MEMÓRIA DA AMNÉSIA

Page 1

Agnaldo Farias Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e crítico de arte

Em Memória da amnésia, a artista e professora da FAU-USP Giselle Beiguelman reúne ensaios que abordam trabalhos experimentais e de pesquisa desenvolvidos por ela e propõe uma reflexão, por meio de textos e imagens, em torno do direito à memória em contraposição às ações e políticas de apagamento do passado. O livro ainda discute o patrimônio artístico digital e os dilemas de sua preservação, dada a incompatibilidade dos programas de criação do fim do século XX, hoje ultrapassados, com os novos suportes e tecnologias.

Ana Ottoni

“Memória da amnésia” refere-se a uma exposição realizada por Beiguelman em 2015 no Arquivo Histórico Municipal, em São Paulo. Depois de visitas ao Depósito do Canindé, um legítimo repositório de esquecimento da prefeitura da capital, selecionou, em função do que representavam e como representavam, um significativo número de esculturas de heróis, musas, e outros temas, retiradas dos espaços que outrora ocuparam na cidade. Quem decide o que deve ser esquecido, como deve ser esquecido, quando deve ser esquecido? Instaladas no saguão do Arquivo Histórico, elas, coerentes com sua desgraça, foram relegadas ao chão. O ensaio fotográfico “Já é ontem?” resultou do perplexo acompanhamento da construção do Porto Maravilha, de responsabilidade da prefeitura do Rio de Janeiro que, entre outras realizações, desmanchou o elevado da Perimetral, construiu museus etc. O futuro, pela força dos outdoors, das maquetes eletrônicas e dos vídeos institucionais, parecia finalmente haver chegado. Veio, então, a avalanche de escândalos, o desmoronamento da cidade e do país, levando consigo o futuro tão celebrado. A sequência visual de excertos desse empreendimento traz imagens distorcidas, próprias às máquinas defeituosas. Os dois últimos ensaios se complementam, dirigindo-se aos museus, às instituições dedicadas à preservação da memória. O livro depois do livro, obra de net art realizada por Beiguelman em 1999, tem como foco narrativas não lineares e traz as maneiras pela qual a máquina altera a leitura e a escritura, em um processo de velocidade exponencializada pelas novas tecnologias e que, paradoxalmente, torna praticamente inviável sua conservação em um museu de arte. Quanto ao segundo ensaio, “Beleza compulsiva tropical”, trata-se de um registro fotográfico sobre o já mencionado incêndio criminoso do Museu Histórico Nacional. Enquanto o primeiro texto sinaliza o perigo de a tecnologia levar à paralisia, o segundo aborda um “memoricídio”, neologismo criado pelo croata Mirko Grmek e que significa a “intenção deliberada de destruir todos os traços de existência cultural e histórica de uma nação em um determinado território”. Considerando o ódio que perpassa nosso país, com seu racismo, seu preconceito e sua misoginia cada vez mais escancarados, as formas que Giselle Beiguelman encontra para debater o tema da memória merecem ser analisadas com atenção.

Por fim, um ensaio sobre o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, ocorrido em 2018, sinaliza que a “potência da arte em tensionar a memória e reinventar o real” é o que nos resta para resistir à barbárie representada pelo memoricídio e pelo revisionismo, que afetam políticas governamentais, instituições, povos, fatos científicos e a própria história.

Hoje, nem o tempo é mais o que era. Antigamente, reconhecia-se o passado como algo que dizia respeito ao que havia acontecido, o presente ao que estava acontecendo e o futuro ao que iria acontecer. Como aqui demonstra a artista e pensadora Giselle Beiguelman, a partir de ensaios textuais e visuais, a presumida linearidade do tempo explodiu, e a temporalidade parece estruturar-se numa nuvem de fragmentos com espessuras e velocidades distintas e em direções desencontradas. Sobre esse caráter essencialmente contraditório, a autora lembra que a mesma cidade onde foi inaugurado o Museu do Amanhã, instituição que quer nos fazer crer que o amanhã já é hoje, transformou em cinzas o Museu Histórico Nacional, um patrimônio de 20 milhões de itens. Rasurou irreversivelmente uma parte significativa do passado não só brasileiro e português, mas da humanidade. Nunca se produziram tantos registros como atualmente, ao mesmo tempo em que nunca foi tão difícil ter acesso ao passado recente. O tsunami de informações tem o esquecimento como efeito colateral. Não é isso o que sentimos quando, na inspeção arqueológica de gavetas e armários, encontramos disquetes obscuros? O tema está na ordem do dia, mas não na chave tratada por este livro. Em lugar de um conjunto de leituras teóricas, de natureza generalizadora e abstrata, Beiguelman nos oferece cinco capítulos, cinco ensaios visuais, cada qual um desdobramento do tema da memória, da amnésia e das políticas em curso referentes ao que deve ser esquecido. Os capítulos são introduzidos por um ensaio crítico, modalidade de texto lamentavelmente pouco praticada na academia e defendida por Jean Starobinski como fruto de uma escrita movida pelo prazer, aquela que não sufoca o leitor com citações e comentários excessivos. O primeiro deles, “Beleza convulsiva tropical”, título extraído de uma sentença de André Breton, traz um registro fotográfico de uma intervenção realizada pela artista em 2014 na Antiga Casa de São Cristóvão, hoje conhecida como Quinta dos Tanques ou Quinta dos Lázaros – nome que também abrange o vizinho e mais antigo cemitério de Salvador. Lá, funciona o Arquivo Público da Bahia, o segundo mais importante do país. Repleto de estantes e caixas com documentos únicos e preciosos, o casarão está semiarruinado. A verdura das samambaias viceja nas frestas, varando as velhas construções. A natureza, à força do sol e da umidade, vai melando os papéis e tomando para si a arquitetura. O trópico conspirando contra a memória. Deixando-se de lado a melancolia preservacionista, vê-se o espetáculo da matéria em movimento, da história do tempo em ação, ao mesmo tempo em que há uma curiosa identificação entre túmulos e arquivos, cadáveres e documentos.



Memória da amnésia


SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli Edições Sesc São Paulo Gerente Iã Paulo Ribeiro Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Francis Manzoni, Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha Produção editorial Maria Elaine Andreoti, Simone Oliveira Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel



Memória da amnésia Políticas do esquecimento Giselle Beiguelman


© Giselle Beiguelman, 2019 © Edições Sesc São Paulo, 2019 Todos os direitos reservados Preparação Tatiane Godoy Revisão Célia Regina de Lima, Maria Elaine Andreoti Capa, projeto gráfico e diagramação Fábio Prata e Flávia Nalon | ps.2 design Imagem da quarta capa Ana Ottoni Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) B3964m Beiguelman, Giselle Memória da amnésia: políticas do esquecimento / Giselle Beiguelman. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019. – 248 p. il. Referências ISBN

978-85-9493-154-2

1. Estética. 2. Memória. 3. Patrimônio histórico. 4. Espaço público. 5. Espaço cultural. 6. Patrimônio digital. 7. Arquivos. 8. Monumentos. 8. Museu Nacional. I. Título. CDD 701

Edições Sesc São Paulo Rua Cantagalo, 74 – 13º/14º andar 03319-000 – São Paulo SP Brasil Tel. 55 11 2227-6500 edicoes@edicoes.sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes /edicoessescsp


Sumário

8

Ambíguos resquícios

76

1. Beleza convulsiva tropical 2. Memória da amnésia

12

Introdução

10

Danilo Santos de Miranda


138

3. Já é ontem?

212

190

4. Museus das perdas para nuvens de esquecimento 5. Beleza compulsiva tropical

240

234

233

232

Agradecimentos Sobre a autora Referências Créditos das imagens


Ambíguos resquícios

8

O passar do tempo é capaz de ensinar muita coisa – principalmente sobre a complexidade inerente à própria ideia de “passar do tempo”. Sendo todo movimento relativo a um ponto de referência, só conseguimos decifrar os descaminhos do tempo quando assumimos um lugar. Se o lugar é móvel ou instável, toda percepção flutua; são as desventuras do humano. O campo da memória é assolado por esse tipo de dilema. Movimenta-se ao sabor de vetores diversos: pretensões à objetividade, embates ideológicos, lutas pela sobrevivência material ou simbólica. A memória, até poucas décadas objeto reservado a especialistas, torna-se progressivamente um território em debate. As forças que tomam parte nesse jogo são desiguais, explicitando dinâmicas que estavam, em parte, silenciadas. Num tal panorama de abertura, é coerente que artistas entrem em campo. Desrespeitando fronteiras que pudessem sugerir quais assuntos a arte deveria tratar, percebem na memória uma plasticidade atraente – e a ela se dedicam. Os textos que compõem Memória da amnésia: políticas do esquecimento, de Giselle Beiguelman, dizem respeito a disputas por visibilidade; acompanham os propósitos e esforços daqueles que constroem determinadas narrativas e analisam suas consequências nos espaços das cidades. A autora conecta ações no campo das políticas culturais que poderiam ser descritas por verbos como expor, deslocar, esconder, fragmentar, reformar ou abandonar. Tais verbos dizem respeito a objetos variados: monumentos e obras de arte pública, museus, acervos, documentos físicos ou digitais. Revelam pelejas que operam, simultaneamente, em dois níveis: no imaginário profundo e na evidente materialidade.


Diferentes concepções de urbanidade orientam as estratégias do poder público e da iniciativa privada, assim como as táticas de grupos sociais que aspiram maior espaço. O cenário analisado, seja ele relativo a Salvador, São Paulo, Rio de Janeiro ou à esfera digital, é marcado por contradições e precariedades. Ao sublinhar as camadas de significado inerentes à iconografia produzida por diferentes instâncias de poder, bem como sua ressignificação e subversão, Beiguelman enseja reflexões que tecem comentários sobre os processos de desenvolvimento do país, assolado entre signos de modernidade e arcaísmo. Movendo-se à luz de passados plurais, a obra deixa evidente a presença de tais aspectos num presente que os ressignifica a todo momento. Salienta, desse modo, aquilo que fundamenta a crescente importância de tais fenômenos na ação cultural contemporânea. Trata-se da constatação de que as temporalidades se interpenetram, a partir de olhares que partem da atualidade – e de que publicações como esta estimulam leituras adensadas do mundo que habitamos, bem como dos tempos que o ocupam.

9

Danilo Santos de Miranda Diretor Regional do Sesc São Paulo


Introdução

10

Este livro reúne um conjunto de ensaios textuais e visuais no campo das estéticas da memória. Todos os capítulos, com exceção do último (uma reflexão sobre o incêndio do Museu Nacional), orbitam em torno de projetos realizados por mim em diferentes contextos. São trabalhos experimentais e de pesquisa que se desenvolvem por meio de intervenções artísticas no espaço público e nos espaços informacionais. No primeiro capítulo, trato de Beleza convulsiva tropical, uma intervenção feita na 3ª Bienal da Bahia (2014), no Arquivo Público estadual, que me reconectou à pesquisa no âmbito do patrimônio histórico, área em que trabalhei de 1985 a 1995. O projeto discute a tensão entre natureza e cultura, o informal e o formal, o enfrentamento entre controle e descontrole que se emaranham à história cultural e urbana do Brasil. Os trópicos são entendidos aí como uma situação, e não como um dado climático. Reverberam alguns conceitos do surrealismo de André Breton, configurando uma abordagem não romântica das ruínas, pensadas como matéria em movimento e história do tempo em ação. O segundo capítulo, “Memória da amnésia”, aborda as políticas públicas relacionadas à memória pelo prisma do esquecimento. Apresenta o projeto Memória da amnésia (2015), que dá nome a este livro. Ele direciona boa parte de minhas pesquisas para o tema das políticas de esquecimento e do direito à memória como prerrogativa do direito ao espaço público. Com foco nos depósitos de monumentos da cidade de São Paulo, o projeto incluiu o traslado de um conjunto de obras e fragmentos do Depósito do Canindé para o interior do Arquivo Histórico municipal, onde ficaram expostos, deitados, por quatro meses. Sem viés restaurador, estabelecia o contraponto entre as diferentes instâncias do sistema de memória oficial para interrogar: quem decide o que deve ser esquecido, como deve ser esquecido e quando deve ser esquecido?


11

Os dois capítulos seguintes dão prosseguimento a essas reflexões, porém entremeadas por questões que reverberam meus trabalhos com mídias digitais. Um deles apresenta Já é ontem?, um longo ensaio visual que documentou, de 2010 a 2017, as transformações da zona portuária do Rio de Janeiro (o Porto Maravilha), com ênfase na demolição da Perimetral e no entorno da praça Mauá. O outro capítulo discute as dificuldades de lidar com a memória das redes, a partir da obra de net art O livro depois do livro, de minha autoria, e sua incorporação ao acervo do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP). Já é ontem? traça uma narrativa muito particular, sem nenhuma pretensão de substituir a pesquisa historiográfica ou a de planejamento urbano, com olhos de artista. A obra resultou em uma videoinstalação (Cinema lascado – Perimetral), já apresentada ao público, em 2016, e no ensaio que aparece pela primeira vez neste livro. Neste ensaio testo linguagens de corrupção de códigos de imagens, procurando dar conta de uma estética capaz de registrar um processo de transformações tão intensas pelas quais passaram o Rio de Janeiro e o Brasil nos últimos anos. Em “Museus das perdas para nuvens de esquecimento”, minha primeira obra artística, O livro depois do livro (1999), é revisitada no campo das discussões sobre patrimônio digital e dos dilemas de sua conservação no âmbito museológico. Por ser uma das primeiras obras de net art, O livro depois do livro funciona como ponta de lança para uma série de discussões sobre o futuro da memória no tempo das nuvens computacionais e da overdose documental na era da obsolescência programada. O livro encerra com “Beleza compulsiva tropical”, sobre o incêndio do Museu Nacional ocorrido em 2 de setembro de 2018. Pensado no espectro de um memoricídio, o incêndio é lido sob o signo das catástrofes e como uma metáfora do nosso passado recente. Parto de um contraponto entre as ruínas, que trazem a abertura para seus passados imaginados, e a aridez dos escombros que não anunciam um depois. Escrito quase como um posfácio, quando este livro já estava pronto, em outubro, é também uma reflexão sobre o surrealismo de André Breton, com quem abri o volume, visto do avesso; sobre o que esperar do futuro quando as forças disruptivas se tornam disciplinadoras do delírio. Sem ceder à perplexidade diante do presente nem à amnésia, finalizo insistindo na potência da arte em tensionar a memória e reinventar o real.


1


Beleza convulsiva tropical


14

Como narrar a história de um lugar invisível? Se as pedras pudessem falar, o que elas nos contariam? Essas perguntas foram o ponto de partida do projeto Beleza convulsiva tropical, que realizei na 3ª Bienal da Bahia (2014), na exposição Arquivo e ficção, com curadoria de Ana Pato. A mostra levou para o Arquivo Público do Estado da Bahia (Apeb) um grupo de artistas1 para desenvolver suas pesquisas e obras em torno do acervo e da história dessa instituição. O objetivo era discutir a invisibilidade do Arquivo Público da Bahia e dos arquivos em geral. O Arquivo Público do Estado da Bahia foi criado em 16 de janeiro de 1890 e é o segundo mais importante do Brasil, depois do Arquivo Nacional (1838), no Rio de Janeiro. Sua documentação corresponde ao período que vai do século XVII ao XX e integra o acervo “Memória do mundo”, da Unesco2. Além do valor de sua documentação, o Arquivo Público está localizado em um espaço arquitetônico de relevância histórica, a Quinta do Tanque, construída pelos jesuítas no século XVI. A Quinta funcionou como colégio, casa de repouso e laboratório científico dos jesuítas, onde realizavam pesquisas relativas a produtos agrícolas e estudos sobre as saúvas. É curioso andar pelo edifício e encontrar, entre os corredores que abrigam as estantes de documentos, os vestígios dessa ocupação, como uma pia batismal ou uma cruz incrustada na parede. Mais curioso, ainda, é notar que várias das janelas do antigo solar dos jesuítas, de salas que hoje são reservadas a consultas e pesquisa, abrem-se diretamente para as casas das comunidades que há muito invadiram o terreno da antiga Quinta do Tanque. Essas foram minhas surpresas iniciais. O mais desconcertante aconteceu quando percebi que os funcionários trabalhavam fora das salas e que não se acendiam as luzes. Minto: o mais inusitado foi notar a umidade que tomava as paredes do prédio e que, de algumas janelas, era possível avistar um cinturão de cemitérios. O que se passava ali?

1 Os artistas participantes desse módulo da Bienal da Bahia foram: Giselle Beiguelman, Paulo Bruscky, Magdalena Campos-Pons & Neil Leonard, Ícaro Lira, Gaio Matos, Rodrigo Matheus, Paulo Nazareth, Eustáquio Neves, José Rufino e Omar Salomão. 2 Este texto retoma algumas ideias publicadas por mim e Ana Pato no artigo “Como construir um arquivo que não existe?”. Disponível em <http://bit.ly/2AizCKV>.


Visitei o arquivo pela primeira vez em fevereiro de 2014. O estado de deterioração das estruturas do prédio era alarmante. Havia ameaça de desabamento, risco de incêndio – por conta da fiação antiga – e goteiras por todos os lados. Poucas semanas antes da abertura da exposição Arquivo e ficção, foi aprovada, em caráter de urgência, uma obra emergencial de reforma do telhado no prédio do Arquivo Público. A obra poderia ter impedido totalmente a realização da intervenção Beleza convulsiva tropical, projetada para a ala direita do prédio, interditado dez dias antes da inauguração da Bienal. Fui salva pela arquitetura dos jesuítas. A liberação dessa única sala, na ala condenada do prédio, foi autorizada pelos engenheiros do Iphan, devido ao projeto arquitetônico dos padres inacianos, que escolheram escorar sua construção numa grande rocha. Foi justamente essa escora que permitiu a ocupação da sala, muito embora sua única entrada fosse pela janela e ela pressupusesse a subida da pedra. Essa pequena sala, com água minando das paredes emboloradas e com vista para casas de ocupação ilegal do terreno do Apeb, abrigava minha intervenção. Nela, deixei gravado um relato sonoro, entremeado por fatos históricos e sensações, que narrava a história daquele lugar. No processo de pesquisa, visitei o Arquivo Público várias vezes, conversei com sua equipe e fiz consultas à documentação referente a sua história. Ao apropriar-me da arquitetura e da situação urbana e social do edifício, utilizei como chave de leitura uma frase escrita com musgos (moss graffiti) aplicada na parede: “beleza convulsiva tropical”. A frase é uma releitura de um verso/conceito surrealista de André Breton, “beleza convulsiva” 3, que discute a tensão entre natureza e cultura. Por meio dela, compreendi as relações entre o informal e o formal e as situações entre controle e descontrole que se emaranham à história cultural e urbana do Brasil. É importante frisar que, aqui, os trópicos são entendidos como uma situação, e não como um dado climático. O intuito do projeto não foi, em nenhum momento, adotar uma atitude de denúncia diante do abandono do patrimônio histórico ou reiterar os recorrentes clichês sobre a nossa suposta barbárie. O que procurei fazer foi tensionar não só as relações entre as artes e os lugares da memória, como também entre os sistemas públicos de memória. Contemplando a linha de cemitérios populares e as paredes de jazigos provisórios que se avistam do arquivo, uma pergunta se impunha: afinal, por que arquivos e cemitérios são tão parecidos?

15

3 André Breton, Nadja, trad. Ivo Barroso. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 146.




Agnaldo Farias Professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e crítico de arte

Em Memória da amnésia, a artista e professora da FAU-USP Giselle Beiguelman reúne ensaios que abordam trabalhos experimentais e de pesquisa desenvolvidos por ela e propõe uma reflexão, por meio de textos e imagens, em torno do direito à memória em contraposição às ações e políticas de apagamento do passado. O livro ainda discute o patrimônio artístico digital e os dilemas de sua preservação, dada a incompatibilidade dos programas de criação do fim do século XX, hoje ultrapassados, com os novos suportes e tecnologias.

Ana Ottoni

“Memória da amnésia” refere-se a uma exposição realizada por Beiguelman em 2015 no Arquivo Histórico Municipal, em São Paulo. Depois de visitas ao Depósito do Canindé, um legítimo repositório de esquecimento da prefeitura da capital, selecionou, em função do que representavam e como representavam, um significativo número de esculturas de heróis, musas, e outros temas, retiradas dos espaços que outrora ocuparam na cidade. Quem decide o que deve ser esquecido, como deve ser esquecido, quando deve ser esquecido? Instaladas no saguão do Arquivo Histórico, elas, coerentes com sua desgraça, foram relegadas ao chão. O ensaio fotográfico “Já é ontem?” resultou do perplexo acompanhamento da construção do Porto Maravilha, de responsabilidade da prefeitura do Rio de Janeiro que, entre outras realizações, desmanchou o elevado da Perimetral, construiu museus etc. O futuro, pela força dos outdoors, das maquetes eletrônicas e dos vídeos institucionais, parecia finalmente haver chegado. Veio, então, a avalanche de escândalos, o desmoronamento da cidade e do país, levando consigo o futuro tão celebrado. A sequência visual de excertos desse empreendimento traz imagens distorcidas, próprias às máquinas defeituosas. Os dois últimos ensaios se complementam, dirigindo-se aos museus, às instituições dedicadas à preservação da memória. O livro depois do livro, obra de net art realizada por Beiguelman em 1999, tem como foco narrativas não lineares e traz as maneiras pela qual a máquina altera a leitura e a escritura, em um processo de velocidade exponencializada pelas novas tecnologias e que, paradoxalmente, torna praticamente inviável sua conservação em um museu de arte. Quanto ao segundo ensaio, “Beleza compulsiva tropical”, trata-se de um registro fotográfico sobre o já mencionado incêndio criminoso do Museu Histórico Nacional. Enquanto o primeiro texto sinaliza o perigo de a tecnologia levar à paralisia, o segundo aborda um “memoricídio”, neologismo criado pelo croata Mirko Grmek e que significa a “intenção deliberada de destruir todos os traços de existência cultural e histórica de uma nação em um determinado território”. Considerando o ódio que perpassa nosso país, com seu racismo, seu preconceito e sua misoginia cada vez mais escancarados, as formas que Giselle Beiguelman encontra para debater o tema da memória merecem ser analisadas com atenção.

Por fim, um ensaio sobre o incêndio do Museu Nacional do Rio de Janeiro, ocorrido em 2018, sinaliza que a “potência da arte em tensionar a memória e reinventar o real” é o que nos resta para resistir à barbárie representada pelo memoricídio e pelo revisionismo, que afetam políticas governamentais, instituições, povos, fatos científicos e a própria história.

Hoje, nem o tempo é mais o que era. Antigamente, reconhecia-se o passado como algo que dizia respeito ao que havia acontecido, o presente ao que estava acontecendo e o futuro ao que iria acontecer. Como aqui demonstra a artista e pensadora Giselle Beiguelman, a partir de ensaios textuais e visuais, a presumida linearidade do tempo explodiu, e a temporalidade parece estruturar-se numa nuvem de fragmentos com espessuras e velocidades distintas e em direções desencontradas. Sobre esse caráter essencialmente contraditório, a autora lembra que a mesma cidade onde foi inaugurado o Museu do Amanhã, instituição que quer nos fazer crer que o amanhã já é hoje, transformou em cinzas o Museu Histórico Nacional, um patrimônio de 20 milhões de itens. Rasurou irreversivelmente uma parte significativa do passado não só brasileiro e português, mas da humanidade. Nunca se produziram tantos registros como atualmente, ao mesmo tempo em que nunca foi tão difícil ter acesso ao passado recente. O tsunami de informações tem o esquecimento como efeito colateral. Não é isso o que sentimos quando, na inspeção arqueológica de gavetas e armários, encontramos disquetes obscuros? O tema está na ordem do dia, mas não na chave tratada por este livro. Em lugar de um conjunto de leituras teóricas, de natureza generalizadora e abstrata, Beiguelman nos oferece cinco capítulos, cinco ensaios visuais, cada qual um desdobramento do tema da memória, da amnésia e das políticas em curso referentes ao que deve ser esquecido. Os capítulos são introduzidos por um ensaio crítico, modalidade de texto lamentavelmente pouco praticada na academia e defendida por Jean Starobinski como fruto de uma escrita movida pelo prazer, aquela que não sufoca o leitor com citações e comentários excessivos. O primeiro deles, “Beleza convulsiva tropical”, título extraído de uma sentença de André Breton, traz um registro fotográfico de uma intervenção realizada pela artista em 2014 na Antiga Casa de São Cristóvão, hoje conhecida como Quinta dos Tanques ou Quinta dos Lázaros – nome que também abrange o vizinho e mais antigo cemitério de Salvador. Lá, funciona o Arquivo Público da Bahia, o segundo mais importante do país. Repleto de estantes e caixas com documentos únicos e preciosos, o casarão está semiarruinado. A verdura das samambaias viceja nas frestas, varando as velhas construções. A natureza, à força do sol e da umidade, vai melando os papéis e tomando para si a arquitetura. O trópico conspirando contra a memória. Deixando-se de lado a melancolia preservacionista, vê-se o espetáculo da matéria em movimento, da história do tempo em ação, ao mesmo tempo em que há uma curiosa identificação entre túmulos e arquivos, cadáveres e documentos.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.