QUEREMOS MILES!

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CATÁLOGO ORGANIZADO POR VINCENT BESSIÈRES / TEXTO DE FRANCK BERGEROT / COM AS CONTRIBUIÇÕES DE GEORGE AVAKIAN, LAURENT CUGNY, IRA GITLER, DAVID LIEBMAN, FRANCIS MARMANDE, JOHN SZWED E MIKE ZWERIN


Foto: Jean-Pierre Leloir.



sumário

PÁGINA 36/1948-1955

PÁGINA 10/1926-1948

de saint

miles out PÁGINA 66 /1955-1959

ahead of the louis em estÚdio

cooL EM BusCA pAra invenção a rua 52

de bird

PÁGINA 9 / PREFÁCIO Laurent Bayle / éric de Visscher VINCENT BESSIÈRES PÁGINA 214 / Posfácio Vincent Bessières PÁGINA 216 / ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES PÁGINA 219 / LISTA DAS OBRAS EXPOSTAS PÁGINA 223 / BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA

e ódio a si mesmo

a columbia


PÁGINA 156 /1971-1979

PÁGINA 180 /1980-1991

ON THE star miles miles PÁGINA 104 /1960-1967 PÁGINA 134/1968-1971

CORNER people elétrico smiles A DISTORção A pulsação do o ÍcOne a liberdade contrOlada

do rock

FUNK planEtário



We want miles

Laurent Bayle / Diretor geral da Cité de la musique Éric de Visscher / Diretor do Musée de la musique

Depois de um período de silêncio de quase cinco anos, Miles Davis tocou novamente, a partir de 1980, em estúdio e no palco. We Want Miles (Queremos Miles), dito como uma afirmação, foi o título incisivo de um dos primeiros discos que assinalaram seu retorno. Quem é esse “nós”? Como explicar que a simples evocação de um nome baste para indicar a potência incontornável de um artista? A lembrança de sua trajetória permite compreender a solidariedade e o respeito impostos por uma figura desse calibre, reconhecido por ter impulsionado um gênero musical ainda jovem a nível mundial: Miles estreou nas big bands de Saint Louis, a cidade de sua infância, se apaixonou pelo bebop, iniciou o movimento cool, pesquisou uma terceira via entre o swing e o free e, depois, se envolveu totalmente no jazz elétrico, às vezes tendendo para o soul e o rock. Seria essa igualmente a explicação para que esse nome tenha se transformado em lenda? Que músicos do mundo todo, vindos de lugares diferentes, não tenham parado de entoar We Want Miles, exigindo que ele voltasse ao palco? Um palco que, a partir de então, ele tomou de assalto, multiplicando os discos, as aparições na televisão, os projetos publicitários ou cinematográficos, transformando-se em verdadeiro ícone da mídia. Pois foi então que Miles tomou consciência da lenda, inicialmente a do jazz, que se tornou uma música do mundo, e depois da sua, a de um artista global que transcende os estilos, as escolas e os gêneros para se afirmar como músico, criador, líder de um movimento musical que se tornou símbolo do século XX. Se ele contribuiu para a história do jazz, na mesma medida que Duke Ellington, Charlie Parker, John Coltrane ou Thelonious Monk, nenhum outro soube se integrar com tanta audácia e inventividade às inúmeras evoluções dessa música. Ele até mesmo antecipou as grandes mudanças que levaram o jazz de uma música de divertimento e dança para uma centrada na escuta e, por isso mesmo, enfrentou a reprovação por algumas de suas escolhas... por parte dos que desejavam permanecer no imobilismo. Como aconteceu com Serge Gainsbourg, cujo nome imediatamente se impôs quando a Cité de la musique começou a planejar uma primeira exposição temporária dedicada à canção francesa, a figura cultuada de Miles Davis veio imediatamente à mente assim que o tema do jazz foi definido. Além de um título de disco idêntico (You’re Under Arrest), essas duas figuras, nascidas no mesmo ano, partilharam a mesma vontade de nunca se fechar em um estilo, procurando sem cessar vias musicais inovadoras e, às vezes, inesperadas. Foi o espírito de seu momento que os animou, tanto na relação com sua época quanto em seu trabalho: Gainsbourg escrevia depressa, Miles criava sua música a cada instante, levando até os limites a arte da improvisação, sem nunca romper com o público. Como diz o saxofonista Dave Liebman, em um dos textos deste catálogo: “Quando Miles entrava em cena, passado e futuro não existiam mais, não havia nada além do momento presente, a essência da verdadeira improvisação, e aquilo por que nós, músicos de jazz, lutamos cotidianamente ao tocar”. É, sem dúvida, esse “mistério do instante” que Miles Davis não deixou de explorar, desenvolvendo igualmente os recursos sonoros do jazz (sua passagem para os instrumentos elétricos e amplificados é um exemplo disso e, do mesmo modo a colaboração com Gil Evans) e sua linguagem. Para isso, ele não hesitou em buscar, na colaboração com músicos novos, a fonte de uma renovação fecunda: de John Coltrane a Herbie Hancock, a lista de artistas que trabalharam com Miles Davis é extremamente longa e mostra até que ponto ele se abriu às influências vindas de outros grandes talentos, de sua geração ou mais jovens. Quer se trate de Kind of Blue, de Tutu, de Porgy and Bess ou ainda de Bitches Brew, os grandes discos de Miles Davis testemunham precisamente, sob as formas mais diversificadas, uma mesma busca da perfeição do momento. Esse é o itinerário excepcional retraçado nesta obra, contraponto fiel da exposição apresentada no Musée de la musique, sob a forma de um percurso cronológico contado por Franck Bergerot, e complementado por depoimentos de alguns personagens da época. Como na exposição, as imagens fotográficas foram objeto de um cuidado particular, pois é verdade que jazz e fotografia compartilham uma história comum, a da arte do instante e do contraste, que pode imortalizar os grande heróis e os momentos chaves de um gênero que, por sua própria essência, é efêmero. Tanto a exposição quanto o catálogo não teriam acontecido sem o trabalho duro e a inventividade constante de seu curador e diretor de obra, Vincent Bessières. O projeto contou com o apoio incondicional do Miles Davis Estate, em especial de Cheryl Davis, Erin Davis e Vince Wilburn Jr. Os inúmeros emprestadores, fotógrafos e instituições que colaboraram para tornar esta exposição não apenas possível, mas única em seu gênero.

AS MIL FACES DE miles

Vincent Bessières / curador da exposição

O jazz é rico de personagens excêntricos, de heróis ridículos, de destinos trágicos, de existências fulgurantes e de criadores famosos. Mas dentre todas essas figuras, Miles Davis continua a ser a mais fascinante e a mais misteriosa. A exposição Queremos Miles não pretende decifrar o artista que marcou o século com sua pegada; ela tenta apenas desenhar seus contornos, decompor as metamorfoses, seguir suas evoluções. Como a obra de Picasso, a quem é frequentemente comparado, a música de Miles tem períodos. Na velocidade do século: ele fez uma revolução a cada cinco anos. Perdeu seu público, ganhou um novo, perdeu novamente, conquistou um outro. Miles mudava. E é preciso seguí-lo. Miles provocava o desejo e a frustração. Ele não estava onde era esperado. Ele não tocava jamais amanhã o que tocara ontem. E entretanto, era sempre Miles. Sua sonoridade mudava, o ambiente de seus grupos era desordenado, ele desfazia os padrões, a eletricidade o energizava, mas alguma coisa persistia, o que o tornava identificável depois de apenas algumas notas. É esse o fio que segue a exposição em busca desse homem múltiplo e indefinido. Miles, o menino altivo; Miles, o provinciano que sonhava com Bird; Miles, o dândi cool; Miles, o boxeador; Miles, o arrogante; Miles, o drogado decadente; Miles, que deu as costas ao público; Miles e a cor de seu blues; Miles, Porgy; Miles, Bess; Miles, magnífico na saeta; Miles, que sorriu por fim; Miles, que questionou o jazz; Miles, polivalente; Miles, o roqueiro; Miles, o espetáculo; Miles e suas mulheres; Miles, que foi conquistado por Hendrix; Miles, on the corner; Miles, que desapareceu; Miles, que reapareceu; Miles, o astro que exigia tratamento de príncipe; Miles, assombrado por seus fantasmas; Miles, que não se repetia nunca; Miles, que tem o blues; Miles, que desprezava os ignorantes; Miles, o macho, o herói, o agitador; Miles e seus nervos à flor da pele; Miles, agredido pela polícia; Miles, que se mostrava sem pudor; Miles e seus trompetes coloridos; Miles e seu rosto de esfinge; Miles hip; Miles bop... Miles, Miles, Miles — vocês pediram Queremos Miles? Mas qual deles? Como separar o homem de sua música? Como compreender sua obra sem associá-la a sua vida? Ela sobreviveu a ele, certamente, mas nessa música oral que é o jazz, uma arte íntima que dialoga com o mundo, Miles a encarnou tanto quanto a tocou. A menos que, de fato, a obra o tenha habitado. Vejamos sua silhueta em cena, seu corpo que se curvava, seu trompete que se elevava. O que Miles tocava que não tivesse experimentado? Exceto o boxe, mais nada lhe interessava. Miles olhava o jazz e nunca deixou de desafiá-lo. Abrindo caminhos, absorvendo modos, ultrapassando estilos, ele o recolocou em jogo, escapando aos estereótipos, às fórmulas prontas, e às receitas fáceis. Não lhe foram perdoadas as falhas de conduta por ter com tanta frequência visado a excelência e a novidade. Quem não é fã de Miles Davis? Quem não encontra, em uma obra tão vasta, tão variada, algo que agrade a seu ouvido? Cada um tem um disco predileto, até Barack Obama, cuja ascensão à frente dos Estados Unidos fez ressoar de modo simbólico uma história que Miles Davis relatou em sua autobiografia a respeito de um jantar na Casa Branca, para o qual foi convidado em 1987 pelo presidente Reagan. A uma senhora idosa que lhe perguntou o que ele havia feito de tão relevante para ser recebido nos importantes salões de Washington, Miles respondeu: “Mudei o curso da música por cinco ou seis vezes”. Isso bem vale uma exposição, isso bem merece este livro que o grava na memória. Queremos Miles e nunca será suficiente.


Vista da Rua 52, Nova York, 1947 Foto: William P. Gottlieb


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1926-1948 "O que eu sei, é que no ano após meu nascimento, um furacão violento devastou Saint Louis. [...] Talvez eu ainda seja animado por seu sopro potente. É preciso sopro para tocar trompete. Creio no mistério e no sobrenatural e, se existe algo ao mesmo tempo misterioso e sobrenatural, é um furacão.” Esse furacão realmente aconteceu em 29 de setembro de 1927. Mas, mesmo que tivesse sido imaginário, o que importa é a profissão de fé que dele extraiu Miles. Nessas linhas retiradas do primeiro parágrafo de sua autobiografia, verificamos esse fascínio pelo oculto que ele constantemente desafiou até o pavor. Ele não era um homem religioso. A experiência da igreja foi a base de maior parte das vocações musicais na comunidade negra americana. No entanto, Miles não reteve dela muitas coisas, somente a decisão que tomou ainda criança de não frequentá-la, cansado de ser chamado de pecador. Quando relembrava sua experiência com as músicas negras do sul nas temporadas que passou na casa do avô no Arkansas, ele se recordava menos da igreja em si, onde ouvia cantarem os spirituals, que do caminho que tomava para ir até lá no sábado à noite, na hora dos fantasmas e das corujas. Foi aí que ele descobriu o blues.


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13 Filho de um cirurgião-dentista (foto n°5, em roupa de formatura), Miles Davis III (n°6) cresceu em uma família relativamente abastada na cidade de East Saint Louis, em Illinois. Caçula de três filhos, ele era muito apegado a sua irmã mais velha Dorothy Mae (n°4 à direita, Pâques 1939) e a seu irmão Vernon (n°1,

segundo a partir da esquerda). As relações com sua mãe, Cleota, chamada “Mama-Cleo”, foram mais conflituosas (n°3, à direita). Um ano depois do nascimento do músico, um furacão devastou a cidade e esse acontecimento deixou marcas em seu imaginário (n°2).

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ILES DE PAI PARA FILHO. O Natal era importante para Miles, mas menos pela festa religiosa do que pela familiar. Miles era muito ligado à família. Um de seus primeiros luxos, assim que assinou um contrato com a Columbia em 1955, foi sempre estar em Chicago no final de dezembro, para passar o Natal na casa da irmã. No topo da pirâmide familiar, estava Miles Dewey Davis I, o avô, nascido seis anos depois da libertação dos escravos. Desde o tempo da escravidão, os Davis haviam sido músicos a serviço de proprietários brancos. Miles I proibiu que seus filhos tocassem música para evitar que frequentassem bordéis, único lugar possível para um músico negro trabalhar nos Estados Unidos branco. Nascido no estado da Geórgia, Miles I casou-se no Arkansas com Mary Frances e, depois, em segundas núpcias, com Ivy, a avó de Miles III, o futuro trompetista. Miles I se instalou nas cercanias de Pine Bluff, ao sul de Little Rock, no Arkansas, onde adquiriu uma propriedade. Ele foi guarda-livros para os fazendeiros brancos das imediações que acabaram por expulsá-lo de sua propriedade, por verem com maus olhos a ascensão desse negro recém-chegado ou por temerem suas indiscrições quanto aos conluios de que viesse a ter conhecimento.

Reinstalado em Noble Lake, ao sudeste de Pine Bluff, ele cultivou cana de açúcar, melancia, milho e se especializou em piscicultura. Teve três filhas e seis filhos, mas só temos conhecimento de Frank, Ferdinand e Miles II. O primeiro foi seu guarda-costas. Ferdinand estudou em Harvard e, depois, em Berlim. Mais tarde, foi redator-chefe de Color Magazine e impressionou seu sobrinho Miles III com suas histórias de dândi, sempre às voltas com viagens e conquistas femininas. Miles II, nascido em 1900, tornou-se dentista depois de um desempenho brilhante na escola de odontologia da Universidade Northwestern. Casou-se com Cleota H. Henry, filha única de Leon e Hattie Henry, nascida em 1901. Miles II abriu um consultório odontológico em Alton, no Illinois e, em 1942, a esposa lhe deu uma filha, Dorothy Mae. Miles III nasceu em 26 de maio de 1926. Um ano depois, o doutor Davis mudou-se para East Saint Louis, onde nasceu Vernon em 1929. Os Davis estavam bem instalados na esquina da Rua 17 com a Avenida Kansas, em uma confortável casa branca com 13 cômodos e telhados vermelhos, um amplo jardim e uma garagem para o Lincoln Zephyr do doutor Davis. Depois de um início difícil e apesar da crise que se abateu sobre os Estados Unidos, a família Davis foi adotada pela elite negra de East Saint Louis, que passou a frequentar, especialmente o Charleston Club e a igreja batista de Saint Paul, mas também o Auditório Kiel de Ópera, onde ouvia a Orquestra Sinfônica de Saint Louis regida por Vladimir Golschmann (antigo aluno da Schola Cantorum) e os grandes solistas da época, como Rachmaninov e Horowitz. A senhora Davis era uma mulher elegante e altiva. Miles a associava àquela parte da sociedade negra que aspirava à integração racial através dos posicionamentos da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP – Associação nacional para o progresso das pessoas de cor) e da National Urban League (Liga urbana nacional). Por outro lado, ele associava as ideias de seu pai ao separatismo de Marcus Garvey, que defendia o retorno dos negros americanos à África. Miles II, que tinha tino para os negócios, demonstrava um desprezo


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soberano diante da pobreza, para a qual não aceitava nenhuma desculpa. Ele se impunha por seu orgulho racial e sua desenvoltura social, tanto nos meios políticos quanto no jogo, em que perdeu somas consideráveis, ou ainda nos campos de golfe onde o futuro trompetista às vezes o acompanhava como caddy. O casal tinha discussões que desembocavam em brigas, por diversas vezes, violentas. As discordâncias referiam-se especialmente em relação ao futuro dos filhos; o pai respeitava as escolhas deles desde que fossem bem-sucedidos, enquanto a mãe não imaginava outra opção para eles além de serem brilhantes nos estudos, seguindo o exemplo do pai. Após o divórcio do casal, em 1944, Miles II instalou-se em uma propriedade colonial que adquiriu nas imediações de Millstadt, a 12 quilômetros ao sul de East Saint Louis, e que batizou com o nome de sua mãe, “Mary Frances Manor”. Ali ele criou porcos, vacas e cavalos. Envolvido na vida política local, disputou em vão o cargo de deputado. O destino do jovem Miles, que montava seu próprio cavalo na fazenda do avô e também na de seu pai, foi bastante singular no mundo do jazz, com forte componente popular. No entanto, aos 13 anos, ele vendia o Chicago Defender. A escolha do primeiro jornal negro americano não foi um acaso e demonstra o orgulho racial que ele herdou do pai. Miles disse também ter em comum com o pai o espírito de independência que o incitou a ganhar o próprio dinheiro, mas veremos que, em diversas épocas de sua vida, ele dependeu financeiramente do pai. Miles era franzino e, por isso, recebeu o apelido de Little Davis (pequeno Davis) ou Little Doc Davis (pequeno doutor Davis). Ele se afirmou jogando beisebol e se interessava pelo boxe, embora não o praticasse. Rejeitou o excesso de afeto da mãe, que considerava responsável pela homossexualidade de seu irmão Vernon. Ele era tímido, um traço de personalidade que o perseguiu por toda a vida e do qual ele se protegeu com uma fachada de arrogância. Escolheu trompete, porque foi inicialmente atraído pela atitude dos trompetistas. Provavelmente, ele percebeu a energia que o instrumento exige e que absorveu em sua própria postura no palco. queremos miles

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SAINT LOUIS SOUND. A senhora Davis teria preferido que ele optasse pelo violino, o instrumento que ela tocava. Ela também praticava piano e Miles a surpreendia tocando blues às tardes. Foi ela quem levou o jazz para casa com dois discos: um de Art Tatum e outro de Duke Ellington. Porém, mais tarde, ela se mostrou totalmente indiferente à música de seu filho. Para Miles, o violino era uma causa perdida. Saint Louis era uma cidade de trompetes. A cidade constituía uma parada obrigatória na rota dos barcos a vapor que cruzavam o Mississipi, ao longo do qual tocadores de corneta e trompetistas de Nova Orleans difundiam a palavra divina. Em Saint Louis, desenvolveu-se uma verdadeira escola de trompete ao redor de personalidades como Charles Creath (1896-1951) e Dewey Jackson (1900-1963). Podemos citar George Hudson, Walter “Crack” Stanley, R.Q. Dickerson, Irving “Mouse” Randolph, Bobby Merrill, Sleepy Tomlin, Joe Thomas, Louis Metcalf, Ed Allen, Bob Schoffner, Levi Madison, Elwood Buchanan, Harold “Shorty” Baker, Clark Terry e, mais tarde, Lester Bowie. O trompetista inglês Ian Carr descreveu assim o som de Saint Louis: “Um som redondo, com uma bela claridade, que faz cantar o metal, projetado e que flutua no ar, com um senso melódico cheio de espírito, de caráter mordaz e picante”. Outras pessoas descreveram esse estilo como diferente do adotado por Louis Armstrong, o pai do trompete no jazz, como algo de mais sutil, de mais delicado, que poderia ser exemplificado pelo trompetista Harold “Shorty” Baker, de Saint Louis (participante das orquestras de Andy Kirk e de Duke Ellington). À esposa deste último, a pianista Mary Lou Williams, Miles confidenciou certo dia: “Se ao menos eu pudesse tocar tão suavemente quanto Harold Baker!” Ele se lembrava com emoção de Levi Madison, a respeito de quem Clark Terry disse que quando tocava tinha-se a impressão de ouvir cantar os anjos, mas a quem a loucura privou de toda fama. Quando Miles tomou consciência dessa especialidade local? A cronologia de seu aprendizado é confusa.


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A cidade de Saint Louis foi o berço de um linhagem de trompetistas admiráveis por sua sonoridade: Charlie Creath (foto n° 1, por volta de 1922) e Dewey Jackson (n° 2, no Salão de baile Castle de Saint Louis, em 1937),

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foram seus fundadores; Walter “Crack” Stanley, fotografado com os Singing Syncopators de Floyd Campell (n° 3, terceiro a partir da direita, 1929), foi um de seus primeiros descendentes.


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Parece que sua vocação surgiu ao redor dos 9 anos, quando um vizinho médico, John Eubanks, amigo de seu pai, deu uma corneta a Miles. O menino estudou com o tio de Eubanks, o saxofonista e clarinetista Horace Eubanks. Com esse professor, que o fazia tocar notas presas, e com a ajuda de um método emprestado que lhe possibilitou estudar a escala cromática, ele aprendeu o bastante para tocar os sopros da época. Ele tinha 12 anos quando recebeu a incumbência de tocar o surgimento e a extinção das fogueiras em um acampamento de escoteiros durante o verão. Na época, ele escutava as transmissões de jazz até tarde da noite. E, todas as manhãs, saía de casa atrasado para a escola a fim de ouvir a transmissão de Harlem Rhythm. Seu interesse voltava-se em primeiro lugar para o trompetista branco Harry James, imitador brilhante de Louis Armstrong, de inclinação comercial e, para todos os efeitos, às vezes, exagerado. Mas essa orientação foi contrariada pelos cursos que recebeu — na escola elementar e, depois, no liceu — de um cliente e amigo de seu pai, Elwood Buchanan. Este aconselhou a compra de um trompete em vez da corneta. Esse foi o presente do doutor Davis a seu filho no seu aniversário de 13 anos. Elwood Buchanan pertenceu à escola de Saint Louis e fez carreira nos barcos a vapor. Os modelos que ele recomendava a seus alunos eram "Shorty" Baker, que ele conheceu na orquestra de Andy Kirk, e o trompetista branco Bobby Hackett, discípulo de Bix Beiderbecke, uma escola de delicadeza que contrastava com a potência e o brilho da maioria dos trompetistas da época. Por outro lado, ao incentivar Miles Davis a abandonar seu vibrato à la Harry James, Buchanan antecipou uma tendência do jazz moderno que consiste em moderar o vibrato, a velá-lo, até mesmo a suprimí-lo, para manter apenas uma leve ornamentação ao final da emissão. Miles estudou também com o primeiro trompetista da Orquestra Sinfônica de Saint Louis, Joseph Gustat, “o guru do trompete do Meio-Oeste”. As pessoas vinham de longe para consultá-lo (Bix Beiderbecke visitou-o em 1926, sendo seguido por personalidades como Dizzy Gillespie ou Buddy Childers, primeiro trompete de Stan queremos miles

Kenton). Inúmeros trompetistas locais foram orientados por ele, de Levi Madison a Clark Terry, passando por Harold Baker. Todos usavam a embocadura que ele indicava e que foi criada para o fabricante Frank Holton por Gustav Heim, um dos predecessores de Gustat à frente da seção de trompetes da Sinfônica de Saint Louis em 1904 e 1905. Ela se caracteriza por um metal muito fino com pouca massa, um bocal de profundidade média, mas em forma de V (e não de C, como de costume) e um pequeno diâmetro do orifício pelo qual o sopro sai do bocal. Segundo Clark Terry, essa embocadura contribuiu para caracterizar o estilo de Saint Louis e, em especial, o de Miles Davis. De qualquer modo, ela favorece a plenitude do som em detrimento da facilidade de emissão no agudo. Miles, que a trazia constantemente consigo, mesmo quando estava sem o trompete, procurou durante toda a sua vida obter cópias da embocadura Heim. De fato, se ela causou as dificuldades que ele tinha no registro agudo no início de sua carreira, Miles também deve àquela sonoridade sedosa e cantante que fez tanto sucesso.

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RIMEIROS PASSOS. Miles economizava para comprar os discos usados das jukeboxes. Ele não desprezava os músicos brancos, cujas grandes orquestras estavam em voga desde o sucesso de Benny Goodman no rádio em 1935. Apreciava Buddy Rich (virtuoso baterista branco, especialista em big bands, em plena ascensão a partir de 1938), Helen Forrest (cantora branca que sucedeu a Billie Holiday na grande orquestra de Artie Shaw em 1938, antes de passar para a de Benny Goodman). Evidentemente, ele também escutava a música negra: Louis Armstrong, sempre obrigatório, ou o maestro Erskine Hawkins, com quem aprendeu o solo de trompete com a gravação de 1939 “Tuxedo Junction”. Logo, seu


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Harold “Shorty” Baker (foto n°1 em pé à extrema direita, em 1932) com os Crackerjacks do pianista Eddie Johnson, Levi Madison (n°2, na segunda fileira, terceiro a partir da esquerda, em 1936), com os Original Saint Louis Crackerjacks e o maestro George Hudson (n°3, em pé, ao centro, de terno escuro, por volta de 1945), foram alguns dos mais notáveis nomes da escola de trompete de Saint Louis. Clark Terry (n°3, agachado, terceiro a partir da esquerda) foi um dos últimos representantes e mentor de Miles Davis em sua adolescência.

interesse se voltou para os músicos das planícies da região central do país (Kansas, Oklahoma, Missouri) que anunciavam a revolução bebop que surgia no horizonte nos anos 1940. O saxofonista Lester Young era o mais velho deles. Sua descontração, seu sentido de espaço e sua atenção à melodia foram uma influência determinante para Miles. O trompetista também se interessou por Charlie Christian, que revolucionou a guitarra juntamente com Benny Goodman entre 1939 e 1941. Por volta de 1938 e 1939, Miles viu tocar aquele que levou o contrabaixo de jazz à maturidade, o contrabaixista Jimmy Blanton, que Duke Ellington não demorou a recrutar quando estava de passagem por Saint Louis. No início dos anos 1940, Miles Davis começou a ouvir falar de Charlie Parker, apelidado de “Bird”, que se tornaria o líder do bebop. Dois músicos locais foram importantes em seu desenvolvimento. A partir de 1940, o trompetista Clark Terry o orientou, o acompanhou e o apresentou às jam sessions que faziam sucesso na cidade. Por volta de 1942, Miles começou a frequentar a casa do pianista Emmanuel St. Claire Brooks, apelidado de “Duke” por seu conhecimento da música de Ellington. Segundo Miles, ele já tocava como Bud Powell, futuro astro do bebop, mas outros relatos diziam que tocava também como Art Tatum e Nat King Cole — o primeiro, precursor do piano bebop; o segundo, prenúncio dos pianistas que Miles iria privilegiar nos anos 1950. Brooks deu aulas de piano e de harmonia ao trompetista. Com ele e o baterista Nick Haywood, Miles montou um trio que se inspirou no de Benny Goodman. Aos 16 anos, Miles conheceu Irene Cawthon, que se tornou sua companheira. Ela acreditou no talento dele, sustentou-o, mesmo reprovando-o por tocar com a boca do instrumento orientada para o solo, de modo a se ouvir melhor, hábito que ele manteve por toda a vida. Ela o incentivou a se associar ao sindicato dos músicos e a trabalhar com os Blue Devils de Eddie Randle, importante orquestra de Saint Louis que se apresentava no Rhumboogie. Jimmy Forrest,

Jimmy Blanton, Clark Terry e Levi Madison faziam parte dela. Futuro arranjador com Count Basie, Ernie Wilkins lhes deixou algumas de suas primeiras partituras e, segundo Miles, um dos saxofonistas, Clyde Higgins, já tocava como Charlie Parker. De qualquer modo, foi com a esposa dele, Mabel Higgins, pianista da orquestra, que o trompetista aprofundou seus conhecimentos de harmonia. Com as turnês que passavam por Saint Louis, ele tocou com Lester Young e com os pioneiros do bop: os trompetistas Howard McGhee e Fats Navarro, o saxofonista Sonny Stitt e até mesmo o próprio Charlie Parker. A admiração de Miles por este último preocupou Eddie Randle e fez com que ele aconselhasse Miles a não sacrificar sua bela sonoridade pela virtuosidade que caracterizava a vanguarda da época. O chefe dos Blue Devils confiou-lhe a responsabilidade de organizar os ensaios da orquestra. Aos 16 anos, Miles era diretor musical de uma das principais orquestras da cidade. Ele ia para o trabalho ao volante do carro de seu pai, vestido com um dos dez ternos que comprou nos Brooks Brothers, inspirando-se no estilo de Fred Astaire e do duque de Windsor. Elegante, mas não necessariamente na moda! Sonny Stitt tentou, mas a Sra. Davis proibiu Miles de abandonar os estudos antes de ter obtido um diploma. Ela queria enviá-lo para a Universidade Fisk, famosa universidade negra de Nashville que mantinha um departamento musical de excelente reputação e onde já estudava sua filha Dorothy. Mas Miles só tinha um desejo: ir para Nova York. Irene, que estudava dança desde os 7 anos, tinha o sonho de dançar na companhia de Katherine Dunham, líder da escola coreográfica americana. Ela pressionou Miles para que se informasse a respeito dos requisitos de inscrição na célebre Escola Juilliard de Música. O nascimento de Cheryl em junho de 1944 colocou fim aos projetos pessoais da jovem. Dessa vez, foi o doutor Davis que se recusou a dar ao filho a autorização legal para que ele se casasse com a jovem, que vinha de família mais humilde.


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19 Os Blue Devils do trompetista Eddie Randle (à direita) eram a orquestra do Rhumboogie, situado no Elks Club em Saint Louis. Embora fosse o mais jovem da formação, Miles Davis (na segunda fileira à direita) tornou-se diretor musical, encarregado de organizar os ensaios.

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HEGA O BOP! No início do verão de 1944, Miles, aos 18 anos, deixou pela primeira vez Saint Louis com uma orquestra de Nova Orleans, os Six Brown Cats de Adam Lambert. Ele voltou à cidade em julho, bem a tempo de presenciar a chegada da big band do cantor e trompetista Billy Eckstine, formada por astros do bebop e que tinha Dizzy Gillespie como diretor musical, Charlie Parker, Lucky Thompson, Gene Ammons e Leo Parker na seção de saxofones, Art Blakey na bateria, assim como a cantora e pianista Sarah Vaughan. No Club Plantation, reservado aos brancos, os músicos da orquestra desobedeceram aos códigos raciais e Billy Eckstine foi obrigado a levar seu grupo para o clube negro da cidade, o Riviera. Foi lá que Dizzy Gillespie reparou em Miles, que assistia aos ensaios com o estojo de trompete à mão, e propôs que substituísse Buddy Anderson, que ficara doente. O jovem tocou a parte do trompete, mas não impressionou. Quando a orquestra partiu para Chicago, Dizzy Gillespie e Charlie Parker acabaram por convencê-lo de que seu futuro estava em Nova York. Pois, se os primeiros sinais do bebop surgiram, em parte, nas grandes cidades do Meio-Oeste americano, era em Nova York que o novo estilo estava florescendo. As preocupações que acompanharam o surgimento do bop foram variadas. O contexto social influenciou bastante. A comunidade negra preparava-se para participar de um conflito armado a serviço de uma nação que pouco reconhecera sua presença como combatentes no front da Primeira Guerra Mundial. Em 1941, o líder negro Philip A. Randolph chegou a ameaçar o governo federal com uma marcha a Washington se os negros fossem afastados da nova fonte de emprego resultante do setor de armamentos. Em um clima de fortes tensões raciais que provocaram os tumultos de Detroit e do Harlem em 1943, uma nova geração negra questionava-se sobre seu destino e sua cultura. Os


Reunindo os melhores do novo estilo, a orquestra do cantor Billy Eckstine (abaixo) fez uma parada em Saint Louis durante o verão de 1944. Programada inicialmente para o Club Plantation, a big band teve de passar para um outro clube, o Riviera, depois de alguns músicos terem causado uma série de incidentes destinados a provocar a direção do clube que, como demonstram as ilustrações de caráter racista dos menus, praticava a segregação. Miles Davis conheceu assim Dizzy Gillespie e Charlie Parker (ao lado, entre Lucky Thompson e Billy Eckstine), as duas figuras principais do bebop, pelos quais ele conservou uma profunda admiração da qual encontramos um eco, quatro décadas depois, no tríptico Horn Players (1983) do pintor Jean-Michel Basquiat (página da direita).



22 Ao chegar a Nova York no outono de 1944, Miles Davis manteve contato com os principais representantes do bebop, cuja virtuosidade ele admirava, especialmente trompetistas como Howard McGhee (ao lado, em 1947). Foto: William P. Gottlieb

músicos negros deixaram de desempenhar o papel de fornecedores de entretenimento para os Estados Unidos brancos. Alguns aspiravam a ser considerados como criadores autênticos e desdenhavam as estantes das grandes orquestras de baile. Eles gostavam de se encontrar na madrugada, depois de seus compromissos regulares, para experimentar um novo repertório, em que as canções da Broadway eram substituídas por melodias abstratas. Suas harmonias enriquecidas por inúmeras tensões e dissonâncias convidavam os improvisadores a inventar linhas angulosas e quebradas que relançavam permanentemente os acentos polirítmicos da bateria. À virtuosidade harmônica e rítmica unia-se uma técnica instrumental surpreendente, ilustrando a rapidez dos andamentos, a extensão dos registros e o choque de sonoridades. Ao sentimentalismo dos padrões da comédia musical, o bop opunha uma música nervosa, explosiva e sem concessões. Enquanto em Nova York os Estados Unidos descobriam uma elite artística que enfim se afastava da Europa, com John Cage, Jackson Pollock e Merce Cunningham, nos clubes do Harlem e de Manhattan (especialmente na Rua 52), os boppers ofereciam à comunidade negra sua primeira avant-garde, pela qual Miles Davis desenvolveu um verdadeiro fascínio.

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M BURGUÊS EM NOVA YORK. Miles desembarcou em Nova York no final de setembro de 1944, com a ajuda do pai que sustentou seus estudos na Escola Juilliard. Uma de suas primeiras preocupações foi descobrir onde poderia cavalgar. Podemos entender por que esse jovem burguês provinciano que desembarcava na boêmia do bebop novaiorquino foi de encontro muitas vezes à incompreensão do meio. Depois de passar uma semana no Hotel Claremont, recomendado pela escola, Miles mudou-se para a Rua 149, para um conjugado encontrado pelo pai, suficientemente grande para que ele pudesse alugar um piano. Com uma mesada paterna de 40 dólares por semana, ele tinha meios para se alimentar e se deslocar de táxi.

queremos miles

Charlie Parker logo soube como lucrar com a generosidade desse privilegiado. Em dezembro, a Sra. Davis aceitou a guarda de Cheryl, e Miles instalou-se com Irene em um apartamento na Rua 147, alugado a Bob Bell, um guitarrista de Saint Louis. Ele e sua esposa receberam o jovem casal, convidando-os ao restaurante que dirigiam, levando-os a passear de carro e aos cursos e oferecendo um emprego de caixa para Irene. Miles dedicou-lhes “Sippin’ at Bells” de 1947. Parker dividia um quarto com o baterista Stan Levey no mesmo prédio. Por gostar da comida de Irene, ele aparecia regularmente no apartamento de Miles que, no entanto, tentava manter sua companheira afastada do estilo de vida dos boppers. Após a volta de Irene a Saint Louis no verão de 1945, Miles passou a morar com Stan Levey, que não compreendia esse jovem pedante e desempregado que usava roupas de Brooks Brothers e cujos estudos, em uma escola da qual ele nunca ouvira falar, eram pagos pelo pai. Miles falou muito mal do ensino na Juilliard. Entretanto, ele obteve bom aproveitamento nos cursos individuais de William Vacchiano, trompetista da Filarmônica de Nova York que tinha entre seus alunos Mercer Ellington, filho de Duke, entre 1938 e 1950, e muito mais tarde, Wynton Marsalis. Em Saint Louis, Miles havia adquirido o hábito de encomendar partituras e métodos instrumentais ou teóricos. Em Nova York, ele emprestava partituras de Stravinsky, de Berg e de Prokofiev e, quando ia escutar música clássica, levava a partitura para seguí-la durante o concerto. Ele também olhava com desdém a falta de cultura e de curiosidade de seus colegas negros. Mas ele percebia que a música negra não recebia a consideração merecida na Juilliard e se mantinha afastado dos alunos brancos. Progressivamente, suas notas caíram. Ao final do primeiro ano de estudos, ele deveria se matricular nos cursos de recuperação de verão, mas disse ter passado os olhos no programa em um único dia (análises do Requiem de Mozart e da Kleine Kammermusik para quinteto de metais de Hindemith). No início de 1945, ele foi a Saint Louis para explicar ao pai por que não retornaria à Juilliard.


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Durante algum tempo chamada de Swing Street, a parte oeste da Rua 52 em Manhattan concentrava, em meados dos anos 1940, os principais clubes de jazz fora do Harlem. Divididos entre tradicionais e modernos, nem todos estavam dispostos a receber os boppers, temendo que as asperezas de sua música espantassem uma clientela que ia até lá, principalmente, para se divertir, jantar e beber. Onyx, Club

Down Beat, Spotlite e Three Deuces eram os mais favoráveis à novidade do bebop. Em seguida, o Royal Roost, autoproclamado “The Bopera House” (situado na esquina da Rua 47 e da Broadway), o explícito Bop City (na Rua 49) e, a partir de 1949, o Birdland, cujo nome vem do apelido de Charlie Parker (na Rua 52), foram os templos do jazz modernos nos quais Miles Davis tocava frequentemente.



Miles Davis reintegrou o quinteto que Charlie Parker (ao centro) formou em 1947, depois de sair do hospital psiquiátrico de Camarillo (Califórnia) e de voltar a Nova York. O pianista Duke Jordan (de costas), o contrabaixista Tommy Potter (à esquerda) e o baterista Max Roach (encoberto) constituíam a base desse grupo que tocava no Three Deuces, na Rua 52.



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Miles Runs the Voodoo

Down The Sorcerer, Prince of Darkness, Dark Magus. Miles Davis é o anjo negro do jazz, repleto de uma aura de mistério fascinante, inacessível, tendo provado os extremos. Ele se estabelece como uma força oculta alquimista que se transmuta em música-presságio do futuro do jazz, mestre vodu iniciando o jazz ao mundo paralelo. Miles Runs The Voodoo Down. Em 1969, o ano da virada elétrica, obviamente fascinado pelo Voodoo Child de Jimi Hendrix, Miles ressalta em uma faixa o lado dark de sua música. A música de Miles Davis é negra não porque ela canta uma negritude, mas porque ela absorve e rejeita um certo brilho que o jazz carrega desde o início. Da irradiação, solar e magistral de Louis Armstrong, a pulsão alegre do swing de Count Basie, a obra serena e majestosa de Duke Ellington, todos aqueles que o precederam, Miles Davis coloca em oposição uma arte que procura entender os campos obscuros, transforma o tocar em um drama e perverte as regras conscientemente. Ao contrário do que já se ouvia, ele imprime em sua música o frescor do cool, a dramaturgia flamenca, a disfunção medida das formas, as misturas que desagradam, as pulsações que açoitam. Com um empenho decididamente autêntico que consegue acarretar aqueles que os acompanham. A maioria destes - com algumas notáveis exceções (John Coltrane, Bill Evans, Wayne Shorter) – parece, uma vez afastados de seu controle, escapar a este lado obscuro e recuperar o território mais iluminado. Miles, por sua vez, continua a se orientar em direção ao que não existe, o que não tem lugar, o que não é legítimo: ele acredita na capacidade do jazz de se metamorfosear. Embora sempre retornando a ele, Miles Davis se recusou a dialética do blues, o sofrimento transmutado em lamentos, a condição dolorosa ultrapassada pelo canto. Na Juilliard School, ele zomba de uma professora, explicando que ele, filho de boa família, a quem nunca faltou nada, pode muito bem tocar o blues. Ele tem esse orgulho de pensar que o jazz não para nos portões de sua comunidade e se queremos miles

Vincent Bessières recusa o considerar como uma linguagem acabada, uma ginástica virtuose, uma arte que tem seus códigos fechados. Ao longo de sua carreira Miles foi atravessado pelo desejo aparentemente contraditório de não afastar-se de sua origem musical e a angústia de encontrar-se nela enclausurado. Para ele, a genialidade caracteriza-se na invenção constante de novas perspectivas e, por isso, Miles Davis, retorna ao jazz. Ele mostra o seu avesso como em um jogo de espelhos em que domina o que deles se reflete. Quando a música tende para a repetição, ele busca a sua oposição. Criança, ele cresceu ao som da formação swing, mas com a adolescência, passa a sonhar com o frenesi do bebop. Fortalecido por Bird e Dizzy Gillespie, constrói uma orquestra que surpreende pela doçura de sua sonoridade e a leveza de seus arranjos. O cool floresce? Ele afunda na bruma do w, abraça a música áspera de Thelonious Monk, vai procurar os tenores loucos de Sonny Rollins e de John Coltrane. As linhas do jazz tradicional o enfadam, os caminhos “normais” e pré-definidos o chateiam, ele tenta evitá-los, utiliza os padrões modais como forma de erguer-se acima da multidão. Ele abandona o Rolls Royce da rítmica pelo nervosismo de uma Ferrari que não perdoa erros de pilotagem. O segundo quinteto é esta enorme bola de fogo através da qual Miles encontra o gosto pelo risco e a emoção que isso traz. E, no entanto, as liberdades e as iniciativas desta atitude dão lugar a um caldo sulfúrico, com músicas de climas saturados de eletricidade e dilacerados por guitarras distorcidas. Mais uma vez, Miles oscila. A pulsação do funk volta a tornar-se o coração palpitante da música, envolvido nos ritmos da diáspora africana em um entrelaço sonoro que Miles atravessa com seu trompete ligado na wah-wah. O que fazer depois de tanto barulho? Miles opõe o silêncio à avalanche de som. Quando ele retorna, é para tocar cantigas e canções. Ele acredita em sintetizadores e máquinas, depois de ter tido os melhores músicos ao seu lado, Marcus Miller prova-lhe que não está


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necessariamente errado. E quando o pop começa a tomar conta, ele vai se conectar com o som da rua antecipando assim a reconciliação do jazz com o hip hop. Miles Davis impõe o movimento ao jazz o que é para ele tanto sorte quanto acaso, pois invalida qualquer noção de “tradição” em favor de uma única crença: o jazz nunca deve voltar atrás, a não ser na hora da sua morte. Essa ideia não é do agrado de todos. É a antítese do conforto, da rotina, das pequenas satisfações. Por isto, poucos atingem a sua grandeza. Este é o seu drama. Miles acostumou o jazz à revolução. Miles Davis fornece um exemplo ainda pior, uma vez que persiste como inesgotável. Sua sombra paira sobre o jazz do século XXI, perpetuado por aqueles que o conheceram e que são agora grandes figuras da nossa época, mas também por todos os músicos que trazem consigo uma parte de seu patrimônio artístico. Multíplice, a sua música irradia o campo do jazz uma vez que os caminhos que ele abriu são muitos e frutuosos. As percepções de uma obra no noneto de Birth of Cool modelaram os arranjos para uma formação média e permitiram que instrumentos até então ausentes das orquestras de jazz fossem integrados. O disco Prestige é uma bíblia para todos aqueles que continuam, meio século depois, a explorar as virtudes das normas e cultivam a expressividade nos arquétipos da forma. Kind of Blue abriu passagem para além dos horizontes do jazz, a moda de sua utilização é agora comum. Favorecendo a sugestão, a economia, a escolha das notas, o domínio do tempo e do espaço, o intérprete de canções que foi Miles, deu a sua legitimidade a uma linha “alternativa” da do trompete, recusando a ostentação e o brilho que eram o padrão que dominava aos que tocavam este instrumento. As cores da orquestra de Gil Evans transformaram a forma de se escrever para a big band, dissimularam os contornos, ampliaram a paleta, distenderam a harmonia. A “liberdade controlada” do segundo quinteto tornou-se referência para o jazz contemporâneo que na prática, individual e coletivamente, em função das personalidades desse grupo era

reconhecido pelo seu justo valor. Além disso, ela deu origem a um nova possibilidade do jazz, a conversão de Miles para a eletricidade impôs aos trompetistas a ambivalência de seu instrumento, tanto que a maioria sente-se no dever de mostrar as duas faces, uma acústica, outra “ligada”. As sobreposições de polirritmias dos anos afro-funk antecipam uma cultura cujas medidas complexas não podem ser dissociadas do groove, que alimenta parte da reflexão sobre as formas de trabalho no jazz de hoje, enquanto o uso do wah-wah aplicado ao trompete inspirou músicos, nas fronteiras do jazz e da eletrônica, para quem a frase conta menos que a textura ou o modelo das sonoridade totalmente transformado pela eletricidade. As reprises dos anos pop introduziram a idéia de ir buscar no repertório ao redor novos sucessos e demonstrar que as máquinas poderiam ser usadas para orquestrar todo um universo de som. Embora não findado, o encontro com o hip hop antecipou uma tendência natural para uma aproximação com o jazz, que desde então resultou em muitas tentativas de hibridação. É claro, Miles Davis não é o único herói do jazz, nem a figura titular de uma música que continua a ser partilhada entre o seu passado glorioso e o desejo de inventar-se um futuro. Mas é o exemplo que logo volta quando o conservadorismo e as dúvidas se instalam. Todo mundo gosta do Miles; pode-se, mesmo, não gostar de tudo do Miles. Além do arquetípico do músico cool, distante, elegante, sem concessão, Miles incorpora um modelo de audácia e de invenção. Miles Davis é o jazz. Miles Davis é uma lenda. Ambos se contemplam há quase três quartos de século. Um não caminha sem o outro, não é concebível sem o outro. No mais intimo do que é o jazz, o confronto de vozes individuais na meada do século, Miles Davis afirmou uma singularidade, que além das emoções que ela nos traz, é exemplar. Mas Miles Davis, é um e múltiplo, personalidade dupla como gostava de enfatizar, assunto nunca esgotado, sua percepção foge sempre aos que tentam circunscrevê-lo. A exposição We want Miles não é exceção. Só pode ser uma homenagem entre tantas a um artista.




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