O teatro dos mortos

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Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo, na área de dramaturgia, e crítico de teatro da revista Cult.

Em O teatro dos mortos: introdução a uma filosofia do teatro, Jorge Dubatti discorre sobre o teatro como experiência de perda e o sentimento criado pela impossibilidade de capturar o acontecimento teatral. As teatralidades contemporâneas aqui presentes são resultado de mais de 20 anos de atuação de Dubatti na pesquisa científica, experimental e teórica acerca da filosofia teatral. Sob a perspectiva do teatro latino-americano, o autor apresenta o avanço da filosofia do teatro tanto na questão epistemológica quanto na reformulação de certos núcleos fundamentais da teatrologia. Além disso, amplia o campo da estética teatral ao esmiuçar a relação do teatro com o ser e a própria linguagem.

introdução a uma do teatro Jorge Dubatti O Teatro dos Mortos filosofia

objetivo maior é o de escrutinar a relação da arte de Dionísio com a totalidade do mundo, no conjunto dos demais entes e acontecimentos, resgatando desse modo as bases de sua essência filosófica que a teoria teatral não considerou como suficiente, segundo as palavras do próprio autor. A partir do pressuposto de que o teatro só pode ser compreendido por meio de sua prática específica, localizada, Jorge Dubatti – conhecido também, dentre as inúmeras atividades que realiza por dirigir a Escuela de Espectadores de Buenos Aires – defende a ideia de que a filosofia do teatro é, a rigor, uma filosofia da práxis teatral. Isso o leva em O teatro dos mortos a conduzir o leitor pelo pensamento das práticas teatrais, pelo exame de tais práticas em contraste com a teoria e pela revisão das bases epistemológicas dessas teorias que nos ajudam a pensar o teatro cientificamente. Dividido em oito alentados capítulos, o livro tem a bem-vinda ousadia de lançar por suas duas centenas de páginas uma série de perguntas radicais que pretendem levar todo amante do teatro a se comportar como um filósofo do teatro. “Penso o teatro, logo, existo”, eis a inevitável proposição com a qual, aqui, iremos nos defrontar.

Jorge Dubatti O Teatro dos Mortos Introdução a uma filosofia do teatro

os últimos anos, a bibliografia sobre teatro que tem chegado ao mercado editorial brasileiro vem crescendo expressivamente, não somente em termos da quantidade de títulos lançados, ou mesmo relançados, mas também em relação à grande variedade de temas e de abordagens que pautam tais publicações. Houve um tempo em que os livros sobre a velha arte que, na cultura ocidental, remonta aos gregos, se resumiam, basicamente, à publicação de peças, de memórias de grandes atores e diretores e de coletâneas de artigos de teor historiográfico ou crítico. Hoje, tal panorama mudou, insuflado, sobretudo, pelos estudos da teoria teatral, que, gestados quase sempre junto à vida universitária, ganham as prateleiras de livrarias e bibliotecas, convertendo-se rapidamente em obras de referência, seja para artistas e pensadores do teatro, em caráter restrito, seja para todo e qualquer amante dessa manifestação milenar, em âmbito geral. Inserindo-se na ainda pouco conhecida área da teatrologia (isto é, o conjunto das disciplinas científicas que estudam de “forma rigorosa, fundamentada e coerente” os problemas ligados à arte da cena), o trabalho do crítico, historiador e professor argentino Jorge Dubatti, da Universidade de Buenos Aires, chega pela primeira vez ao público de língua portuguesa por meio do lançamento de O teatro dos mortos, que faz circular entre nós as mais do que bem-vindas ideias latino-americanas sobre o teatro. Eminente pesquisador de filosofia teatral, Dubatti vem contribuindo de modo decisivo para o debate acerca de questões essenciais para o entendimento das chamadas teatralidades contemporâneas, como as relações e diferenças entre convívio e tecnovívio; a construção da ausência e da presença no teatro e as formas de perda, luto e memória plasmadas em torno dele; as contribuições do pensamento teatral para a epistemologia do “teatrar”; a fenomenologia do acontecimento teatral; e as bases científicas para o trabalho do ator. Pode-se dizer que O teatro dos mortos constitui um ainda raro espécime de filosofia do teatro, cujo


Jorge Dubatti


O Teatro dos Mortos Introdução a uma filosofia do teatro


serviço social do comércio Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli Edições Sesc São Paulo Gerente Marcos Lepiscopo Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Francis Manzoni, Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha Produção editorial Ana Cristina Pinho Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel



© Jorge Dubatti, 2016 © Edições Sesc São Paulo, 2016 Todos os direitos reservados Tradução Sérgio Molina Preparação Elen Durando Revisão Lígia Gurgel, Viviane Zeppelini Projeto gráfico e capa Victor Burton Diagramação Victor Burton / Natali Nabekura Ilustrações do miolo Hans Vredeman de Vries (1527 – 1607), retiradas da publicação Perspective, publicada em fac-símile em 1968, por Dover Publications, New York. Foto de capa gguy44/iStock Título original El teatro de los muertos: introducción a una filosofía del teatro

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Dubatti, Jorge O teatro dos mortos: introdução a uma filosofia do teatro / Jorge Dubatti; Tradução de Sérgio Molina. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2016. – 204 p. il. Bibliografia ISBN 978-85-69298-89-2 1. Artes cênicas. 2. Teatro. 3. Teatrologia. 4. Filosofia do teatro. 5. Pesquisa em teatro. I. Título. II. Teatro dos mortos. III. Molina, Sérgio. CDD 792

Edições Sesc São Paulo Rua Cantagalo, 74 – 13º/14º andar 03319-000 – São Paulo SP Brasil Tel. 55 11 2227-6500 edicoes@edicoes.sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes /edicoessescsp


Apresentação Danilo Santos de Miranda 8 Prefácio Beth Néspoli 10 Introdução Pensamento teatral cartografado, razão pragmática, pergunta epistemológica 14 1. O teatro como acontecimento 24 2. Poiesis teatral, poética, corpos poéticos 46 3. Teatro/arte, ciências do teatro/da arte e epistemologia 74 4. O artista-pesquisador, o pesquisador-artista, o artista e o pesquisador associados, o pesquisador participativo: filosofia da práxis teatraL 92 5. Convívio e tecnovívio: entre infância e babelismo 128 6. O teatro dos mortos: teatro perdido, luto, memória do teatro. Problemas epistemológicos 138 7. Excepcionalidade do acontecimento: máxima concretização da teatralidade singular do teatro 160 8. A construção científica do ator a partir de uma filosofia do teatro: rumo a um ator filósofo 174 referências Bibliográficas 181 Sobre o autor 202


Apresentação Um olhar acurado para o teatro DANILO SANTOS DE MIRANDA Diretor Regional do Sesc São Paulo


A experiência teatral demanda o aperfeiçoamento contínuo do olhar. As perguntas e conhecimentos formulados na área da teatrologia são amiúde repensados e construídos sobre novas bases. É nessa direção que a filosofia do teatro procura explorar novas possibilidades de concepção das artes cênicas. Em O teatro dos mortos, Jorge Dubatti assume a constante mudança de referenciais e a necessidade de repensar os instrumentos de análise nos estudos sobre o teatro. Para ele, “é preciso aceitar o teatro como experiência de perda”, daí o título dessa obra que se inscreve no campo epistemológico das pesquisas sobre as artes cênicas. Essa operação coloca em perspectiva as bases científicas de entendimento do teatro, no sentido de viabilizar um pensamento científico rigoroso nesse campo. Dubatti dá início às suas reflexões reconhecendo os fracassos e limites da filosofia na compreensão dos espetáculos. Persiste na tarefa de desestabilização das formas tradicionais ou supostamente eficazes da teatrologia, a fim de sugerir ou abrir espaço para novos referenciais. A revisão teórica proposta pelo autor é talvez a sua maior contribuição para o teatro. O pensamento de Jorge Dubatti tem sido amplamente difundido por sua atuação como crítico e historiador teatral argentino, dedicando-se à pesquisa acadêmica nas áreas de filosofia do teatro e do teatro comparado, além do mapeamento crítico da produção cênica contemporânea. Entre a universidade e os espaços de debate e apresentação teatral, o autor tem difundido suas ideias por meio de artigos, conferências e pelas relações que mantém com pesquisadores e dramaturgos. O presente livro, inédito no Brasil e no exterior, apresenta a sua filosofia de forma introdutória, com o objetivo de divulgar as suas teorias junto ao público brasileiro. A publicação desse livro inédito faz parte das iniciativas do Sesc São Paulo na valorização das artes cênicas, também realizada pela programação regular de teatro em suas unidades, em festivais como o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, e parcerias como a MIT – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, entre outras ações de estímulo à criação teatral e à formação de plateias.

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PREFÁCIO BETH NÉSPOLI Crítica teatral e doutora em artes cênicas pela USP


Meu contato inicial com o pensamento de Jorge Dubatti se deu em Salvador, em 2012, quando ele foi um dos palestrantes do I Colóquio Internacional Teorias da Recepção: Abordagens sobre a Relação da Obra de Arte/Espectador, promovido pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia. Pesquisadores das Américas e da Europa participaram dos cinco dias do encontro, e suas intervenções renderam notas preciosas à então doutoranda. Porém, no percurso daquela jornada intelectual, o modo como Dubatti dispensou mesa e microfone e desceu do tablado para se dirigir ao auditório no mesmo plano em que este estava, atitude aliada à clareza com que enunciava argumentos complexos, produziu uma qualidade de interação até hoje impregnada em minha memória afetiva. A partir de então, passei a perseguir seus escritos e penso que o verbo é adequado, tal a dificuldade de encontrá-los. Não havia traduções para o português e, mesmo em espanhol, era praticamente impossível adquirir suas obras nas livrarias nacionais. Ausência no mínimo intrigante, sobretudo quando se sabe da vastíssima bibliografia – que o leitor poderá constatar nas notas referenciais – desse crítico e teórico, incluindo os três volumes de Filosofia do teatro, sua obra mestra, entre outros estudos específicos. Bastará a leitura da introdução deste estudo que agora tem em mãos para o leitor compreender que aquela atitude de horizontalidade era coerente com a valorização do convívio como um dos elementos constituintes do arcabouço teórico que Dubatti vem elaborando há décadas. A proximidade corporal favorecia a concentração necessária ao compartilhamento dos fundamentos do ambicioso projeto de construção de uma ciência do teatro, no tempo reduzido de uma palestra. Empenho similar moveu a escrita deste O teatro dos mortos, o primeiro livro a ser lançado no Brasil. Em lugar da tradução de um volume, que seria sempre um fragmento de um pensamento em processo, Dubatti preferiu uma síntese, um desenho de grandes traços. A opção, como na palestra, foi a de apresentar ao leitor brasileiro os pontos centrais de uma abordagem filosófica que tem como singularidade tomar o acontecimento teatral – territorial, presencial, convivial, efêmero – como ponto de partida da elaboração teórica. Não há acaso nessa operação conceitual. Trata-se de um conjunto de ideias forjado no campo de tensão da práxis teatral na Argentina. Particularidade que, por afinidade cultural, produz reflexões com evidentes pontos de convergência com o panorama da cena brasileira. Alguns deles podem ser detectados de forma muito clara, por exemplo, no quarto capítulo, que analisa a multiplicação dos espaços universitários dedicados à arte neste início do século XXI, assim como a atividade do artista-pesquisador e do pesquisador-artista em contraponto à

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figura do cientista não artista. Também é possível estabelecer conexões entre o chamado teatro independente, o movimento de resistência à ditadura e suas fricções com a cena no período posterior ao fim do regime militar argentino. Nos três primeiros capítulos, o autor expõe a base do sistema teórico, não sem antes revelar as inquietações de origem provocadas por algumas afirmações circulantes, como “tudo é teatro” ou “o teatro morreu”, ressonâncias nem sempre conscientes da crítica ao espetáculo realizada pelo escritor francês Guy Debord. A distinção hierarquizada e de viés excludente entre “representação” e “presentação” também afligia Dubatti. Problemas estes que o conduziram à interrogação fundamental de sua filosofia – “o que é teatro?”. Essa grande e simples pergunta o levará à abordagem de cunho ontológico dessa arte que possibilitará delimitar o “ente” ou o “ser teatro” e, consequentemente, à formulação de uma definição apoiada na tríade: convivência, poiésis, expectação. Cada um desses três termos será destrinçado em argumentação conectada com a zona de experiência e subjetivação que o acontecimento cênico propõe e, importante ressaltar, em estreito diálogo com outros pensadores. Assim, são acionadas as vozes de teatristas (termo que ele prefere por abarcar dramaturgos, diretores e atores) argentinos como Ricardo Bartís, Mauricio Kartun, Rafael Spregelburd, Javier Daulte, Eduardo Pavlovsky, e também de outras nacionalidades como espanhol Juan Mayorga, o inglês Peter Brook, o mexicano Luis de Tavira, o chileno Ramón Griffero e o brasileiro Augusto Boal, só para citar alguns. De modo similar, incorpora à argumentação ideias já sedimentadas, colhidas de teóricos amplamente conhecidos, desde o contemporâneo francês Patrice Pavis até Aristóteles e sua Poética. Evidentemente, é possível problematizar pontos da teoria exposta neste livro, cujo título é referência à efemeridade do ato teatral, e o autor é o primeiro a fazê-lo. Porém, urge esse aporte polifônico vindo das vozes que brotam diretamente da cena latino-americana, com suas especificidades. Não só os estudos, mas também os processos de criação podem sair ganhando com a generosidade deste autor que elabora em “convivência” o texto do presente volume, inédito e escrito para o Brasil. Quiçá o primeiro de muitos outros.

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Introdução Pensamento teatral cartografado, razão pragmática, pergunta epistemológica O já mal visto se ameniza ou mal revisto se anula. A cabeça trai os traidores olhos e a traidora palavra suas traições. Única certeza a bruma. — Samuel Beckett Descobrir é ver de outro modo o que ninguém percebeu […] Compreender não é descobrir fatos nem extrair inferências lógicas, muito menos construir teorias, é simplesmente adotar o ponto de vista adequado para apreender a realidade. — Ricardo Piglia É preciso aprender a ver para aprender a amar. — Maurice Maeterlinck


Por que O teatro dos mortos como título? Porque acredito que esse nome encerra a definição mais difícil de aceitar, mas que é preciso, nos estudos teatrais: a do teatro como experiência da perda. Esse e outros conceitos aqui abordados guardam íntima relação com as minhas pesquisas em filosofia do teatro, a partir das quais foi possível avançar tanto na questão epistemológica, isto é, no problema da produção de conhecimento científico sobre teatro e nos desafios desse processo, como na reformulação de certos núcleos fundamentais da teatrologia1. Entre eles, podemos citar: o artista-pesquisador, o pensa- 1. Identificamos com esse mento teatral e suas contribuições para um conheci- nome as ciências do teatro, ou seja, o conjunto das mento específico do “teatrar” do teatro; as relações e disciplinas científicas que estudam de forma rigorosa, diferenças entre convívio e tecnovívio; o teatro perfundamentada e coerente os dido, o luto, a memória do teatro e a construção da problemas ligados a ele. ausência e da presença no teatro; a excepcionalidade 2. Hoje a teatrologia do acontecimento, entendida como máxima concreti- argentina vive uma etapa de transição para uma zação da singularidade do teatro; e aproximações com maior adequação, mas não é demais ressaltar que o uma nova construção científica do ator. desajuste segue evidente em A filosofia do teatro implica uma mudança de persdiversas práticas teóricas, pectiva teórica que permite a reconsideração de todos metodológicas e analíticas. 3. Recorde-se a expressão de os principais temas da teatrologia a partir de outro ânMauricio Kartun: “O teatro gulo de construção científica. Ela nasceu há mais de teatra”. Cf. “El teatro teatra”, dez anos como uma forma de ajustar a teoria, a meto- in: Jorge Dubatti, El teatro teatra: nuevas orientaciones dologia e a análise às demandas e exigências da práxis en teatrología. Bahía Blanca: teatral e sua observação2. Trata-se de uma disciplina EdiUNS, 2009. científica inserida no campo maior das ciências da arte que procura esmiuçar a relação do teatro com a totalidade do mundo no conjunto dos demais entes e acontecimentos, recuperando assim as prerrogativas de sua essência filosófica que a teoria teatral não assumiu o suficiente. Ela perscruta a relação do teatro com o ser, com a realidade e os objetos reais, com os entes ideais e virtuais, com a vida como ente metafísico, com a linguagem, com os valores, com a natureza, com Deus, os deuses e o sagrado. Acredito que, diante das perguntas radicais sobre o “teatrar”3, todo amante do teatro torna-se um filósofo do teatro. Em O teatro dos mortos, ressalta-se que o estudo teatral exige consciência da base epistemológica que determina os marcos, as capacidades e as limitações diante do objeto de estudo. As bases epistemológicas são plurais, e a

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escolha de uma delas é um exercício de responsabilidade do pesquisador em relação à construção científica do teatro que realiza. Como veremos, a pergunta epistemológica refere-se principalmente à tomada de posição ontológica sobre o teatro. Assim, nossa concepção de teatro já está inscrita nos termos técnicos com os quais trabalhamos. 4. Algumas dessas referências constam Na filosofia do teatro, as noções de acontecimento, na bibliografia ao fim “o teatro sabe” e “o teatro teatra”, função ontológica e deste volume. 5. Sobre meu conceito de existência, práticas teatrais e pensamento teatral, pro“teatro dos mortos”, cf. Jorge blematicidade do teatro em suas tensões e intercâmbios Dubatti, “La representación com outros usos da teatralidade, doxa teatral, teatro de los desaparecidos en el teatro de la postdictadura”, perdido, luto e ignorância, bem como a distinção entre Segundo Congreso de Salud razão lógica e razão pragmática, determinam uma base Mental y Derechos Humanos, Buenos Aires: Universidad epistemológica que exige um novo modelo de pesquiPopular Madres de Plaza sador participativo. Essa base é diferente da de outras de Mayo, 2003; El teatro disciplinas científicas dedicadas aos estudos teatrais e, sabe: la relación escena/ conocimiento en once dadas suas características peculiares, pode ser definida ensayos de teatro comparado, e incorporada pela filosofia do teatro. Buenos Aires: Atuel, 2005; Alguns conteúdos de O teatro dos mortos foram par“De cómo cambiar el signo de lo real”, in: Rodolfo cialmente antecipados em diversos contextos acadêmicos Braceli, Vincent, te espero e jornalísticos, em artigos ou conferências, especialmente desnuda al final del libro: poemanovela, casiteatro, no Brasil4. Contudo, é neste livro que tais conteúdos são Buenos Aires: Galerna, desenvolvidos de forma mais completa e acabada, como 2008, pp. 155–157; “Por qué o conceito de “teatro dos mortos”, por exemplo, que vem hablamos de Postdictadura 1983–2008”, La Revista del sendo trabalhado há mais de vinte anos5. CCC, Buenos Aires: 2008, n. 4; Estas humildes páginas não pretendem fazer filoso“Los muertos que regresan”, Artez, Bilbao: 2010, n. 175, fia ou constituir-se em um tratado filosófico, mas abrir pp. 70–71; “El teatro de los novas possibilidades para a teatrologia, abordando promuertos”, Ñ, Buenos Aires: blemas filosóficos inevitáveis. Estou convencido de que 15 out. 2011, n. 420, p. 35; “Los hechizados, versión a filosofia do teatro contribuiu para uma reformulação libre de Lástima que sea una da teatrologia a partir da concepção do teatro como puta de John Ford”, Tiempo Argentino, Suplemento acontecimento e da pergunta pela relação ontológica do Cultura, Buenos Aires: 8 dez. teatro com o mundo; da caracterização dos subaconte2013, p. 7. cimentos do convívio, da poiesis e da expectação6; do 6. O termo “expectação” é utilizado aqui no sentido de reconhecimento de saberes específicos: “o teatro sabe”, contemplação daquilo que “o teatro teatra”; da tríade representação-apresentaçãoé exposto ou apresentado ao público, isto é, o ato sentação e da proposta de uma filosofia da práxis teatral, de espectar, a prática do do fazer e do pensamento sobre o fazer que delineiam espectador. [N.T.] outro tipo de posicionamento científico em relação ao

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teatro. Adentramos, pois, uma mina cujo veio é insondável e exigirá muitos anos de trabalho e amplos desenvolvimentos. Defendo firmemente que o teatro só pode ser entendido por meio da observação de sua práxis singular, territorial, localizada, e da 7. Cf. Nicolas Bourriaud, valorização de uma razão dessa práxis. A filosofia do Radicante, Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2009. teatro é uma filosofia da práxis teatral. Daí resulta sua 8. Cf. Blanco nocturno, Buenos tripla necessidade: pensar as práticas e o pensamento Aires: Anagrama, 2010, p. 143. 9. “Mal visto mal dicho”, in: teatral a seu respeito; confrontar as teorias disponíveis Relatos, Barcelona: Tusquets, com as práticas e elaborar novas teorias a partir das 1997, pp. 225–250. 10. Cf. Laura Cerrato, “La observações sobre as práticas, isto é, de uma atitude Posmodernidad y una 7 radicante ; rever as bases epistemológicas das teorias estética del fracaso”, in: com que pensamos o teatro e elaboramos construções Beckett: el primer siglo, Buenos Aires: Colihue, 2007, científicas sobre ele. pp. 17–26. Como se afirma no fragmento do romance de Ricardo Piglia8 reproduzido como epígrafe desta introdução, não se trata tanto de “descobrir”, mas de adequar o olhar àquilo que acontece no teatro, àquilo que há no teatro ou existe enquanto tal nas dinâmicas do campo teatral. Trata-se de um princípio necessário de regresso ao realismo para o olhar científico sobre o teatro, mesmo que isso implique aceitar a perda. Nesse sentido, se não se adequar o olhar com teorias, ferramentas e uma base epistemológica pertinente e ajustada ao acontecimento teatral, tudo o que se disser sobre o teatro entrará, parafraseando Samuel Beckett, na rubrica do “Mal visto mal dito”9. A teoria da existência como percepção e linguagem, que o dramaturgo define como uma cadeia de “traições”, talvez seja, para nós, a crítica mais profunda e certeira a uma limitação do teatro à sua parca face semiótica. Se para Beckett o mundo é ilegível, e seu sentido, inalcançável10, a filosofia do teatro não se resigna a assumir essas traições nem acredita que devam ser aceitas como justificativa para uma mera anarquia de observações sem regras ou, em termos mais informais, da “qualquercoisologia” que prosperou internacionalmente na crítica, na pesquisa e nas salas de aula durante as décadas do neoliberalismo selvagem e que influenciou o mundo acadêmico de forma tão nefasta, evidenciando hoje suas consequências. Quem controla cientificamente a qualidade da produção da teatrologia na Argentina? Como e com que critérios se faz isso? Não se trata, ao menos neste livro, de aceitar que se veja mal para dizer mal, com a justificativa absurda de que a ciência é “uma forma de ficção”, argumento que ouvimos com estarrecedora frequência, tampouco de aceitar que se diga mal como uma via de “libertação” ou “emancipação” de subjetividades, amparadas no fato de a arte não admitir conhecimento científico e

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Welington Andrade é doutor em literatura brasileira pela Universidade de São Paulo, na área de dramaturgia, e crítico de teatro da revista Cult.

Em O teatro dos mortos: introdução a uma filosofia do teatro, Jorge Dubatti discorre sobre o teatro como experiência de perda e o sentimento criado pela impossibilidade de capturar o acontecimento teatral. As teatralidades contemporâneas aqui presentes são resultado de mais de 20 anos de atuação de Dubatti na pesquisa científica, experimental e teórica acerca da filosofia teatral. Sob a perspectiva do teatro latino-americano, o autor apresenta o avanço da filosofia do teatro tanto na questão epistemológica quanto na reformulação de certos núcleos fundamentais da teatrologia. Além disso, amplia o campo da estética teatral ao esmiuçar a relação do teatro com o ser e a própria linguagem.

introdução a uma do teatro Jorge Dubatti O Teatro dos Mortos filosofia

objetivo maior é o de escrutinar a relação da arte de Dionísio com a totalidade do mundo, no conjunto dos demais entes e acontecimentos, resgatando desse modo as bases de sua essência filosófica que a teoria teatral não considerou como suficiente, segundo as palavras do próprio autor. A partir do pressuposto de que o teatro só pode ser compreendido por meio de sua prática específica, localizada, Jorge Dubatti – conhecido também, dentre as inúmeras atividades que realiza por dirigir a Escuela de Espectadores de Buenos Aires – defende a ideia de que a filosofia do teatro é, a rigor, uma filosofia da práxis teatral. Isso o leva em O teatro dos mortos a conduzir o leitor pelo pensamento das práticas teatrais, pelo exame de tais práticas em contraste com a teoria e pela revisão das bases epistemológicas dessas teorias que nos ajudam a pensar o teatro cientificamente. Dividido em oito alentados capítulos, o livro tem a bem-vinda ousadia de lançar por suas duas centenas de páginas uma série de perguntas radicais que pretendem levar todo amante do teatro a se comportar como um filósofo do teatro. “Penso o teatro, logo, existo”, eis a inevitável proposição com a qual, aqui, iremos nos defrontar.

Jorge Dubatti O Teatro dos Mortos Introdução a uma filosofia do teatro

os últimos anos, a bibliografia sobre teatro que tem chegado ao mercado editorial brasileiro vem crescendo expressivamente, não somente em termos da quantidade de títulos lançados, ou mesmo relançados, mas também em relação à grande variedade de temas e de abordagens que pautam tais publicações. Houve um tempo em que os livros sobre a velha arte que, na cultura ocidental, remonta aos gregos, se resumiam, basicamente, à publicação de peças, de memórias de grandes atores e diretores e de coletâneas de artigos de teor historiográfico ou crítico. Hoje, tal panorama mudou, insuflado, sobretudo, pelos estudos da teoria teatral, que, gestados quase sempre junto à vida universitária, ganham as prateleiras de livrarias e bibliotecas, convertendo-se rapidamente em obras de referência, seja para artistas e pensadores do teatro, em caráter restrito, seja para todo e qualquer amante dessa manifestação milenar, em âmbito geral. Inserindo-se na ainda pouco conhecida área da teatrologia (isto é, o conjunto das disciplinas científicas que estudam de “forma rigorosa, fundamentada e coerente” os problemas ligados à arte da cena), o trabalho do crítico, historiador e professor argentino Jorge Dubatti, da Universidade de Buenos Aires, chega pela primeira vez ao público de língua portuguesa por meio do lançamento de O teatro dos mortos, que faz circular entre nós as mais do que bem-vindas ideias latino-americanas sobre o teatro. Eminente pesquisador de filosofia teatral, Dubatti vem contribuindo de modo decisivo para o debate acerca de questões essenciais para o entendimento das chamadas teatralidades contemporâneas, como as relações e diferenças entre convívio e tecnovívio; a construção da ausência e da presença no teatro e as formas de perda, luto e memória plasmadas em torno dele; as contribuições do pensamento teatral para a epistemologia do “teatrar”; a fenomenologia do acontecimento teatral; e as bases científicas para o trabalho do ator. Pode-se dizer que O teatro dos mortos constitui um ainda raro espécime de filosofia do teatro, cujo


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