O SOCIAL EM TEMPOS DE INCERTEZA

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tempos de incerteza

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ISBN 978-85-9493-106-1

Georges

Balandier

Edgard de Assis Carvalho é professor titular de antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (puc-sp) e coordenador do Núcleo de Estudos da Complexidade.

Se hoje vivemos o crescimento vertiginoso e aparentemente irrevogável de um modelo social pautado na velocidade e na ausência de reflexão, este livro nos convida a buscar uma harmonia possível a partir da compreensão das dinâmicas sociais da contemporaneidade. Por meio de reflexões e crônicas escritas nos anos 1990, Georges Balandier nos leva a dialogar com pensadores que forjaram a espinha dorsal das ciências sociais, como Karl Marx, Émile Durkheim, Max Weber, seus herdeiros e dissidentes, apresentando análises sobre as incertezas causadas pela urgência da vida cotidiana, cada vez mais associada à percepção do efêmero e ao fim das esperanças.

Georges Balandier  O social em tempos de incerteza

para que a uniformização da globalização não tome conta de tudo e de todos. A tríade fundadora – Durkheim, Max Weber e Karl Marx – tem de ser constante e criticamente revisitada para iluminar o sentido do presente. O que está em jogo é o predomínio da razão diante da polifonia de afetos, emoções, desejos, faltas. Empiria ou teoria, eis a questão. A pergunta O que é a sociologia? permanece em aberto. É preciso transgredir para abalar o conforto das certezas. O pensamento sistêmico avançou, mas o sistemismo emperrou a complexidade das análises e impediu a compreensão dos conflitos, contradições e paradoxos. E o que a antropologia tem a ver com tudo isso? O conflito parental entre Durkheim, falecido em 1917, e Marcel Mauss, seu sobrinho, ilumina a questão. A revolta de Mauss propiciou uma abertura dos fatos sociais para outros territórios disciplinares, como bem percebeu Claude Lévi-Strauss. A etnografia deixou de ser o cerne ou o charme da antropologia, como já foi afirmado. Era preciso interpretar. Roger Bastide, Gregory Bateson, Jack Goody que o digam. Incertezas admitidas, certezas restauradas. Nesses tempos sombrios de sobremodernidade – conceito de Marc Augé tantas vezes referido nas duas partes –, o retorno aos clássicos é mais que necessário, desde que suas ideias sejam oxigenadas pelas temporalidades e por movimentos históricos contemporâneos. A totalidade é a não verdade, jamais se resume à soma das partes, não é uma “feira de interpretações”, ironiza Balandier. É, isso sim, uma narrativa que pensa o mundo como um todo sempre instável, bifurcado, indeterminado. Daí surge o entrelace necessário com a filosofia. O mundo contém esferas naturais, sobrenaturais, sagradas e mitológicas a serem exploradas. Não podem mais ser encaradas como expressões da desrazão ou da irracionalidade, como pretendem alguns. O reconhecimento do espaço do político e da natureza do poder requer uma crítica do “provincialismo ocidental”, tema este que será amplamente desenvolvido em seu último livro publicado em 2015, curiosamente intitulado Em busca do político perdido.

A trajetória do pensador multidisciplinar Georges Balandier (1920-2016) é marcada por uma pluralidade rara nos domínios da fragmentação dos saberes, os quais, cada vez mais, apostam na especialização e na disciplinaridade. Em 1954, ele destronou a característica funcional da antropologia da época com a publicação de Sociologia atual da África Negra, a partir de sua pesquisa no Congo-Brazaville. A noção de situação colonial envolvia um amplo e desigual circuito de dominação que requeria uma visão sócio-histórica das partes envolvidas. Os processos de descolonização desencadeados a partir da independência da Argélia, em 1962, são exemplos cabais dessa mutação. E isso é válido também para os latino-americanos, igualmente colonizados, que presenciaram uma ampla destruição de seus patrimônios culturais ancestrais, desfigurados pela violência mimética da colonização ibérica. A bibliografia de Balandier inclui 27 livros, além de trabalhos que envolvem ficção, multimídia, crítica, organização de coletâneas, participação no comitê editorial do legendário Cahiers Internationaux de Sociologie, este último de 1965 a 2012. Originalmente publicado em 2013 na França, O social em tempos de incerteza faz um balanço de ideias, esperanças, utopias, desacordos e desafios de Balandier. Trata-se de uma homenagem, um reconhecimento tardio à grandeza de seu pensamento. Dividido em duas partes: a primeira, que leva o nome do livro, contém onze ensaios de amplo espectro, que nos levam aos territórios por vezes áridos das ciências humanas, a seus fundadores, às bases filosóficas das ciências sociais. São 52 textos agrupados em nove macrotemas; a segunda – Crônicas – inclui artigos e resenhas publicados no Le Monde, que podem ser lidos ao sabor do desejo do leitor. Há destaques importantes. Jean-Jacques Rousseau é um deles, pois seu pensamento está inexoravelmente ligado à política. Fonte constante da desigualdade dos homens, ela amplia exclusões, mal-estares. Com suas máquinas inteligentes e saberes globalizados, a desregulação tomou conta do planeta, e a governança caiu nas mãos dos tiranos da sociopolítica. Essa constatação do autor requer, porém, um retorno histórico ao Iluminismo e, claro, a Émile Durkheim, o grande educador da República, responsável pelo advento da Sociologia como ciência. É preciso resolver antagonismos e contradições entre autonomia privada e pertencimentos comunitários,

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SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli Edições Sesc São Paulo Gerente Iã Paulo Ribeiro Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Cristianne Lameirinha, Clívia Ramiro, Francis Manzoni Produção editorial Maria Elaine Andreoti Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel

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Georges Balandier O social em tempos de incerteza tradução André Telles

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Título original: Du social par temps incertain © Presses Universitaires de France/Humensis, 2013 © Edições Sesc São Paulo, 2019 Todos os direitos reservados Tradução André Telles Preparação José Ignacio Mendes Revisão Edgard de Assis Carvalho, André Albert Projeto gráfico, capa e diagramação Bloco Gráfico

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) B182s Balandier, Georges O social em tempos de incerteza: Georges Balandier; Tradução de André Telles. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019, 352 p. isbn 978-85-9493-106-1 1. Ciências sociais. 2. Antropologia. 3. Crítica social. 4. Epistemologia. i. Título. ii. Telles, André. cdd-301

Edições Sesc São Paulo Rua Serra da Bocaina, 570 – 11º andar 03174-000 – São Paulo SP Brasil Tel. 55 11 2607-9400 edicoes@edicoes.sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes  /edicoessescsp

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I. O SOCIAL EM TEMPOS DE INCERTEZA O caminho da ciência  10 Ciências do social, crítica social  18 A trilogia fundadora  23 Herdeiros e dissidentes  29 Origem sociológica da antropologia  41 Clássicos, menos clássicos  58 Tempo e imaginário  69 Em torno do sagrado  81 Figurações do político  96 Desafios e riscos  115 Fim do percurso  135 II. CRÔNICAS Ciências do social, crítica social  140 Gabriel Tarde, o sociólogo redescoberto  141 Dura, dura, a crítica social  145 A trilogia fundadora  148 Max Weber ou o desencantamento em ação  149 Max Weber faz o contorno pela China  153 A sociologia subversiva de Georg Simmel  157 Herdeiros e dissidentes  162 A renovação sociológica  163 Peritos do social  167 O desafio de Bourdieu  171 Norbert Elias caçador de mitos  175 O testamento de Norbert Elias  179 A obra revisitada  183 A visão paradoxal de Yves Barel  186 Origem sociológica da antropologia  191 O sobrinho de Durkheim  192 Margaret Mead e Gregory Bateson: a antropologia como paixão  196 Bastide e Devereux, na fronteira dos saberes  200 O antropólogo confesso  202 À flor das palavras  205 O rito e a festa segundo Turner  210 A provocação do barroco  213 Alhures, longe da modernidade  217 A antropologia como gaio saber  220

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Clássicos, menos clássicos  224 A natureza em todos os seus estados  225 O imaginário extramuros  228 Um antropólogo em busca do tempo perdido  232 Ernesto de Martino, um decifrador de crises  236 A última aventura do capitão Cook  240 Falas indígenas, narrativas de vida  243 Tempo e imaginário  247 A lentidão perdida  248 Sensual e sonhadora sociologia  251 O romance noir de Los Angeles  254 Lugares e não lugares  258 Ficções de crise  261 A era dos aniversários  265 Em torno do sagrado  269 A sombra de Deus?  270 O preço da transcendência  273 As Andaluzias de ontem e de amanhã  276 Os arredores do sagrado  279 Os veiculadores do sobrenatural  282 Profetas como “antropólogos”  287 Figurações do político  291 O pensamento político encadeado  292 O incômodo sr. Strauss  295 O Estado esclarecido pela Razão  300 A democracia, precisamente  303 O uso político das paixões  307 As recomposições da memória  310 Visões dos desfavorecidos  314 Desafios e riscos  319 O poder domesticado  320 Pensar a aids  324 O explorador de rostos  327 Palavras de disputa e palavras de amor  330 Um drama sociológico com múltiplos personagens  334 O indivíduo como produto social  337 Bibliografia  341 Índice onomástico  347

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Nota à edição brasileira Especialista nos estudos sobre a África negra, o antropólogo e sociólogo francês Georges Balandier é também um dos primeiros estudiosos a pensar a temporalidade social nas sociedades modernas. Este livro, concebido em sua homenagem, reúne reflexões somadas a crônicas publicadas na imprensa francesa ao longo dos anos 1990. Balandier dialoga com grandes mestres das ciências sociais, como Jean-Jacques Rousseau, Karl Marx, Émile Durkheim, Max Weber, entre outros fundadores, herdeiros e dissidentes desse campo de conhecimento. Observa as relações sociologia-antropologia, o tempo e o imaginário, o sagrado, as figuras do político, os riscos e desafios em uma sociedade em constante ebulição. Ao falar das incertezas na virada do milênio, observa a sujeição dos indivíduos ao regime de urgência, à vida regida pela velocidade em contraponto à permanência e à reflexão. Caberia pensar de que forma o cenário posto pelo autor se transformou diante do hipercontrole produzido pelas mídias sociais e da submissão do homem aos avanços tecnológicos, que, à medida em que se autodepreciam, exigem substituição imediata, tornando impossível não só a ideia de satisfação, como também a de completude. Apesar da distância temporal que separa esta publicação de seu contexto original, não se pode ignorar que O social em tempos de incerteza permite melhor compreensão das dinâmicas sociais do tempo presente. Este é o intuito das Edições Sesc ao publicar estas reflexões de Georges Balandier.

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Com origens remotas, quase imemoriais, a ciência social floresce, na era moderna, nos séculos da ciência triunfante: fim do século XVIII e, sobretudo, ao longo do XIX. As raízes crescem robustamente no solo e sob o sol das filosofias. As da antiguidade, a grega em primeiro lugar: Platão engendra Aristóteles, fundador tardio do Liceu, onde exibe sua cultura enciclopédica; Sócrates fustiga os sofistas, dedicando-se à educação filosófica dos jovens e estabelecendo uma moral “liberada”; Heráclito, o Obscuro, ao conceber o eterno devir, submete as temporalidades humanas ao fogo da dialética. A capacidade de pensar o homem e seu lugar, os poderes e o nascimento da democracia, é conquistada por etapas na sucessão das escolas filosóficas. Cada período da história da filosofia provê referências de que irão alimentar-se, no começo, o pensamento e, depois, a ciência do social. De Montaigne e Maquiavel até o período do Iluminismo, quando os “philosophes” analisam os progressos do espírito humano e reúnem os saberes e técnicas na Enciclopédia, tornando-se dinâmicos reveladores do novo curso da História. Com eles, conduz-se a reviravolta das revoluções de todas as ordens. Tem início o recenseamento dos povos descobertos e dos países explorados, abrindo o acesso a outras realizações da sociedade humana. Os ofícios e as artes se casam por vizinhança na Enciclopédia. As figuras do homem não “teológico” formam-se nas práticas revolucionárias, depois democráticas. Dois séculos, o XVII e o XVIII, atravessam igualmente a filosofia inglesa. Hobbes identifica a sociedade civil, as formas da autoridade, nomeia as questões da violência. Hume, que Rousseau acompanha na Inglaterra, propõe uma epistemologia social, uma ética das ciências humanas, uma teoria das normas e dos valores. Locke elabora uma concepção empirista do conhecimento, identifica processos do entendimento humano, sacode o contrato social contrapondo-lhe os direitos naturais do indivíduo. É, no entanto, via Montesquieu, após sua viagem à Inglaterra e sua adesão a Locke, inspirador de uma teoria

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da separação dos poderes, que a conexão francesa se manifesta plenamente. Ele é visto como um dos fundadores da sociologia, antes de a disciplina ser batizada. Inspira especialistas em direito constitucional e dos profissionais que se reportam a O espírito das leis, inaugurador das teorias da equidade e defensor rigoroso do respeito aos direitos individuais, vem a ser o precursor de uma sociologia não nomeada – o que Durkheim reconhece desde o começo de suas próprias pesquisas. O “ilustre Montesquieu” analisa as leis que regulam os fenômenos sociais, abrindo ao mesmo tempo canteiros de obras então menos reconhecidos, mas que voltariam à atividade. Uma sociologia das paixões, dos afetos, do prazer, que alia a tipologia dos “regimes” à da paixão. Uma reflexão sobre a decadência, constituindo-se no historiador que considera as “causas da grandeza dos romanos e de sua decadência”. Uma demonstração dos elos necessários entre a filosofia e a análise social, entre o trabalho de escritor e o pensamento da sociedade. A obra de Montesquieu não evita a força das fórmulas expressivas, por meio de uma exigência de escrita às vezes abrupta. Dois “philosophes”– segundo a denominação da época – assumem igualmente o ofício de escritor: Rousseau e Diderot. Os sociólogos iniciadores clássicos fazem do primeiro o pai real de sua disciplina; o segundo os desconcerta. O contrato social inspira, o Suplemento à viagem de Bougainville desorienta, como uma espécie de exotismo. As filiações permanecem incertas, às vezes desconcertantes. Não admira o estudo que coloca Segalen, autor do Ensaio sobre o exotismo, na companhia de Diderot; a coleção Terre Humaine, aliás, acolheu o primeiro em seu seio. Em contrapartida, Lévi-Strauss, etnólogo e antropólogo, reconhece uma dívida total para com Rousseau. Uma relação estabelecida na conivência filosófica, na solidariedade pela escrita, na partilha de uma teoria do homem em geral (não de todos os homens em sua diversidade) e do social. A lógica rousseauísta alimenta com sua seiva a lógica formal e certos conceitos do estruturalismo antropológico,

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como a paixão musical compartilhada, engendra afinidades pessoais reforçando-as. Rousseau promove duas das aberturas que dão acesso à modernidade. De um lado, ao descobrir que tudo está “radicalmente ligado” à política, essa governanta da História até as últimas décadas do século XX. A política em sua tradução econômica, mediante a qual se desvela “a fonte da desigualdade entre os homens” (tema do segundo Discurso). De outro lado, a crítica do progresso das ciências e das artes, em suas traduções práticas e aparentes que engendram o mal social, uma forma de “depravação” (tema do primeiro Discurso). Trata-se de desconstruir as aparências, fontes do mal social, e traçar o caminho da verdade, que é o da virtude. Nesse embate, a exigência filosófica desvia do erro, dos fingimentos, das aparências, ajuda a alcançar a verdade. É essa a condição em que O contrato social se inspira para pensar o “homem civil” tal como pode ser, considerando o homem tal como é. O movimento científico, com seus avanços rápidos, é reconhecido, mas sua potência negativa continua, mesmo assim, em debate. A ciência forma-se num contexto em que as técnicas em expansão começam a se estabelecer, entre a confiança dos enciclopedistas e a dúvida dos filósofos, para quem a fascinação do “progresso” já presente cega para o mal social. A transmissão do saber e do conhecimento e a educação em geral tornam-se o foco de paixões contrárias e violentas. O Emílio, de Rousseau, que o constitui em origem de uma futura ciência da educação, a qual deveria engajar-se radicalmente no plano político, é denunciado pela Sorbonne, condenado pelo Parlamento e pelo arcebispo de Paris. Decretada sua prisão, Rousseau é obrigado a fugir para o principado de Neuchâtel. A revolução pela educação é combatida pelos dois poderes (eclesiástico e político) como causa de subversão, revolução dos espíritos e, mais além, da sociedade. Esses poderes sabem que a filosofia pode desestabilizá-los e que a ciência pode contribuir para a emancipação dos

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indivíduos. Destroem a dupla ameaça com a violência do fogo, espetacularizada com fogueiras: em Genebra, primeiro, onde o Contrato e o Emílio são queimados pelo carrasco assim que publicados; depois, em diversas capitais europeias, onde os autos de fé suprimem os exemplares de O contrato social, enquanto Rousseau, em sua correspondência, finge a satisfação de saber que aqueles fogos “brilham em sua homenagem”. O século XVIII francês é um desfecho e, ao mesmo tempo, a aurora da modernidade e do exercício democrático. Não é redutível ao recenseamento dos saberes e práticas por parte dos enciclopedistas, a essa recapitulação exaustiva condenada pelo poder após ter buscado encarcerar Diderot em Vincennes. A atmosfera intelectual prepara a era das revoluções, cuja consumação interminável-inacabada, não obstante passível de ser imitada no exterior, a Revolução Francesa mostrará. É a ilustração do “tudo está ligado à política”, até o rompimento que derruba o Regime ainda estabelecido. A revolução, generalizada metaforicamente pelo jogo de linguagem, estende-se ao movimento dos saberes, das técnicas e de seus instrumentos, dos costumes e das instituições. O progresso é visto sob o aspecto das conquistas reconhecidas como um conjunto, o das batalhas levadas às fronteiras do impossível a fim de nelas provocar um recuo. Ele aponta para o fim de uma era teológica, o nascimento de uma era da razão governada pela filosofia e sua reivindicação da verdade, pelo conhecimento técnico e sua busca de eficácia. É o pensamento objetivo que permite denunciar as aparências “mundanas”, é a ciência que fornece a dupla capacidade do conhecer e do fazer, o que D’Alembert assinala no “Discurso preliminar” escrito para a Enciclopédia. Esse poder, negado e combatido pelo pensamento teológico, tampouco é reconhecido fora dele sem debate ou contestação. Uma questão atormenta, a questão das formas e dos meios do ato de conhecimento: o que é conhecer? É nas imediações dos enciclopedistas, principalmente de

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Rousseau e Diderot, que Condillac escreve seu Ensaio sobre a origem dos conhecimentos humanos e seu tratado das sensações. É um estudo renovado não só dos procedimentos elementares como também das ideias, a partir das quais o conhecimento se forma graças às operações mentais complexas cuja causa são as sensações. Ele não esboça apenas a antecipação do método experimental. A linguagem intervém. Ela serve de fundamento, de suporte ao pensamento abstrato e reflexivo. A lógica linguística ainda está incipiente na procura dos significantes linguísticos, no reconhecimento da necessidade de uma “língua benfeita”. Essas breves incursões no século ajudam a revelar o que está em jogo sob as Luzes. A função da filosofia, parteira dos pensamentos novos e da autonomia, libertadora da ação política. A filosofia, fértil como nunca o foi o trabalho do espírito humano, engendra o que vai advir das ciências no século seguinte. Muita coisa nasce desses germes: a ideia de sociedade e o saber que a dissocia da dependência teológica e, depois, do psicologismo; a economia como ciência da natureza e da causa das riquezas; o conhecimento político que diferencia a soberania (princípio do Estado) do governo (forma da administração do Estado). A questão das línguas leva a tratar do que mais tarde se forma como conhecimento linguístico conceitualizado e organizado. A instrução, transmissão dos saberes sobre as coisas e sobre o homem, é subordinada à educação, aquisição dos meios do estar-junto e preparação para o estado de cidadão. Donde resulta a iniciação democrática, regularmente retomada, assim como a “transmissão”, passagem ao saber e ao conhecimento. Por exemplo, a ciência da educação vindoura será política por natureza e, por conseguinte, vigiada pelos poderes. O fim político do Antigo Regime é acompanhado por uma ruptura total, da qual as ciências extrairão todo seu impulso no século seguinte. É Voltaire que, num modo a princípio menor, aponta essa passagem de uma era a outra, confere-lhe um rosto e ganha popularidade por isso. É quem melhor resume, após

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sua estada na Inglaterra e o convívio com Locke, a força de criatividade da época, manifestando seu apreço pelos princípios do liberalismo inglês. A variedade de seus talentos se impõe, a começar pelo de historiador e observador dos costumes. Designam-no “o homem universal”, mas ele se pretende acima de tudo escritor, divulgador de suas próprias ideias filosóficas por meio de “contos”, bem como comentador dos fatos da época – entre os quais o terremoto que devastou Lisboa em 1755. Dos poemas aos relatos, às obras dramáticas, dos escritos críticos aos panfletos, nenhum gênero resiste à sua paixão de escrever, de desconstruir pela ironia e o humor, pelo culto da tolerância, o que faz dele uma grande figura do engajamento de alto risco. Voltaire é para nós o mais contemporâneo dos filósofos do século XVIII francês, a despeito de uma parcela de concessões mundanas e cinismo cúmplice com seu “século de ferro”. Foi quem soube denunciar, testemunhar, rechaçar, atacar e explorar o que seu tempo concebe e o que se anuncia. Nesse sentido, é quem revela melhor o que é comum ao seu século e ao nosso. Em primeiro lugar, a mudança de era, a série de rupturas e abolições, a sucessão dos começos, que fará alguém dizer que a Revolução nunca “termina”. Ela não é a única a manifestar a generalização desse estado de inacabamento, de canteiro de obras onde se pensam novas formas de vida e instituições. O século seguinte se anuncia, será o do movimento permanente em busca de outro regime político por meio das revoluções, de uma expansão do poder sobre o mundo, da materialidade via as técnicas, do progresso do espírito humano mediante o advento das ciências e a propagação dos saberes. Esse movimento alimenta a exaltação da civilização, dá razão a Voltaire, não a Rousseau, crítico do progresso e da “depravação” que ele engendra. Uma civilização que, não obstante, logo inverterá suas aparências, simulando justificar as dominações coloniais modernas. As semelhanças com a época contemporânea inauguram-se então com a mudança de era, não mais sob o

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efeito do “tudo político” e sim do “tudo tecnocientífico”, novo esteio da economia financeira. Um movimento que conduziu a outra mundialização graças à desmaterialização “digital” do mundo, propícia a outra forma de expansão das violências desigualitárias. É um mundo onde as incertezas se reforçam ao se acumularem, onde nada parece resistir. Toda possibilidade de fazer parece dissolver-se pela incapacidade de ter controle suficiente sobre o curso das coisas, experimentadas em estado de contínua desconstrução-reconstrução. Todos os controles revelam-se imperfeitos: a natureza se desnatura, as técnicas escapam frequentemente ao domínio de seus idealizadores, o poder político torna-se incapaz de governar sem ser por “governança” e a economia em crise regride em violências concorrentes e sem regulação; a instrução difunde novos instrumentos, mas ainda procura seu conteúdo, enquanto a crença desmorona, entregue a emoções oportunistas. O aturdimento no século traduz-se numa profusão de imagens, falas, discursos e informações, numa dominação por máquinas inteligentes e seus saberes conjugados.

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Georges

Balandier

Edgard de Assis Carvalho é professor titular de antropologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (puc-sp) e coordenador do Núcleo de Estudos da Complexidade.

Se hoje vivemos o crescimento vertiginoso e aparentemente irrevogável de um modelo social pautado na velocidade e na ausência de reflexão, este livro nos convida a buscar uma harmonia possível a partir da compreensão das dinâmicas sociais da contemporaneidade. Por meio de reflexões e crônicas escritas nos anos 1990, Georges Balandier nos leva a dialogar com pensadores que forjaram a espinha dorsal das ciências sociais, como Karl Marx, Émile Durkheim, Max Weber, seus herdeiros e dissidentes, apresentando análises sobre as incertezas causadas pela urgência da vida cotidiana, cada vez mais associada à percepção do efêmero e ao fim das esperanças.

Georges Balandier  O social em tempos de incerteza

para que a uniformização da globalização não tome conta de tudo e de todos. A tríade fundadora – Durkheim, Max Weber e Karl Marx – tem de ser constante e criticamente revisitada para iluminar o sentido do presente. O que está em jogo é o predomínio da razão diante da polifonia de afetos, emoções, desejos, faltas. Empiria ou teoria, eis a questão. A pergunta O que é a sociologia? permanece em aberto. É preciso transgredir para abalar o conforto das certezas. O pensamento sistêmico avançou, mas o sistemismo emperrou a complexidade das análises e impediu a compreensão dos conflitos, contradições e paradoxos. E o que a antropologia tem a ver com tudo isso? O conflito parental entre Durkheim, falecido em 1917, e Marcel Mauss, seu sobrinho, ilumina a questão. A revolta de Mauss propiciou uma abertura dos fatos sociais para outros territórios disciplinares, como bem percebeu Claude Lévi-Strauss. A etnografia deixou de ser o cerne ou o charme da antropologia, como já foi afirmado. Era preciso interpretar. Roger Bastide, Gregory Bateson, Jack Goody que o digam. Incertezas admitidas, certezas restauradas. Nesses tempos sombrios de sobremodernidade – conceito de Marc Augé tantas vezes referido nas duas partes –, o retorno aos clássicos é mais que necessário, desde que suas ideias sejam oxigenadas pelas temporalidades e por movimentos históricos contemporâneos. A totalidade é a não verdade, jamais se resume à soma das partes, não é uma “feira de interpretações”, ironiza Balandier. É, isso sim, uma narrativa que pensa o mundo como um todo sempre instável, bifurcado, indeterminado. Daí surge o entrelace necessário com a filosofia. O mundo contém esferas naturais, sobrenaturais, sagradas e mitológicas a serem exploradas. Não podem mais ser encaradas como expressões da desrazão ou da irracionalidade, como pretendem alguns. O reconhecimento do espaço do político e da natureza do poder requer uma crítica do “provincialismo ocidental”, tema este que será amplamente desenvolvido em seu último livro publicado em 2015, curiosamente intitulado Em busca do político perdido.

A trajetória do pensador multidisciplinar Georges Balandier (1920-2016) é marcada por uma pluralidade rara nos domínios da fragmentação dos saberes, os quais, cada vez mais, apostam na especialização e na disciplinaridade. Em 1954, ele destronou a característica funcional da antropologia da época com a publicação de Sociologia atual da África Negra, a partir de sua pesquisa no Congo-Brazaville. A noção de situação colonial envolvia um amplo e desigual circuito de dominação que requeria uma visão sócio-histórica das partes envolvidas. Os processos de descolonização desencadeados a partir da independência da Argélia, em 1962, são exemplos cabais dessa mutação. E isso é válido também para os latino-americanos, igualmente colonizados, que presenciaram uma ampla destruição de seus patrimônios culturais ancestrais, desfigurados pela violência mimética da colonização ibérica. A bibliografia de Balandier inclui 27 livros, além de trabalhos que envolvem ficção, multimídia, crítica, organização de coletâneas, participação no comitê editorial do legendário Cahiers Internationaux de Sociologie, este último de 1965 a 2012. Originalmente publicado em 2013 na França, O social em tempos de incerteza faz um balanço de ideias, esperanças, utopias, desacordos e desafios de Balandier. Trata-se de uma homenagem, um reconhecimento tardio à grandeza de seu pensamento. Dividido em duas partes: a primeira, que leva o nome do livro, contém onze ensaios de amplo espectro, que nos levam aos territórios por vezes áridos das ciências humanas, a seus fundadores, às bases filosóficas das ciências sociais. São 52 textos agrupados em nove macrotemas; a segunda – Crônicas – inclui artigos e resenhas publicados no Le Monde, que podem ser lidos ao sabor do desejo do leitor. Há destaques importantes. Jean-Jacques Rousseau é um deles, pois seu pensamento está inexoravelmente ligado à política. Fonte constante da desigualdade dos homens, ela amplia exclusões, mal-estares. Com suas máquinas inteligentes e saberes globalizados, a desregulação tomou conta do planeta, e a governança caiu nas mãos dos tiranos da sociopolítica. Essa constatação do autor requer, porém, um retorno histórico ao Iluminismo e, claro, a Émile Durkheim, o grande educador da República, responsável pelo advento da Sociologia como ciência. É preciso resolver antagonismos e contradições entre autonomia privada e pertencimentos comunitários,

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