O THÉÂTRE DU SOLEIL

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“Eu acho que o teatro é feito para narrar o mundo, para torná-lo claro para nós e nos dar a força de compreendê-lo e, portanto, de transformá-lo. Eu não imagino esta arte sem sua relação com o mundo.” As palavras de Ariane Mnouchkine, fundadora e diretora do Théâtre du Soleil, definem bem o espírito de sua trupe, um dos mais criativos grupos de teatro do mundo da atualidade, marcante por sua longevidade, seu percurso exemplar e o renome internacional alcançado por seus espetáculos. Béatrice P ­ icon‑Vallin – na companhia das vozes daqueles que fazem o Soleil – narra a epopeia de um grupo de teatro que se distingue, em conjunto com a qualidade de suas criações artísticas, pela originalidade de seu funcionamento, por seus métodos de trabalho e por uma relação com o mundo que funde vida e arte. Premiado como o melhor livro sobre teatro na França, O Théâtre du Soleil: Os Primeiros Cinquenta Anos, que a Perspectiva e as Edições Sesc São Paulo ora publicam, com uma numerosa iconografia em grande medida inédita, é tanto o relato histórico sobre a trupe como uma bem-sucedida forma de traduzir esse espírito corajoso e inovador em uma obra que o apresenta à luz da fulgência solar da recomposição histórica e crítica de Béatrice Picon-Vallin.

BÉATRICE PICON-VALLIN

Extraído de duas conferências proferidas em Calais, em março de 2013, transcritas por Jean-Christophe Planche e publicadas em Les Carnets du Channel n. 1, Calais, jan. 2014. Agradecimentos a Francis Peduzzi.

O THÉÂTRE DU SOLEIL

Ariane Mnouchkine

OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS

Trabalho com gente de trinta anos e não sinto a diferença de idade, pois são meus companheiros de epopeia. Ser uma trupe de teatro é épico e é provavelmente por isso que a criamos. Sou privilegiada porque tenho a sensação, com maus momentos e bons, de viver uma pequena epopeia. Ela não precisa ser grande, a partir do momento que é verdadeira e condensada. É, a uma só vez, falstaffiana, ridícula e maravilhosa. Não se pode viver uma epopeia quando se está só. O início de uma epopeia é quando se escolhe, se decide por completo fazer algo com seu grupo. É por isso que eu rendo homenagens às associações mesmo se, às vezes, elas me irritam: elas liberam uma energia épica, pois lutam por tudo. A utopia não é irrealizável. A utopia é o possível ainda não realizado. Ela pressupõe uma alegria. Não deve dar lugar ao desânimo. Nós recebemos subvenções, nós utilizamos nosso dinheiro, seu dinheiro: nosso teatro não é feito para que nos desesperemos do mundo ou para expressar uma depressão, se houver. O teatro deve alimentar, desenvolver músculos, engrandecer. Quando fazemos um espetáculo, nos fixamos em melhor compreender o mundo e nos tornarmos pessoas que, momentaneamente, podem tentar torná-lo compreensível por sentimentos e sensações e, mais exclusivamente, pela cabeça e razão. Não se trata de começar algo dizendo que está perdido. Sob o pretexto de que as vitórias são raras e efêmeras, não se celebra mais. Em Paris, particularmente, somos exímios em adotar ares de entendido, mas isso não serve para nada. É falso. É uma boa estratégia celebrar a boa vontade e as pequenas vitórias sabendo que o dia seguinte vai ser menos recompensador. O coração da epopeia está aí. Já fui obrigada a considerar com seriedade o futuro do Théâtre du Soleil quando não tinha mais forças. [...] Nesse instante, uma jovem presente no debate pergunta a Ariane Mnouchkine como ela definiria o teatro em uma palavra. Ariane devolve a pergunta, indagando como a jovem o faria. Esta responde “o sonho”. Essa definição me cai bem, mas eu acrescentaria uma frase que dizemos regularmente no Théâtre du Soleil. Ela é de Jirˇí Trnka, um grande artista tcheco: “A condição do maravilhoso é o concreto.” O teatro é um sonho que está aqui no presente. É a arte da poesia concreta e carnal.

Diretora emérita de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), Béatrice Picon-Vallin consagra parte de suas investigações à história e à teoria da encenação. Dirige as coleções dedicadas às artes do espetáculo Mettre en scène (Actes SudPapiers), TH 20 (L’Âge d’Homme) e Arts du spectacle (CNRS Éditions). É autora, entre outros, de A Cena em Ensaios (Perspectiva, 2008) e Meierhold (Perspectiva, 2013).

O THÉÂTRE DU SOLEIL

OS PRIMEIROS CINQUENTA ANOS

BÉATRICE PICON-VALLIN

A FIDELIDADE ÀS ORIGENS O Théâtre du Soleil teve a sorte de nascer antes de 1968. Somos bem mais crias do espírito do pós-guerra, de uma época na qual se acreditava que a sociedade se tornaria mais culta, mais justa, mais fraterna. […] Nosso modo de funcionamento, quase cinquenta anos depois, permaneceu bastante fiel ao que nós nos prometemos. A igualdade de salário existe ainda hoje. Cada um que está a cargo de qualquer tarefa contribui para o funcionamento do Théâtre du Soleil. […] As grandes decisões são tomadas unanimemente. Não reunimos a companhia para decidir a compra de um lápis ou de um software, mas a escolha do tema do próximo espetáculo e todas as decisões que influenciam o caminho do Théâtre du Soleil são votadas coletivamente. Constato que é preciso cada vez mais resistir às influências externas para preservar esse espírito. A argumentação em favor de um maior individualismo é mais elaborada que em 1968. O sistema de reservas de lugar é um bom exemplo dessas tensões. Não fazemos a alocação de lugares por computador. Um senhor ou senhora atende todo mundo por telefone e anota numa grande folha amarela. Às vezes, muitos do próprio público, depois de dez minutos de conversa na qual relataram coisas pessoais, indagam: “Por que vocês não permitem escolher os lugares pela internet?” Nós somos obrigados a responder que é exatamente para que possamos passar dez minutos agradáveis num intercâmbio com eles. […] É preciso apenas saber a partir de que momento a internet embota ou suprime o terreno fértil que se chama pura e simplesmente de relação humana. Pouco importa o fato de que atender essa exigência não mobilizaria, talvez, mais de quatro pessoas: trata-se de ser leal a um projeto. Faço isso para olhar em seus olhos, para compartilhar sua alegria na chegada, para sentir que você gosta de nós e para merecer sua presença. Pôr um computador entre nós me privaria de minha glória, que não é a celebridade. Minha glória é poder viver de pequenos momentos, muito efêmeros, nos quais digo a mim mesma que fiz o que tinha de fazer.

A EPOPEIA E A UTOPIA

EDIÇÕES SESC São Paulo

Eu me sinto privilegiada. A vida me deu o que eu queria. Eu queria viver uma vida de teatro com meus amigos, com um grupo. No início, pensava em amigos da minha idade e, como a sorte foi generosa com o Théâtre du Soleil, me encontro hoje com amigos que são talvez vinte, trinta, quarenta anos mais jovens que eu. Tenho 74 anos, e há na companhia um rapaz de vinte que chamo de “meu jovem amigo”.

PERSPECTIVA

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