O THÉÂTRE DU SOLEIL

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“Eu acho que o teatro é feito para narrar o mundo, para torná-lo claro para nós e nos dar a força de compreendê-lo e, portanto, de transformá-lo. Eu não imagino esta arte sem sua relação com o mundo.” As palavras de Ariane Mnouchkine, fundadora e diretora do Théâtre du Soleil, definem bem o espírito de sua trupe, um dos mais criativos grupos de teatro do mundo da atualidade, marcante por sua longevidade, seu percurso exemplar e o renome internacional alcançado por seus espetáculos. Béatrice P ­ icon‑Vallin – na companhia das vozes daqueles que fazem o Soleil – narra a epopeia de um grupo de teatro que se distingue, em conjunto com a qualidade de suas criações artísticas, pela originalidade de seu funcionamento, por seus métodos de trabalho e por uma relação com o mundo que funde vida e arte. Premiado como o melhor livro sobre teatro na França, O Théâtre du Soleil: Os Primeiros Cinquenta Anos, que a Perspectiva e as Edições Sesc São Paulo ora publicam, com uma numerosa iconografia em grande medida inédita, é tanto o relato histórico sobre a trupe como uma bem-sucedida forma de traduzir esse espírito corajoso e inovador em uma obra que o apresenta à luz da fulgência solar da recomposição histórica e crítica de Béatrice Picon-Vallin.

BÉATRICE PICON-VALLIN

Extraído de duas conferências proferidas em Calais, em março de 2013, transcritas por Jean-Christophe Planche e publicadas em Les Carnets du Channel n. 1, Calais, jan. 2014. Agradecimentos a Francis Peduzzi.

O THÉÂTRE DU SOLEIL

Ariane Mnouchkine

OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS

Trabalho com gente de trinta anos e não sinto a diferença de idade, pois são meus companheiros de epopeia. Ser uma trupe de teatro é épico e é provavelmente por isso que a criamos. Sou privilegiada porque tenho a sensação, com maus momentos e bons, de viver uma pequena epopeia. Ela não precisa ser grande, a partir do momento que é verdadeira e condensada. É, a uma só vez, falstaffiana, ridícula e maravilhosa. Não se pode viver uma epopeia quando se está só. O início de uma epopeia é quando se escolhe, se decide por completo fazer algo com seu grupo. É por isso que eu rendo homenagens às associações mesmo se, às vezes, elas me irritam: elas liberam uma energia épica, pois lutam por tudo. A utopia não é irrealizável. A utopia é o possível ainda não realizado. Ela pressupõe uma alegria. Não deve dar lugar ao desânimo. Nós recebemos subvenções, nós utilizamos nosso dinheiro, seu dinheiro: nosso teatro não é feito para que nos desesperemos do mundo ou para expressar uma depressão, se houver. O teatro deve alimentar, desenvolver músculos, engrandecer. Quando fazemos um espetáculo, nos fixamos em melhor compreender o mundo e nos tornarmos pessoas que, momentaneamente, podem tentar torná-lo compreensível por sentimentos e sensações e, mais exclusivamente, pela cabeça e razão. Não se trata de começar algo dizendo que está perdido. Sob o pretexto de que as vitórias são raras e efêmeras, não se celebra mais. Em Paris, particularmente, somos exímios em adotar ares de entendido, mas isso não serve para nada. É falso. É uma boa estratégia celebrar a boa vontade e as pequenas vitórias sabendo que o dia seguinte vai ser menos recompensador. O coração da epopeia está aí. Já fui obrigada a considerar com seriedade o futuro do Théâtre du Soleil quando não tinha mais forças. [...] Nesse instante, uma jovem presente no debate pergunta a Ariane Mnouchkine como ela definiria o teatro em uma palavra. Ariane devolve a pergunta, indagando como a jovem o faria. Esta responde “o sonho”. Essa definição me cai bem, mas eu acrescentaria uma frase que dizemos regularmente no Théâtre du Soleil. Ela é de Jirˇí Trnka, um grande artista tcheco: “A condição do maravilhoso é o concreto.” O teatro é um sonho que está aqui no presente. É a arte da poesia concreta e carnal.

Diretora emérita de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), Béatrice Picon-Vallin consagra parte de suas investigações à história e à teoria da encenação. Dirige as coleções dedicadas às artes do espetáculo Mettre en scène (Actes SudPapiers), TH 20 (L’Âge d’Homme) e Arts du spectacle (CNRS Éditions). É autora, entre outros, de A Cena em Ensaios (Perspectiva, 2008) e Meierhold (Perspectiva, 2013).

O THÉÂTRE DU SOLEIL

OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS

BÉATRICE PICON-VALLIN

A FIDELIDADE ÀS ORIGENS O Théâtre du Soleil teve a sorte de nascer antes de 1968. Somos bem mais crias do espírito do pós-guerra, de uma época na qual se acreditava que a sociedade se tornaria mais culta, mais justa, mais fraterna. […] Nosso modo de funcionamento, quase cinquenta anos depois, permaneceu bastante fiel ao que nós nos prometemos. A igualdade de salário existe ainda hoje. Cada um que está a cargo de qualquer tarefa contribui para o funcionamento do Théâtre du Soleil. […] As grandes decisões são tomadas unanimemente. Não reunimos a companhia para decidir a compra de um lápis ou de um software, mas a escolha do tema do próximo espetáculo e todas as decisões que influenciam o caminho do Théâtre du Soleil são votadas coletivamente. Constato que é preciso cada vez mais resistir às influências externas para preservar esse espírito. A argumentação em favor de um maior individualismo é mais elaborada que em 1968. O sistema de reservas de lugar é um bom exemplo dessas tensões. Não fazemos a alocação de lugares por computador. Um senhor ou senhora atende todo mundo por telefone e anota numa grande folha amarela. Às vezes, muitos do próprio público, depois de dez minutos de conversa na qual relataram coisas pessoais, indagam: “Por que vocês não permitem escolher os lugares pela internet?” Nós somos obrigados a responder que é exatamente para que possamos passar dez minutos agradáveis num intercâmbio com eles. […] É preciso apenas saber a partir de que momento a internet embota ou suprime o terreno fértil que se chama pura e simplesmente de relação humana. Pouco importa o fato de que atender essa exigência não mobilizaria, talvez, mais de quatro pessoas: trata-se de ser leal a um projeto. Faço isso para olhar em seus olhos, para compartilhar sua alegria na chegada, para sentir que você gosta de nós e para merecer sua presença. Pôr um computador entre nós me privaria de minha glória, que não é a celebridade. Minha glória é poder viver de pequenos momentos, muito efêmeros, nos quais digo a mim mesma que fiz o que tinha de fazer.

A EPOPEIA E A UTOPIA

EDIÇÕES SESC São Paulo

Eu me sinto privilegiada. A vida me deu o que eu queria. Eu queria viver uma vida de teatro com meus amigos, com um grupo. No início, pensava em amigos da minha idade e, como a sorte foi generosa com o Théâtre du Soleil, me encontro hoje com amigos que são talvez vinte, trinta, quarenta anos mais jovens que eu. Tenho 74 anos, e há na companhia um rapaz de vinte que chamo de “meu jovem amigo”.

PERSPECTIVA

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Le Théâtre du soleil. Les cinquantes premières années © Actes Sud/Théâtre du Soleil, 2014 © Editora Perspectiva / Edições Sesc São Paulo, 2017 Todos os direitos reservados

EDITORA PERSPECTIVA Supervisão editorial  J. Guinsburg

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo

Coordenação de texto  Luiz Henrique Soares e Elen Durando Produção  Ricardo W. Neves, Sergio Kon e Lia N. Marques

Tradução  J. Guinsburg Preparação  José Ignacio Mendes Revisão  Sílvia Balderama Projeto gráfico, diagramação e capa  Sergio Kon Capa a partir da fotografia de  Michèle Laurent

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ P664t Picon-Vallin, Béatrice, 1946 Théâtre du Soleil : Os Primeiros Cinquenta Anos / Béatrice Picon-Vallin ; Tradução J. Guinsburg, Gita K. Guinsburg. – 1. ed. – São Paulo : Perspectiva : Edições Sesc São Paulo, 2017. 368 p. : Il. ; 22 cm.

Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial  Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli Edições Sesc São Paulo Gerente Marcos Lepiscopo Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Francis Manzoni, Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha Produção editorial Antonio Carlos Vilela Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel

Tradução de: Théâtre du Soleil: Les cinquante premières années Apêndice Isbn: 9788527311083 (Perspectiva)/ isbn: 9788594930514 (Edições Sesc São Paulo) 1. Théâtre du Soleil – História. 2. Teatro – França – Paris – História. I. Guinsburg, J. Ii. Guinsburg, Gita K. Iii. Título. 17-42398

Cdd: 792.09 Cdu: 792.03(09)

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Direitos reservados em língua portuguesa à EDITORA PERSPECTIVA LTDA. Av. Brigadeiro Luís Antônio, 3025 01401-000 São Paulo SP Brasil Telefax: (11) 3885-8388 www.editoraperspectiva.com.br 2017

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EDIÇÕES SESC SÃO PAULO Rua Cantagalo, 74 – 13º/14º andar 03319-000 – São Paulo SP Brasil Tel. 55 11 2227-6500 edicoes@edicoes.sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes  /edicoessescsp

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BÉATRICE PICON-VALLIN

E R ÂT

O É TH S O U N D L E I L NQUENTA A I C S O SS P R I M E I R O O

Tradução de J. GUINSBURG

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NOTA À EDIÇÃO BRASILEIRA

Logo que Le Théâtre du Soleil – Les Cinquante premières années foi lançado na França, a editora Perspectiva interessou-se pela sua publicação, pois tendo o teatro como um de seus temas mais acalentados, sabia tratar-se de um título de grande relevância, dadas a importância da companhia dirigida por Ariane Mnouchkine para a afirmação e o desdobramentos da cena contemporânea em nível global, e a qualificação da autora, Béatrice Picon-Vallin, hoje uma das mais notáveis estudiosas de teatro do mundo, como ressalta J. Guinsburg. Mesmo assim, foi profundo o impacto causado pela obra quando a tivemos em mãos. Exalava os suores e os aromas, a atmosfera da companhia, em cada uma de suas páginas, com imagens marcantes que escrutinavam o processo colaborativo da trupe, sua simbiose com seu mítico espaço – a Cartoucherie –, as oficinas, o debate político. Não há dúvidas, muito de tais impressões se deve à extraordinária construção narrativa empreendida por Picon-Vallin, com um texto abrangente que aglutina história e memória, passado e presente, não de um coletivo indistinto, mas de dezenas de atores, artistas e técnicos que lhe deram forma e fama. Para viabilizar uma edição brasileira que preservasse o impacto da original, em formato grande, colorido, com o registro fotográfico dos espetáculos visualmente impressionantes da companhia francesa, buscou-se estabelecer uma parceria entre a editora Perspectiva e as Edições Sesc São Paulo. O Sesc já havia se empenhado em trazer ao Brasil o T ­ héâtre du Soleil em duas oportunidades: em 2007, com o espetáculo Les ­Ephemères (Os Efêmeros), e em 2011, com Os Náufragos do Louca Esperança, no contexto de uma experiência cultural abrangente, com apresentações acompanhadas de workshops, exibição de documentários, encontros com o público. Assim, configurou-se a sinergia entre o Sesc, que ao longo de sua trajetória sempre manifestou sua preocupação de aliar educação ao entretenimento por meio de ações práticas, e a Perspectiva, reconhecida pela qualidade e amplitude que caracterizam suas publicações, a fim de trazer ao público leitor as realizações daquela que é mais do que uma companhia de teatro – trata-se de um experimento social e educativo,

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dos mais importantes nascidos no século XX: “Um espetáculo do Théâtre du Soleil por si só é educativo”, afirma Danilo Santos de Miranda, Diretor Regional do Sesc São Paulo. “Acredito que os bons espetáculos são assim, auxiliam na educação humana, colocando o ser humano numa condição de diálogo com seu tempo e seus espaços.” Não é preciso, pois, acentuar que a relevância do Théâtre du Soleil transcende em muito a cena francesa não apenas pela multinacionalidade de seus integrantes atuais. O mais longevo e bem-sucedido representante do teatro como arte colaborativa e transformadora dos que o praticam e dos que já testemunharam suas “cerimônias” – para usar um termo de Mnouchkine –, permanece em atividade até hoje, sendo por muitos considerado a principal trupe do mundo, graças aos desafios a que se propõe e às inovações que seus espetáculos levam aos teatros do planeta, causando assombro e encantamento. Esse teatro físico, mescla de tradições ocidentais e orientais em diálogo intenso com o presente, seja reimaginando clássicos como Tartufo ou dando voz aos refugiados em O Último Caranvançará, é sempre uma jornada fantástica a um outro mundo, como afirmou The International Ibsen Award ao anunciar a premiação a Ariane Mnouchkine em 2009. Ele é, igualmente, uma ferramenta que permite aos seus integrantes não apenas enfrentar os desafios de fazer arte nesta época de crises constantes como ainda transmitir, em suas peças, nas oficinas que ministram em lugares tão díspares como Curitiba e Casablanca, em suas atividades no Camboja ou por meio deste livro, a mensagem de que o teatro é um estilo de vida, uma forma de estar no mundo, uma arma, enfrentando e expondo as manipulações alienantes, no palco ou fora dele. Assim, ao publicar O Théâtre du Soleil – Os Primeiros Cinquenta Anos, a editora Perspectiva e as Edições Sesc São Paulo trazem ao público de língua portuguesa, a um só tempo, o registro de que a utopia não só é necessária como horizonte, mas realizável como busca de vivência, e um convite a partilhar dessa epopeia e enfrentar o desafio proposto por uma inquietação e esperança permanentes. Que venham outros cinquenta anos! Os editores

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SUMÁRIO

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Observação e Agradecimentos

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DEDICADO A Todos Aqueles Que Trabalharam e Trabalham no Théâtre du Soleil

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PRÓLOGO Origens

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CAPÍTULO 1 Destino

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CAPÍTULO 2 A Criação Coletiva, Segunda Tentativa, Primeiro Esboço

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CAPÍTULO 3 O Ciclo dos Shakespeares

159

CAPÍTULO 4 Um Novo Modo de Escrita Para Grandes Epopeias Asiáticas

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CAPÍTULO 5 Os Atridas ou A Arqueologia das Paixões

223

CAPÍTULO 6 Onde o Soleil Agora Vai Deixar Entrar a Câmera

257

CAPÍTULO 7 Dez Anos de Criação Coletiva Entre Cineteatro, Teatro Documentário e Epopeia Lírica

297

VISÕES TRANSVERSAIS Seis Dossiês Temáticos

311

EPÍLOGO A Galáxia do Théâtre du Soleil ANEXOS

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Referências Cronológicas

333

Os Programas do Soleil: Créditos

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Notas

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Créditos das Fotos

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OBSERVAÇÃO E AGRADECIMENTOS

As citações não referenciadas remetem a entrevistas que realizei entre outubro de 2013 e maio de 2014 em Paris, na Cartoucherie, em Moscou, por e-mail ou telefone com Jean-Claude Penchenat, Sophie Moscoso, Joséphine Derenne, Georges Bigot, Gérard Hardy, Lucia Bensasson, Guy Freixe, Liliana Andreone, Étienne Lemasson, Hélène Cixous, Maïtreyi, Erhard Stiefel, Myriam Azencot, Bernard Faivre d’Arcier, Duccio Bellugi-Vannuccini, Mauricio Celedon, Stéphane Brodt e, em junho de 2010, na Cartoucherie, com Ariane Mnouchkine, Charles-Henri Bradier e Jean-Jacques Lemêtre. Os outros encontros estão referenciados em notas de rodapé. Ariane Mnouchkine será muitas vezes, neste livro, chamada de Ariane, como todos a chamam, sem nenhuma formalidade. Nas notas, ela aparece sob a abreviação A.M.

Os créditos de todos os espetáculos figuram no fim do volume na forma que o Soleil lhes dá, cada vez de modo diferente. Eles constituem relatos integrais se quisermos de fato lê-los com atenção, estão recheados de informações e de poesia, testemunham a presença neste livro daqueles que cruzaram ou habitaram a vida do Théâtre du Soleil e que não pude evocar ou citar. Nessa aventura em curso durante tanto tempo, o nome dos atores evoluiu às vezes na sucessão dos espetáculos. Isso explica certas disparidades nas legendas e nas distribuições de papéis. Os dossiês

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de imagens agrupadas por temas devem ser consultados para completar a iconografia de cada espetáculo. Algumas fotografias são de má qualidade, porém são inéditas e têm valor de arquivo. Obrigado à BnF (Biblioteca Nacional da França), em especial a Corinne Gibello-Bernette. Agradeço a Franck Pendino, com quem naveguei com alegria num mar de imagens do Soleil, reunidas pouco a pouco junto àqueles que viveram os diferentes períodos desse teatro e, em primeiro lugar, por certo, os mais afastados, os dez primeiros anos. Agradeço a Liliana Andreone por seu apoio sem falha. Agradeço a Jean-Claude Penchenat, memória viva das pessoas e dos lugares, que me forneceu imagens e referências para o Prólogo. Agradeço a Georges Bigot por suas lembranças compartilhadas. Agradeço a Marcel Freydefont, Maurice Durozier, Georges Bonnaud e Jean-François La Bouverie. Agradeço a Sophie Moscoso, que me abriu à grande seus arquivos e me ajudou com imensa generosidade cada vez que eu estava perdida na viagem. Agradeço a Charles-Henri Bradier por suas especificações indispensáveis e seu apoio tão amigo. Agradeço, enfim, aos fotógrafos, mais particularmente à Agência Magnum (Martine Franck) e a Michèle Laurent, bem como a todos aqueles que fizeram o esforço, com o mesmo prazer contagioso, de reativar sua memória e seus arquivos, e que responderam às minhas perguntas sem fim… B.P.-V.

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DEDICADO A TODOS AQUELES QUE TRABALHARAM E TRABALHAM NO THÉÂTRE DU SOLEIL

Nós nos persuadimos de que uma organização corporativa bem compreendida não poderia diminuir em nada a autoridade do chefe de trupe, só se ele tivesse uma alma de estelionatário. […] O espírito de uma trupe é, creio eu, o principal capital, e aqueles que dirigiram homens o sabem muito bem. charles dullin1

O teatro não é apenas um edifício com um caixa no qual se dá dinheiro para comprar uma visão […] e depois a gente vai embora. É um lugar onde o mundo revive, se pensa e, portanto, de certo modo, se transforma. É onde as forças de transformação podem ser invocadas, compartilhadas e, portanto, espalhadas de maneira muito modesta, muito misteriosa, de maneira, penso eu, incontestável. ariane mnouchkine2

O

Théâtre du Soleil constitui, na França e no mundo, uma aventura excepcional em muitos sentidos – a duração, a qualidade, o engajamento, o questionamento permanente, a irradiação internacional. Ele não tem equivalente em parte alguma, e só podemos nos alegrar que tal teatro tenha podido se criar e existir na França, apesar de todas as dificuldades com as quais sempre esteve, e está, confrontado. E nos interrogar sobre essa longevidade em que não se percebe nenhum sinal de envelhecimento. O título de Les Naufragés du Fol Espoir (Aurores) (Os Náufragos do Louca Esperança, Auroras), espetáculo do Soleil de 2010, é também

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Os Náufragos do Louca Esperança (Auroras). Imagem final do espetáculo. A trupe de teatro é um farol na tempestade: “Nesses dias de trevas, nós temos uma missão: […] levar aos navios que vagam no escuro o clarão obstinado de um farol”. Trecho do texto-programa (edições Théâtre du Soleil, 2010).

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um autorretrato. O Louca Esperança, um cabaré de 1914, é o Soleil de 2010. A trupe de cinema mudo, que filma a última utopia de Júlio Verne, é a do Soleil. A longa história de sua “fabricação”, com uma diretora bastante decidida para trabalhar onze meses ininterruptos e atores bastante cheios de paixão para manter a confiança durante esse tempo todo, mesmo quando a diretora hesita, é a história de quase todos os espetáculos do Soleil, há cinquenta anos, dos Éphémères (Efêmeros) e de Tambours sur la Digue (Tambores Sobre o Dique), mas também, remontando no tempo, a dos Atrides (Atridas), de 1789 ou de L’Âge d’or (A Era de Ouro)… Das estreias anunciadas, depois adiadas, às vezes em repetidas ocasiões. Das dívidas persistentes, apesar do sucesso. Das noites sem sono. Dos atores que põem a mão na massa – da construção do lugar ou dos cenários à cozinha. A arte como trabalho, a arte como pesquisa de novas maneiras de criar e de conviver… A arte como risco. Uma trupe eternamente na corda bamba, financeira e efetivamente. E que se renova, em função das crises mais ou menos graves que ela deve enfrentar, como todo grupo humano, mas também de projetos, estágios, encontros que ela inicia e da abertura que ela sabe praticar. No Louca Esperança, como hoje no Macbeth, esses atores, com os técnicos, os pilares do Escritório, toda a grande trupe solidária em sua Cartoucherie do bosque de Vincennes – província notável do País do Teatro e palácio das maravilhas – são os verdadeiros náufragos de uma louca esperança; a encarnação de uma utopia generosa, radical e radiosa, que Mnouchkine sempre procurou realizar, incrivelmente fiel a ela própria e aos sonhos de seus vinte anos. O sonho de fazer “o mais belo teatro do mundo” para um público parceiro, amplo e diversificado. A trupe é apresentada, nesse Louca Esperança, como um farol na noite e na tempestade: é a imagem cênica que fecha o espetáculo, e precede a saudação coletiva final com forte intensidade emocional. Nessa última sequência, fantástica, a trupe se entrega, não como exemplo, pois há muita modéstia na sua determinação, mas pura e simplesmente à sua arte e a seus espectadores, e lhes insufla a esperança, mesmo muito tênue, de chegar por sua vez – lá onde estão, onde vivem, onde trabalham – ao rigor, à precisão, ao respeito para com o outro, ao sentido de conjunto do qual eles são prova: “não se é nada sem os outros”3, é o segredo da representação teatral e da vida. E, para criar as cenas, precisa-se de todos – aqueles que atuam mudos, aqueles que projetam os textos representados em silêncio, aqueles que esclarecem seus colegas com

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demandas, aqueles que produzem os reflexos d’água, o sopro do vento, que fazem voar o pássaro-marionete (a “Gaivota” do Soleil4) e os flocos de neve, sacudindo os cestos cheios de finos papeizinhos brancos, aqueles que produzem a fumaça, aqueles que giram a manivela da câmera, sem esquecer aquele que faz a música e o dispositivo sonoro. Cada um atua e auxilia, sucessivamente. Tem-se aqui um superconcentrado do modo de trabalho dos atores do Soleil nos cinquenta anos de sua existência. Vejamos de novo as cenas de A Cozinha, de Arnold Wesker (1967), em que a ação se passa numa cozinha de restaurante na hora do rush, para sermos convencidos do interesse dedicado por Mnouchkine à força ao mesmo tempo produtiva e emocional do trabalho coletivo. No Louca Esperança, o Théâtre du Soleil desmonta e remonta os segredos da arte teatral graças à sua visão do cinema nascente, alhures ele observou e recompôs as facetas teatrais das barracas de feira ou de seu Oriente imaginário. Ele fabrica teatro de uma maneira artesanal e um pouco mágica como tudo o que toca às sinergias humanas e, assim fazendo, ele nos transporta. No tempo e no espaço e além de nossas individualidades. Iniciado sob o signo do nomadismo necessário, o Soleil é um teatro enraizado no bosque de Vincennes, mas que arrasta atores e espectadores à viagem escolhida e que sabe ele próprio partir para longas turnês pelo mundo. O público do Soleil cobre quatro gerações, e os “antigos” fazem festa para levar os mais jovens. Não é um teatro de repertório como nos ex-países do Leste, onde um espetáculo pode manter-se por um tempo muito longo, retomado e trabalhado periodicamente por um diretor formado para esse trabalho, e tocar assim várias gerações. O Soleil procede de outro modo, numa prática muito diferente também do sistema francês, com novos espetáculos que se repetem e se apresentam por muito tempo, depois excursionam pelo interior e pelo mundo – as turnês ajudam a viver e a continuar –, mas cada novo espetáculo traz em si mesmo, sobretudo desde que as criações do Soleil são retratadas pela câmera de Mnouchkine e por seus atores, a lembrança, a marca dos precedentes das quais ele emana, travando assim um diálogo contínuo entre eles e com o público que, rememorando-os, partilha suas experiências com os mais jovens. Retornar às fontes daquilo que se pode chamar, sem medo de se enganar, uma obra marcante na história do teatro permitirá descobrir um percurso em que a intuição e a determinação servem de guias para uma caminhada que pode retrospectivamente parecer incrivelmente racional e pensada. Desde o início, quase tudo está lá, pois se trata

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de reinventar o teatro de nosso tempo, a partir do palco, do concreto, da ação, apoiando-se, conforme as descobertas, nas vozes dos grandes precursores e das autênticas tradições das artes do espetáculo que acompanharão a trupe sem jamais a limitar. Há tanto a dizer sobre a existência do Théâtre du Soleil e dos diferentes grupos de atores que se sucederam ao redor de Ariane que este livro não poderá ser senão um reflexo. Para este retorno no tempo, eu não posso partir senão acompanhada pelas vozes daqueles que em diversos períodos cercaram Ariane Mnouchkine, e pela voz da “chefe de trupe” que fala com tanta clareza. Impossível, com efeito, abordar sozinha esse continente fervilhante. Eu convocarei essas vozes sempre que necessário, mas ainda assim aparecerão pouco, pois precisam caber nas dimensões deste livro… Em La Ronde de nuit (A Ronda Noturna) do Teatro Aftaab, os filhos afegãos do Soleil, diz-se que esse teatro contém os “arquivos do mundo”: é verdade que, no navio ancorado no bosque de Vincennes, de onde Mnouchkine jamais desertou para criar alhures – outro traço distintivo –, tratam-se grandes problemas do mundo. O tema principal aqui é a História, uma outra maneira de considerá-la, à luz do presente, e fora de todo olhar eurocentrado.

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PRÓLOGO ORIGENS

O teatro é a arte do outro. ariane mnouchkine1

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Soleil é uma trupe que se estofou cada vez mais com o passar do tempo, como nenhuma outra na França e que funciona segundo regras que ela mesma se prescreveu em sua fundação, regras que perduram até hoje. Uma trupe que tem seu lugar pessoal, escolhido e restaurado pela equipe dos inícios, por seus ritos e seus métodos. Uma trupe animada pela urgência de um teatro a ser reinventado, e por uma fé: a de que “o teatro ultrapassa o teatro”2. Uma trupe que já tem uma lenda. Hoje encruzilhada do mundo teatral, afamado de Viena a São Paulo e de Tóquio a Sydney, conhecido até no Afeganistão e no Camboja, o que era ele, no começo, esse Théâtre du Soleil? Ariane Mnouchkine diz muitas vezes que, nos anos sessenta, tudo era muito mais fácil do que hoje para aqueles que queriam fazer teatro juntos. Mas, se olharmos mais de perto, não foi tão simples.

“A Ásia Chega”3 Tudo começa em 1959, quando Martine Franck e Ariane O sonho da minha infância era a Mnouchkine, com outros companheiros (Frances Ashley5, Pierre viagem. Ariane Mnouchkine4 Skira…), criam a Atep, Associação Teatral dos Estudantes de Paris,

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Os Palhaços. O Théâtre du Soleil sob o signo do circo… Verão de 1969, montagem do dispositivo no Festival de Avignon.

que se torna como que a rival do Grupo de Teatro Antigo da Sorbonne, onde Ariane não havia sido muito bem acolhida. Mas, no fundo, começa bem antes, sem dúvida nos estúdios de cinema que A. Mnouchkine, filha do produtor de cinema de origem russa Alexandre Mnouchkine, frequenta desde a infância e onde ela atua ocasionalmente (Fanfan la Tulipe, 1952). Acrescentemos que, do lado de sua mãe inglesa, sua família (tio e tia) está mergulhada no teatro, com o avô ator no Old Vic Company, onde atuou em peças de Shakespeare, e que ela tem por madrinha Edwige Feuillère. A Atep, onde logo se inscreverão Jean-Claude Penchenat e Philippe Léotard, desenvolve uma atividade multidirecional: pedagogia, abertura

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PRÓLOGO ORIGENS

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para o teatro francês e estrangeiro, criação. Ariane Mnouchkine está à frente dessa associação6 e Roger Planchon é o presidente de honra. Ela tem vinte anos, está de volta da Inglaterra, onde passou o ano de 1958-1959 fazendo, numa faculdade de Oxford, teatro universitário num grupo no qual trabalhava Ken Loach e no qual Ariane praticou muitos métiers do teatro. Ela se lembra de uma espécie de “amor à primeira vista” num ônibus vermelho inglês, após um ensaio de Coriolano: “Isso será minha vida”. O trabalho de uma equipe de cinema em estúdio a fez sonhar, mas as pessoas se separam ao fim do filme. Ariane escolheu o teatro porque uma trupe pode não se separar. Misturando as origens disciplinares dos estudantes, ela organiza a Atep segundo o modelo do teatro universitário inglês, a partir dos conselhos que lhe enviou Ken Loach, a seu pedido, numa longa carta. Ela propõe aulas noturnas com dois monitores da Educação Nacional, Charles Antonetti e M. Azaria, e Gérard Lorrin, ator da Comédie de Saint-Étienne. Pitoëff e Sartre são convidados a dar palestras. Primeiro espetáculo: Bodas de Sangue, de Federico García Lorca, montado por Dominique Serina, que vem da escola Dullin, apresentada no Centro Americano. Ariane cuida dos figurinos desenhados por Jacques Schmidt. Entre os atores já estavam Anne Demeyer, P. Léotard, J.-C. Penchenat e Françoise Jamet. Depois, em junho de 1961, após um ano de preparação, A. Mnouchkine monta, para oito representações, Gengis Khan, de Henry Bauchau, um amigo. Através de uma personagem mítica, da conquista da China e da Pérsia, o poeta procura desvelar conflitos atuais. “Havia aí toda a China a pôr em cena”, diz a jovem7, no espaço ao ar livre das Arènes de Lutèce, ocupado por um dispositivo cênico composto de degraus e planos inclinados. Encontram-se na distribuição de papéis, entre os trinta e dois atores, uma dezena de nacionalidades, P. Léotard, Gérard Hardy, Georges Donzenac, Jean-Frédéric Brossard8. J.-B. Maistre, filho de A.-M. Julien, diretor do Teatro das Nações, é o autor do dispositivo. J.-C. Penchenat está na direção. Os estudantes se revezam à noite para vigiar seu material… Em 1958, A. Mnouchkine assistira a O Bracelete de Jade pela Ópera de Pequim no Teatro das Nações e ficara fascinada. Gengis Khan traz essa marca, assim como a de sua cultura cinematográfica (Pudovkin, Mizoguchi etc.). Em meio às árvores, à vegetação das Arènes e aos ruídos de Paris, ela organiza os deslocamentos dos atores, dos coros, coreografa combates e cavalgadas com estandartes brancos que, brandidos ao som dos tambores, significam o vento, ao

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“Eu acho que o teatro é feito para narrar o mundo, para torná-lo claro para nós e nos dar a força de compreendê-lo e, portanto, de transformá-lo. Eu não imagino esta arte sem sua relação com o mundo.” As palavras de Ariane Mnouchkine, fundadora e diretora do Théâtre du Soleil, definem bem o espírito de sua trupe, um dos mais criativos grupos de teatro do mundo da atualidade, marcante por sua longevidade, seu percurso exemplar e o renome internacional alcançado por seus espetáculos. Béatrice P ­ icon‑Vallin – na companhia das vozes daqueles que fazem o Soleil – narra a epopeia de um grupo de teatro que se distingue, em conjunto com a qualidade de suas criações artísticas, pela originalidade de seu funcionamento, por seus métodos de trabalho e por uma relação com o mundo que funde vida e arte. Premiado como o melhor livro sobre teatro na França, O Théâtre du Soleil: Os Primeiros Cinquenta Anos, que a Perspectiva e as Edições Sesc São Paulo ora publicam, com uma numerosa iconografia em grande medida inédita, é tanto o relato histórico sobre a trupe como uma bem-sucedida forma de traduzir esse espírito corajoso e inovador em uma obra que o apresenta à luz da fulgência solar da recomposição histórica e crítica de Béatrice Picon-Vallin.

BÉATRICE PICON-VALLIN

Extraído de duas conferências proferidas em Calais, em março de 2013, transcritas por Jean-Christophe Planche e publicadas em Les Carnets du Channel n. 1, Calais, jan. 2014. Agradecimentos a Francis Peduzzi.

O THÉÂTRE DU SOLEIL

Ariane Mnouchkine

OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS

Trabalho com gente de trinta anos e não sinto a diferença de idade, pois são meus companheiros de epopeia. Ser uma trupe de teatro é épico e é provavelmente por isso que a criamos. Sou privilegiada porque tenho a sensação, com maus momentos e bons, de viver uma pequena epopeia. Ela não precisa ser grande, a partir do momento que é verdadeira e condensada. É, a uma só vez, falstaffiana, ridícula e maravilhosa. Não se pode viver uma epopeia quando se está só. O início de uma epopeia é quando se escolhe, se decide por completo fazer algo com seu grupo. É por isso que eu rendo homenagens às associações mesmo se, às vezes, elas me irritam: elas liberam uma energia épica, pois lutam por tudo. A utopia não é irrealizável. A utopia é o possível ainda não realizado. Ela pressupõe uma alegria. Não deve dar lugar ao desânimo. Nós recebemos subvenções, nós utilizamos nosso dinheiro, seu dinheiro: nosso teatro não é feito para que nos desesperemos do mundo ou para expressar uma depressão, se houver. O teatro deve alimentar, desenvolver músculos, engrandecer. Quando fazemos um espetáculo, nos fixamos em melhor compreender o mundo e nos tornarmos pessoas que, momentaneamente, podem tentar torná-lo compreensível por sentimentos e sensações e, mais exclusivamente, pela cabeça e razão. Não se trata de começar algo dizendo que está perdido. Sob o pretexto de que as vitórias são raras e efêmeras, não se celebra mais. Em Paris, particularmente, somos exímios em adotar ares de entendido, mas isso não serve para nada. É falso. É uma boa estratégia celebrar a boa vontade e as pequenas vitórias sabendo que o dia seguinte vai ser menos recompensador. O coração da epopeia está aí. Já fui obrigada a considerar com seriedade o futuro do Théâtre du Soleil quando não tinha mais forças. [...] Nesse instante, uma jovem presente no debate pergunta a Ariane Mnouchkine como ela definiria o teatro em uma palavra. Ariane devolve a pergunta, indagando como a jovem o faria. Esta responde “o sonho”. Essa definição me cai bem, mas eu acrescentaria uma frase que dizemos regularmente no Théâtre du Soleil. Ela é de Jirˇí Trnka, um grande artista tcheco: “A condição do maravilhoso é o concreto.” O teatro é um sonho que está aqui no presente. É a arte da poesia concreta e carnal.

Diretora emérita de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), Béatrice Picon-Vallin consagra parte de suas investigações à história e à teoria da encenação. Dirige as coleções dedicadas às artes do espetáculo Mettre en scène (Actes SudPapiers), TH 20 (L’Âge d’Homme) e Arts du spectacle (CNRS Éditions). É autora, entre outros, de A Cena em Ensaios (Perspectiva, 2008) e Meierhold (Perspectiva, 2013).

O THÉÂTRE DU SOLEIL

OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS

BÉATRICE PICON-VALLIN

A FIDELIDADE ÀS ORIGENS O Théâtre du Soleil teve a sorte de nascer antes de 1968. Somos bem mais crias do espírito do pós-guerra, de uma época na qual se acreditava que a sociedade se tornaria mais culta, mais justa, mais fraterna. […] Nosso modo de funcionamento, quase cinquenta anos depois, permaneceu bastante fiel ao que nós nos prometemos. A igualdade de salário existe ainda hoje. Cada um que está a cargo de qualquer tarefa contribui para o funcionamento do Théâtre du Soleil. […] As grandes decisões são tomadas unanimemente. Não reunimos a companhia para decidir a compra de um lápis ou de um software, mas a escolha do tema do próximo espetáculo e todas as decisões que influenciam o caminho do Théâtre du Soleil são votadas coletivamente. Constato que é preciso cada vez mais resistir às influências externas para preservar esse espírito. A argumentação em favor de um maior individualismo é mais elaborada que em 1968. O sistema de reservas de lugar é um bom exemplo dessas tensões. Não fazemos a alocação de lugares por computador. Um senhor ou senhora atende todo mundo por telefone e anota numa grande folha amarela. Às vezes, muitos do próprio público, depois de dez minutos de conversa na qual relataram coisas pessoais, indagam: “Por que vocês não permitem escolher os lugares pela internet?” Nós somos obrigados a responder que é exatamente para que possamos passar dez minutos agradáveis num intercâmbio com eles. […] É preciso apenas saber a partir de que momento a internet embota ou suprime o terreno fértil que se chama pura e simplesmente de relação humana. Pouco importa o fato de que atender essa exigência não mobilizaria, talvez, mais de quatro pessoas: trata-se de ser leal a um projeto. Faço isso para olhar em seus olhos, para compartilhar sua alegria na chegada, para sentir que você gosta de nós e para merecer sua presença. Pôr um computador entre nós me privaria de minha glória, que não é a celebridade. Minha glória é poder viver de pequenos momentos, muito efêmeros, nos quais digo a mim mesma que fiz o que tinha de fazer.

A EPOPEIA E A UTOPIA

EDIÇÕES SESC São Paulo

Eu me sinto privilegiada. A vida me deu o que eu queria. Eu queria viver uma vida de teatro com meus amigos, com um grupo. No início, pensava em amigos da minha idade e, como a sorte foi generosa com o Théâtre du Soleil, me encontro hoje com amigos que são talvez vinte, trinta, quarenta anos mais jovens que eu. Tenho 74 anos, e há na companhia um rapaz de vinte que chamo de “meu jovem amigo”.

PERSPECTIVA

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