GABRIEL ABRANTES: Coleção Arte, Trabalho e Ideal

Page 1

fabianaorg. de barros michel favre marcia zoladz gabrielabrantes etrabalhoarte,ideal

gabrielabrantes

etrabalhoarte,ideal

LES EXTRAORDINAIRES MÉSAVENTURES DE LA JEUNE FILLE DE PIERRE , 2019.

3

SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli Edições Sesc São Paulo Gerente Iã Paulo Ribeiro Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Clívia Ramiro, Cristianne Lameirinha, Francis Manzoni, Jefferson Alves de Lima Produção editorial Antonio Carlos Vilela Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti, Ricardo Kawazu Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel

fabianaorg. de barros michel favre marcia zoladz gabrielabrantes etrabalhoarte,ideal

FREUD UND FRIENDS , 2015.

7

03174-000 – São

internacionais de catalogação

RESPECT

Tel. 55 11 sescsp.org.br/edicoesedicoes@sescsp.org.br2607-9400/edicoessescspAr758GabrielAbrantes

Abrantes, Gabriel.

1.

Daddies,

© Fabiana de Barros, Michel Favre e Marcia Zoladz (orgs.), 2022 © Edições Sesc São Paulo, 2022 Todos os direitos reservados Tradução Leonardo Abramowicz (epígrafe e entrevista) English version Anthony Cleaver Preparação Elen de Amorim Durando Revisão Rosane Albert, Maiara Gouveia Projeto gráfico, capa e diagramação Rico Lins +Studio, Julieta Sobral Foto de capa Les Extraordinaires Mésaventures de la jeune fille de pierre; quarta capa OρνιOες / Ornithes – Os pássaros – Birds

Ficha

Edições Sesc

elaborada

2. Cinema experimental. 3. Videoarte.

Os produtores a seguir cederam gentilmente os frames de seus filmes usados neste livro: ARTIFICIAL HUMOURS: Anarchist King, Razor Thin Definition of Punk, Dear God Please Save Me, Os humores artificiais; ARTIFICIAL HUMORS e INDIELISBOA: Freud Und Friends; ARTIFICIAL HUMORS e LES FILMS DU BÉLIER: A Brief History of Princess X, Les Extraordinaires Mésaventures de la jeune fille de pierre; GABRIEL ABRANTES: Too Many Mommies and Babies; LES FILMS DU BÉLIER: Ennui Ennui; LES FILMS DU BÉLIER, MARIA & MAYER e SYNDROME FILMES: Diamantino; MUTUAL RESPECT PRODUCTIONS: OρνιOες / Ornithes – Os pássaros – Birds, Taprobana, A History of Mutual Respect; MUTUAL PRODUCTIONS e CURTAS VILA DO CONDE: Baby Back Costa Rica. pp. 62, 63 e 71 Susana Pomba São Paulo Rua Serra da Bocaina, 570 – 11º andar Paulo SP Brasil / Organização Fabiana de Barros; Michel Favre; Marcia Zoladz. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2022. –152 p. il.: fotografias. bilíngue: português/inglês. (Coleção Arte, Trabalho e Ideal). Bibliografia; Glossário ISBN 978-65-86111-49-1 Cinema. 4. Gabriel Abrantes. 5. Cineasta. I. Título. II. III. Barros, Fabiana de. IV. Favre, Michel. V. Zoladz, Marcia. CDD 791.4 Dados na publicação (CIP) catalográfica por Maria Delcina Feitosa CRB/8-6187

Stills

apresentação . 12 Danilo Santos de Miranda introdução . 17 Fabiana de Barros Michel Favre Marcia Zoladz gabriel abrantes: outros mundos são possíveis . 22 João Laia entrevista . 36 por Michel Favre filmes . 72 bibliografia . 112 glossário . 113 biografias . 115 english version . 118 sumário

FREUD UND FRIENDS , 2015.

11

Assim, consoante às noções de liberdade e autonomia, caras em sig nificado e propósito ao Sesc – que se traduzem em ações depositárias de um legado de reflexão e produção coletiva –, realiza-se o envolvimen to de distintos agentes da área educativa, social e cultural.

Segundo Mário Pedrosa, “A arte é o exercício experimental da liberdade”, ideia que sugere indagações acerca da complexidade a qual pertence esse ofício e nos convoca a refletir sobre as camadas visíveis e invisíveis do campo artístico que, por vezes, esgarçam as fronteiras de outras áreas do conhe cimento. Tal maleabilidade insinua frestas para potentes transformações, já que se configura como um território fértil para perscrutar as questões hu manas e os dilemas existenciais, acessando esferas sensíveis e simbólicas.

12 apresentação

Nesse contexto, a iniciativa em publicar uma coleção voltada para as ar tes visuais almeja colaborar para a difusão de saberes, propiciando o acesso

Nas mãos do artista, as possibilidades experimentais se desenham como potências imensuráveis. O ato criador propicia conectar distintas linguagens, bem como adotar o uso de tecnologias contemporâneas ou advindas de tempos remotos, que ora se amalgamam ora se permutam, para esfacelar ou perpetuar anseios, costumes e visões sobre o mundo. É na urgência de verter ideias que o artista traça o extraordinário e lança-se em busca do desconhecido, arriscando inovações estéticas ou recriando perspectivas. Numa métrica imprecisa, a decantação de vivências decorrentes do fa zer artístico e sua fruição colaboram na construção de acepções e prováveis sentidos que, por vezes, passam a pertencer ao âmbito histórico das ações humanas. Passado que se faz presente nas atividades inventivas, pois car regam tradições milenares, consolidando um lastro narrativo inerente à arte.

Nessa perspectiva, o entendimento da publicação de livros como patrimônio cultural reúne subjetividades e ancora ações para viabilizar a democratização e a variação de recursos no acesso à arte. Em certa medida, a noção de memória é sugerida tanto pelo próprio formato co lecionável – podendo caracterizar um pequeno acervo sobre o assunto – quanto pelo acesso às lembranças dos artistas por meio das entrevistas, aprofundando a construção de uma biografia atrelada às questões artís ticas que passam a compor o repertório de cada leitor.

O terceiro volume da coleção aborda o trabalho de Gabriel Abrantes, artista multidisciplinar, cineasta e professor. Sua obra transita por um vasto universo temático, permeável às mais diversificadas referências. No processo de criação, considera os aspectos experimentais, valorizan do a dimensão lúdica da arte, com apurada visão crítica sobre os meios e modos de produção. Em seus filmes e vídeos, exibidos tanto no circuito artístico quanto em canais comerciais, explora procedimentos artesanais e a estética do cinema popular, forjando uma filmografia situada na fron teira entre realidade e ficção. As recorrentes indagações sobre o complexo momento contemporâneo são enfrentadas em sua obra não com respostas, mas com humor e sarcasmo, contrariando o sentimento coletivo de impotência e crise inesgotável. Ainda como reação a tal contexto, o artista inventa outras prováveis realidades. Que possamos experimentar também a potência libertadora da imaginação. DANILO SANTOS DE MIRANDA Diretor do Sesc São Paulo

13 e a aproximação com distintas poéticas, por meio de variados olhares e práticas a respeito desse universo. Dessa forma, ao se defrontar com a espessura do presente, a coleção Arte, trabalho e ideal, organizada por Fabiana de Barros, Michel Favre e Marcia Zoladz, apresenta recortes de histórias de vida dedicadas às dimensões do fazer artístico, contextuali zando o artista e sua obra por meio da escrita e das imagens, revelando os plurais modos de reinventar o mundo para si e para o outro.

ELEMENTO GRÁFICO PARA O FILME OS HUMORES ARTIFICIAIS , 2016.

15

LIBÉRATION, 6 DE NOVEMBRO DE 1995

GILLES

16

Parece-me que o cinema comporta muitas ideias. O que chamo de ideias são as imagens que fazem você pensar. De uma arte à outra, a natureza das imagens varia e é inseparável das técnicas: cores e linhas para a pintura, sons para a música, descrições verbais para o romance, imagens em movimento para o cinema etc. E, em cada caso, os pensamentos são inseparáveis das imagens, são completamente imanentes às imagens. Não existem pensamentos abstratos que se realizem indiferentemente em tal ou qual imagem, mas pensamentos concretos que só existem por essas imagens e seus meios. Identificar as ideias cinematográficas é, portanto, extrair os pensamentos sem abstraí-los, compreendê-los em sua relação interna com as imagens-movimento. DELEUZE, ENTREVISTA COM SERGE DANEY,

Quando o pensamento se torna forma, impulsionado por um processo coletivo, ele carrega consigo as condições de sua urgência. Essa, por sua vez, é renovada pela prática e inscrita em sua época.

Investigar “arte, trabalho e ideal” é como colocar em uma perspectiva triangular as relações entre o artista, os meios que ele emprega e a cole tividade. É uma geometria tão variável e mutável quanto existem práticas, pensamentos e indivíduos. Um triângulo sempre em movimento, como um protótipo que escapa às modelizações.

O trabalho do artista é abordado como um ato de transformação feito de tensões e resistências entre uma intenção e um gesto, uma ideia e um ideal, em contextos incessantemente redefinidos.

17 introdução

A coleção Arte, trabalho e ideal é um convite para caminhar pelo ateliê do artista e questionar os três polos desse triângulo. Cada livro é compos to de duas partes complementares. Um texto crítico original, escrito por uma personalidade notória escolhida pelo artista, apresenta o seu trabalho e o situa em seu contexto de produção.

Em seguida, uma entrevista com o artista na qual a arte é abordada, aí em função de uma prática e de meios orquestrados segundo um ideal. Às vezes, o essencial se desdobra em função do percurso do artista, de suas referências ou daquilo que o motiva. Outras vezes, trataremos as escolhas técnicas como extensões do pensamento, ou mesmo ferramen tas, consideradas próteses para aumentar certas capacidades em diálogo com o ideal perseguido. São esses meios, técnicas e objetivos que estão no centro da coleção.

“Grandecomportamentos.partedaarteque

mais me inspirou veio de trabalhos que ten taram revelar uma moral oculta dentro de gêneros, formatos ou tecnolo gias que ainda não estavam identificados.” Ao afirmar seu apego à experimentação, Abrantes deforma o triângulo “arte, trabalho e ideal” em direção à sua dimensão mais lúdica, a de uma arte que assume ser impura, atravessada por um pensamento crítico so bre seus meios e modos de produção. Essa geometria em movimento atesta a fabulosa complexidade do mundo e a necessidade insaciável do artista de questioná-la, medi-la e inventá-la.

Através de filmes e vídeos exibidos tanto no circuito das artes como em canais comerciais tradicionais, Gabriel Abrantes desenvolve um con junto de obras que refletem a nossa sociedade contemporânea em toda a sua diversidade. Ao reivindicar com humor os códigos e a estética do cinema popular, e sem hesitar em filmar em cenários propositadamente precários, Abrantes recorre ao exagero para questionar nossos pontos de vista e

18 FABIANA DE MARCIAMICHELBARROSFAVREZOLADZ

PREMIERE 15.02.2017 16:00 CINEMAXX 5 • 16.02.2017 21:30 CITY KINO WEDDING 16.02.2017 22:00 CINEMAXX 3 • 18.02.2017 17:00 COLOSSEUM 1 • 19.02.2017 17:00 COLOSSEUM 1 CARTAZ DO FILME OS HUMORES ARTIFICIAIS , 2016.

SET DE FILMAGEM EM GREEN BOX DO FILME A BRIEF HISTORY OF PRINCESS X, 2016.

21

LAIA Gabriel Abrantes: outros mundos são possíveis

O trabalho de Gabriel Abrantes utiliza diversas linguagens para se articular, materializando-se, entre outros, nos campos da escultura, pintura ou músi ca. No entanto, é na área do cinema que a sua prática se tem concentrado de forma mais consistente: até o momento e desde a década de 2000, Abrantes produziu cerca de vinte filmes. Sem abandonar outras mídias, às quais regressa de forma intermitente, a sua obra cinematográfica configu ra uma coleção eclética, característica identificável, por exemplo, no trân sito entre diferentes contextos de apresentação, que incluem o auditório, a black box e o white cube. Desde o início da sua atividade e explorando um território híbrido situado entre o cinema e as artes visuais, o artista vem de senvolvendo um diálogo íntimo com a história da imagem em movimento, comentando-a e atualizando-a. Um dos gestos mais marcantes de sua pesquisa é a reconfiguração de formatos conhecidos dessa história, desde os gêneros de Hollywood até o cinema experimental, passando pela vi deoinstalação e as séries de televisão, incluindo também os mais recentes modelos difundidos através de plataformas digitais. Essa capacidade de adaptação e apropriação de diferentes espaços físicos e simbólicos ecoa as narrativas polifacetadas dos próprios trabalhos, e pode também ser

JOÃO22

interpretada como consequência da maleabilidade inerente a tais retratos. É no interior desses tipos de deslocamentos que Abrantes documenta as transformações profundas do mundo a que pertencemos, enquanto, ao mesmo tempo, explora atualizações da imagem em movimento.

23

Entre muitos exemplos possíveis: Olympia I & II (2006) subverte o icônico retrato de uma prostituta; em A History of Mutual Respect (2010), dois amigos rumam à selva sul-americana para encontrar uma indíge na “pura”; Liberdade (2011) reformula as tensões entre África e China através do relacionamento amoroso de dois jovens; Taprobana (2014) imagina as práticas sexuais de Luís de Camões; Freud und Friends (2014) mergulha nas tensões eróticas subconscientes de um cientista; e A Brief History of Princess X (2016) formula uma relação íntima entre a prática de BABY BACK COSTA RICA , 2011.

Brancusi e a anatomia e os comportamentos sexuais da mulher. Os seus filmes descrevem e habitam realidades complexas que se encontram localizadas em espaços e territórios onde, nas palavras do próprio artista, ”o futuro toma forma”. À luz desse contexto, a recorrência de narrativas nas quais os temas relacionados à sexualidade têm uma centralidade marcante, que pode ser utilizada como fio condutor do seu corpo de trabalho, personificando a emergência contemporânea de novas formas de identidade.Paraalém desses tipos de cenários de teor diretamente sexual, en contramos também articulações mais sutis do tema, construídas ao re dor da paternalidade ou, de forma mais genérica, relacionadas a ques tões de parentesco ou de pertença familiar, tópicos que incluem, por sua vez, temas estruturais como identidade ou origem. Visionary Iraq (2006) apresenta-nos um quadro de incesto; Too Many Daddies, Mommies and Babies (2008) explora novamente o incesto aliado a uma barriga de alu guel; Palácios de pena (2011) expõe a relação entre duas netas e a sua avó; Ennui Ennui (2013) apresenta-nos Obama como progenitor de um drone; e Diamantino (2018) retrata uma série de relações familiares confusas, es pecialmente no que concerne à criança adotiva do personagem principal.

ESTHER GARREL EM ENNUI ENNUI , 2013.

24

Olympia I & II (2006) e Too Many Daddies, Mommies and Babies (2008) introduzem o vasto imaginário que o seu trabalho constrói e habita. Tal como o nome indica, Olympia I & II faz referência ao célebre quadro de Manet. Correalizado com Katie Widloski, os filmes estruturam-se por meio de um jogo de espelhos, ativado tanto no seu interior, na relação entre as duas partes da obra, como no diálogo que estabelece com a pintura de Manet. Ao animar e reconfigurar Olympia (1863), o filme afirma o po tencial de reprodução da mídia cinematográfica em oposição ao caráter único da pintura, ao mesmo tempo que complexifica a narrativa original com o desdobramento das suas personagens. Abrantes e Widloski mul tiplicam a sua presença como atores (e realizadores): no primeiro filme, Widloski é Olympia e Abrantes é a sua assistente; no segundo, Widloski é a assistente e Abrantes é Olympia. Essa confusão deliberada entre ator -personagem é expandida através do caráter agressivo e coloquial dos diálogos, das revelações íntimas das personagens e do aparecimento de props, como a garrafa de Coca-Cola, supostamente estranhas à narrativa original, bem como no decorrer das relações sexuais intuídas ou repre sentadas. A utilização da anacrônica e ofensiva estratégia de black face prolonga a confusão entre ator, personagem e referente, aparentemente

25

Deve-se realçar ainda outras manifestações dessas questões identi tárias: a presença, como ator, do próprio Abrantes em diversos filmes, as inúmeras colaborações, assinando muitos trabalhos em coautoria, e as várias referências às histórias do cinema e da arte. A recorrência desses temas inter-relacionados, família e sexualidade como articulações da fi gura autoral ou como definição de origem, pode ser lida como marcas do interesse do artista pelo momento de crise que habitamos, interpretado como um período de mudança extrema, no qual se materializa uma crise identitária generalizada. Os contextos sociais retratados nos seus filmes são transculturais, pertencendo simultaneamente a diferentes contextos, origens e tempos. Esses trabalhos projetam identidades híbridas e mu tantes que sublinham a fluidez peculiar à existência contemporânea num mundo em metamorfose.

É ainda assinalável a tensa relação entre a frágil e nostálgica melodia de piano e as várias desconstruções de posições de poder que o filme retrata. Talvez o enunciado mais relevante de Olympia I & II seja exatamente este: uma crítica que reconfigura posições tradicionais de poder habitualmente associadas à condição masculina, branca e heterossexual, transferindo-as para outras pertenças étnicas, de gênero ou de orientação sexual. Na sua brevidade e inocência aparentes, Olympia I & II é um objeto importante, introduzindo várias interrogações que obras posteriores articulam com maior profundidade.

TOO MANY DADDIES, MOMMIES AND BABIES , 2008. Too Many Daddies, Mommies and Babies encena uma situação-limite, num futuro próximo, em que apenas uma pequena área da floresta Amazônica subsiste. Três cientistas tentam salvar esse último reduto do

26 tendo como objetivo denunciar a herança racista da história (do cinema).

27 pulmão da Terra, uma missão que se revela infrutífera, em parte devido à sabotagem de um dos elementos da expedição. A narrativa complica-se com uma história paralela, na qual um casal homossexual utiliza uma jo vem economicamente desfavorecida como barriga de aluguel. As mortes paralelas da mãe durante o parto e de um dos amantes num desastre de automóvel configuram uma família improvável constituída por dois ir mãos e um bebê, entregando o futuro da humanidade a uma situação de incesto. A narrativa hiperdramática é enfatizada pela sobreposição entre escalas macro e micro, situadas entre o apocalipse ecológico e a comple xa situação paternal, ambos sintomas de uma espécie humana em vias de extinção. Para além do claro comentário a uma moralidade conservadora, desenhando uma situação não tradicional de procriação como a única possibilidade de sobrevivência, o caráter queer do trabalho é sublinhado pela referida dramaticidade e, em especial, pela dimensão artificial do fil me. Os diálogos são dobrados de forma artesanal, sendo facilmente iden tificável uma dissociação entre imagem e som. Os cenários também são marcados por uma teatralidade extrema, quase camp, uma característica ampliada pelo trabalho de luzes, definido por cores fortes e também pela banda sonora, marcada por um tom melodramático excessivo. No imagi nário de Abrantes, o desaparecimento da floresta Amazônica é associado à dominação contínua de formas arcaicas de poder que, numa perspec tiva intersecional, são responsáveis pela opressão de outras modalidades de família, impedindo a humanidade de avançar para formas de existência mais inclusivas e plenas e, por isso, condenando-a e a todo o planeta à extinção.

Palácios de pena (2011) e Taprobana (2014) olham para o passado a fim de analisar a permanência atual de dinâmicas históricas de domina ção. Taprobana subverte a imagem de Camões, conhecido como o pai da língua portuguesa. É um retrato pleno de humor que descreve o poeta como alguém cujas decisões são marcadas por uma clara falta de ética aliada a uma sexualidade febril, ambientado num cenário onde os con ceitos cristãos de céu e inferno se encontram refrescantemente próximos.

28 Os 59 minutos de Palácios de pena reformulam o passado de Portugal, fazendo referência a distintos períodos, entre os quais a época islâmica e a Inquisição, e sobrepondo, uma vez mais, narrativas históricas e pessoais num processo que ilude definições claras de causalidade.

O filme sublinha a dimensão onírica do cinema, expandindo o inte resse iconoclasta de Abrantes pela sexualidade, que aqui aparece como força motriz, muitas vezes acidental, de “progresso”. É talvez em Liberdade (2011), correalizado com Benjamin Crotty, que a crítica do artista ao de senvolvimento histórico do poder por meio da tríplice aliança entre capi tal, colonialismo e patriarcado é iluminada de forma mais potente. Esse tipo de posicionamento interdependente entre modelos de exploração já tinha sido analisado em obras como Visionary Iraq (2006), nova colabo ração com Crotty, ou History of Mutual Respect (2010), correalizado com Daniel Schmidt, e cuja ironia do título se torna todo um manifesto sobre o passado e o presente do projeto colonial. Rodado em Angola, Liberdade utiliza a sexualidade como alegoria de uma complexa rede de tensões econômicas, históricas e políticas que marcam os processos contemporâ neos de domínio neocolonial. No interior do romance entre dois jovens, ela de origem chinesa e ele, angolana, que se comunicam entre si em inglês, configura-se uma situação em que as forças geopolíticas da globalização se manifestam. A impotência sexual do jovem torna-se um símbolo da recrudescência atual do colonialismo, uma história que se complexifica com o aparecimento da imagem-ícone de um barco em chamas de nome Marx encalhado numa praia, referência clara à nova ordem geopolítica pós-Guerra Fria, conflito que se materializou de forma extremamente vio lenta em Angola. Ennui Ennui (2013) expande esse modo de articulação de amplas ten sões geopolíticas contemporâneas. O filme-delírio materializa uma comple xa rede de conflitos no interior de uma narrativa, na qual, entre outros even tos, um chefe talibã rapta a filha do embaixador francês e Barack Obama tem uma estranha relação paternal com um drone. O humor de Abrantes tem poucos limites e é utilizado de forma paradoxalmente tradicional como

arma mordaz para questionar formas dominantes de entender e representar o mundo, subvertendo e ampliando as leituras disponíveis.

AREF BANUHAR E ESTHER GARREL EM ENNUI ENNUI , 2013. Em Freud und Friends (2014), o artista desempenha dois personagens, um com traços de Woody Allen e outro produto do subconsciente da per sonagem original, transformado num sedutor autoconfiante. Narrado por Herner Werzog, o filme assume o formato de um reality show, incorporan do no seu interior anúncios que marcam intervalos na narrativa. A dupli cidade do personagem, os filmes dentro do filme dos anúncios-sketches e o carácter serial do formato televisivo são ferramentas de multiplicação narrativa e sublinham o interesse de Abrantes em iluminar as várias pos sibilidades de interpretação do real, que, embora sejam habitualmente re jeitadas ou silenciadas, continuam a existir. Esse tipo de desdobramento explosivo evidencia a forma como o que geralmente é entendido como lógico ou normal contém, em si mesmo, uma dimensão absurda. Longe da sua pretensa naturalidade, aceitas de forma tácita e transmitidas como

29

DIAMANTINO , 2018. DIREÇÃO: GABRIEL ABRANTES E DANIEL SCHMIDT.

30 espontâneas, essas narrativas são, inversamente, resultado de escolhas conscientes definidas por posições de poder. Tal abordagem plástica a contextos históricos ou contemporâneos é ilustrada de forma explícita em The Hunchback (2016), uma colaboração com Ben Rivers. O curta-metra gem utiliza novamente o formato de reality show para travestir o passado, embora num contexto de ficção científica, levando a um ponto extremo a investigação sobre as camadas ficcionais das narrativas históricas. Ambientado algures no presente, em The Hunchback os concorrentes do concurso são enviados para um período genericamente identificável como pertencente à Idade Média. Lembrando o icônico filme Tron (1982), os efeitos especiais, utilizados diversas vezes para marcar a passagem, no interior da narrativa, entre espaço real e espaço ficcional, tornam-se indicadores claros do caráter artificial inerente aos processos de leitura e enquadramento do mundo e ilustram a inexistência de fronteiras claras entre o que é realidade e o que é ficção.

Diamantino (2018), o seu primeiro longa-metragem, reúne uma série de gestos recorrentes na filmografia de Abrantes, como a utilização do gênero biográfico para subverter um ícone português: em Taprobana, Luís de Camões; aqui, Cristiano Ronaldo. A apropriação de uma figura conhe cida do grande público, embora de uma tipologia extremamente diferente, ecoa o processo de Olympia, ambos utilizando uma imagem icônica para questionar processos naturalizados de construção do imaginário coletivo. Nunca referido de forma direta, é clara a referência ao desportista madei rense: embora reconfigurado como natural dos Açores, a caracterização e o desempenho espantosos de Carloto Cotta não deixam margens a dú vidas de quem está sendo referido e representado na tela. A confusão entre a personagem enunciada e a intuída, para além de ser uma forma prática de escapar a qualquer tipo de questão legal, torna-se também uma fonte quase inesgotável de humor e, como em outros casos, assinala a importância de uma proliferação de narrativas ou interpretações. De forma semelhante, a fluidez de gêneros e a sexualidade convulsa de outros tra balhos aparece aqui também, sendo utilizada como ferramenta de cons trução de personagens. Há ainda um interesse em localizar o filme no presente por meio de re ferências a eventos relevantes, como a crise de refugiados no Mediterrâneo, uma questão tratada de forma pouco politicamente correta. O mais recen te curta-metragem de Abrantes, Les Extraordinaires Mésaventures de la jeune fille de pierre (2019), continua essa inscrição no presente, sendo am bientado no contexto das manifestações dos gilet jaunes na França. Um trabalho exemplar na sua considerável filmografia, o filme foi rodado quase inteiramente no Museu do Louvre e anima diversas peças da coleção no interior de uma história de amor improvável entre uma escultura clássica e um artefato egípcio. Essa posição iconoclasta em relação à história da arte ecoa os gestos de Olympia I & II ou A Brief History of Princess X e ilustra bem o seu posicionamento em relação ao caráter maleável das histórias que definem a nossa relação com o mundo, desde as diversas formula ções de amor, família ou identidade até a interpretação do passado e a construção da história material das nossas sociedades.

31

32

O processo de trabalho de Abrantes centra-se em uma apropriação subversiva dos diferentes formatos da imagem em movimento, sendo ain da identificável uma sobreposição de diferentes citações que, ao funcio narem como veículos de identificação para o público, são infiltradas por narrativas cuja forma e conteúdo, unidos num processo de contamina ção, perturbam as estruturas e referências originais. Esse posicionamento emerge num contexto caótico de hiperinformação típica da época e cultu ra digitais, em que predomina uma grande disponibilidade de matérias-pri mas. De fato, esse tipo de contexto e processo parece ser significativo para Abrantes. O aparecimento constante nos seus trabalhos de objetos como laptops, smartphones ou tablets que funcionam como marcadores tempo rais, marcas da agência central desses objetos no momento contemporâ neo, podendo também ser entendidos como um gesto autorreflexivo sobre o seu próprio universo criativo e seu modo de produção, nos quais iden tidade e cultura são produtos contaminados e maleáveis, resultantes de hibridismos e mutações permanentes. Dessa forma, o caráter sintético do seu trabalho, que nesse sentido traduz uma atitude de distanciamento em relação a fórmulas estabelecidas do que é comum ou natural, pode ser lido A BRIEF HISTORY OF PRINCESS X , 2016.

33

LES EXTRAORDINAIRES MÉSAVENTURES DE LA JEUNE FILLE DE PIERRE , 2019. No trabalho de Gabriel Abrantes, a recorrente explosão de fronteiras entre realidade e ficção, o questionamento de posições de poder ou da possibilidade de identificações claras de origem e identidade não servem para construir uma posição puramente relativista, no interior da qual já não existe qualquer ponto de referência. De forma inversa, a sua descons trução é apontada às narrativas dominantes da contemporaneidade e que sustentam o status quo. Ao serem confundidas com o real, essas estrutu ras constroem uma inevitabilidade em termos da organização e da leitura do mundo, assente numa crença no progresso. No entanto, têm-se tradu zido numa ideia de crise permanente ou, pelo menos, recorrente, que não permite qualquer alternativa. Como reação direta a esse estado das coisas, o seu humor torna-se uma ferramenta essencial, evitando posicionamen tos apocalípticos ou fatalistas e contrariando uma impotência generalizada

como um método que traduz o seu universo, mas, principalmente, como indicação do seu interesse em iluminar e utilizar a plasticidade inerente às metodologias de narração históricas e contemporâneas, bem como do potencial de libertação que uma posição criativa e dinâmica permite em face a esses sistemas e narrativas.

34 diante da inevitabilidade das crises contemporâneas. Abraçando questões essenciais sobre a existência humana no planeta Terra e, sobretudo, assi nalando o cariz sistêmico e interconectado dos temas que aborda, o tra balho de Abrantes estabelece um arquivo polifônico do presente, apre sentando várias realidades na sua complexa interdependência. Dessa forma, os seus filmes estabelecem-se como um testemunho urgente da crise profunda que habitamos, mas também da possibilidade de construir outras realidades, demonstrando e sublinhando o poder libertador da ima ginação nesse processo. Uma sociedade que não consegue imaginar um futuro, formulando uma vontade e caminho de mudança em relação ao presente, é um coletivo sem horizonte. De forma clara e da perspectiva de Abrantes, outros mundos são possíveis.

Gabriel Abrantes é artista multidiscipli nar, cineasta e professor. Sua obra transita por um vasto universo temático, permeável às mais diversificadas referências. No processo de criação, considera os aspec tos experimentais, valorizando a dimensão lúdica da arte, com apurada visão crítica dos meios e modos de produção. Seus filmes e vídeos exploram procedimentos artesanais e a estética do cinema popular, forjando uma filmografia situada na fron teira entre realidade e ficção.

O triângulo “arte, trabalho e ideal” abrange o gesto artístico. O pensamento crítico o acompanha, e as técnicas o tornam possível. Esse gesto define a fabulosa complexidade da relação com o mundo e a insaciável necessidade que o artis ta tem de questioná-la, mensurá-la e inventá-la. Investigar esse univer so é o intuito desta coleção.

etrabalhoartecoleçãoideal

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.