JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA Professor Titular de Literatura Comparada da UERJ e ensaísta. Pesquisador do CNPq. Autor de treze livros e organizador de mais de vinte títulos.
O leitor ideal possui um perverso senso de humor. O leitor ideal jamais conta quantos livros tem. O leitor ideal é generoso e ávido ao mesmo tempo. O leitor ideal gosta de usar o dicionário. O leitor ideal julga o livro pela capa. O leitor ideal não sabe que é o leitor ideal até chegar ao final do livro. O leitor ideal compartilha a ética de D. Quixote, o desejo de Madame Bovary, a luxúria da esposa de Bath, o espírito aventureiro de Ulisses, a integridade de Holden Caulfield, ao menos no espaço do narrado. O leitor ideal é, para um livro, a promessa da ressurreição. A literatura não depende de leitores ideais, mas apenas de leitores suficientemente bons. ALBERTO MANGUEL
notas para uma definição do leitor ideal
A aguda observação esclarece a bússola existencial e estética de Manguel. O gênero literário que o público em geral considera autêntica metonímia da ficção, o romance, não principia pela escrita, porém pelo acúmulo de leituras. “Lemos os clássicos para darmos continuidade a uma linhagem de leitores ilustres”, como recordamos em “A democracia como obra de ficção”. No ensaio que dá título a este livro, arrisca-se o pulo do gato: “Escrever nas margens é marca de um leitor ideal”. Na ótica erudita e generosa do autor, ler é escrever com os olhos; escrever é a recordação, estrategicamente olvidada, das manhãs, tardes, noites e madrugadas vividas entre as linhas de incontáveis páginas – viradas ora com precipitação, ora com temor, ora com angústia, ora com tremor, mas sempre amorosamente. Portanto, lidas com atenção, as palavras que este livro apresenta oferecem o antídoto para nosso tempo: “para mim, a escrita é uma atividade secundária, ocasional, dispensável, mas acho que não poderia viver sem ler”. Se a leitura literária fosse tornada respiração artificial, outros muitos mundos seriam possíveis, pois o “leitor ideal deve aprender a escutar”. A leitura: admirável mundo novo de lugares de escuta: convite irresistível da obra fundamental de Alberto Manguel.
notas para uma definição do leitor ideal
Alberto Manguel
Notas para uma definição do leitor ideal, coletânea de textos do escritor Alberto Manguel, é um livro tão necessário como a evocação maliciosa de Iago: “Even now, now, very now”. A urgência de conhecer sua reflexão se esclarece no enfrentamento do desafio maior que o ato de leitura enfrenta no aqui e agora do universo digital. “O século XXI é a era da descrença na palavra”: diagnóstico sombrio, porém imprescindível para entender o mundo contemporâneo – e, quem sabe, transformá-lo. O juízo se encontra no ensaio “Onde estão os intelectuais?”, cuja conclusão ilumina uma alternativa em meio às ruínas do presente: “ser testemunha crítica do nosso tempo infame”. Impõe-se uma pergunta, que um dia foi revolucionária e hoje é pura angústia: o que fazer? Ou seja, como resgatar a potência do verbo? Afinal, no princípio, era ele – e somente ele. Em “Sombras de vulto belo”, Manguel recorda o duplo vínculo que define a escrita e explode na ficção. Ora, a escrita tanto “permite transmitir [...] informação prática e precisa” quanto autoriza “uma grande ambiguidade que não limita a informação recebida a uma só interpretação”. Pelo contrário, e por isso mesmo, um tempo infame reduz a escrita ao pálido papel de mero instrumento, meio neutro de circulação infinita de dados, como se a linguagem fosse refém da lógica binária do algoritmo. Nada mais alheio à visão de mundo articulada nos notáveis ensaios-insights deste livro. Do outro lado do espelho, Manguel encontrou a chave buscada em famoso poema de Carlos Drummond de Andrade, “Procura da poesia”. O autor de Uma história da leitura (1997) inventou um território muito particular, além da dura realidade, aquém da mera escrita: mapa por desenhar, mas ainda assim indispensável: “Quem foi D. Quixote? Antes de mais nada, um leitor”.