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DO CONCRETO GEÔMETRA AO CONCRETO BARROCO

Na década de 1950, Fiaminghi foi do abstracionismo ao desconforto da arte concreta. Contaminou-se pelo vírus da invenção trazido pelo Grupo Noigandres e pela sabedoria de Volpi, seu grande mestre. Ainda que bem recebido pelos pares, Fiaminghi não aceitava mais ser um reprodutor de modelos de terceiros. Não bastava para ele a cor como uma superfície: exigia encontrar os segredos, o negativo ou o avesso da cor, como aquela que tinha dentro de si, gravada pela natureza, na memória de sua prática como litógrafo.

A visualidade de Fiaminghi tornou-se uma educação pelo negativo da cor. Como litógrafo em pedra – quando os fotolitos não existiam e as matrizes das ilustrações ainda eram obtidas por processos manuais –, o artista decifrava as cores, ou seja, sabia convertê-las em seu negativo exato. Na pedra, não errava porque não podia errar, já que qualquer erro comprometeria o resultado final de seu trabalho e traria prejuízo à empresa. Aprendeu também a converter sua visão do mundo exterior em retículas. Onde um ser “normal” via uma cor e sua forma, Fiaminghi via as tramas das retículas e suas combinações para gerar os efeitos das cores na impressão e na percepção. Em outras palavras, o ato de ver era uma desconstrução, algo como um desvendamento, como se a imagem do mundo real, exterior, resultasse de um ato de ilusionismo, de uma mágica.

Essa crítica da prática da cor como ilusão provocou a “consciência infeliz” que motivava Fiaminghi a ir além da pintura concreta, geométrica. Ele obrigava-se a decifrar esse mistério da pintura: ser reflexo da coisa ou ser a própria representação da coisa. Um problema típico de filósofos, mas que ele deveria resolver como pintor. Ou seja: uma tarefa quase impossível.

A retícula impede a execução de contornos perfeitos. Não existem linhas retas reticuladas, elas são sempre descontínuas e denteadas. Imagens com contornos contínuos e regulares seriam um paradoxo para Fiaminghi. Por outro lado, ele sabia que as cores e as formas da natureza não são o objeto da pintura – podem ser o tema da representação pictórica, mas não são a própria representação. A pintura tem compromisso com as cores e as formas pintadas, aquelas que acontecem em cada tela e se reconhecem como um objeto estético.

No momento em que conheceu a transparência da têmpera nas pinceladas de Volpi, Fiaminghi reconheceu-a como o meio perfeito para fazer a desejada síntese da imagem de suas retinas com a imagem formada em seu mundo interior. Como consequência, passou a questionar a geometria e a cor chapada como representações pictóricas.

A partir de uma ideia do final da década de 1950, Fiaminghi realiza em 1960 uma série de retículas em offset com base em experiências com slides. Porém, era um exercício. Entre a técnica mecânica e o gesto manual da pintura, ficou com o humano.

Fiaminghi só parava de pintar nos momentos de crise. Foi assim entre 1981 e 1983, ainda na ressaca do encontro em Paris, em 1979, com Monet e Picasso, Paolo Uccello e David, e da retrospectiva de 1980, Fiaminghi: d écadas 50/60/70, no Museu de Arte Moderna de São

Paulo (MAM). Já com 60 anos, como um jovem aprendiz, a exemplo de Miró, decidiu recomeçar. Em seu sítio em Eldorado, ia todos os dias à beira da represa Billings para observar a luz e seu “comportamento”, como dizia, “brilhosa e brilhante, através das folhagens”, refletida nas escamas da água, como se gravando uma nova imagem na pedra litográfica da memória.

Nesse período, não produziu nenhuma tela. Mais do que contemplar, ele observava, rastreava, decifrava, buscava e investigava – uma micro e uma macroscopia, como se quisesse ver o que não tinha visto nunca. Depois de tanto torturar-se, aconteceu a sua iluminação. O anjo da pintura mostrou-lhe a verdade. Talvez por isso Décio Pignatari tenha chamado o período posterior do artista de “depois da verdade”. Mesmo “sem saber se a cor é da imaginação ou será que ela é também do olho”, passou a exteriorizar o que tanto observara na natureza, à beira d’água, processado por seu inconsciente e por sua ação pictórica. Suas telas, que chamou de “novas”, encerram o período de implosão da geometria concreta. Passou a assumir-se como um concreto barroco. A composição tornou-se excêntrica, sem um núcleo central, apesar de algumas recaídas. O movimento da pincelada transpôs-se ao movimento das estruturas cromáticas, como aquele das lanças de Paolo Uccello. Ousaria dizer, diacrônicas. A têmpera tornou-se ainda mais fluida e transparente. Quase diáfana, mais sutil que em Volpi. Descobria as “escamadas volutas” que Haroldo de Campos reconheceu nos escritores barrocos.

A partir daí, o que comandou a vida de Fiaminghi foi a urgência de pintar. “Não vim ao mundo a passeio… o tempo urge…” E, todos os dias, como um frade religioso, recolhia-se em seu ateliê para os fazeres da pintura. Nos anos seguintes, a sua obra foi sua vida, sua história.

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