PATATIVA do Assaré
PATATIVA do Assaré
o sertão dentro de mim
Editora Tempo d’Imagem ISBN 978-85-8731-429-1
o sertão dentro de mim
Tiago Santana Gilmar de Carvalho
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APOIO
Tiago Santana e Gilmar de Carvalho
PATATIVA do ASSARE
Patativa do Assaré
o sertão dentro de mim o sertão dentro de mim
...
O sertão é o livro aberto Onde lemos o poema Da mais rica inspiração.
Vivo dentro do sertão e Adoro as suas belezas Que valem mais que as riquezas Dos reinados de Aladim. ...
o sert達o dentro de mim
ABC do patativa
por Gilmar de Carvalho
O ABC é uma modalidade de cantoria que migrou para o universo do cordel. É um poema longo, temático, cujas estrofes se iniciam com as letras do alfabeto. O que seria um recurso mnemônico, tornou-se uma tradição no universo da poesia popular. Tem sido utilizado por grandes nomes desta poesia da voz, como o próprio Patativa do Assaré, autor de um ABC do Nordeste flagelado.
A
Avezinha cinzenta, de canto mavioso, Sporophila plumbea sobrevoa a Ribeira dos Bastiões. Ali as veredas se bifurcam, corta-se o Cariri para se chegar aos Inhamuns e de lá ao Piauí.
Era caminho antigo de boiadas. Urgia conhecer Patativa mais de perto. Não me interessava o que diziam os jornais. Dispensava a mediação intelectual que o colocava, às vezes, como o conservador a defender a tradição, e, em outras, como o revolucionário. Queria ver onde os lados se misturavam e se borravam na confusão dos limites. As verdades não são absolutas. Patativa saía desse limbo como uma idealização que precisava de um corpo para se tornar concreta. As imagens captavam tórridos sertões, vales úmidos, paredes de pedra muito antigas e o sol que não deixava muitas áreas de sombras. Vez por outra, um juazeiro pontilhava de verde a caatinga. A placa que indicava a entrada para o Assaré estava enferrujada e, com dificuldade, se lia que a cidade do poeta ficava a 25 quilômetros, com direito a muitos buracos, falta de sinalização e a ansiedade de chegar. Mais alguns minutos, e era possível ver a torre que se erguia, esguia e seca, apontando para o céu de azul acinzentado. Uma caixa d’água incômoda quebrava
um panorama mais amplo. O poeta morava ao lado da
No mais, ele estaria na cadeira de balanço. Fumava um
Matriz. Não era necessário perguntar onde era sua casa.
cigarro depois do outro, como uma velha caipora da lenda indígena. Bebia muitos cafezinhos. Cuspia no chão
A negociação para publicar sua caixa de folhetos fora
e a saliva respingava para a porta ao lado. Outras vezes,
feita pelo telefone. Retomava a ideia interrompida de um
caía um pouco sobre sua camisa. Daí o cuidado da filha
editor à moda antiga, o arquiteto Américo Vasconcelos.
Lúcia para que ele estivesse sempre de roupa limpa.
Agora estava ali para devolver o material. A impressão tinha sido feita na Lira Nordestina. As capas eram de
Nesse primeiro dia, deu para ver dona Belinha, em
gravadores de Juazeiro do Norte.
cadeira de rodas por conta do acidente vascular cerebral que a acometera em 1990. Aquela mulher magrinha,
O Gol branco com listras verdes da Secretaria da Cultura
de cabelos brancos e sem falar direito tinha sido a
avançava intrépido. O motorista, seu Aluísio, estava mais
companheira de mais de 50 anos de casamento. Agora
ansioso que eu. Claro que haveria gente na casa.
estava ali, não cabiam muitas palavras, apenas um
A caderneta de campo já amareleceu desde aquele tempo.
silêncio respeitoso de quem sabe o que ela significou
Algumas anotações estão imprecisas. Era outubro de
para o poeta e para todos da casa.
1993. Mas soprava vida naquele local. Patativa improvisava mais Patativa não sabia da visita e não nos esperava, mas a
um poema. Era incrível como sua poesia soava música e
casa estava aberta e tinha mais gente para conhecê-lo.
como ganhava outra dimensão no instante da performance.
Ele cumpria esse ritual com paciência e uma boa dose
Todos se calavam para ouvi-lo como a uma voz ancestral,
de prazer. Improvisava quadrinhas. Posava para fotos,
oráculo saído das profundidades daquela terra esturricada,
autografava livros e discos. A bandeja de café assinalava
profeta de um mundo marcado pela solidariedade.
a hospitalidade sertaneja. Estava ali, diante dele. Era a esfinge que precisava ser A casa sempre receptiva dava sinais de um centro
decifrada. Aquele homem de metro e meio, bengala
cultural espontâneo. As regras eram as do bom senso e
de metal, óculos Ray-Ban e aparelho auditivo era um
da amizade. Ele descansava depois do almoço. Dormia
monumento. Tínhamos a exata noção de sua grandeza
cedo. Não convinha som de carro, as portas abertas do
ao vê-lo e ao ouvi-lo criar um poema que ficaria perdido,
bagageiro deixavam entrever as caixas que estrondavam,
não fossem os atentos gravadores ou o peso de sua
como no carnaval baiano.
memória antológica.
Brasi de Cima e Brasi de Baixo
...
Inquanto o Brasi de Cima Fala de transformação, Industra, matéra prima, Descobertas e invenção, No Brasi de Baxo isiste O drama penoso e triste Da negra necissidade; É uma cousa sem jeito E o povo não tem dereito Nem de dizê a verdade.
Meu Brasi de Baxo, amigo, Pra onde é que você vai? Nesta vida do mendigo Que não tem mãe nem tem pai? Não se afrija, nem se afobe, O que com o tempo sobe, O tempo mesmo derruba; Tarvez ainda aconteça Que o Brasi de Cima desça E o Brasi de Baxo suba.
No Brasi de Baxo eu vejo Nas ponta das pobre rua O descontente cortejo De criança quage nua. Vai um grupo de garoto Faminto, doente e roto Mode caçá o que comê Onde os carro põe o lixo, Como se eles fosse bicho Sem direito de vivê.
Sofre o povo privação Mas não pode recramá, Ispondo suas razão Nas coluna do jorná. Mas, tudo na vida passa, Antes que a grande desgraça Deste povo que padece Se istenda, cresça e redrobe, O Brasi de Baxo sobe E o Brasi de Cima desce.
Estas pequenas pessoa, Estes fio do abandono, Que veve vagando à toa Como objeto sem dono, De manêra que horroriza, Deitado pela marquiza, Dromindo aqui e aculá No mais penoso relaxo, É deste Brasi de Baxo A crasse dos marginá.
Brasi de Baxo subindo, Vai havê transformação Para os que veve sintindo Abondono e sujeição. Se acaba a dura sentença E a liberdade de imprensa Vai sê legá e comum, Em vez deste grande apuro, Todos vão tê no futuro Um Brasi de cada um. ...
Cante lá que eu canto cá
...
Poeta, cantô de rua, Que na cidade nasceu, Cante a cidade que é sua, Que eu canto o sertão que é meu. Se aí você teve estudo, Aqui, Deus me ensinou tudo, Sem de livro precisá Por favô, não mexa aqui, Que eu também não mexo aí, Cante lá, que eu canto cá. ...
O vaquêro
...
Somente uma coisa iziste, Que ainda que teja triste Meu coração não resiste E pula de animação. É uma viola magoada, Bem chorosa e apaxonada, Acompanhando a toada Dum cantadô do sertão.
Patativa do Assaré “É melhor escrever errado a coisa certa do que escrever certo a coisa errada...”
Antônio Gonçalves da Silva nasceu na Serra de Santana,
com o sobrinho Geraldo Gonçalves) e “Balceiro 2” (2001). As
Assaré, Ceará, a 5 de março de 1909. Filho de pequenos
Edições UFC reuniram seus folhetos no volume “Cordéis”, em
proprietários rurais, cegou de um olho aos quatro anos. Teve
1999, quando recebeu o título de doutor honoris causa dessa
poucos meses de escola formal, mas viveu sempre entre livros.
instituição. Antes, recebera a mesma titulação da Universidade
Perdeu o pai aos oito anos. Aos 16, vendeu uma ovelha para
Regional do Cariri (URCA) em 1989, e da Universidade Estadual
comprar uma viola e passou a distrair os serranos com poemas
do Ceará (UECE) em 1999.
e repentes. Participou de vários momentos importantes da cena política Aos 19 anos, viajou para o Pará, onde ganhou, do jornalista
brasileira. Foi ameaçado de prisão (1967), durante a ditadura
e folclorista cearense José Carvalho de Brito, lá radicado,
militar. Subiu no palanque da luta pela anistia (1979) e na
o epíteto de Patativa, por causa do canto mavioso. Depois,
campanha pelas Diretas Já (1984). Foi eleitor de Lula para a
acrescentaria o topônimo Assaré à composição de seu nome
presidência da República em 1989, 1994 e 1998.
artístico. Deixou gravados os discos: “Poemas e canções”, 1979; Casou-se, em 1936, com Belarmina Paes Cidrão. Tiveram nove
“A Terra é naturá” (1981); “Patativa do Assaré” (1985); “Canto
filhos: Geraldo, Afonso, Pedro, João, Mirian, Inês, Lúcia, além de
nordestino” (1989) e “85 anos de poesia” (1994). A “Caixa do
Maria Maroni e Raimundo, que morreram bem jovens.
Patativa”, álbum duplo produzido por Calé Alencar, foi lançado em 2003.
Foi violeiro e, quando deixou de cantar, passou a compor seus poemas, na roça, os quais passava depois para o papel.
Foi gravado por Luiz Gonzaga (“Triste partida”, 1964), Fagner
Publicou os livros: “Inspiração nordestina” (1956, reeditado
(“Vaca Estrela e Boi Fubá”, 1980), e por um grande número de
em 1967); “Novos poemas comentados” (1970); “Ispinho e
intérpretes, como Daúde, Simone Guimarães, Cláudio Nucci,
Fulô (1978); “Balceiro” (1991, com outros poetas do Assaré);
Sérgio Reis, Pena Branca e Xavantinho, entre outros.
“Aqui tem coisa” (1994); “Ao pé da mesa” (2001, parceria
Faleceu a 8 de julho de 2002.
Tiago Santana (1966) atua desde
de importantes acervos e coleções
São Paulo (1998), teve sua tese publicada
1989 como fotógrafo profissional
de fotografia. Atualmente desenvolve
com o título de Madeira Matriz (São Paulo,
desenvolvendo ensaios fotográficos
projetos editoriais na Editora Tempo
Annablume, 1999), vencedora, nesse
pelo Brasil. Fundador da Editora Tempo
d’Imagem e é curador do IFOTO (Instituto
mesmo ano, do Prêmio Sílvio Romero, da
d’Imagem (1994), editora especializada
da Fotografia) em Fortaleza, Ceará,
Funarte. Também ganhou o Prêmio Érico
em livros de fotografia. É contemplado
Brasil.
Vanucci Mendes, do CNPq. Autor de mais de 50 livros que tratam da relação da
com a Bolsa Vitae de Arte, Fundação Vitae (São Paulo) em 1994 e com o Prêmio
Gilmar de Carvalho (1949) foi professor
comunicação com a tradição e a cultura.
Marc Ferrez de Fotografia, Funarte (Rio
da Universidade Federal do Ceará
Biógrafo e estudioso do poeta Patativa
de Janeiro), em 1995, com o trabalho
(Departamento de Comunicação Social)
do Assaré (1909/2002). Tem artigos
Benditos, cujo livro foi publicado no ano
de maio de 1984 a fevereiro de 2010.
publicados em revistas acadêmicas do
2000. Em 2007 recebe o Prêmio Conrado
Integrou o Mestrado em História Social
Brasil e do exterior.
Wessel de Ensaio Fotográfico (São
da UFC, de 2000 a 2008; o Programa
Paulo), pelo ensaio O chão de Graciliano,
de Pós-Graduação em Sociologia da
João Pedro do Juazeiro nasceu em
editado em 2006, livro que recebe, em
UFC, de 2004 a 2010; e o Mestrado em
Ipaumirim (CE) em 1964. Cedo a família
2008, o Prêmio da Associação Paulista
Comunicação Social, de 2007 até 2010.
migrou para Juazeiro do Norte. Começou
de Críticos de Arte (APCA). Em 2008 e
Mestre em Comunicação Social pela
fazendo cordéis. Depois passou a cortar
2009 foi o ganhador do prêmio O Melhor
Universidade Metodista de São Paulo
tacos de xilogravuras. Veio para Fortaleza
da Fotografia no Brasil como o melhor
(1991), teve sua dissertação publicada
na virada do milênio. Ganhou prêmios
fotógrafo documentarista do país. Em
pela Editora Maltese, de São Paulo,
(Salão Norman Rockwell, do IBEU-CE),
2010 recebe o Prêmio Porto Seguro Brasil
com o título de Publicidade em cordel,
expôs individual e coletivamente em
de Fotografia. Tiago tem seu trabalho
em 1994 (uma segunda edição saiu
vários espaços do Brasil. É hoje um dos
publicado em jornais, revistas e livros
pela Annablume, em 2002). Doutor em
nomes mais representativos da gravura
no Brasil e no exterior, e participado
Comunicação e Semiótica pela PUC de
de extração popular.
PATATIVA do Assaré
PATATIVA do Assaré
o sertão dentro de mim
Editora Tempo d’Imagem ISBN 978-85-8731-429-1
o sertão dentro de mim
Tiago Santana Gilmar de Carvalho