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TRAJETÓRIAS IDIOSSINCRÁTICAS APRESENTAÇÃO
O projeto construtivo brasileiro nas artes plásticas é idiossincrático. Temporalmente situado nas décadas de 1950 e 1960, reflete a influência exercida tardiamente pelas vertentes construtivas europeias no campo artístico brasileiro, a saber, o construtivismo soviético, o neoplasticismo, a Bauhaus e a Escola de Ulm. Algo da peculiaridade desse projeto de vocação vanguardista provém do fato de que, antes dele, sequer as rupturas desencadeadas pelo cubismo nos esquemas pictóricos de representação haviam sido suficientemente absorvidas pelos artistas do nosso primeiro modernismo.
É o crítico de arte Ronaldo Brito que afirma que as disruptivas operações plásticas realizadas, nas primeiras décadas do século XX, por artistas como Picasso e Braque, não foram completamente incorporadas pela produção de expoentes nacionais como Tarsila, Di Cavalcanti e Portinari. Segundo o crítico, embora esses artistas tenham se apropriado de algumas conquistas modernizadoras do cubismo, suas pinturas ainda conservam antigos preceitos representacionais. Logo, os artistas à frente do projeto construtivo brasileiro tomariam para si a dupla tarefa, por um lado, de efetivar a inserção do Brasil no tabuleiro de conquistas formais da arte moderna e, por outro, de levar adiante a objetividade testada, através da abstração e da visualidade pura, por artistas como Malevich, Mondrian e Max Bill, com base em critérios decididamente racionais e funcionalistas.
Articula-se a esses compromissos, ademais, a intenção dos artistas concretos paulistas de estender suas práticas de criação visual aos setores da produção industrial, com vistas a ampliar a penetração da arte na sociedade por meio da lógica aplicada. Nisso reside outra particularidade da proposta construtiva local, que projeta num ambiente industrial ainda incipiente (recém-alavancado pelo desenvolvimentismo do Estado Novo) a ambição de elevar o nível estético da população e de aperfeiçoar o ambiente social através dos produtos utilitários que o povoam – à revelia de uma crítica estrutural do sistema de produção capitalista, diga-se.
Inversamente, esse mesmo “parque industrial” terá fornecido elementos determinantes para a obra de Hermelindo Fiaminghi, artista cuja trajetória é marcada por movimentos singulares na interação com o Grupo Concreto Paulista, do qual fez parte. O ofício de litógrafo em uma das maiores gráficas de São Paulo está na base de sua pintura, uma vez que a decomposição e a recombinação de formas e cores correspondem a um aspecto comum entre a criação artística geométrica e a reprodução técnica de imagens. À ortodoxia racionalista pontificada por líderes como Waldemar Cordeiro, Fiaminghi contrapõe uma atitude de suspeita frente à dominação da razão e ao determinismo concreto, abrindo caminho para a incerteza da forma subjetiva.
Conhecer as especificidades do processo de criação desse artista – sempre às voltas com os segredos da cor – nos permite olhar tanto para o concretismo como para seus representantes de maneira menos monolítica, transcendendo relatos totalizantes e simplificadores que, ao repisar o tão propalado dogmatismo do movimento paulista, tendem a obscurecer suas heterogeneidades internas. A relação tensa estabelecida por Fiaminghi com os princípios desse empreendimento artístico revela, a um só tempo, os limites do nosso projeto construtivo e as características únicas da obra desse artista, que, tendo rompido com a arte concreta na década de 1960, adota a noção de Corluz como uma espécie de guia para a sequência de suas investigações plásticas.
Perpassado por aspectos biográficos, Fiaminghi: Corluz traz uma análise detida da obra do artista, a partir da eleição de exemplares paradigmáticos dos diferentes momentos de sua produção pictórica, com foco no período entre os anos 1950 e 1990. A esse conjunto, somam-se artigos selecionados, cronologia, entrevistas e depoimentos, perfazendo um panorama favorável à compreensão não apenas do sistema visual constituído por Fiaminghi ao longo da carreira, mas também de suas contribuições para a história da arte brasileira.
Para o Sesc São Paulo, a edição deste estudo representa a oportunidade de trazer a público, de maneira estruturada e detalhada, os contextos, as ideias e os desejos inerentes à obra de um criador que vasculhou, incansavelmente, as possibilidades expressivas da cor.
DANILO SANTOS DE MIRANDA Diretor do Sesc São Paulo