Neste livro, o psiquiatra italiano Mauro Maldonato discute a fronteira existente entre a consciência e a biologia do cérebro na tomada de decisões. Para isso, considera a decisão um processo psíquico, que envolve diferentes instâncias como a racionalidade, a intuição, o desejo, a cultura e a sociedade, para perguntar em que medida o ser humano tem real certeza das motivações que o levam a tomar determinadas atitudes ou fazer determinadas escolhas.
devido à presença dos valores em conflito entre as diversas opções teoria normativa da decisão
coordena-se com outros para reduzir o grau de incerteza simplifica as próprias decisões
Com uma linguagem convidativa, o autor congrega conceituação científica ao desejo de aproximar o debate do leitor não especializado, argumentando que a racionalidade é o elemento de menor relevância na tomada de decisões, conduzida, sobretudo, por sentimentos, pela incerteza e pela imprevisibilidade.
mundo real
DECISOR REAL
intenção
racional
tende a decidir o mais rápido possível
tende a adiar ou esquivar-se de qualquer decisão
representação cognitiva varia
ao longo da decisão
tendência a decidir com base em sensações
facilitar a passagem de um esquema de ação para outro
dependente prefere receber sugestões antes de qualquer escolha
ISBN 978-85-9493-036-1
REINALDO JOSÉ LOPES Repórter de ciência da Folha de S. Paulo aceitabilidade
avaliação geral das ações possíveis e opções disponíveis decisão sem análise detalhada
mente
adequar o plano de ação inicial a eventos imprevistos
ciclo percepção-ação-antecipação identificar a diferença entre movimento previsto e movimento efetivo opção razoavelmente aceitável
opera interferências automáticas ininterruptas
tendência à confirmação
dar mais importância às informações que afirmam nossas hipóteses em detrimento das que negam
minimiza a dor
maximiza o prazer
COMPORTAMENTO
mente e corpo
CÉREBRO
trocas elétricas e químicas das sinapses (máquinas biológicas)
remodulações das ações em andamento
análises probabilísticas
memórias arcaicas
INCONSCIÊNCIA
modalidade de pensamento intuitivo
automático associativo não verbal otimismo irrealista
linguagem
forças motoras da psique humana
fala
regio ignota: região desconhecida que nos dá a ilusão de decidir
pulsões
ILUSÃO DO CONTROLE
diferença entre o que você considera arriscado para si e para outros observação do comportamento dos outros para extrair informações úteis para a decisão
tendência a crer que suas habilidades o protegem do risco heurística do consenso
MEMÓRIA
dinâmicas afetivas profundas
EMOÇÕES
IRA comportamento impulsivo
leva a crer que se tem maior controle sobre a situação
congruentes com a atividade cerebral
ESTRUTURAS NEUROBIOLÓGICAS
pré-conhecimento (caminho evolutivo)
arquivo de eventos do passado
ação
consciência da ação
medo desilusão execução do movimento
superestrutura à frente de instâncias psíquicas conflitantes
UNIDADE DO EU
desgosto previsão dos efeitos motores
pensamento consciência do pensamento individualidade
metaconsciência condições de antecipar ações futuras
conjunto de ações não iniciadas
base material da identidade moral
prazer dor raiva
defesa da fragilidade humana
programação
esferas pré-sensoriais
“prisma de muitas faces”
experiência interpessoal
reações emotivas
emoções antecipadas
reações após determinada decisão
TRISTEZA
desafios do ambiente
MEDO E ANSIEDADE
FELICIDADE E ALEGRIA
decisões rápidas
incerteza e falta de controle
comportamentos sociáveis e cooperativos
aversão ao risco e tendência pessimista
sensação de segurança e controle na percepção do ambiente
eu consciente
agregação de microconsciências expressão de uma estratificação arcaica
continuidade de conjunto ritmos naturais de estados fisiológicos e identidades transitórias vivacidade e flutuantes
experiência pessoal
emoções antecipadoras
resignação e sensação de importência
intenção
MORAL
sistemas de valor baseados em emoções e sentimentos
barreira para agressividade
fatores naturais
reduz a aversão ao risco
juízos morais
gramática instintiva sobre o certo e errado
MEMÓRIA SENSORIAL
instintos
reações imediatas diante da situação de risco
fazer previsões
desenvolveu-se para coordenar movimentos do corpo
somos sujeitos conscientes ou máquinas biológicas?
INTUIÇÃO
medir confiabilidade de informações
RACIONALIDADE
estado natural raciocínio
visão contemporânea da relação mente-corpo (unidade)
análises inconscientes dos efeitos de uma ação
fundamentar expectativas
CÓRTEX PRÉ-FRONTAL
gera vantagem
verbal
corpo
prevenção de riscos
nascentes sensoriais
produz utilidade
NA HORA DA DECISÃO
deliberativo e analítico
antecipação de eventos do futuro imediato
PERCEPÇÃO
espontânea presente
catalogação de dados
diferenciar o melhor do pior
CONSCIÊNCIA
agir conforme objetivos
reprimir condutas inapropriadas
aprimoramento
esforço cognitivo
busca de informações relevantes
consciente
visão tradicional da relação mente-corpo (pirâmede)
decisor busca uma solução satisfatória, não ideal
buscam o menor esforço
modalidade de pensamento lógico-formal
suprir os limites impostos pela complexidade das tarefas e contextos
fins são elaborados durante o processo decisório
atenção aos aspectos globais
intuitivo
evitante
de um decisor para o outro
possibilidades
ESTILOS DECISÓRIOS
espontâneo
conhece todas as possíveis consequências
variáveis dependentes
Mauro Maldonato
amenizam o peso emocional
raciocínio bayesiano
Mauro Maldonato
cálculo das consequências análise das alternativas possíveis
conhece os critérios para classificar a utilidade
DECISOR ABSTRATO
ambiguidade
leis da probabilidade e atitude probabilística da mente
PROCESSOS ADAPTATIVOS EFICAZES
aspirações
pesquisa completa de informações
imprevisibilidade
decide diante de alternativas já dadas
em negociação contínua com o ambiente
incerteza
risco
CONTEXTO DECISÓRIO
estratégias flexíveis
RELAÇÃO INDIVÍDUO - AMBIENTE
NA HORA DA DECISÃO
A ilusão de que somos (ou podemos nos transformar em) criaturas predominantemente racionais, capazes de tomar decisões serenas e informadas a respeito de qualquer assunto, é mais difícil de matar que zumbi de filme B. No livro que você tem em mãos, o psiquiatra italiano Mauro Maldonato, com galhardia e elegância raras entre quem escreve sobre o tema, tenta mostrar por que essa imagem clássica do funcionamento da mente humana muito provavelmente está errada. Com base numa massa crítica de descobertas feitas nas últimas décadas em áreas do conhecimento tão distintas quanto a neurociência, a psicologia e a economia, Maldonato conta como a capacidade de escolha dos seres humanos funciona de modo completamente diferente do simplório sistema de “álgebra moral” proposto pelo iluminista americano Benjamin Franklin (1706-90). Em vez de fazer duas imensas listas de prós e contras a respeito de determinado tema, realizar uma complicada operação de subtração e ver qual dos lados ficou com saldo positivo para só então escolhê-lo, nós quase sempre dependemos de um conjunto de atalhos e vieses cognitivos – ferramentas forjadas pela evolução que, durante milhões de anos, permitiram a nossos ancestrais agir, em média, da maneira mais favorável à sobrevivência. O que costumamos chamar de intuição é algo que provavelmente pode ser creditado na conta desses módulos mentais de ação rápida e simplificadora, mas normalmente eficaz. Isso significa que até o especulador mais desalmado do mercado de ações pode estar fazendo algo muito diverso da simples “maximização da utilidade” quando aposta em (ou contra) determinada empresa. Significa ainda que nossas escolhas morais dependem, ao menos inicialmente, de um sistema de emoções morais inatas, que poucos conseguem fazer emudecer, mesmo quando isso pode ser desejável (como nos eternos debates sobre direitos reprodutivos). Em larga medida, as explicações lógicas e sofisticadas que damos para eleger determinado curso de ação estão mais para confabulações: racionalizações posteriores ao fato que podem ter uma desconfortável semelhança com o autoengano. Um último ponto sobre o livro merece ser mencionado: que me perdoem os que não têm vocação para esteta, mas em divulgação científica beleza também é fundamental – e fica ainda mais formosa quando anda de mãos dadas com a clareza. Nas mãos de um filósofo francês pós-estruturalista, o tema de Maldonato correria o risco de virar um amálgama impenetrável de prosa poética; um sujeito que possuísse apenas verve didática faria um serviço decente, mas sem brilho. Maldonato, porém, escreve como um lorde, sem jamais sacrificar o didatismo. Não é pouca coisa, insigne leitor.
para alcançar decisões socialmente aceitáveis e justificáveis
sono graus variáveis de clareza
cansaço vigília
síntese cortical de conhecimentos dispersos e autônomos
RACIONALIDADE LIMITADA “economia comportamental” racionalidade de procedimentos racionalidade substantiva maior propensão a assumir decisões arriscadas
níveis de aspiração pessoal
solicita que se passe da consciência à inconsciência resultados < aspirações = insatisfação resultados > aspirações = satisfação
NA HORA DA DECISÃO
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli Edições Sesc São Paulo Gerente Marcos Lepiscopo Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Cristianne Lameirinha, Clívia Ramiro, Francis Manzoni Produção editorial Bruno Salerno Rodrigues Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel
MAURO MALDONATO Tradução de Roberta Barni
NA HORA DA DECISÃO somos sujeitos conscientes ou máquinas biológicas?
Título original: Quando decidiamo © Giunti Editore S.p.A., Firenze-Milano (www.giunti.it), 2015 © Mauro Maldonato, 2015 © Edições Sesc São Paulo, 2017 Todos os direitos reservados Tradução Roberta Barni Preparação Thiago Hasselmann Novaes Revisão Lígia Gurgel do Nascimento e Marina Bernard Projeto gráfico, capa e diagramação ps.2 arquitetura + design (Fábio Prata, Flávia Nalon e Gabriela Luchetta) A pedido do autor, a edição brasileira contém algumas alterações no texto em relação ao original.
M2933h Maldonato, Mauro Na hora da decisão: somos sujeitos conscientes ou máquinas biológicas? / Mauro Maldonato; tradução de Roberta Barni. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2017. – 140 p. Bibliografia ISBN 978-85-9493-036-1 1. Psicologia. 2. Ação humana. 3. Mecanismos decisórios. 4. Aspectos cognitivos. 5. Aspectos biológicos. I. Título. II. Barni, Roberta. CDD 150.1
Edições Sesc São Paulo Rua Cantagalo, 74 – 13º/14º andar 03319-000 – São Paulo SP Brasil Tel. 55 11 2227-6500 edicoes@edicoes.sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes /edicoessescsp
À FLAVIA. Seja paciente com as perturbações do coração e ame as perguntas como versos numa língua misteriosa. Ame-as, e permaneça a caminho, porque não há metas que ponham fim à busca.
APRESENTAÇÃO
A todo o momento, somos instados a tomar decisões de maior ou menor impacto nas esferas pública e privada da vida. No âmbito do corpo, as ações estão intimamente ligadas à repetição e à automação do que já se aprendeu, desobrigando o indivíduo de pensar sobre as atividades a serem realizadas. Pode-se, por exemplo, andar, falar, levantar-se, comer sem que seja preciso ter consciência explícita de todos os neurônios, músculos, nervos e órgãos convocados pelo cérebro para cumprir essas tarefas. A dúvida, o ensaio e o erro fazem parte da construção da estratégia para que o indivíduo possa decidir, considerando até onde é possível ou desejável correr riscos, com o conhecimento que tem de si e da experiência humana, ao seu redor, sob os aspectos cognitivo, físico-motor, social, afetivo e moral. Há decisões que implicam na resolução de dilemas morais, cuja complexidade encontra-se muito além da aplicação de juízos de valor e da constatação meramente individual pela qual é possível afirmar que se tem ou não “a consciência limpa” diante de determinado fato. No processo de decisão, cabe pensar sobre o que é ou não permitido, aceitável, o que é proibido e como lidar com atitudes socialmente inaceitáveis que obrigam as pessoas a experimentar a violência, a dor, a injustiça, a perda. A tomada de decisões ganha relevância quando se trata de autoridades cujas escolhas repercutem na vida político-social de outrem. Entre elas encontram-se pais, professores, profissionais responsáveis por empresas e instituições, representantes políticos, entre outros. Na sociedade capitalista, o ato de decidir, embasado na racionalidade, reflete um alto nível de cobrança quanto à necessidade de assertividade, clareza de objetivos e capacidade de realizar tarefas, tão presente no mundo do trabalho. Em Na hora da decisão, o psiquiatra italiano Mauro Maldonato investiga a essência desse processo sob o ponto de vista neurológico, concluindo que o modelo de racionalidade iluminista dominante no mundo ocidental não passa de ilusão, pois a tomada de decisões pertence ao âmbito dos sentimentos, do imprevisível, da incerteza e da irracionalidade. Mas por que esses fatores seriam tão relevantes para o entendimento da decisão? Sem deixar de considerar o ainda incipiente conhecimento sobre o cérebro, a consciência e o pensamento, o autor indaga se o ser humano é realmente uma máquina biológica, incapaz de controlar o que está ao seu redor, avaliar problemas, pesar prós e contras antes de tomar decisões consideradas as mais adequadas, fazer as melhores escolhas ou se, de fato, temos consciência dessas ações. Nem uma, nem outra! Ao tomar uma 7
decisão, o homem se serve de seu aparato biológico, associado à consciência que tem do mundo e das coisas. Debate também a origem e os limites entre o racional e o irracional, a consciência e a inconsciência, sem esquecer-se da influência central da cultura e da sociedade na formação do ser humano. Essas razões, associadas ao empenho de discutir temas espinhosos de forma convidativa de modo a conquistar o leitor não especializado, levam as Edições Sesc São Paulo a publicar mais este título de Mauro Maldonato. Danilo Santos de Miranda Diretor Regional do Sesc São Paulo
8
NOTA DE TRADUÇÃO O autor considera essencial que em seus estudos se distinga a palavra coscienza (ou consciousness em inglês, que corresponde ao vocábulo “consciência” em português – assim como utilizado em neurologia ou psicanálise) de consapevolezza (ou awareness em inglês, que, definida como “qualidade ou estado de ser cônscio” pelo dicionário Novo Michaelis, também corresponde ao termo “consciência” em português). O mesmo se dá com todos os derivados do substantivo, como “consciente”, “inconsciente”, “conscientemente” etc. Nesta obra, sempre que forem utilizados os termos “consciência”, “consciente” ou “inconsciente”, “metaconsciência” e assim por diante, queremos conferir ao termo o sentido de consapevolezza e awareness, salvo nota a especificar o contrário. [N. T.]
A APOSTA EM JOGO
página 13
I O LONGO CAMINHO DA RACIONALIDADE
página 27
II ANTES DA DECISÃO
página 43
III PURO MOVIMENTO
página 61
IV UMA INCONSCIÊNCIA SOBERANA
página 77
V UMA LIBERDADE DETERMINADA
página 95
DESPEDIDA
página 117
BIBLIOGRAFIA
página 125
SOBRE O AUTOR
página 139
A APOSTA EM JOGO
13
“Um pensamento vem quando ele quer, não quando eu quero”, disse-me um paciente, há muito tempo. O aperto de mão do primeiro encontro, o olhar firme, sulcado apenas por um leve desassossego, deixavam perceber uma personalidade resoluta, de quem acredita que está sempre exercendo o controle sobre tudo. Certamente eu teria esquecido essa história distante se aquela frase não tivesse voltado a me questionar ao longo dos anos. É sempre assim: as coisas que deixamos de decidir mais cedo ou mais tarde nos alcançam. Mas de que distâncias remotas vinham aqueles pensamentos para exercer uma soberania invisível em sua vida? Ele parecia perturbado e ao mesmo tempo aliviado por suas próprias palavras. Como se, no fundo do túnel, tivesse vislumbrado um clarão, a promessa de libertação de um peso insustentável, abrindo caminho entre a resignação ao determinismo e a fé no acaso. Quanto ao passado, não tinha dúvidas: tudo tinha sido exatamente como havia de ser. Por muito tempo, o tema central de nossos encontros foi a incapacidade de escolher, em suas conversas, a “palavra seguinte”. “Eu falo, é o meu trabalho”, dizia. “Mas se tiver de improvisar é impossível prever que palavra vou dizer um instante depois. Não é como quando já sei o que dizer. É o mesmo quando escrevo. Penso intensamente na palavra necessária. Procuro-a freneticamente. Mas que nada, não consigo achar. Eis que depois ela aparece de repente. Precedida por pausas insólitas que se concluem assim que a palavra aparece. Só então sinto que estou consciente. Mas dura pouco. Aquela estranha felicidade é logo subjugada pela sensação de que não fui eu quem a pensou. É isso, agora tudo me parece mais claro: esta dor emparedada na alma, o tempo, a doença…” Deve fazer uns vinte anos. Mais ou menos o tempo de minha viagem em busca da regio ignota, a região desconhecida que nos guia e nos dá a ilusão de que somos nós a decidir. Este livro, de algum modo, presta contas com aquela presença misteriosa. Mas em que sentido regio ignota? Não seria melhor usar o termo “inconsciente” assim como a psicanálise o entende? Mover-se em um território já cultivado tornaria tudo mais simples e tranquilizador. Na pior das hipóteses, nos manteria afastados de temíveis insídias conceituais e metodológicas. Existe, porém, um campo de forças mais vasto do que aquele em que Sigmund Freud vislumbrou instintos, desejos e pulsões, em conflito permanente com motivos éticos e racionais, cuja malograda satisfação origina neuroses. De um universo de forças arcaicas, procedem ações, automatismos, motivações irredutíveis ao termo “inconsciente”, com seu amplo campo semântico que abarca o normal e o patológico, já que a origem da neurose e a maneira como o sonho se produz são inconscientes. Naturalmente seria insensato e até extravagante insistir nos limites de uma teoria que derivam do estado do conhecimento de mais de um século atrás. O passado não se julga com as lentes de nossas convicções nem com as verdades que hoje consideramos como tais, classificando 15
como bons os que estavam certos e como ruins os que estavam errados. Os atos de identificar as forças motoras da psique humana (pulsões, instintos e dinâmicas afetivas profundas), historicizar a subjetividade, descentrando suas tramas internas, e subverter a pirâmide da consciência 1 constituíram uma gigantesca empreitada intelectual, um marco na história da cultura humana. Aquelas intuições, todavia, não esgotam as perspectivas que o tema oferece. Hoje sabemos o bastante para poder dizer que além do inconsciente e da consciência 2 há outros territórios. É preciso buscá-los. Desta vez, porém, não em outra cena esquecida. Nem para recolocar outro pequeno homem no homem. Tampouco para consolidar uma espécie de demônio que presidiria todos os fenômenos psíquicos e afetivos. Nada disso. Aqueles territórios, é preciso buscá-los para iluminar as instâncias profundas nas quais se fundamenta a cena na qual acreditamos que nossa vida se desdobra. Na primeira metade do século XIX, muito antes das descobertas de Freud, alguns neurologistas e psiquiatras, como verdadeiros pioneiros, haviam lançado bases sólidas para a revolução psicanalítica. Se hoje estamos dispostos a crer que uma força desconhecida e arcaica governa nossas condutas, devemos isso também aos autores que haviam intuído que a mente não podia ser reduzida à noção de consciência e, sobretudo, ao entendimento de que esta não tem primazia na vida da mente. Hoje a pesquisa deles retomou seu caminho. Nos laboratórios do mundo inteiro, novas descobertas tornam cada vez mais apuradas as longínquas intuições. O caminho é longo e são muitos os obstáculos a superar. Há demasiada credulidade em relação ao poder palingenético da ciência. Uma credulidade superior até mesmo à do camponês medieval com relação ao sacerdote. Isso para não mencionar o cinismo de quem, perdidas as próprias ilusões, em lugar de procurar a verdade, constrói a própria dentro de um laboratório. Há também o desencanto de quem acredita que o conhecimento já não se relaciona com a busca da verdade. Ou, enfim, o conformismo que exalta os aspectos meramente técnicos da ciência e sente ódio da reflexão. Se é imperativo da ciência que nada seja verdade enquanto não for demonstrado, seria sábio evitar os entusiasmos fáceis. O método galileano, extremamente útil na explicação dos fenômenos físicos, ainda não foi capaz de explicar a vida da mente. Nem sequer nos ajudou a identificar relações causais entre o DNA e o livre-arbítrio, a decisão, a consciência. De resto, estar consciente não é a mesma coisa do que estar vivo. Para estarmos vivos é necessária a dupla-hélice. Para estarmos cientes, é preciso fazer experiência do mundo. E, afinal, nosso problema não é sermos fiéis às categorias galileanas. Queremos poder aprender mais, se houver mais a aprender, como o próprio Galileu nos exortaria a fazer. 1. Entende-se aqui “consciência” em sentido neurológico e psicanalítico. 2. Idem.
16
Identificar uma correlação entre estruturas neurobiológicas e comportamento é, desde sempre, o objetivo mínimo das neurociências, clínicas e de base. Hoje, o uso das imagens cerebrais permite explorar funções, como a linguagem, o raciocínio e muito mais, em indivíduos sadios enquanto lidam com situações reais ou tarefas experimentais até bastante complexas. A grande atenção reservada em particular aos experimentos de fMRI (imagem por ressonância magnética funcional, na sigla em inglês) depende sobretudo da relativa simplicidade dos procedimentos e da escala temporal dos eventos estudados, que começam e acabam em pouco segundos. Mas por que se diz “objetivo mínimo” das neurociências? Mínimo porque só se podem demonstrar correlações. Que fique claro, no entanto, que observar no plano experimental uma mudança de estado de uma área “em relação” a um evento não é tarefa fácil. De fato, se fosse sistematizada, tal observação permitiria a conquista do Santo Graal da empreitada científica: a predição. Mas as observações não são explicações. Elas somente permitem uma reconstituição causal dos fenômenos. Até hoje, no âmbito da imagem cerebral (assim como no da eletrofisiologia) não estão demonstrados processos de causação. Trata-se de métodos ainda aproximativos e de medidas grosseiras. Dificilmente as respostas de indivíduos em testes feitos por aparelhos de escaneamento podem reproduzir aspectos da vida real. Por mais que estejam ensimesmados e concentrados numa tarefa, é improvável que tenham medo, desejo, ansiedade e sentimentos como na vida real. Difícil que escutem os sons, sintam os cheiros, percebam os lugares. Não há o alvoroço da vida. Aliás, nos relatos que se usam para estabelecer correlações precisas, as metáforas são inevitáveis. Todavia, não é disso que queremos tratar – embora devesse ser seriamente reconsiderada a representação da mente que as neurociências contribuíram para formar até o momento. De fato, não basta descrever raciocínios, decisões, intuições, imaginação e outros como expressões de superfície do cérebro, nem representar a vida inconsciente como a sombra da consciência – termo que, na realidade, continua sendo usado como uma espécie de chave mestra para indicar fenômenos diferentes e distantes entre si, como o coma, o estado vegetativo, a sensibilidade ambiental (consciência ecológica), a moral (“minha consciência está limpa”, “a voz da consciência”), a atividade do Eu (consciência narrativa) e assim por diante. É preciso perguntar-se, depois de um século de confusão terminológica, se não é chegada a hora de demarcar com maior rigor as fronteiras do inconsciente. Trata-se não somente de livrar-se de um autoengano linguístico e conceitual, mas também de desfazer-se a ilusão de que se está seguindo a natureza, ao passo que se trata da forma mediante a qual a observamos. Somos prisioneiros de uma imagem ambígua. E não nos livraremos disso enquanto ela permanecer aninhada em nossa linguagem. Porque vai reaparecer a cada vez, irremediavelmente. 17
Neste livro, o psiquiatra italiano Mauro Maldonato discute a fronteira existente entre a consciência e a biologia do cérebro na tomada de decisões. Para isso, considera a decisão um processo psíquico, que envolve diferentes instâncias como a racionalidade, a intuição, o desejo, a cultura e a sociedade, para perguntar em que medida o ser humano tem real certeza das motivações que o levam a tomar determinadas atitudes ou fazer determinadas escolhas.
devido à presença dos valores em conflito entre as diversas opções teoria normativa da decisão
coordena-se com outros para reduzir o grau de incerteza simplifica as próprias decisões
Com uma linguagem convidativa, o autor congrega conceituação científica ao desejo de aproximar o debate do leitor não especializado, argumentando que a racionalidade é o elemento de menor relevância na tomada de decisões, conduzida, sobretudo, por sentimentos, pela incerteza e pela imprevisibilidade.
mundo real
DECISOR REAL
intenção
racional
tende a decidir o mais rápido possível
tende a adiar ou esquivar-se de qualquer decisão
representação cognitiva varia
ao longo da decisão
tendência a decidir com base em sensações
facilitar a passagem de um esquema de ação para outro
dependente prefere receber sugestões antes de qualquer escolha
ISBN 978-85-9493-036-1
REINALDO JOSÉ LOPES Repórter de ciência da Folha de S. Paulo aceitabilidade
avaliação geral das ações possíveis e opções disponíveis decisão sem análise detalhada
mente
adequar o plano de ação inicial a eventos imprevistos
ciclo percepção-ação-antecipação identificar a diferença entre movimento previsto e movimento efetivo opção razoavelmente aceitável
opera interferências automáticas ininterruptas
tendência à confirmação
dar mais importância às informações que afirmam nossas hipóteses em detrimento das que negam
minimiza a dor
maximiza o prazer
COMPORTAMENTO
mente e corpo
CÉREBRO
trocas elétricas e químicas das sinapses (máquinas biológicas)
remodulações das ações em andamento
análises probabilísticas
memórias arcaicas
INCONSCIÊNCIA
modalidade de pensamento intuitivo
automático associativo não verbal otimismo irrealista
linguagem
forças motoras da psique humana
fala
regio ignota: região desconhecida que nos dá a ilusão de decidir
pulsões
ILUSÃO DO CONTROLE
diferença entre o que você considera arriscado para si e para outros observação do comportamento dos outros para extrair informações úteis para a decisão
tendência a crer que suas habilidades o protegem do risco heurística do consenso
MEMÓRIA
dinâmicas afetivas profundas
EMOÇÕES
IRA comportamento impulsivo
leva a crer que se tem maior controle sobre a situação
congruentes com a atividade cerebral
ESTRUTURAS NEUROBIOLÓGICAS
pré-conhecimento (caminho evolutivo)
arquivo de eventos do passado
ação
consciência da ação
medo desilusão execução do movimento
superestrutura à frente de instâncias psíquicas conflitantes
UNIDADE DO EU
desgosto previsão dos efeitos motores
pensamento consciência do pensamento individualidade
metaconsciência condições de antecipar ações futuras
conjunto de ações não iniciadas
base material da identidade moral
prazer dor raiva
defesa da fragilidade humana
programação
esferas pré-sensoriais
“prisma de muitas faces”
experiência interpessoal
reações emotivas
emoções antecipadas
reações após determinada decisão
TRISTEZA
desafios do ambiente
MEDO E ANSIEDADE
FELICIDADE E ALEGRIA
decisões rápidas
incerteza e falta de controle
comportamentos sociáveis e cooperativos
aversão ao risco e tendência pessimista
sensação de segurança e controle na percepção do ambiente
eu consciente
agregação de microconsciências expressão de uma estratificação arcaica
continuidade de conjunto ritmos naturais de estados fisiológicos e identidades transitórias vivacidade e flutuantes
experiência pessoal
emoções antecipadoras
resignação e sensação de importência
intenção
MORAL
sistemas de valor baseados em emoções e sentimentos
barreira para agressividade
fatores naturais
reduz a aversão ao risco
juízos morais
gramática instintiva sobre o certo e errado
MEMÓRIA SENSORIAL
instintos
reações imediatas diante da situação de risco
fazer previsões
desenvolveu-se para coordenar movimentos do corpo
somos sujeitos conscientes ou máquinas biológicas?
INTUIÇÃO
medir confiabilidade de informações
RACIONALIDADE
estado natural raciocínio
visão contemporânea da relação mente-corpo (unidade)
análises inconscientes dos efeitos de uma ação
fundamentar expectativas
CÓRTEX PRÉ-FRONTAL
gera vantagem
verbal
corpo
prevenção de riscos
nascentes sensoriais
produz utilidade
NA HORA DA DECISÃO
deliberativo e analítico
antecipação de eventos do futuro imediato
PERCEPÇÃO
espontânea presente
catalogação de dados
diferenciar o melhor do pior
CONSCIÊNCIA
agir conforme objetivos
reprimir condutas inapropriadas
aprimoramento
esforço cognitivo
busca de informações relevantes
consciente
visão tradicional da relação mente-corpo (pirâmede)
decisor busca uma solução satisfatória, não ideal
buscam o menor esforço
modalidade de pensamento lógico-formal
suprir os limites impostos pela complexidade das tarefas e contextos
fins são elaborados durante o processo decisório
atenção aos aspectos globais
intuitivo
evitante
de um decisor para o outro
possibilidades
ESTILOS DECISÓRIOS
espontâneo
conhece todas as possíveis consequências
variáveis dependentes
Mauro Maldonato
amenizam o peso emocional
raciocínio bayesiano
Mauro Maldonato
cálculo das consequências análise das alternativas possíveis
conhece os critérios para classificar a utilidade
DECISOR ABSTRATO
ambiguidade
leis da probabilidade e atitude probabilística da mente
PROCESSOS ADAPTATIVOS EFICAZES
aspirações
pesquisa completa de informações
imprevisibilidade
decide diante de alternativas já dadas
em negociação contínua com o ambiente
incerteza
risco
CONTEXTO DECISÓRIO
estratégias flexíveis
RELAÇÃO INDIVÍDUO - AMBIENTE
NA HORA DA DECISÃO
A ilusão de que somos (ou podemos nos transformar em) criaturas predominantemente racionais, capazes de tomar decisões serenas e informadas a respeito de qualquer assunto, é mais difícil de matar que zumbi de filme B. No livro que você tem em mãos, o psiquiatra italiano Mauro Maldonato, com galhardia e elegância raras entre quem escreve sobre o tema, tenta mostrar por que essa imagem clássica do funcionamento da mente humana muito provavelmente está errada. Com base numa massa crítica de descobertas feitas nas últimas décadas em áreas do conhecimento tão distintas quanto a neurociência, a psicologia e a economia, Maldonato conta como a capacidade de escolha dos seres humanos funciona de modo completamente diferente do simplório sistema de “álgebra moral” proposto pelo iluminista americano Benjamin Franklin (1706-90). Em vez de fazer duas imensas listas de prós e contras a respeito de determinado tema, realizar uma complicada operação de subtração e ver qual dos lados ficou com saldo positivo para só então escolhê-lo, nós quase sempre dependemos de um conjunto de atalhos e vieses cognitivos – ferramentas forjadas pela evolução que, durante milhões de anos, permitiram a nossos ancestrais agir, em média, da maneira mais favorável à sobrevivência. O que costumamos chamar de intuição é algo que provavelmente pode ser creditado na conta desses módulos mentais de ação rápida e simplificadora, mas normalmente eficaz. Isso significa que até o especulador mais desalmado do mercado de ações pode estar fazendo algo muito diverso da simples “maximização da utilidade” quando aposta em (ou contra) determinada empresa. Significa ainda que nossas escolhas morais dependem, ao menos inicialmente, de um sistema de emoções morais inatas, que poucos conseguem fazer emudecer, mesmo quando isso pode ser desejável (como nos eternos debates sobre direitos reprodutivos). Em larga medida, as explicações lógicas e sofisticadas que damos para eleger determinado curso de ação estão mais para confabulações: racionalizações posteriores ao fato que podem ter uma desconfortável semelhança com o autoengano. Um último ponto sobre o livro merece ser mencionado: que me perdoem os que não têm vocação para esteta, mas em divulgação científica beleza também é fundamental – e fica ainda mais formosa quando anda de mãos dadas com a clareza. Nas mãos de um filósofo francês pós-estruturalista, o tema de Maldonato correria o risco de virar um amálgama impenetrável de prosa poética; um sujeito que possuísse apenas verve didática faria um serviço decente, mas sem brilho. Maldonato, porém, escreve como um lorde, sem jamais sacrificar o didatismo. Não é pouca coisa, insigne leitor.
para alcançar decisões socialmente aceitáveis e justificáveis
sono graus variáveis de clareza
cansaço vigília
síntese cortical de conhecimentos dispersos e autônomos
RACIONALIDADE LIMITADA “economia comportamental” racionalidade de procedimentos racionalidade substantiva maior propensão a assumir decisões arriscadas
níveis de aspiração pessoal
solicita que se passe da consciência à inconsciência resultados < aspirações = insatisfação resultados > aspirações = satisfação