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CULTURAS DO BEM-VIVER EM TEMPOS DE PANDEMIA E PANDEMÔNIO
DANIEL IBERÊ DO POVO GUARANI M'BYÁ antropólogo, cientista social e pesquisador
Sobre os territórios indígenas ancestrais avançam o garimpo, a grilagem de terras, as queimadas, a pressão dos ruralistas para estender seus domínios, o agro-sempre-mais-tóxico.
O mercúrio envenena o solo, o ar, as águas, os humanos e não humanos, os visíveis e invisíveis – a licença ambiental não pede licença aos espíritos. A pata do boi prossegue sem descanso, a fumaça continua a sufocar, as palavras perdem sentido, enquanto as florestas perdem suas árvores. São tempos de pandemia e pandemônio, de imposição de pensamento, de esquecimentos, de monocultivo, de monocultura.
Uma única língua, uma única educação, cultura também única, um deus único e exclusivo, um poder que manda sem obedecer, que fala carregando mortos por entre os dentes, que se inventa senhor, que forja um mundo em que não cabem nossos mundos, cria desertos e diz que há paz – a paz triste dos cemitérios.
E apesar dessa longa noite que já dura séculos, corpos abertos, mãos dadas, cantamos nossos cantos ancestrais para a cura da terra, para impedir que o céu caia sobre nossas cabeças. Cantamos, brincamos, sorrimos sobre a superfície áspera do medo, replantando vidas: mundos de mundos vários, enfrentando o preconceito secular, a hierarquia excludente, racista, autoritária, de um país colonizado e que coloniza, que nos diminui, subtrai e entristece. Caminhamos sobre esta terra adoecida, carente de diversidade.
O que a monocultura do colonizador não consegue apagar, impedir ou suplantar, ela engole, mastiga e devolve, apropriada como uma monstruosidade deformada, sinônima de todos e de ninguém, como uma identidade genérica que nos estrangeiriza de nós mesmos.
Mas há algo nos fazeres culturais dos povos originários, nos modos de ser, pensar e sentir, que escapa a qualquer apropriação, a qualquer cooptação apropriadora. Rios de gentes que através da noite avançam em silêncio sobre os latifúndios da monocultura, indomáveis insurgências de memórias antigas que fazem voltar ao coração a dignidade rebelde, a rubra chama que a morte não verá extinta.
Essa chama vibra e reluz na fogueira acesa pelas mãos de Jaider Esbell, na fala, na arte, no canto rezo de Daiara Tukano, nos escritos artivistas de Márcia Mura, Julie Dorrico, Geni Núñez, Ailton Krenak, Daniel Munduruku, Francisco e Ewyryky Apurinã, Gersem Baniwa, Joaquim Maná…, Manoa (nos encantados versos de Manoa), na Beiradelia, na Ribeiriferia, na voz de Djuena Tikuna, Ibã Kaxinawá, está nos Txaná, no sopro ancestral de Hushahu Yawanawa, Mapulu Kamayurá, Nádia Tupinambá, Tata Endy, Davi Kopenawa, Tata Yawanawá.
Está no Grafitti, no Rapé, no Rap, no Hip-Hop, está nos Brô MCs, MC Xondaro, Oz Guarani, autodemarcando territórios no audiovisual, nos vídeos, nas aldeias, nas imagens captadas pelos olhares de Zezinho Kaxinawá, Larissa Ye’padiho, Genito Gomes, Isael e Sueli Maxakali, Divino Tserewahú, Patrícia Ferreira Mbyá, Ariel Kuaray Poty; está no comunicar para lutar e demarcar da Mídia Índia, está na rádio Yandê. Nos Aty Guaçu nos ATL. Está também nas palavras de fogo e águas de Valdelice Veron, Braulina Baniwa, Geraci Tikuna, Airy Gavião, Joênia Wapichana, Sônia Guajajara, Célia Xakriabá, Josiléia e Kretã Kaingang, Ibuí Pataxó, Edson Kayapó, Mirinju Guarani – porque nossas culturas não são menos que a arte de fazer política.
Está, do mesmo modo, nas culturas alimentares, nos alimentos livres de sangue de genocídio, está em Inara Saterê Mawé, Tainá Marajoara, em Marlinda Marubo Guarani Mbyá. Está na luta por tornar visíveis as lutas invisibilizadas, está na população LGBTQIAP+, mil vezes mais, está em Katu Mirim, Niotxaru Pataxó, Danilo Tupinaky’îa… Nos sonhos de tantas e tantos outros que, por tantos serem, não ouso falar.
Está nas veias, corpos e corações de todas, todes e todos nós, brotando desdobradas como ramagens às beiras das rodovias, nas periferias, nas cidades amuralhadas, nas paredes dos arranha-céus, nas esquinas, nas pequenas feiras, está na retomada de nossa dignidade, de nossos modos de ser, do Nhanderekó. As várias expressões da cultura são nosso sistema imunológico contra o assassinato de nossas memórias, contra a barbárie desses tempos difíceis em que vivemos, “sem conseguir respirar”.
Quem foi que disse que não temos cultura, temos folclore? Quem disse que não fazemos arte, fazemos artesanato? Quem foi que disse que essa forma de governar o mundo, o nosso mundo, é a maneira nossa? As culturas são lugar e berço dos nossos ancestrais, lugar em que acendemos a chama antiga, originária, enquanto ainda ardem na memória as chamas da última queimada, da última maloca incendiada, do último parente em chamas. Esse fogo também queima nossas palavras.
A cultura não existe fora de nós, corre por nossas veias. Qualquer tentativa de identificá-la de forma cristalizada e absoluta é uma maneira de asfixiá-la.
É preciso desculturar a cultura, desvestir a monocultura imposta pelo colonizador – como uma roupa infecta, ela coça nossa pele, fere nossos corpos, queima nossos espíritos: está contaminada com o vírus da opressão.
Não há povo sem cultura, assim como não há tempo sem memória.
Cultura é o sopro de um pajé, é o passar rapé, a pisada de um jaguar, um passarinho no céu, a terra que quer caminhar…
Cultura é um copo de kaapi (ayahuasca), é uma criança num jamaxi, a garça pegando carona num balseiro descendo o rio, é a flecha que voa e abate a caça. Cultura é o rezo de uma parteira, a folha da benzedeira, a semente no maracá. É o parente que vira planta, é o segredo guardado em um mocó, é passar por debaixo de um cipó, é o sapo bebendo estrelas nas águas de uma lagoa.
É caminhar sem ruído, é a poronga do seringueiro, é um peixe na praia comido, é a rede, é o rio… Cultura é o afago da mãe, é a fogueira que conta histórias de um tempo que já foi lindo.
Cultura é cura, é curare. É o veneno do sapo, é ferrão de marimbondo, é noite sem lua. É a intenção da zagaia, é a espera da caça, é a caça.
Cultura é o remo lambendo a água, é o boto que vira gente, é serpente que vira canoa. É o corpo feito terra, é o jenipapo pintado para guerra. É o fumo deixado na mata, é uma roda de mate. É a espera.
É a chama ancestral, a fumaça do petyngua.
É o respirar…!
Respiramos cultura, transpiramos cultura, bebemos cultura, comemos cultura, sonhamos cultura. Se nos tapam a boca, falamos por nossos olhos, por nossos corpos, por nossos poros, por nossos silêncios.
Assim, seguimos caminhando, vivas, vives e vivos como não nos queriam, como não nos querem, ameaçadoramente – insistindo e replantando onde brota o desviver, abrindo às nossas tragédias os caminhos do Arandu, insistindo e lutando, semeando sementes de rebeldia e liberdade em nosso caminhar sobre a ywy mba’e megua, terra enferma, terra das coisas que definham.
Essas são minhas palavras. Caminham com meus ancestrais. E eu falei. Solidariedade e gratidão a quem pode ouvir. Que elas cheguem aos corações de todas, todes e todos que têm fome e sede de liberdade!
Aguyjévetê!