TERRENO BALDIO

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Carmela Gross Terreno baldio Paulo Miyada

carmela gross e paulo miyada, uma conversa

manchas

paulo miyada ● Carmela, gostaria de começar por algo que me parece presente em muitos momentos de sua obra: o convívio, a sobreposição e até a colisão entre dois desígnios, um que tende ao traço construtivo e outro que tende à mancha indeterminada. carmela gross ● Isso começa com o próprio desenho. Por exemplo, com o gesto empregado para construir as massas de cor no projeto para a construção de um céu (1981)1 [1]: um conjunto de desenhos organizados como projeto arquitetônico, com traços técnicos marcados com caneta e preenchidos por representações de nuvens feitas de hachuras com lápis colorido. A ambiguidade que aparece entre dois universos – o do construído ou, pelo menos, do controlável, de um lado, e o do não controlável, do outro; essa ambiguidade, essa dialética, ela me interessa: aparece em muitos dos meus trabalhos. pm ● E se a gente quiser resgatar uma obra em que isso ficou muito tangível, podemos lembrar da sua intervenção na primeira edição do Arte/Cidade, em que você projetou buracos2.

cg ● Essas coisas são não conscientes… e a esse domínio não consciente, eu não tenho acesso… então, inventar agora uma explicação seria falso. Eu posso te contar o processo de como os buracos foram feitos, mas explicar que papel têm entre as ideias de projeto, de construção ou de acontecimento… Não! ¶ O que ocorreu é que os buracos (1994) nasceram de um minidesenho num bloco de anotações [2], que usei durante as reuniões preparatórias do Arte/Cidade. Participavam das reuniões os artistas, os críticos, o Agnaldo Farias, o Nelson Brissac e, às vezes, o próprio Ricardo Ohtake3. Estavam lá vários arquitetos, outros tantos artistas, cineastas, enfim, os atores variados de um processo de trabalho, reunidos para pensar a primeira edição do Arte/ Cidade, que ainda não estava delineada com clareza… A gente se reunia semanalmente no antigo Matadouro Municipal, um prédio abandonado em que seriam expostos os trabalhos dos artistas convidados4. ¶ E aí, eu fiz um desenho, de tipo automático, como quando rabiscamos coisas sem estar completamente conscientes do que estamos fazendo. Eu gosto disso, remete aos surrealistas e à escrita automática. Então, o desenho automático, que eu fiz

numa dessas reuniões, era um conjunto de rabiscos, mais ou menos repetidos, uma sequência de coisas semelhantes, parecidas ou quase iguais. Mas então era apenas uma anotação num caderninho pequeno. E depois… pensando, depois, que esses rabiscos eram pequenos contornos, pequenos desenhos que podiam ser feitos no chão: fazer de cada um deles buracos! Eu queria essa matéria que apareceria com a remoção de parte do próprio sítio que estava sendo visitado. Então, o buraco me dava esse índice porque, como vimos depois, os buracos foram sendo feitos e muitas camadas do chão do Matadouro foram aparecendo: terra, depois areia, depois cerâmica, tijolo… quase uma arqueologia do chão do Matadouro [3]. pm ● Para deixar bem claro: você tinha esse desenho pequeno com manchas repetidas. Como ele foi transformado numa intervenção no espaço concreto?

cg ● Eu achei que devia respeitar o primeiro momento inconsciente: então, quadriculei a anotação, como se faz para ampliar com fidelidade um desenho. Ou como num desenho de arquitetura, em que se estabelece que cada centímetro quadrado do papel corresponderia a um metro quadrado do real. ¶ Os desenhos chegaram ao tamanho final por ampliações sucessivas… e os rabiscos que foram feitos no original com caneta bic tornaram-se moldes. Esses moldes foram então passados para o chão. Eu recortei os papéis e os coloquei no chão do Matadouro, que estava demarcado com as quadrículas também (o modo egípcio de fazer: puxa uma linha nas duas pontas, quadricula o espaço real). Tracei então cada rabisco ampliado do mesmo modo que a polícia faz o contorno da posição de um cadáver. Depois, os barbantes do quadriculado foram retirados, os papéis-molde saíram e foram feitos os buracos no interior das demarcações, deixando resíduos das linhas brancas.

pm ● Você atribuiu uma profundidade para os buracos?

cg ● Marquei especificamente uma profundidade para cada buraco: 40 centímetros, 30 centímetros, 60 centímetros…

pm ● E esse era um aspecto, digamos, opaco do projeto… pois você atribuía profundidades, sem saber exatamente o que poderia aparecer ao abrir cada buraco. Isso me faz pensar em algo, que não me ocorreria sem ouvir sua descrição dessa obra. Não sei se você conhece bem um momento específico do trabalho de Tomie Ohtake, no começo da década de

1960, quando ela passa de uma pintura eminentemente gestual e informal – em que ela relata que chegava a pintar com os olhos vendados – e caminha em direção ao léxico da pintura construtiva ou concreta, em que utiliza cores puras e formas (quase) geométricas. Só que ela não fez uma migração completa, ela manteve um compromisso com a intempestividade do gesto e com o acaso. Entre o mundo das formas logicamente traduzíveis e o mundo do gesto espontâneo, ela criou uma janela de negociação. Naquele momento ela estava produzindo estudos com papéis coloridos retirados de revistas, convites e livros [4]. Ela rasgava os papéis e fazia colagens de cerca de 10 por 10 centímetros… e as formas ficavam tremidas pela imprecisão do rasgo. Depois, ela também quadriculava essas colagens e transferia suas medidas e formas para uma tela de 1 metro por 1 metro, por exemplo. Daí em diante, seguia uma pintura metódica, cuidadosa, que traduzia os rasgos para outra escala e materialidade. ¶ O que a gente encontra na tela como algo que parece da gestualidade da pintura é, na verdade, o transporte de um instante. Um instante de gesto contaminado pelo acaso, assim como você acaba de relatar sobre os seus buracos: há um momento de desenho automático, com a caneta, permeado por algo até inconsciente, e todas as etapas depois disso são tecnicamente estruturadas e comprometidas com uma fidelidade… cg ● É uma reprodução do acaso. Tratava-se de reproduzir em outra escala, e construtivamente, aquilo que aconteceu por acaso, a partir da intensidade do gesto, do tipo de papel e do seu limite. pm ● Me ocorre também que o processo do projeto do Arte/Cidade seja comparável ao das escavações de sítios arqueológicos, que combinam uma certa dose de planejamento estruturado…

cg ● E depois vem a sorte, vem o acaso…

pm ● Sim, você começa pela ordem para então abrir o espaço do acaso. Você começa quadriculando o território e arbitrariamente escolhendo pontos de escavação, para, eventualmente…

cg ● …confirmar aquilo que estava no seu planejamento racional, não é? Você parte de uma hipótese determinada pelo conhecimento.

pm ● E, mesmo assim, você não vai escavar tudo, porque, se escavar tudo, você destrói a própria base do trabalho… cg ● …a consistência do território.

desenho

pm ● Voltando no tempo ao seu período de formação: até que ponto a interlocução com o professor Flavio Motta5 foi decisiva para que as ideias de desenho e projeto chegassem a um plano de consciência crítica e de problematização?

cg ● O Flavio Motta pode ser visto como uma pedra angular, porque ele nos propunha o tempo inteiro pensar o desenho como construção da sociedade, como atuação, como projeto, como desígnio, como intenção etc. Ele colocava tudo isso no bojo do desenho. Mas a minha própria formação, antes e para além do encontro com o Flavio Motta, já passava pela geometria, pelo desenho geométrico e pela matemática. Eram coisas de que eu gostava muito e que aparecem, pela primeira vez, com maior potência, eu acho, no projeto para a construção de um céu, em que a grelha ortogonal, a quadrícula, demarca e constrói racionalmente o território para a apreensão da mancha, do informe, da nuvem, da luz do céu… Então, acho que já estava ali a oscilação ou dialética entre o informe e o construído, entre o racional e o impulsivo.

pm ● Provavelmente, devido às mudanças de currículo e formação, um estudante universitário de artes visuais tem hoje tanta chance de carregar um interesse específico por geometria descritiva quanto de se interessar por botânica, espiritualidade ou história… mas a sua formação se deu em outro cenário, sim? cg ● Quando estudei no curso da Faap6, eu tinha aulas de geometria descritiva, desenho geométrico, desenho técnico, matemática, dadas por gente muito competente que vinha da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. Havia uma exacerbação do aspecto racional que era constitutivo das formas de representação, comprometidas com o projeto e com a racionalidade projetiva. Isso era formador, enquanto perspectiva de um curso de desenho. Já a outra parte, que seria o desenho expressivo, não me interessava muito.

01. Carmela Gross. projeto para a construção de um céu [project for the construction of a sky], 1981. Série de 33 desenhos, lápis de cor e nanquim sobre papel [series of 33 drawings, colored pencil and China ink on paper]. 70 × 100 cm (cada) [(each)].

02. Carmela Gross. buracos [holes], 1994. Desenho do projeto [project drawing]. Caneta sobre papel [pen on paper]. 29,7 × 21 cm.

03. Carmela Gross. buracos [holes], 1994. Intervenção, antigo Matadouro Municipal [intervention, former Municipal Slaughterhouse], São Paulo. 1.700 × 2.000 cm. Exposição Arte/ Cidade I [Art/City I exhibition]. Foto [photo]: Romulo Fialdini/ Tempo Composto.

04. Tomie Ohtake. Colagens de estudo para pintura, década de 1960. Papéis colados sobre papel. Dimensões variadas. [study collages for painting, 1960s. Paper pasted on paper. Various dimensions].

05. Abraham Bosse. Les Perspecteurs, 1647-8. Gravura em metal [metal engraving].

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TERRENO BALDIO

© Edições Sesc São Paulo, 2024

© Carmela Gross, 2024

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)

G9141t Gross, Carmela

Terreno baldio / Carmela Gross; Paulo Miyada. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2024. – 96 p. il. bilíngue (português/inglês)

isbn: 978-85-9493-297-6

1. Artes Plásticas. 2. Arte contemporânea. 3. Carmela Gross. 4. Livro de Artista. 5. Entrevista. Título. II. Miyada, Paulo.

cdd 709.81

Elaborada por Maria Delcina Feitosa

CRB/8-6187

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Fonte Mono45 Headline e Elza

Papel Munken linx rought 120 g/m²

Impressão Ipsis

Data Junho de 2024

ISBN 978-85-9493-297-6

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