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CRÔNICAS DE QUARENTENA
Fernando Vel Zquez
artista, curador e educador
Lembro daqueles dias em que parecia ser alarme falso, boato, exagero, mais uma daquelas coisas que acontecem do outro lado do planeta. Num piscar de olhos, parecia estar vivendo num conto de Wells ou Lovecraft, numa história de Borges, num romance de Murakami, numa série da Netflix. Realidade e ficção fundiram-se de forma inimaginada, absurda, insuportável, constrangedora. O que era evidente ficou patente, escancarado e lúcido: a fragilidade daquilo que chamamos civilização. E como se nada, à revelia dos que pautam o poder e na contravenção do tecnossolucionismo, a queda do céu nos coagiu a pensar estratégias para adiar o fim do mundo. No começo foi o advérbio. Como tudo isso afetará a vida, a família, os amigos, os vulneráveis, a saúde, o trabalho, os projetos? Junto vieram o espírito reflexivo e a dúvida existencial, fizemos por merecer! Sairemos dessa? Por momentos houve pânico, pagar os boletos, hospitais lotados, pânico generalizado. Houve até a conspiração de algumas sinapses, e se eu morrer? Paulatinamente, as preocupações com os rumos do próprio e do alheio foram dando lugar à vontade de mudar. Por dentro. Projetos protelados ressurgiram das memórias cinzas, passar mais tempo com a família e os amigos, cuidar do corpo da cabeça aos pés, estudar variado, menos tecnologia, menos consumo, menos é mais. Aí golfinhos apareceram em Veneza e aprendi a fazer pão. Só que não. Fazer suco de pedra não é tão fácil assim.
Não bastasse o tsunami de natureza que toca viver, tem a peste da política. E como todo cuidado é pouco, tirar a máscara só para gritar fora! pontualmente na hora do jornal. Angústia, desespero e destempero na perda de entes queridos, de figuras públicas, de seres. Assimilar que para alguns poucos as coisas da vida deram uma pausa, enquanto para a grande maioria a precarização acelerou, trouxe a culpa e a vontade de ajudar. A senoide de emoções não deu trégua… raiva, impotência, cólera, resignação, perseverança. Quanto cabe no devir.
A resiliência que tanto admiramos na natureza também nos habita, somos natureza na mesma medida em que o consórcio de proteínas hoje nos interpela. Quer dizer, por regra, a vida segue. Quase dois anos se passaram e, ao olhar pela janela, continuo com dificuldade de identificar o admirável mundo novo normal. Oxalá seja miragem, faz bem acreditar que tectônicas ínfimas, mesmo que sutis e invisíveis a olho nu, já estejam remixando as estruturas. Desce o machado, Xangô (roubei de um grafite em Salvador).
Do lado de cá, da janela, dezenas de lives e livros depois, ainda atravessado pelo efeito sanfona sideral, luto para que a inércia não tome conta. Persisto na tentativa de distinguir o que mudou para melhor e o que gostaria de deixar pra trás. Se alguma coisa tenho a oferecer ao repositório coletivo de histórias sobre “como boiei, e continuo boiando, nesse mar de incertezas”, é a confiança no fato de que a arte move montanhas. Sem metáfora, sem poesia nem fé, com ciência. Ao suspender o fluxo da vida cotidiana, a arte nos permite desafiar a entropia e driblar microscopicamente a desordem do mundo. A disrupção imanente do estar artista contorna as contraindicações do reducionismo e nos permite reacomodar a nossa biologia em arranjos potencialmente transformadores. Não penso a arte aqui desde a perspectiva da obra, das ideias e conceitos, e sim dos processos fisiológicos que ocorrem ao mergulhar numa episteme holística.
Mudar pequenos mundos, palavras-chave.
Post scriptum:
O povo é o inventalínguas
Na malícia da maestria
No matreiro
Da maravilha no visgo do improviso
Tenteando a travessia, Azeitava o eixo do sol
Circuladô de fulô
Caetano Veloso
A Nova Era
ANTONIO CURTI curador, cineasta e diretor artístico da AYA
“O que é arte?” Provavelmente, você já ouviu esta pergunta e diversas respostas que tentam explicar o inexplicável. Questionar a arte e a sua função é o mesmo que questionar o que é a vida. Arte e vida são sinônimos, palavras gêmeas intrínsecas e em conexão, que a mente humana não é capaz de explicar, mas que, no entanto, é capaz de sentir em formato de experiência.
A história da sociedade é baseada em mudanças voluntárias e involuntárias, fatores que provocam reações e que transformam a vida para que se adapte aos novos tempos. No setor artístico não é diferente. Que criemos um paralelo da situação atual que vivemos com a da peste negra que assolou o continente europeu no século XIV, em suas devidas proporções, o período sombrio deu lugar ao Renascimento, movimento artístico que revolucionou a arte e transmitiu uma mensagem de superação da vida após as perdas. A pandemia da covid-19 ainda não está controlada, mas já está dando lugar a uma nova forma de olhar o mundo e a uma nova forma de arte. Esta forma, na minha concepção, é uma nova era. É inegável que este momento que estamos vivenciando seja de grandes tristeza e preocupação. No entanto, que seja também de reflexão pessoal, de uma revisão de valores sobre o mundo e a vida. A maior habilidade do humano e da sociedade em geral é a de se readaptar à realidade diariamente. Esta é a hora de nos reinventarmos para que possamos projetar um futuro melhor. Pessoalmente, este foi um momento em que vi a minha vida mudar completamente, e não estou falando do que é palpável, mas sim dos meus pensamentos e prioridades. Eu poderia dizer de fatores mais superficiais, mas o que devo afirmar é que houve mudança e me faz ser quem sou. Agora é hora de olhar para a frente com otimismo e enfrentar de cabeça erguida o que o futuro nos aguarda. Como dizem por aí, não podemos deixar a peteca cair. Voltemos à arte. Se no passado o interesse humano se baseava na explicação, hoje se baseia na imersão. Em meio a um turbilhão contínuo de informações, um momento de silêncio, de paz, que possa agregar para a nossa formação. Não estou falando apenas da arte do setor de exposições e galerias, mas também das séries, filmes, peças, performances e demais formas em que a arte se faz necessária para a transmissão de conhecimento e de experiências. A nova era da arte é a era do interesse do humano de se tornar um só com o elemento artístico. Momento em que a arte se utiliza da tecnologia para criar poéticas que não seriam possíveis de outra maneira. Afinal, se a arte é um sinônimo da vida, e a vida muda constantemente, por que a arte não a acompanharia?