quando as luzes dos refletores do Teatro dos Quatro iluminam um corpo de mulher no centro do palco, veem-se apenas as suas costas muito brancas e os cabelos desalinhados de alguém que desperta. Assim tem início uma das mais emocionantes experiências que um espectador de teatro pode ter. O privilégio de assistir a um monstro sagrado exibindo, de forma plena, a extensão de seu talento. Em quase duas horas, o privilégio de ver Fernanda Montenegro interpretando a sensível Petra von Kant vai ganhando contornos de verdadeira aventura pessoal, a alegria de compartilhar de uma poderosa aula de técnica teatral e de absoluto domínio da emoção em cena. O despertar de Petra/Fernanda é apenas o começo de uma interpretação que segura a atenção do espectador em todos os instantes e revela que a extensão dos recursos de que dispõe Fernanda é imensurável. Seu porte em cena é de um animal, dono da liberdade de se movimentar numa área que é inteiramente sua. Há uma intimidade tão estreita entre a atriz e seu espaço de trabalho que sua criação nada mais é do que um ato de intimidade. Cada pausa, silêncio ou movimento corresponde a um gesto que acentua a intimidade. A própria respiração é um elemento dramático tão forte que é impossível ao espectador deixar de ouvi-la. Por mais que se conheça Fernanda Montenegro, será difícil não se surpreender com a sua interpretação em As lágrimas amargas de Petra von Kant. Não que tenha sido tocada por qualquer dom divino, mas apenas houve um daqueles raros e definitivos encontros entre atriz e personagem. Fernanda agarrou sua Petra com seus trinta anos de carreira e fez dela quase que uma soma das centenas de personagens que já interpretou, desenhando com técnica requintada a complexidade das emoções de uma vida. Não há nada que Fernanda faça como Petra que não seja fruto de extenuante exercício profissional, mas ao mesmo tempo a atriz demonstra a carga de emoção projetada na personagem, e que só pode ser explicada por um talento irretocável. Essa atriz de formação tradicional – Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), diretores italianos – nos dá uma interpretação tão rica que é impossível defini-la no tempo. Nada mais contemporâneo que o seu domínio corporal: na cena em que Petra discute com a amante, a repulsa de um contato físico é sugerida com leve, mas marcante, movimento de corpo para trás. Nada mais surpreendente do que os prodígios que consegue fazer com a sua voz: no meio do choro e do desespero de Petra ao confessar sua ligação homossexual à mãe e à filha, Fernanda a projeta com uma gama de modulações que vai do sussurro ao grito. Nada mais vanguar-
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dista do que a forma como revela à plateia a sua técnica de trabalho: a atriz se prepara para a cena final à frente do público, saindo do mais denso desespero para um espelho, diante do qual se penteia, se veste e caminha até um divã. As mudanças de clima dramático se fazem de frente e sem truques para a plateia. Em cena, Fernanda/Petra está o tempo todo estimulando as atrizes com quem contracena. Nos momentos mais densos, quando tem diante de si Renata Sorrah, Fernanda visivelmente troca sua emoção com a companheira de cena, numa integração que somente a humildade de se saber profissional consciente poderia gerar. A força e a inteligência da atuação de Fernanda Montenegro em As lágrimas amargas de Petra von Kant nos devolvem o prazer e a inteligência de ir ao teatro. O reencontro com essa arte na sua forma essencial – a palavra, o gesto, a emoção e as ideias – está enraizado nesta atuação, quase como um sinal que confirma o palco como uma zona de convivência e de troca, e não como um território reservado a cultivar pequenas vaidades. Há pouco mais de um mês, morria, de causa ainda obscura, o cineasta e dramaturgo Rainer Werner Fassbinder (1945-82), aos 36 anos. Sua personagem Petra von Kant, aos 45 anos, quase sucumbe à necessidade de enfrentar a si mesma. Entre o autor e sua criação, muito provavelmente, existirão semelhanças, mas se existe algo que os une de forma indissolúvel é o fato de Fassbinder e Petra levarem suas vidas aos limites dos sentimentos extremos. Petra, como Fassbinder, também tem uma imagem notória, é desenhista de moda de sucesso na Alemanha atual. Recompondo-se de um segundo casamento frustrado, decide ajudar Karim, uma jovem filha de operários sem muitas perspectivas, por quem demonstra uma paixão irracional. Esse sentimento, que é apenas aproveitado por Karim como mais uma experiência, para Petra é a confirmação de tudo aquilo que havia descoberto nos casamentos anteriores. “Eu acho – diz ela – que o homem é feito assim, tem necessidade de outra pessoa, mas não aprendeu a ser dois.” Mas a vontade de ser dois, de compartilhar, é o que faz Petra reproduzir com Karim aquilo que havia tentado viver com o segundo marido. Esse “drama burguês”, que os mais ranzinzas poderiam chamar de “teatro de alcova”, não se circunscreve ao espaço fechado do ateliê-casa de Petra von Kant. Está localizado num espaço bem maior do que o da Alemanha atual ou de um teatro num shopping center do Rio. Petra é uma personagem atual quando se transfigura na líder feminista ao apontar a mãe como uma prostituta, uma mulher que sempre se sujeitou a ser sustentada. Ou quando se transforma na mulher de negócios que conhece o jogo sujo do dinheiro, mas se entrega a ele porque sabe que o trabalho pode ser também
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uma fonte de prazer. Ou ainda quando descobre, finalmente liberada, depois de descer ao inferno de todas as suas emoções, a diferença entre o amor e o sentimento de posse. A preferência de Fassbinder pelo universo feminino – já registrada há dois anos no mesmo Teatro dos Quatro em Afinal uma mulher de negócios – pode não ser um mero acaso. Prova apenas que reconhecia nas mulheres melhores portadoras de seus conflitos, e que As lágrimas amargas de Petra von Kant é a expressão, tão somente, de profundas experiências humanas. O diretor Celso Nunes orquestrou o seu espetáculo combinando os cinco movimentos do texto em doses suaves. Dividida em cinco atos, a versão de Celso para a peça ganhou solução cênica inteligente ao eliminar os intervalos, ligando as partes através de Marlene, a criada a quem Petra subjuga e humilha. Essa personagem muda – tão bem interpretada pela bailarina Juliana Carneiro da Cunha – serve como ponto de ligação, ajudada numa das passagens por dispensáveis slides. Celso procurou revelar as emoções das seis mulheres em cena com tanta exatidão que alguns espectadores da sessão das 17h de segunda-feira não conseguiam disfarçar o seu impacto ao final do espetáculo. Essa busca da emoção foi transmitida às atrizes de maneira que elas pudessem lançá-la ao público para que ele descobrisse o que está por trás de cada personagem. Renata Sorrah captou essa sutileza ao construir a sua Karim – de aparência vulgar, mas libertária no descompromisso com a vida – com o vigor de uma jovem inconsequente cuja vibração, no entanto, permite que o público compreenda seus movimentos interiores. Rosita Thomaz Lopes, num papel mais episódico, tem menor oportunidade, projetando apenas um tipo, da mesma forma que a ainda inexperiente Paula Magalhães. Já Joyce de Oliveira, como a mãe de Petra, nas duas cenas curtas em que participa, tem atuação sensível. Destaque ainda para a solução simples mas funcional do cenário de Celso Nunes, para a boa iluminação de Aurélio de Simoni e Luiz Paulo Neném – especialmente no final, quando adquire função dramática importante –, e para os figurinos de Kalma Murtinho.
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HEDDA GABLER Hedda Gabler marca o fim de uma fase marcadamente realista na obra do norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), que depois optaria por forte simbolismo. A peça, além de ser divisor de tendências, é uma das mais atraentes para atrizes que já detêm sólida técnica e que veem na personagem-título a oportunidade de revelá-la em toda a sua extensão. Mas a permanência de Hedda Gabler como um texto definitivo deve-se a seu
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Na história moderna do teatro brasileiro, entre os críticos historiadores, isto é, aqueles não eventuais, o nome de Macksen Luiz se faz presente como um vocacionado analista da nossa cena. Macksen é um testemunho pleno de trinta anos do que realizamos em nossos palcos. [...] É um observador sempre bem informado sobre o que vai julgar, cujo vocabulário crítico nunca é primário. Há nele uma visão crítica resguardada, mas humanizada. Não é benevolente, nem tampouco detrator. É isento e solidário mesmo numa avaliação negativa. Tem uma compreensão existencial e social da sobrevivência cênica em nosso país. [...] Na coletânea Macksen Luiz et alii, o leitor encontrará um panorama do que de mais importante os palcos do Rio de Janeiro apresentaram por meio de análises vindas de um crítico absolutamente integrado com a resistência da nossa expressão cultural.
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Formado em sociologia na PUC-Rio, é jornalista profissional desde 1967. Foi crítico teatral do Jornal do Brasil de 1982 a 2010. Entre 1975 e 1982, colaborou nas seguintes publicações: jornal Opinião e revistas Visão, Manchete e Isto É. Participou das curadorias do Festival de Curitiba (1992-2005) e do Festival de Recife (1999-2003). Foi jurado do Prêmio Molière (até o fim, em 1994), do Troféu Mambembe (até 1988) e do Prêmio Zilka Sallaberry de Teatro Infantil (2008-10); atualmente, é jurado dos prêmios Shell, Cesgranrio e Associação dos Produtores de Teatro do Rio de Janeiro (APTR). Participou de comissões de projetos teatrais da Eletrobras e da Petrobras e das secretarias de cultura do Rio de Janeiro e de Salvador. Nas últimas décadas, foi colaborador dos periódicos Revista da SBAT e Folhetim, e escreveu o livro Sesi 50 anos (1996). Na prática de crítica na imprensa nacional, Macksen Luiz é um espectador da produção teatral brasileira por mais de quatro décadas, em análises que registram a ascensão de movimentos, inflexões de técnicas interpretativas, reposições de linguagens cênicas e a atuação do ambiente político-social na dramaturgia do palco. Percorre em cobertura abrangente e permanente esse amplo espectro de tempo, com análises que procuram a reflexão e o registro extensivo das temporadas cariocas e algumas de outros estados.
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A palavra “crítica” advém da forma latina “criticus”. Esta se originou, por sua vez, do vocábulo grego “kritikós”, cujo amplo campo lexical não somente abrange as noções de separação, seleção, julgamento e interpretação (ações, vale notar, realizadas a partir do estabelecimento de certos “critérios”) como também se relaciona com a forma grega “krisis” – entendida a partir de quatro traços semânticos diversos, mas complementares: ação ou faculdade de separar, de discernir; luta, litígio, processo; decisão, juízo, sentença; resultado, desenlace, crise. Assim é que compete a um crítico julgar determinado objeto de sua contemplação sem, entretanto, deixar de entrar em crise com os modos de expressão desse mesmo objeto, com a maneira como ele os percebe, com os critérios que irão orientar sua interpretação e com seus próprios valores estéticos e pessoais. O que chama a atenção na coletânea de críticas Macksen Luiz et alii – um belo título, aliás, para representar o gregarismo inerente à arte do teatro e sua inegável prontidão para com a ideia de alteridade – é a capacidade de discernimento do crítico, que cuidadosa e diletantemente se põe a serviço da fruição e da compreensão do fenômeno teatral, avaliando, sem ser arbitrário; arbitrando, sem soar idiossincrático. Ao separar muitas vezes o joio do trigo, ele faz que o texto crítico, por nunca se furtar à controvérsia e ao debate, entre em legítimo processo de investigação litigiosa com o complexo espectro de elementos flagrados em cena, de modo que o resultado, o desenlace, para além da observação pontual de determinados espetáculos, constitua um exercício epistemológico de maior envergadura, voltado ao exame atento de uma arte ancestral, desde sempre comprometida em radiografar a presença do homem no mundo e as sucessivas crises que o atravessam. Um livro disposto a cobrir um arco temporal tão vasto – no qual se registra a pujante (embora quixotesca) criação teatral brasileira das últimas três décadas – é também um testemunho de como Macksen Luiz ama o teatro. Não na condição de juiz severo, mas como defensor público de sua potencialidade e de suas virtudes.
ISBN 978-85-9493-005-7
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Doutor em literatura brasileira pela USP na área de dramaturgia, crítico de teatro e editor da revista Cult.
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