TERTÚLIA

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Como observa o tradutor Sérgio Molina, a palavra tertúlia tem origem no unicada, lá é bastante corriqueira, significando uma boa conversa entre amigos

Tiago Novaes, o livro reúne vinte ensaios livres elabora-

em torno de um interesse comum. Assim também é o espírito do livro Tertúlia,

dos a partir de alguns dos mais de quarenta encontros

que convida 20 escritores e tradutores brasileiros a se colocarem na posição

realizados em distintas unidades do Sesc São Paulo e

de leitores e discutir livremente sobre um autor que os tenha influenciado em

na Livraria da Vila entre 2005 e 2010, nos quais grandes

seu estilo e produção. Um projeto que se desdobrou de ações culturais reali-

escritores abordaram a obra daqueles que os influen-

zadas em algumas unidades do Sesc São Paulo, exibidas também pelo SescTV,

ciaram, e tradutores discorreram sobre as obras magis-

e agora encadernadas nesse volume. Sérgio Molina se empenha em desvendar

trais que traduziram. Como não poderia ser diferente,

as tramas de Miguel de Cervantes e seu D. Quixote; Maria Esther Maciel apre-

os convidados se revelaram grandes leitores, em um

senta os paradoxos de Jorge Luis Borges; Marcelino Freire comenta sua relação

diálogo franco sobre as sutilezas e as concepções, as

com Manuel Bandeira; Lygia Fagundes Telles investiga a Capitu de Machado

anedotas e as poéticas de outros vinte escritores clássi-

de Assis; Leonardo Fróes se debruça sobre a obra de Virginia Woolf; Juliano

cos e contemporâneos, alimentando o perene diálogo

Garcia Pessanha se encontra com Franz Kafka; Eric Nepomuceno narra suas

entre a literatura de nossos dias e a tradição, preser-

aventuras ao traduzir Gabriel García Márquez; Julián Fuks mergulha na obra

vando assim a vitalidade do encontro e a densidade

de James Joyce; Márcio Souza apresenta Inglês de Souza; Boris Schnaiderman

da experiência.

conta a história de Lev Tolstói; Manuel da Costa Pinto reflete sobre Albert

o tradutor Sérgio Molina elucida que: “Tertúlia provém

Cláudio Willer retoma a mística de Hilda Hilst; Bernardo Ajzenberg escreve

do castelhano, nasce no universo cultural da Espanha.

sobre a trajetória de Philip Roth; Contardo Calligaris compartilha o prazer de

E embora para nós a palavra soe um tanto rebuscada,

ler Luiz Alfredo Garcia-Roza; Paulo Bezerra conta como traduzir a consciência

lá ela é bem usual e despretensiosa, com uma cono-

de Fiódor Dostoiévski; Rodrigo Lacerda revela a armadilha de João Antônio;

tação que tem muito mais a ver com o espírito destas

Nélida Piñon analisa Pedro Páramo, de Juan Rulfo; Luiz Ruffato aponta a inexis-

nossas tertúlias: um bate-papo regular concentrado

tência de uma linhagem literária de João Guimarães Rosa; Mamede Jarouche

em torno de determinado assunto, mas sem perder o

apresenta As mil e uma noites; e Tiago Novaes homenageia Moacyr Scliar,

frescor da despretensão”.

além de ter sido o responsável por promover esse encontro de amigos auto-

Pois Tertúlia é isso: um bate-papo, sem a pressa

ia

Camus; Ana Miranda divaga sobre a vida e poesia de Augusto dos Anjos;

Tiago Novaes (org.)

Em sua magistral apresentação de Dom Quixote,

obra, de transcender a convenção, seduzir ou frustrar

nda

túl

verso cultural da Espanha e, embora para os brasileiros soe um tanto rebus-

Antes de publicar seus livros – isto é, de conceber a

Ter

publicações recentes que Tertúlia: o autor como leitor traz ao público. Idealizado e organizado pelo escritor

Tertúlia  o autor como leitor

É esta dimensão singular e pouco explorada nas

a erg Mir enb z j A Ana o man nard ider a Ber n ch is S ller Bor Wi o i aris d u allig C Cla o no tard uce m Con o Nep Eric ks n Fu nha á i l Ju essa P o an óes Juli o Fr d r a n s Leo ato elle Ruff es T z i d u n L agu che ia F o arou Lyg J Pint e ed sta m o a C M da uel reire Man no F i l e c uza Mar l o So acie i c M r á r e M sth ia E n Mar Piño ida l é N erra Bez a o l cerd Pau a L rigo lina Rod Mo o i g aes Sér Nov o g Tia

res e leitores em torno da literatura de cada um e de todos nós.

das convenções jornalísticas ou midiáticas, a uma dis-

o m o rc

tância justa e sadia da instituição acadêmica, e que se dá em um espaço instituinte de pensamento e amizade.

to u a o

Um diálogo sobre livros e entre livros, sobre escritores e entre escritores, sobre leituras e entre leitores. ISBN 978-85-7995-073-5

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a frase, a língua – o autor foi e continua sendo sempre um leitor. O ideal de criador que ele conjura e o imaginário que elabora de seus próprios leitores mantém relação íntima com a perspicácia de suas leituras, com a regência de um cânone privado, a constelação íntima dos autores que opta por admirar e com os quais irá dialogar. Nesse mesmo sentido, o tradutor, em seu ofício, também é um autor. Sua fidelidade está na atenção perseverante e arriscada da transmissão dos sentidos, das vozes, de uma coerência com a mensagem silenciosa da obra original. Para tanto, cumpre que faça uma infinidade de escolhas cuja natureza é a da própria criação literária. E, sendo autor, o tradutor é, por consequência, um leitor ávido cuja missão consiste em aproximar mundos culturais e linguajeiros distintos, sem deixar de preservar-lhes a essência e as vicissitudes.

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deliberadamente o seu público, garimpar a metáfora,

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Ler pelo não, além da letra, ver em cada rima vera, a prima pedra, onde a forma perdida procura seus etcéteras. Paulo Leminski

Ai de mim, a que terra de homens mortais chego de novo? Serão eles homens violentos, selvagens e injustos? Ou serão dados à hospitalidade e tementes aos deuses? Ressoou aos meus ouvidos o grito feminino de donzelas. Talvez de ninfas, que habitam os escarpados píncaros das montanhas, as nascentes dos rios ou as pradarias. Será que estou perto de homens dotados de fala? Mas coragem: eu próprio farei a experiência de ver. Homero

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Tramas e tramoias cervantinas

Miguel de Cervantes por Sérgio Molina

Antes de entrar no tema deste artigo, quero registrar dois breves comentários. O primeiro diz respeito à ideia que faço do meu ofício. Quando recebi o convite para participar do ciclo Tertúlia, que originaria este livro, fiquei muito grato por entender que o evento me possibilitaria a reunião com um grupo heterogêneo de admiradores de Cervantes, parte deles, provavelmente, leitores de D. Quixote na minha tradução. Desde o primeiro momento, porém, pensei na ocasião não como o encontro de um tradutor com seus leitores, e sim como um encontro entre leitores, uma vez que, na prática da tradução literária, sempre me senti acima de tudo um leitor. Como bem disse Guimarães Rosa, traduzir é conviver. Ler também é conviver, e penso que a diferença entre essas duas formas de convívio é sobretudo de grau: a tradução exige uma entrega total, uma frequentação mais intensa. Em alguns casos, como no de D. Quixote, também extensa: verter esse livro me demandou vários anos de convivência diária com o texto − dois para a primeira parte, cinco para a segunda −, que é retomada a cada nova edição. Meu segundo comentário é sobre a palavra “tertúlia”, escolhida para nomear aqueles encontros e este livro. Provindo do castelhano, o termo é

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especialmente interessante para quem trabalha no trânsito entre o espanhol e o português − tendo muitas vezes que levar em conta as vicissitudes históricas na relação entre as duas línguas −, já que nasceu no universo cultural da Espanha seiscentista e, segundo os registros etimológicos, foi incorporado à língua portuguesa no século XIX. Ao chegar aqui, a tertulia espanhola ganhou, além do acento gráfico, certos fumos eruditos que já perdera no país natal, onde hoje é bem mais corrente e popular do que entre nós. Nos últimos tempos, contudo, essa palavra imigrante vem sendo convidada a descer do seu pedestal e abrir-se, também no Brasil, ao convívio com mais gente, reaproximando seu sentido da conotação mais lhana que recebe no contexto de origem: a de uma reunião regular para conversar sobre um tema de interesse comum, que pode eventualmente ter suas normas, mas sem perder a espontaneidade e a despretensão. Uma reunião que não se articula em torno de um expositor e na qual todos os participantes podem ter voz ativa. Foi com esse espírito que procurei compartilhar algumas reflexões nascidas do meu convívio com a obra de Cervantes e ampliá-las no diálogo com outros tertulianos e tertulianas. Este texto é, portanto, fruto de uma troca. Começo esclarecendo que meus comentários se restringirão a D. Quixote, sem se estenderem às demais criações de Cervantes. Como se sabe, ele escreveu outros grandes livros − Novelas exemplares, A Galateia e Os trabalhos de Persiles e Sigismunda −, além de uma série de peças teatrais também muito relevantes. Toda essa produção costuma, injustamente, ficar à sombra de D. Quixote, o que propaga a crença de que esse é o único livro do autor. Ampliar o foco para além da obra-prima cervantina, porém, nos obrigaria a resgatar outras duas qualidades do termo tertulia: a periodicidade e a continuidade. Em todo caso, D. Quixote é, sem dúvida, a melhor porta de entrada no mundo de Cervantes, e é sobre ele que tenho mais a dizer. Para começar, escolhi a seguinte passagem, extraída do primeiro capítulo da primeira parte que sugiro ler em voz alta e, de preferência, em grupo: Cumpre então saber que esse tal fidalgo, nas horas de ócio (que eram as mais do ano) se dava a ler livros de

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As vertigens do paradoxo

Jorge Luis Borges por Maria Esther Maciel No imaginário reside o infinito. Maurice Blanchot

Entre vida e ficção Num breve ensaio de 19431, Jorge Luis Borges diz que a história de uma vida poderia resultar em um número indefinido de biografias. E que, se pudéssemos reduzir uma existência a 20 mil fatos, seria perfeitamente possível descrevê-la com 35, 100 ou 220, selecionados arbitrariamente. Uma das biografias possíveis poderia seguir só os números ímpares dos acontecimentos; outra, a dos múltiplos de sete; outra, a dos múltiplos de dez, e assim por diante. A história de uma pessoa, baseada em todos os livros que ela leu ao longo dos anos, não seria, sob esse prisma, descabida. Tampouco a de suas noites de insônia. Em se tratando da vida do próprio Borges, pode-se dizer que esse leque de possibilidades é infinito, uma vez que, nela, autor e obra não se dissociam. Como sua obra está sob o traço de uma multiplicidade inesgotável, sua vida, por extensão, também se multiplica para além dos fatos

1 O ensaio se intitula “Sobre o Vathek de William Beckford”. Ver Jorge Luis Borges, Obras completas, v. 2, São Paulo: Globo, 1999.

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biográficos que a constituem. Daí que a via mais interessante para falar do escritor argentino seja a da sequência aleatória, feita a um só tempo de continuidade e descontinuidade. Nascido em Buenos Aires em 1899, Jorge Luis Borges viveu sobretudo para os livros e dos livros. Tanto que declarou, certa vez, que sempre chegava às coisas depois de ir aos livros. Não à toa, elegeu a biblioteca do pai como a referência mais importante de sua infância e o ponto de partida para sua própria formação pessoal. Como ele mesmo afirmou em um ensaio autobiográfico: “Na realidade, penso que nunca me perdi fora daquela biblioteca”2. Assim, ao longo de seus 87 anos, conjugou, de maneira intrínseca, vida e literatura, transformando em escrita praticamente tudo o que vivenciou, ao mesmo tempo moldando sua existência a partir do que leu. Converteu-se, dessa forma, em uma figura literária. Chegou, inclusive, a construir uma ficção de si mesmo, levando para sua biografia muitos artifícios usados na literatura e ironizando a própria vida. Nesse sentido, jogos, disfarces, burlas e bromas que usou para construir sua obra se estenderam à construção de sua persona. Daí ser difícil traçar um perfil do escritor. Borges é muitos ao mesmo tempo e soube embaralhar, com grande engenhosidade, as pistas que poderiam nos levar a compor um retrato preciso de sua grandeza. O fato é que, hoje, Borges converteu-se em quase um mito. De seu nome surgiu, como se sabe, o adjetivo “borgiano”, usado largamente em todos os cantos do mundo para designar situações, textos, pessoas, atitudes, expressões e realidades singulares. Ademais, levou as literaturas argentina e latino-americana ao fluxo da literatura universal e à interferência na produção literária do Ocidente. Alfabetizado primeiro em inglês, graças à sua avó inglesa, Borges recebeu, desde cedo, os influxos da poesia e da prosa escritas nesse idioma. Muitos de seus grandes mestres literários foram das letras de língua inglesa, como William Shakespeare, Robert Stevenson, Samuel Coleridge, Oscar Wilde, Lewis Carroll, G. K. Chesterton, Thomas De Quincey, entre outros. E isso talvez explique, em 2 Borges, Elogio da sombra/Perfis, Porto Alegre: Globo, 1977.

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O menino que queria ser tuberculoso

Manuel Bandeira por Marcelino Freire

Eu queria ser Manuel Bandeira. Tuberculoso. Desde muito pequeno, viver no isolamento. Combalido. Adoecido. Apostemado. Eu queria uma tristeza aguda. Febriculosa e incurável. Eu queria, é verdade, meu amigo. Isso desde que li um verso que me deixou doente. Mais do que quebrantado já se é, assim como eu, nascido no alto sertão de Pernambuco. Explico e sempre repito: eu não nasci, escapei. De dez crianças que, em 1967, nasciam em Sertânia, minha cidade natal, só umas cinco sobreviviam. Coxentas. Infectadas pelo sol. Nasci prematuro, de sete meses. Quase não vinguei. Quase não vim à luz. Acho que a vida é isso. Enxerida. Vem perturbar o nosso último descanso. Perdoai-me, eternamente. Esse abuso de revelação. O problema, a bem da verdade, é esse que a gente carrega. Pela teimosia dos nossos pais, ter de enfrentar essa doença que é a existência. Os versos de Manuel Bandeira me salvaram dessa existência. Deram-me outra, além. Eu nunca quis uma vida cheia de vida, entende?

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Vida pedestalosa não serve. Manuel Bandeira me ensinou a coisa mais valiosa que um artista pode ensinar. Feito um coração pode ensinar. Sinalizar. Bandeira me doutrinou a ser doente. Doutourou-me à menos-valia. E isso é o que me vale. É isso o que me anima até hoje. É na queda que a gente se alavanca. É na tristeza que a gente se enobrece. Morre-se de alegre. Enobrecimento no que há de pulhice. Chaga, desabono. Enobrecimento pelo empobrecimento. Até a última baixeza do ser humano. Perdoai-me, outra vez. Tudo porque li um poema, aos nove anos. A minha família já havia saído de Sertânia e se retirado para Paulo Afonso, na Bahia. Eis que estamos todos recém-chegados à cidade do Recife. A esperança da minha mãe era de que pelo menos os mais novos estudassem. Escapassem de capinar, de irrigar pedras. Ela queria a salvação. Já que estamos nessa terra, meu filho, é para lutar. Ninguém luta com um poema nas mãos. Um dos meus irmãos, um dia, chegou com um livro bonito, de português. E eu comecei a folhear o livro. E lá estava o poema. Ele, miúdo e discreto. “O bicho”. Mas qual tipo de bicho? Pela insistência da minha mãe, fomos postos na escola desde cedo. Eu era um menino adiantado para o meio. Tinha a cabeça grande e um olho exaltado. De passarinho que sai do ovo. Para dentro da gaiola. Mas sai do ovo. Deparei-me com “O bicho”. Logo eu, tão esquisito. Dei de cara com um poema que catava comida no lixo. Esse poema era um homem. Repeti, assoletrando, sem piscar um nervo, sem perder um ponto. Não era um cachorro, um gato, um rato, um urubu não era. Esse bicho, Meu Cristo, era um homem. Um homem, um homem, um homem.

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Como diluir o eu pela escrita

Virginia Woolf por Leonardo Fróes

Há uma passagem muito famosa de Dom Quixote, muito comentada, na área da tradução. É quando o herói da triste figura chega a Barcelona, em um dos capítulos finais do livro, e avista pela primeira vez o mar e as caravelas ancoradas no porto. E se interessa sobremodo pela cidade. Sai a passeio pelas ruas e vê uma tipografia. Adentra-a e lá encontra um tradutor. Tem com este um longo diálogo, no qual se opõe à atividade do homem, dizendo em síntese: “A tradução é como uma tapeçaria pelo avesso. Veem-se os nós da trama, aqueles fiapos soltos que sobram pelo avesso, mas não se vê a beleza da imagem estampada pelo lado direito”. Supõe-se portanto que Cervantes negasse à tradução algum valor maior. Mas acontece que, por uma tradição bem anterior a Cervantes, tradição da época medieval na Europa, houve uma enorme produção de traduções na cidade espanhola de Toledo − a poucos quilômetros de Madri. Esse movimento de tradutores de Toledo reunia cristãos, judeus e muçulmanos, que ali conviviam na mais perfeita harmonia, passando obras de umas línguas para outras. Foi graças aos trabalhos da chamada Escola de Toledo − lá nunca existiu nenhuma escola, mas foi assim que a tradição ficou conhecida −, graças

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à atividade desses tradutores, que nos chegaram alguns dos principais textos, por exemplo, da Antiguidade grega. Textos que, do grego, foram traduzidos para o árabe, do árabe para o latim e, finalmente, do latim, para as línguas modernas europeias. Foi também graças à atividade desses tradutores de Toledo que entraram na Europa, vindas em geral dos países árabes e da Pérsia, numerosas criações, numerosos temas provenientes do Extremo Oriente, principalmente da antiga China e da Índia, que serão aproveitados depois na literatura ocidental. De tal forma era misteriosa essa atividade, numa época basicamente iletrada, que passou a circular uma lenda, na Idade Média, de que era pura magia o que os tradutores faziam. De fato, para que a tradução não seja uma simples tapeçaria pelo avesso, para que o tradutor não entregue ao público leitor da nova língua apenas fiapos soltos, é preciso que ele faça uma magia. É preciso que ele transforme aquela obra original em um fato novo. Virginia Woolf escreveu em inglês, na primeira metade do século XX, e morreu no ano em que eu nasci. Portanto, a Virginia que nós lemos hoje, nos Contos completos que traduzi, não é exatamente aquela que morreu no ano em que eu nasci. É uma contrafação, é uma imitação de Virginia. E me responsabilizo por ela, porque, essa imitação, tentei fazer da maneira mais fiel possível. A tradução sempre corre um grave perigo, o de simplificar excessivamente o original. É fácil constatar isso. Todos nós – em especial aqueles capazes de compreender outras línguas – que vemos filmes na TV notamos que a fala original, uma fala “deste tamanho” em francês, em inglês e sobretudo em chinês ou japonês, fica pequenininha na legenda. O ator japonês fala horas e, na legenda em português, aparece “sim” ou “não” ou “mais ou menos”. Há uma simplificação muito grande. O tradutor, às vezes por pressa ou por uma questão técnica de sincronia entre cena, tempo, espaço e legenda, resume. Ele resume o original e isso pode levar a grandes desentendimentos. E a um comprometimento muito grande do texto original. Virginia foi vítima disso, de certa forma. Ela morreu em 1941, já era uma autora muito considerada em sua língua, famosa dentro do ambiente literário inglês. E, com a morte em circunstâncias trágicas, muito comentada, porque

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Poeta em mundo sem poema

Franz Kafka por Juliano Garcia Pessanha

Entre outras coisas, eu, Kafka… Durante muito tempo eu pretendi nascer para dentro do mundo. Me parece bastante estranho que eu tenha nascido para fora do mundo. Como é possível que, ao nascer, não se nasça para o interior do mundo, mas para uma zona exterior e ilegal? Minha condição é de aposentado prematuro; desde o início, desencarregado do serviço do mundo por déficit de algum liame essencial. Em mim o liame era de gelo, amarra logo derretida e desfeita. Mas eu sempre desejei regressar ao engano dessa aderência. Eu via todo mundo vivendo pelo lado de dentro. Eu também queria viver na ilusão de estar vivendo por dentro. Os homens, quando vivem pelo lado de dentro, quando se encontram na ativa, eles estão tão bem encostados no ente e integrados ao mundo, que são inteiramente identificáveis. Ontem mesmo, lá no bar, com o Werfel, o Max e os outros, eu os vi tanto que me assustava! Eu os percorri um a um e fui soletrando a identidade deles até que chegou a minha vez e eu percebi que seria impossível dar de mim mesmo alguma localização. Levantei-me e fui até o banheiro e pude, então, perceber que meu umbigo era um ponto de interrogação. E mais, ao olhar mais e detidamente para o meu umbigo, notei

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que nele se abria um buraco sem fim. Cheguei a achar engraçado, pois embora eu odeie metáforas, comparei-me a um queijo suíço cheio de buracos, mas um queijo suíço já quase inteiramente comido e devorado por tantos ratos que só sobrava mesmo um buraco-em-si. Mas é isso. Eu volto para a mesa e eles parecem todos bem enquanto eu fico o tempo todo roído e atravessado por esse desassossego terrível, por essa pergunta imensa… O Max vive sempre me elogiando, dizendo que eu sou isso e sou aquilo, mas ele não sabe que eu não passo de um hieróglifo sem sentido e que minha vida é apenas uma marcha congelada, pois eu, ao contrário dele e de suas peripécias e experiências múltiplas, tive apenas a experiência de não ser contemporâneo de nenhuma experiência. Experiências e acontecimentos se dão do lado da fronteira, do lado dos que nasceram para dentro do mundo. Como eu nasci para fora, eu não consigo alcançar o reino das experiências. Numa carta que escrevi para Milena, no ano de 1922, eu disse que “minha vida é a hesitação ante o nascimento”. Nascer, para além do sentido biológico, é acolher determinações, é ganhar uma identidade no mundo. Ora, como eu zanzo na zona pré-natal, eu permaneço indeterminado e desreferencializado. O mundo dos nascidos (dos subjetivados) é para mim uma terra estranha onde entro como uma espécie de etnólogo invejoso. Tudo que para eles é um habitual partilhado, para mim é algo estranho a ser decifrado… e aliás, grande parte da interpretose infinita que aparece nos meus textos deriva daí. Deriva de que devo me esforçar na direção do básico. Existe miséria maior do que ter de se esforçar na direção do básico? Além disso, minha posição de excluído do mundo e de detido na antecedência do nascimento (no meu diário escrevi “ainda não ter nascido e obrigado a passear pelas ruas e a conversar com as pessoas”) é dolorosa porque há em mim uma imensa saudade da vida não vivida, uma nostalgia da vida desperdiçada. Ah! Que promessa, a vida humana, como eu rondei essa promessa. Como eu a pressenti atrás do véu da exclusão! Às vezes achei que um belo dia eu iria acordar e pronto! Eu estaria dentro da vida, partilhando e participando com os outros. Então, eu simplesmente ia estar na mesa das pessoas animadas e eu estaria animado também e não como naquela pensão, naquela noite em que anotei em meu diário: “infinitamente assombrado diante

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Traduzir e traduzir García Márquez: algumas anotações

Gabriel García Márquez por Eric Nepomuceno

Há algum tempo precisei fazer a relação dos livros que traduzi, para responder ao questionário de um professor universitário. Cheguei a 55, mas com a sensação profunda de que faltavam alguns. Hoje, o número está chegando a 70. Lembrei que minha primeira tradução foi publicada em 1976. Ou seja: na média, mais de um livro por ano. Só que não me considero tradutor, e sempre me causa arrepio quando ouço alguém me chamando assim. Não sou tradutor porque, entre outras coisas, não é essa a minha profissão, nem vivo disso. Respeito quem é profissional e vive disso, e essa é uma das razões para que eu faça sempre essa ressalva. Eu seria incapaz de aceitar uma tradução em termos exclusivamente profissionais. Volta e meia recuso convites para traduzir autores que até respeito, ou cuja obra posso até admirar, mas por quem não tenho nenhum afeto pessoal, ou que não sinto que façam parte do meu universo. Na hora de traduzir, sou movido em primeiro lugar por afinidade, e só depois, muito depois, por razões profissionais. Meu ofício é escrever. Sou, então, um escritor que traduz.

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Quero contar aqui algumas das coisas que penso – quando penso – na questão da tradução. Começo dizendo que acho as palavras “reescrever” e “recriar” perigosas, quando se trata de traduzir. É como se o tradutor usasse o outro, o autor, como uma espécie de muleta para satisfazer suas próprias aspirações. Para mim, a questão é bem mais simples: é apenas trazer para o meu idioma, e por dentro, pela alma, além – é claro – pela forma, o que o autor escreveu no idioma dele. Para criar, tenho meu próprio trabalho. Isso, é claro, não significa que a tradução deva ser burocrática, ou que eu defenda que não seja criativa. Ao contrário: é preciso empregar toda a capacidade de criar para traduzir, mas respeitando sempre o texto original. A criatividade de quem traduz deve ser aplicada justamente nisso: no levar, para o seu idioma, o que o autor escreveu no dele. Na busca de soluções, na descoberta da argamassa que liga cada uma das pedras do que foi construído pelo autor. Quanto mais criativo quem traduz, mais desaparecerá o trabalho de traduzir. Tradução boa, para mim, é aquela que o leitor não percebe: lê como se o livro tivesse sido escrito naquele idioma. Enfim, só trabalho em traduções porque consigo mergulhar no texto de quem conheço, com quem tenho laços afetivos de maior ou menor profundidade, mas sempre firmes. Ou então quando algum texto me parece especialmente instigante. Na hora de traduzir, faço pouquíssimas anotações, mas sempre em papéis ou cadernos, tal como faço quando escrevo meus contos ou meus próprios livros. Começo uma tradução escrevendo à mão, com caneta de tinta preta – ou seja, exatamente dentro de meu rígido hábito de trabalhar meus próprios textos. Escrevo à mão muito mais devagar do que no computador. Essa baixa velocidade força uma aproximação maior com cada palavra, não impõe o ritmo da escrita. Quando o texto enfim começa a ganhar voo próprio, o que pode acontecer no terceiro parágrafo ou na segunda página, vou para o computador. Não uso dicionário na primeira versão. Quando tenho dúvidas, deixo a palavra tal como está. Apenas a escrevo em maiúsculas, para assinalar a dúvida. Não faço interrupções no ritmo da escrita. Deixar uma frase no meio

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O dia que guardava a eternidade

James Joyce por Julián Fuks

Alguém há de perguntar o que um jovem brasileiro, distanciado por quase um século e um oceano inteiro desse sujeito tão peculiar e tão complexo que foi James Joyce, teria a dizer sobre sua obra. A pergunta é pertinente e encontra resposta fácil se um de seus pressupostos subjacentes for a exigência de informações novas, de afirmações novas. O que tenho a dizer de novo sobre James Joyce? Absolutamente nada. Mas antes que os leitores fechem este livro com a dose de indignação que lhes pareça adequada, cabe ressaltar que essa impossibilidade incontornável já havia sido devidamente avisada. Se o dia remoto em que se passa Ulisses, o dia 16 de junho de 1904 ao qual farei alusão nestas próximas páginas, guardava em si toda a eternidade, nada de novo pode restar para além de suas limitadas horas. Passado e futuro se condensaram naquele retrato tão minucioso da humanidade, e num panorama tão extenso como esse não poderiam faltar jovenzinhos pretensiosos com vãs esperanças de saber um átimo – ou de falar algo interessante – sobre a vida, sobre a literatura, sobre a arte. Como Leopold Bloom, Molly Bloom, Stephen Dedalus e tantos outros personagens do autor, em nossa insignificância somos – vocês, leitores, e eu

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– a um só tempo ninguém e qualquer um. Somos parte ainda que ínfima da eternidade e assim, nos resguardando de qualquer ambição de originalidade, podemos remontar livremente a um tempo passado, ao ano emblemático de 1914 em que James Joyce começou a escrever Ulisses. O poeta T. S. Eliot, em uma sentença já clássica e utilizando justamente esse livro para dar o veredicto, definiu James Joyce como o homem que matou o século XIX. Não há de ser mera coincidência, se me permitem a platitude histórica, que Eric Hobsbawm tenha estabelecido esse mesmo 1914 como ano inaugural do curto século XX. Para Hobsbawm o marco é a guerra, é claro, mas foi exilado em plena guerra que Joyce travou sua batalha tão pessoal, aniquilando alguns dos mais duradouros e consistentes padrões literários. Antes de chegar a esse embate, quero destacar também outro marco importante da história da literatura, para começar a entender com um pouco mais de precisão o que exatamente Joyce matou quando matou o século XIX. O marco a que me refiro também data de 1914. Foi nesse ano que veio à tona uma primeira teorização mais séria sobre a prática literária que melhor caracterizava a época: a Teoria do romance, de Georg Lukács. Na crista quebradiça de uma era, passado ao menos um século muito profícuo em narrativas absolutas – o século dos grandes romances, de Tolstói, Goethe, Balzac, Flaubert, Dostoiévski – esse teórico húngaro se propôs a ambiciosa tarefa de compreender e abarcar em seus escritos a força inédita do pe­ríodo. Não quero aqui banalizar seus tantos achados, mas tomo de empréstimo sua concepção do romance como representação de uma essência rompida, como epopeia de um mundo imperfeito e inacabado, um mundo abandonado por Deus. Para Lukács – e Joyce em simultâneo parecia performar as convicções dele – o romance é um gênero em que se ressalta o caráter incompreensível e eternamente inacessível do mundo, em oposição às práticas literárias de um tempo antigo, o tempo dos gregos, em que subsistia a ilusão de totalidade, em que a alma só se dava a aventuras e desconhecia “o real tormento da procura e o real perigo da descoberta”. Num primeiro momento, como atestam os grandes escritores que citei, essa forma tão livre e moderna surgida no século XVIII encantou por suas

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O Naturalismo amazônico

Inglês de Souza por Márcio Souza

Antes de mais nada, para entender o mundo de Inglês de Souza no século XIX, precisamos reconhecer que a Amazônia nem sempre foi do Brasil. E esse fato teve uma implicação importante na geração de escritores que surgiu na segunda metade do século XIX. Até 1823, a Amazônia não existia. Se alguém falasse, em 1810, “eu vou para a Amazônia”, ninguém saberia onde ficava esse lugar. Até 1823, o que existia era o Grão-Pará, um estado colonial, ou outra colônia portuguesa na América do Sul. Havia uma colônia ao sul, com capital no Rio de Janeiro, chamada Vice-Reino do Brasil, e uma segunda colônia, ao norte, com capital em Belém. Em 1823, culmina nas duas colônias um processo iniciado com as agitações nos países hispano-americanos, de luta contra os espanhóis − Simón Bolívar e todos os grandes próceres da independência dos países pan-americanos. Esse ideal se espalha para a América Portuguesa, influenciando especialmente o Grão-Pará. Em 29 de novembro de 1807, o príncipe regente, futuro rei Dom João VI, sua mãe, dona Maria, a rainha de Portugal, toda a família real, toda a aristocracia, toda a estrutura administrativa do Reino de Portugal fogem de Lisboa e vêm para o Brasil. Em Belém, conforme o grande

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plano arquitetado por padre Antonio Vieira para o Quinto Império, esperava-se que a família real fosse para lá. E, para surpresa do Grão-Pará, a família real escolheu refugiar-se no Rio de Janeiro. Mas o Grão-Pará armou uma expedição militar, invadiu a Guiana Francesa e a ocupou durante nove anos. Só a devolveu à França após a morte de Napoleão Bonaparte, no Tratado de Fontainebleau, na Europa. Foi a primeira e única derrota do exército de Napoleão para um exército de índios, que eram exatamente as forças militares que saíram de Belém em vasos de guerra − inclusive, um vaso de guerra inglês − para a ocupação da Guiana Francesa. Essa ocupação vai provocar uma grande mudança cultural no Grão-Pará, uma colônia muito diferente do Vice-Reino do Brasil. O Vice-Reino do Brasil era uma colônia baseada na agroindústria e na mineração de grandes propriedades, de grandes senhores feudais, de grandes mineradores. Uma economia rural em que os centros urbanos, especialmente o Rio de Janeiro, eram apenas as conexões administrativas de uma pequena elite de exportadores e importadores que funcionava nessas cidades. O capital era rural, com uma economia baseada na mão de obra escrava. Já o Grão-Pará tinha recebido um projeto social e econômico bastante avançado, do Marquês de Pombal, e experimentava uma economia capitalista que procurava sintonizar, através desse experimento, o Reino de Portugal com a Primeira Revolução Industrial, que ocorria nesse período, em meados do século XVIII e início do século XIX. A economia do Grão-Pará baseava-se no trabalho livre, na manufatura, na indústria − a borracha já era matéria-prima importante, porém não se exportava in natura. A matéria bruta era manufaturada no Grão-Pará e vendida na forma de produtos industrializados, como sapatos, capas de chuva, instrumentos cirúrgicos, chapéus, enfim, uma infinidade de produtos dos quais ainda se podiam ver anúncios, no fim do século XVIII, em revistas inglesas e norte-americanas. Além disso, o Grão-Pará tinha uma indústria naval que, em determinado momento da segunda metade do século XVIII, chegou a produzir 40% dos navios portugueses que singravam o mundo. Havia escravos, mas eles serviam apenas a trabalhos domésticos e, em alguns casos, em engenhos de açúcar na ilha de Marajó e nas cercanias do Pará, sem importância econômica.

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TOLSTÓI: UMA breve biografia comentada por seu tradutor

Lev Tolstói por Boris Schnaiderman

O conde Lev Tolstói nasceu em 1828, na propriedade paterna de Iasnaia Poliana, isto é, “clareira” ou “campina clara” (ou ainda “clareira do freixo”). Os Tolstói eram uma família da mais antiga nobreza russa, um nome glorioso, que aparece na história russa com relativa frequência. A mãe de Lev Tolstói era, de nascimento, princesa Volkônskaia. Ele depois utilizaria esse nome, Volkônski, em Guerra e paz. Aproveitaria materiais conservados nos arquivos familiares, sobretudo correspondência. Tolstói passou a infância numa família numerosa, ora em Iasnaia Poliana, ora em Moscou. Perdeu os pais muito cedo, a mãe antes dos dois anos e o pai aos nove, e foi criado por uma tia. Estudou línguas orientais na Universidade de Kazan. Quando estudante, em certa ocasião, esteve internado num hospital por alguma doença não muito grave, e lá teve um contato muito próximo com um monge budista. Segundo os biógrafos, isso o teria influenciado desde aquela época. As primeiras anotações conhecidas do diário de Tolstói são de 1847, quando ele tinha dezenove anos. Portanto, manteve o diário durante quase a vida toda. Escondia-o e escrevia nele as coisas mais íntimas, mais secretas.

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Na verdade, pouca gente o leu na íntegra, pois nas edições mais correntes são publicados apenas trechos. Tolstói dizia, sobre essas páginas: “Elas são eu”. E acabou anotando ali confissões incríveis. No período soviético, um fato notável ocorreu: a edição do Centenário, em noventa volumes, publicada entre 1928 e 1960, entre o centenário do nascimento e os cinquenta anos de sua morte. Essa edição do diário manteve trechos considerados escandalosos (o que só foi possível após discussões acaloradas entre os encarregados de preparar a edição e o responsável por ela, o romancista Aleksandr Fadiéiev). Levando uma vida de jogatina, bebedeira e farras com mulheres, é predominante no diário de Tolstói um avassalador sentimento de culpa. Ele sentia vergonha de pertencer a uma classe privilegiada, de ser mais rico do que o povo simples. Datam de 1851 os primeiros escritos criativos que se conhecem, já em uma forma bem mais ambiciosa e trabalhada. Nesse mesmo ano, Tolstói se transferiu de Moscou para o exército de ocupação, no Cáucaso. Embora o Cáucaso já estivesse ocupado pelos russos, uma grande rebelião de fundo religioso havido ocorrido na região. Curioso é que, de início, nas primeiras anotações do diário, Tolstói se mostrava ansioso no sentido de ver os russos dominarem a região. Tinha, portanto, uma mentalidade de ocupante; estava plenamente convencido da correção desse ato, mas depois começou a ter dúvidas. E então questionou: “Será que estou certo, será que é isso mesmo que devo fazer?”. Quando a Guerra da Crimeia teve início contra a Turquia, expandindo-se e transformando em um conflito também com a Inglaterra e a França, Tolstói pediu para ser transferido para a frente da Valáquia, que atualmente faz parte da Romênia, e lá pediu transferência para a Crimeia. Ele foi enviado então para Sebastopol, o grande porto militar assediado por ingleses e franceses. Nessa época, Tolstói já era escritor consagrado. É possível notar por suas anotações, que, no Cáucaso, ele tinha um tipo de vida bastante folgado: ficava lendo e escrevendo quase o tempo todo, e metido em jogatina e farras, algo normal naqueles anos.

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Entre a ficção e o ensaio

Albert Camus por Manuel da Costa Pinto

Vou reconstituir o percurso que fiz para chegar a Albert Camus, como foi a leitura que redundou em minha dissertação de mestrado e, posteriormente, em um livro de crítica literária sobre sua obra. Na dissertação, usei textos dele acerca de diversos escritores, um material importante para entender o trabalho de Camus e, especificamente, minha leitura sobre ele. Esses textos de Camus foram originalmente publicados como artigos e resenhas em revistas, como prefácios de livros etc. Comecei a ler Camus muito cedo, e acho que fui fazer jornalismo cultural por causa dele. Sempre me chamou a atenção a comparação que se fazia entre Camus e Sartre, e que é meio inevitável, seja pela proximidade entre eles, seja pela ruptura que se sucedeu. Eles foram muito amigos, ao longo da Segunda Guerra Mundial e no imediato pós-guerra, mas houve uma ruptura por razões políticas em 1952, por causa de O homem revoltado, de Camus – numa polêmica muito violenta, talvez a última efetivamente importante na vida intelectual francesa do século XX, só comparável à controvérsia que envolveu Émile Zola no caso Dreyfus, no século XIX.

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Sartre sempre é considerado um filósofo mais consistente do que Camus e um ficcionista que simplesmente fazia adaptações, quer dizer, representações literárias de ideias filosóficas. Prevaleceu a ideia um pouco grosseira de que Camus era um filósofo medíocre e um escritor brilhante, e Sartre, um filósofo brilhante e um escritor medíocre. Mas esse é um lugar-comum que se desfaz rapidamente mediante a leitura de qualquer um deles. Ao estudar Camus, parti dessa diferença. Ele não é um filósofo no sentido estrito do termo. Não tem a densidade conceitual de pensadores como Sartre, Michel Foucault, Gilles Deleuze, Merleau-Ponty, Bergson, os grandes nomes da filosofia francesa no século XX. Tentando entender a singularidade de Camus, fui percebendo uma intensa correspondência entre sua ficção e seus ensaios. Por isso dei a essa conversa o título “Entre a ficção e o ensaio”. A ficção é o cerne da obra de Camus e complementa a percepção que temos de seus ensaios – o contrário acontece com Sartre, pois precisamos do ensaísmo deste para entender sua ficção. Camus mesmo falou, muitas vezes, sobre a intensa correspondência que existe entre suas obras ficcionais e ensaísticas. Falou, por exemplo, que o romance O estrangeiro e o livro de ensaios O mito de Sísifo – ambos publicados em um intervalo de tempo muito curto – são o “ponto zero” de sua obra, ao qual todos os outros livros se reportam. Isso cria uma espécie de diálogo cerrado entre a ficção e o ensaio, em que pode ser detectada uma série de recorrências, uma espécie de circulação de imagens que perpassa a obra de Camus. O mito de Sísifo começa com uma frase bombástica: “O único problema filosófico verdadeiro é o suicídio”. E segue com uma desconstrução, um jogo, um procedimento estilístico muito envolvente – digno de um grande escritor e não apenas de um pensador – que vai afastando do cerne da filosofia todo tipo de problema epistemológico. Afirma, com uma grande carga de ironia, que é fútil saber se o conhecimento tem quatro ou cinco categorias, se o mundo gira em torno do Sol, se o Sol gira em volta da Terra. O problema é saber se você morreria por uma ideia. E ninguém morre pelo argumento ontológico. O que interessa é saber se a vida vale ou não vale a pena ser vivida.

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Anjos e Quimeras

Augusto dos Anjos por Ana Miranda

Augusto dos Anjos era filho de senhores de engenho na Paraíba, e meu pai também era filho de senhores de engenho na Paraíba, perto da cidade de Areia. O engenho de meu pai ficava distante do engenho onde nasceu Augusto, em uma região com outras características, mas com muitas semelhanças. Augusto nasceu no vale do rio Una, o rio das águas negras − una significa negro, em tupi – e o engenho se chamava Pau d’Arco, que é o ipê, seu amadíssimo Engenho do Pau d’Arco, para o qual ele escreveu tantas poesias e onde ele escreveu tantas poesias. Onde formou sua personalidade estranhíssima – Augusto é uma figura ímpar. Desde a infância, nós escutávamos os versos de Augusto − os paraibanos fazem saraus literários e declamam, muitos conhecem a obra inteira de Augusto dos Anjos, são capazes de declamar longamente seus versos. É uma obra dificílima, com palavras cientificistas, inesperadas, mas ajudadas pela sonoridade, o ritmo, a bizarria. E eu escutava, desde pequena, essas declamações. Na escola, estudamos a obra de Augusto − fazia parte do currículo, porque ele realmente, apesar de ter morrido aos trinta anos de idade e de ter publicado apenas um livro, Eu, ficou na história literária como um dos maiores poetas da literatura brasileira e é estudado na passagem do

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Simbolismo para o Modernismo. Seria um pós-simbolista? Há quem diga que é simbolista, outros que é pré-modernista. De toda maneira, ele é importante para a compreensão do desenvolvimento da história literária brasileira porque representa um tempo, uma mentalidade, uma passagem. Depois que terminei meu primeiro romance, Boca do Inferno – no qual um poeta brasileiro, Gregório de Matos, é o personagem central, o que aconteceu por acaso, não foi intencional da minha parte fazer com que um poeta protagonizasse o livro, aliás, um poeta e um prosador monumental, que é o padre Antonio Vieira –, me surgiu a ideia de escrever um romance em que Augusto fosse o tema. Um poeta protagonista, mais uma vez. Creio que o escritor escreve sempre o mesmo livro. Se alguém escreve um primeiro livro, estará sempre reescrevendo e reescrevendo esse livro nos livros subsequentes. Porque o livro é uma expressão do ser. Por mais que alguém faça variações em torno de um tema, estará sempre escrevendo o mesmo livro, estará sempre escrevendo quem esse alguém é. Não escrevemos aquilo que queremos. Escrevemos o que somos. Um trabalho de formação e criação literária é também um trabalho de construção do ser. Mas sempre se pode modificar uma verdade interior, existe sempre uma maneira de se aproximar cada vez mais daquilo que se almeja. Há uma porta aberta, nesse sentido. Augusto dos Anjos entrou, dessa maneira, entre as minhas possibilidades de escrever um livro. Mas a ideia ficou numa região escura de minha mente, onde às vezes eu dava uns voos. Eu cultivo um hábito, desde meu primeiro romance – tenho diversas ideias, escrevo mentalmente muitos livros ao mesmo tempo –: o hábito de formar estantes. Entro em um sebo, em uma livraria, encontro um livro que serve para um dos romances que estou planejando escrever. E compro o livro, vou formando as estantes. Eu já tinha uma estante de Augusto dos Anjos, orientada por sua proximidade com o universo familiar de meu pai. Os livros da estante de Augusto eram sobre a Paraíba, sobre engenhos, sobre cana-de-açúcar, bagaceiras, cientificismo, budismo, rua do Ouvidor, poetas contemporâneos como Olavo Bilac… Anotava histórias de engenho que nosso pai contava, eram lugares isolados, onde vivia uma aristocracia rural, a aristocracia rural paraibana, numa atmosfera obscura,

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Philip Roth e seus Complexos

Philip Roth por Bernardo Ajzenberg

Philip Roth nasceu em 1933 numa cidadezinha chamada Newark, em Nova Jersey, Estados Unidos, e está em plena atividade de produção literária, aos 80 anos. Foi professor de literatura até o comecinho da década de 1990 e combinou magistério e ficção com crítica literária – embora este fosse um trabalho bissexto. Fez, durante muitos anos, resenhas literárias, entrevistas, atuou um pouco como jornalista – mais, obviamente, no começo da carreira – para depois, morando em uma cidadezinha do interior, realmente mergulhar, de forma absoluta e integral, na criação literária. Publicou, desde 1959, aproximadamente 30 livros, e é o primeiro autor – pelas informações que pude encontrar – a integrar ainda em vida a American Library, a coleção mais importante dos Estados Unidos e que define, digamos assim, aquilo que é clássico ou não é. Ou seja, é uma biblioteca muito bem editada na qual entram autores consagrados, formadores da literatura, clássicos. Desde 2005, Roth tem suas obras editadas nessa coleção, o que é um dado muito importante. Não quer dizer que todos os autores excelentes tenham estado nessa coleção, mas, simbolicamente, é muito representativo.

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Ele recebeu inúmeros prêmios ao longo dessas décadas e está em todas as listas de apostas para o Prêmio Nobel. Muita gente que acompanha o trabalho de Roth e as escolhas do Nobel não entende como ele ainda não ganhou, pela dimensão de sua obra e por sua importância internacional. Somente no Brasil, por exemplo, ele tem mais de 20 livros traduzidos. Philip Roth pertence à segunda geração de judeus que saíram da Europa Central. Como ele mesmo sempre procura enfatizar, e de maneira bem forte, é, antes de tudo, um americano. Americano de origem judaica, mas, acima de tudo, um autor americano, que se inscreve, por outro lado, em uma literatura de origem judaica, uma linhagem que começa com Isaac Bashevis Singer e segue com Saul Bellow, ganhador do Nobel e um dos autores mais admirados por Roth, que pegou o bastão dessa linhagem. Feita essa apresentação muito sintética, queria dizer por que escolhi Roth, o que, em sua literatura, me faz considerar importante e interessante conversar sobre ele, pensar no que ele faz e, evidentemente, lê-lo. Considero-o um dos autores contemporâneos que provam, com seu trabalho, que a literatura é insubstituível e necessária, em que pesem todas as mudanças tecnológicas, todos os avanços, inclusive positivos, nas demais artes, como o cinema, a fotografia, a televisão, o rádio etc. O que isso significa e como é que Roth demonstra isso? Seus livros não têm uma linearidade narrativa muito evidente. Roth não está, necessariamente, preocupado em inovar ou criar coisas muito originais no aspecto mais, digamos, das migalhas. É alguém preocupado com o conjunto, mas que não segue aquela estrutura de começo, meio e fim. Ao contrário, brinca muito com a estrutura da narrativa, expande os eventos que narra para caminhos que a gente não imaginava que fossem ser apresentados quando começamos a ler suas histórias. Acima de tudo, ele obriga o leitor a usar muito a imaginação e, obviamente, a inteligência. É um autor exigente. Quando digo que ele nos força a usar a imaginação – de maneira turbulenta e até provocativa, às vezes labiríntica –, é esse o aspecto que, a meu ver, justifica a literatura, a existência da literatura.

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O prazer da ficção

Luiz Alfredo Garcia-Roza por Contardo Calligaris

Vou começar contando uma história para tentar explicar, na minha visão, para que serve a literatura. Há muitos anos, no fim da adolescência, em 1966, fiz uma viagem aos Estados Unidos com uma missão fortemente adulta, porque se tratava de conhecer meus sogros. Eu ia me casar com uma americana, cujos pais viviam nos Estados Unidos. Foi uma viagem bastante aventurosa. Eu não tinha muito dinheiro, porque naquela época trabalhava como tradutor de romances policiais, do inglês para o italiano, para a editora Gazanti, de Milão. Tomamos um voo charter de Milão para Londres, porque ir de Londres aos Estados Unidos era mais barato. Foi uma viagem venturosa e, claro, como acontece frequentemente com os charter − e não só com as companhias brasileiras −, o avião não saiu. Passamos a noite em Londres e, no dia seguinte, voamos para os Estados Unidos. Naquela época, não havia linhas diretas. Todos os voos da Europa para os Estados Unidos paravam em Shannon, na Irlanda, que é o grande duty free da Europa. Quando chegamos ao aeroporto Kennedy, descobrimos que não seria possível pousar. O Kennedy, naquela época, era pequeno demais para tanto tráfego aéreo. Sobrevoamos o aeroporto durante algum tempo,

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com uma certa preocupação porque, das janelas, víamos os outros aviões ao redor e todo mundo em círculo, estranhamente próximos. E foi assim até que o comandante disse: “O combustível está acabando e vamos ter de pousar. Mas aqui não é possível. Então, vamos pedir uma autorização e pousar em um aeroporto onde haja polícia federal”. Claro, porque o voo vinha de fora, de outro país, e precisava pousar onde houvesse controle de alfândega − imigração, como se chama nos Estados Unidos. Então fomos para Bangor, Maine, que não é tão próximo assim. Você vai subindo na direção do Canadá e em dado momento chega a Bangor, naquela época um lugar pobre, meio esquecido. Hoje, o Maine se tornou um lugar da moda. Portland e Bangor são locais concorridos, na beira do mar. É um conceito de beira de mar curioso, porque na água não dá para colocar nem um pé. É gelado, e os invernos são rigorosos. Mas, mesmo assim, é beira de mar. Descemos em Bangor, que tinha polícia federal, provavelmente, porque de vez em quando recebia alguns voos do Canadá. O aeroporto, em 1966, era uma espécie de imenso galpão sem janelas, sinistro, com um teto de zinco, onde se passava pelo controle de passaportes e alfândega. Depois disso, eles nos recolocariam no avião e, quando houvesse uma abertura, nos levariam de volta para o Kennedy, em Nova York. Eu estava bastante cansado, porque a viagem levara 30 horas, e precisei ir ao banheiro. Era um banheiro modesto, ou melhor, péssimo, estava deserto e tinha uma janela com grades, para que ninguém pulasse e entrasse nos Estados Unidos sem ter mostrado o passaporte. Parecia um banheiro de prisão. Olhei pela janela e vi um beco sem saída, curto, pequeno, com um asfalto carcomido, cheio de frestas, nas quais nascia uma grama meio doente. E molhado, porque era um dia cinzento e chuvoso. As paredes laterais desse beco, que devia ter uns quatro metros de largura, eram de concreto deteriorado, cheio de manchas, umidade. Ali, vi dois carros parados, bem velhos. Um era um Ford dos anos 1950, sem nenhuma característica especial, enferrujado, estacionado de modo meio torto. O outro era mais interessante, embora tampouco estivesse bem: um Chevrolet Impala 1959 que, ao que tudo indicava, fora largado no beco.

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O Claro-Escuro da Consciência

Fiódor Mikháilovich Dostoiévski por Paulo Bezerra

É muito comum perguntarem ao tradutor por que ele tem essa ocupação. E, principalmente, por que escolheu Dostoiévski, que já é muito traduzido para o português. A questão é que as traduções de Dostoiévski são, em geral, indiretas – isto é, baseadas em traduções do russo para outros idiomas –, e por isso dão conta do sentido da obra, mas são incapazes de recriar sua linguagem original. Isso acontece porque as traduções indiretas já vêm marcadas pela mediação da língua estrangeira para a qual a obra foi traduzida. Traduzir é uma atividade terrivelmente tensa porque implica um envolvimento do tradutor com a palavra do outro. Esse envolvimento nos impõe − a nós, tradutores − um comprometimento ético, que nos obriga a respeitar e a considerar como inviolável o texto do autor. A consciência da inviolabilidade da palavra do outro nos obriga a ir ao fundo do poço na garimpagem dos sentidos de cada palavra, na sua contextualização histórica específica. Não se pode traduzir de supetão, ou seja, ir ao dicionário e empregar o primeiro significado que ele oferece de um vocábulo. Esse é um risco seriíssimo. Se traduzo Dostoiévski − ou Tolstói, ou outro autor russo − e encontro a expressão gavarit skorogovórkoi, vou ao dicionário e encontro a seguinte

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tradução: “falar como metralhadora”. Mas como colocar isso em uma obra de Dostoiévski se na época em que ele viveu não havia metralhadora? Isso já me obriga a pensar no contexto e a procurar, no português, um termo equivalente àquele que o dicionário apresenta. Do contrário estarei traindo o contexto da obra. Então traduzo gavarit skorogovórkoi como “matraquear”, “falar pelos cotovelos” − mas nunca “falar como metralhadora”. O tradutor − e aí estou falando muito mais como teoria da tradução −, o tradutor é um mediador entre o autor e a obra. Nessa mediação, ele tem de levar em conta a língua de chegada do leitor. Ora, tradutor e leitor são pessoas de sua época. Portanto, quem traduz deve se pautar por uma atitude que não modernize nem arcaíze demais o texto, porque isso levará o leitor a consultar constantemente um dicionário, dada a antiguidade das palavras, ou a encontrar referências a metralhadoras num tempo em que elas ainda não tinham sido inventadas. A boa regra da tradução estabelece que o tradutor tem de se pautar pelo velho e bom provérbio − ou parábola – popular: “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”. A condição de mediador lhe impõe isso. Traduzir é recriar o universo histórico, cultural, psicológico de um determinado povo. Nessa recriação, o tradutor deve ter plena consciência de se dirigir a um destinatário específico, o leitor, que fala sua língua. Não adianta o tradutor querer se desdobrar, inventando expressões idiomáticas, imaginando que elas possam corresponder ao que está no original. Essa correspondência está clara para o tradutor, mas pode ser obscura para o leitor. Quando eu traduzia o livro do marechal Júkov sobre a Segunda Guerra Mundial, deparei-me com uma situação peculiar. O marechal recebe um chamado de uma frente de batalha e diz ao piloto que ambos precisam viajar naquele mesmo instante. O piloto responde: “Svói glaz, almáz”. Ao pé da letra, significa “Meu olho, meu diamante”. Qualquer russo entende que a expressão indica necessidade de verificação do fato in loco – pois só assim o comandante-chefe das Forças Armadas soviéticas poderia tomar a decisão correta. Fiquei muito tempo matutando, quebrando a cabeça. Queria encontrar em português uma expressão correspondente, que tivesse o mesmo sentido da frase em russo. Penei diabolicamente procurando a expressão, mas

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A armadilha literária

João Antônio por Rodrigo Lacerda

Comecei a estudar João Antônio de um modo muito pouco usual. Quando saiu meu primeiro livro, O mistério do Leão Rampante, o Jornal da Tarde publicou uma resenha. As pessoas que a liam vinham até mim e comentavam: “Parabéns, seu livro ganhou uma resenha legal. E ainda por cima escrita pelo João Antônio”. Eu tinha uns 24 ou 25 anos, trabalhava em editora, gostava de literatura brasileira e nunca tinha ouvido falar em João Antônio. Mas, com vergonha de confessar isso, eu ficava na minha. E pensava: “Deve ser alguém de São Paulo, que todo mundo aqui conhece. Mas, como eu sou do Rio de Janeiro, não tenho nenhuma obrigação de conhecer”. Só que o João Antônio pegou a mesma resenha, ampliou e publicou na Tribuna de Imprensa, do Rio. E lá passei a ouvir os mesmos comentários: “Parabéns, a resenha é do João Antônio”. E eu, com meus botões: “Caramba, quem é esse cara?”. Resolvi assumir minha ignorância e perguntar quem era João Antônio. Descobri que tinha sido um expoente da geração de 1970, que seu livro mais famoso era Malagueta, Perus e Bacanaço, considerado “uma maravilha”. Mas ninguém se lembrava dos outros livros dele. Fiquei curioso, porque João tinha uma boa reputação literária, todo mundo elogiava, mas

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estava meio fora de circulação. E, entre aqueles que o conheciam, só seu primeiro livro, o Malagueta, era citado. Ninguém se lembrava de nada do que ele tinha escrito em 33 anos: de 1963, quando saiu o Malagueta, até 1996, quando ele morreu. E sua morte teve circunstâncias tristes. Ele teve um infarto fatal, provavelmente morreu dormindo, mas passou em torno de 20, 25 dias morto, no apartamento, até que encontrassem seu corpo. João morava sozinho e não tinha família por perto. O filho vivia nos Estados Unidos, o irmão, em São Paulo, e eles não tinham um contato muito frequente. Ninguém possuía cópia da chave do apartamento. Isso me dá a impressão de que João Antônio era uma pessoa no mais profundo estado de solidão, de isolamento. Ele deixou muitas cartas, nas quais se referia a uma “armadilha literária” na qual teria caído. Luís Baggio, da Nova Alexandria, editor de Dama do Encantado, o último trabalho de João, uma vez me contou que ele dizia precisar desse livro para escapar da armadilha literária na qual se metera. Então acreditei que João Antônio realmente construíra essa armadilha, que ia além da profissão de escritor. Tudo isso me deixou curioso. Como é que alguém com tanto sucesso de crítica nos anos 1960 acabava assim? Paulo Rónai o elogiava, Aurélio Buarque de Holanda elogiava, juntaram-se para lhe dar um prêmio; Mário da Silva Brito, Ricardo Ramos, filho do Graciliano, Décio de Almeida Prado eram seus padrinhos literários, encaixavam publicações de João Antônio em seus respectivos suplementos literários, de 1959 até 1962, vésperas de Malagueta sair. Pessoas muito bem colocadas no mercado, jornalistas, editores de cadernos culturais, apoiavam João Antônio. Em 1975 ele lançou Leãode-chácara, seu segundo livro. Observem que foram 12 anos de intervalo desde a publicação de Malagueta. Leão-de-chácara foi bem. Logo depois, no mesmo ano, João lançou Casa de loucos, que vendeu três edições em menos de um mês – um recorde para qualquer época. Seus livros continuaram vendendo muito bem até os anos 1980. Em 1982, ele pediu a Antonio Candido para escrever a orelha de um livro seu. Mas pensou que ele não fosse aceitar. E explicou:

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… e Guimarães Rosa não deixou seguidores…

João Guimarães Rosa por Luiz Ruffato

Sempre me perguntei por que alguns autores, independentemente de juízo de valor, inoculam nas gerações seguintes traços de sua personalidade criadora, que poderíamos nomear “diálogo” mais que “influência”, enquanto outros produzem obras impermeáveis, que se encerram em si mesmas. Não encontrei respostas, mas ouso uma hipótese, escudado numa máxima de Northrop Frye, de que a literatura é “uma fonte inexaurível de novas descobertas críticas e continuaria sendo, mesmo que novas obras literárias cessassem de ser escritas”. Assim, penso que poderíamos dividir os escritores em duas categorias: os emuladores e os esterilizantes. Por emulador entendo aquele que incita os pares a perseguir seus passos, seja estilisticamente, seja em relação à visão de mundo; e por esterilizante, aquele que paralisa, castra uma possível descendência. Ambos os grupos encabeçam-nos dois dos maiores nomes da história da literatura brasileira. De um lado, Machado de Assis; de outro, Guimarães Rosa. Machado de Assis, cada vez mais reconhecido como um dos maiores escritores que a humanidade produziu, seria, na minha nomenclatura, exemplo maior de autor emulador. Ironicamente, contrariando Brás Cubas, que conclui sua narrativa com a célebre frase “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o

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legado da nossa miséria”1, seu criador fecundou uma extensa filiação, desde um hoje esquecido Pedro Rabello (1868-1905), autor dos contos de A alma alheia, até um Murilo Rubião (1916-1991), passando por Lima Barreto (1881-1922), Graciliano Ramos (1892-1953), Cyro dos Anjos (1906-1994) e Marques Rebelo (1907-1973), entre outros. Poderíamos assim constatar uma já rica tradição machadiana na literatura nacional. Guimarães Rosa, por outro lado, seria o representante mais paradigmático da segunda acepção, a do autor esterilizante. Experimentalista e renovador como Machado de Assis, não há notícia de escritor importante que possa ser considerado de linhagem rosiana. Há, talvez, pastiches, imitações, epigonias – ou seja, condenações. Mas nunca diálogos. Para mim, Guimarães Rosa não deixou seguidores pela simples razão de que, assim como alguns poucos outros autores (e poderia citar uma Clarice Lispector ou uma Hilda Hilst, por exemplo), ele não pode ser entendido como um autor “realista”, ao contrário de Machado de Assis. A linguagem é um meio para a descrição do mundo – adequa-se às necessidades implícitas do escritor. Como afirma Guimarães Rosa, em carta a Curt Meyer-Clason, “a língua, para mim, é instrumento: fino, hábil, agudo, abarcável, penetrável, sempre perfectível etc. Mas sempre a serviço do homem e de Deus, do homem de Deus, da Transcendência”. E, no caso, sua linguagem permeia e é permeada pelo mundo que criou, situado fora do espaço e do tempo, habitado mais por tipos do que por indivíduos – um sertão e um sertanejo míticos, em suma, porque, afirma Guimarães Rosa, “o sertão é o terreno da eternidade”, e, na eternidade, sabemos, o tempo e o espaço encontram-se suspensos. Daí advém a genialidade de Guimarães Rosa e também sua solidão – basta lembrar que ele não foi, em sua época, a unanimidade que hoje se tornou. Em 1958, a revista Leitura produziu uma enquete intitulada “Escritores que não conseguem ler Grande sertão: veredas”, que ocupou duas páginas da publicação, listando nomes como Barbosa Lima Sobrinho, Osório Borba,

1  Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, Rio de Janeiro/Brasília: Civilização Brasileira/ MEC, 1975.

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As mil e uma noites

Literatura árabe por Mamede Jarouche

Suponho que alguns − ou todos vocês − saibam que traduzi As mil e uma noites direto do árabe. Foi uma obra que me deu muito trabalho, e sobre a qual me pediram para contar, e escolho contar sempre começando pelo advogado mais famoso que ela tem na cultura e na literatura ocidental, que é o escritor argentino Jorge Luis Borges. Borges apreciava muito As mil e uma noites e escreveu bastante a respeito, ensaios sobre As mil e uma noites, sobre os tradutores de As mil e uma noites, escreveu poesias a respeito do livro, enfim, citava-o a torto e a direito, em mais de uma situação. Inventou muita coisa a respeito da obra, contribuiu para criar uma aura de intangibilidade em relação a ela. Dizia muitas coisas interessantes sobre As mil e uma noites. Uma delas era sobre o título, que Borges considerava “o mais belo título do mundo”. Assim, sem discussão. Afirmava que não havia, na história da literatura, um título tão belo. Em um ensaio sobre os tradutores do livro, escreveu: “É um título tão bonito que, se ele não existisse e alguém o criasse agora, nós imediatamente diríamos: Que belo título”. É um título muito feliz e ele o atribui ao temor místico que, argumenta, os povos semitas têm dos números pares. Então, dizia ele assim: “O livro, ou se

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chamaria 999 noites, ou 1001”. E não mil. E, felizmente, ocorreu ao autor dar-lhe o nome de mil e uma noites e não de 999. Borges continua: “Se o nome da obra fosse 999 noites, sentiríamos, primeiro, que ela é suportavelmente chata. E, segundo, que falta algo. Agora, com essa noite que foi acrescentada às mil originais, sentimos que nos é dado algo além do infinito”. Enfim, Borges faz uma discussão poética muito bonita. Ele diz também que no céu existem dois arquétipos de livro. Um livro no qual não acontece absolutamente nada e um livro no qual acontece absolutamente tudo. Como arquétipo do livro no qual não acontece nada, Borges cita romances psicológicos, novelas psicologizantes. Considera A fera na selva, de Henry James, autor norte-americano que viveu na Europa do século XIX, o arquétipo da obra na qual não acontece nada. E, por outro lado, o arquétipo da obra na qual acontece tudo, rigorosamente tudo, é As mil e uma noites. Penso que ele não estava totalmente certo ao dizer que acontece tudo, mas, de fato, acontece muita coisa. Borges também dizia algo que nos toca, aqui: “O livro constitui parte prévia da nossa memória. E é tão vasto”… Agora observem o que ele escreve: “As mil e uma noites é um livro tão vasto e tão importante que nem é preciso lê-lo”. É uma afirmação paradoxal, não é? Borges, como literato no mais estrito sentido do termo, talvez valorizasse mais o que se dizia a respeito de uma obra do que a obra em si. Interessava-o aquilo que ela podia provocar, suscitar, independentemente de ter alguma essência. Cito, como exemplo, uma poesia que ele escreveu a respeito da volta de Ulisses. Com base na Odisseia, Borges escreveu uma poesia falando do choro de Ulisses no retorno final para Ítaca. É uma poesia belíssima, que mereceu o seguinte comentário de uma amiga a quem ele o mostrou: “É linda. Só há um problema: não corresponde aos fatos literários”. Quem leu Odisseia sabe que Ulisses, quando retorna a Ítaca, recebe uma droga dos feácios e dorme o caminho todo. Quando chegam ao litoral, eles o depositam na praia e voltam. Portanto, Ulisses não pode chorar de emoção ao ver Ítaca ao longe pelo simples fato de que isso não aconteceu. Ele dormiu e, quando acordou, já estava em Ítaca. E a amiga de Borges observou isso. Aí, ele disse: “Mas isso não tem a menor importância”.

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Os leopardos de Scliar

Moacyr Scliar por Tiago Novaes

Das encruzilhadas com que se topa em cada ato supostamente voluntário desde o aprendizado da língua, das muitas escolhas loquazes ou murmurantes que se é condenado a fazer, uma das mais insondáveis é decerto a situação que reúne um livro, um homem e um dia. Parece bem adequada a inversão fenomenológica de que é o livro que nos busca e não nós a ele. Um livro como uma mensagem numa garrafa que chegará às mãos de um náufrago. Diante de uma mensagem, o leitor é sempre um náufrago. A caligrafia na carta poderá ser ilegível; o recado, cifrado; o idioma, desconhecido; tal mensagem, não obstante, falará conosco na intimidade mais silenciosa, para além ou aquém de qualquer consciência de compreensão. A palavra proferida por uma sombra, a remota intuição de um homem que vivo ou morto a bosquejou e reescreveu como um mantra profano, a presença que nossa imaginação reanima, o tanto da mitologia própria que preencherá a porosidade em branco do papel ou pergaminho desenrolado, a destilação desse sopro, um movimento que se opera, como um florar de crepúsculo sem testemunhas, e o abrupto augúrio de que o autor daquele livro perdido deve ser um náufrago, só pode ser um

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náufrago num oceano de náufragos. Um livro como o único diálogo, o único apelo, o único indício da existência de náufragos que se desconhecem. E, ao mesmo tempo, a palavra de outro que se guarda como um tesouro enquanto perdura o ato de ler. Um sentido. Imagens, pessoas. Os nomes dessas pessoas. Personagens, cenários. Delineados com maior ou menor vigor. Um livro de formação. Das obras que foram se sucedendo sobre a linha de ferro do tempo, e criando a impressão de continuidade de um caráter, de uma visão de mundo. Títulos que, em algum momento, já não nos instigam como antes. A biblioteca de edições antigas e capas fora de moda. As más traduções, as adaptações, os maus livros em meio aos bons livros. Maus livros que foram bons livros porque em determinado momento se apresentaram como o porém que turvava as nossas certezas. Ou a trama bem urdida que sorri afetuosamente e que apenas nos consola, e isso basta. Ou o livro como estrada. O livro um vale uterino a partir de onde o ruído arrefece e tudo é mais escuro e temperado. Uma noite solitária na qual algo vai nascer sem aviso. Um livro de Moacyr Scliar. Chamava-se Doutor Miragem. Edição de bolso na erma biblioteca de bairro com sua sala deserta de leitura. Ali, um jovem tímido poderá achar, sem os preconceitos que a formação lhe incutirá, prateleiras metálicas empilhadas de gibis de Neil Gaiman e Hergé, além de fileira de edições de Assis Brasil1. Stella Carr. Manuel Bandeira, Ganymedes José. Agatha Christie, Anne Rice (traduzida por Clarice Lispector), Marcos Rey. Leminski. Luis Fernando Verissimo. Drummond. Rubem Braga. Depois, Hermann Hesse, Tolkien, Fernando Sabino. Ana Miranda. O livro de heterônimos de Pessoa que já se desfaz. E, naquele dia, a edição branca e encardida emoldurando a reprodução clássica de A lição de anatomia do doutor Tulp, de Rembrandt. Da história não lembro. Cheguei a procurar o exemplar que tinha. Presenteado ou emprestado para sempre. Sei que a narrativa abria com uma sugestão. Um narrador forte, com profunda consciência de sua tragicidade. E uma trama ágil. O protagonista era um exilado e enfrentava dilemas, uma figura com que se podia identificar, empático, ainda que austero, calejado. Teor fantástico. 1  Francisco de Assis Almeida Brasil.

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Como observa o tradutor Sérgio Molina, a palavra tertúlia tem origem no unicada, lá é bastante corriqueira, significando uma boa conversa entre amigos

Tiago Novaes, o livro reúne vinte ensaios livres elabora-

em torno de um interesse comum. Assim também é o espírito do livro Tertúlia,

dos a partir de alguns dos mais de quarenta encontros

que convida 20 escritores e tradutores brasileiros a se colocarem na posição

realizados em distintas unidades do Sesc São Paulo e

de leitores e discutir livremente sobre um autor que os tenha influenciado em

na Livraria da Vila entre 2005 e 2010, nos quais grandes

seu estilo e produção. Um projeto que se desdobrou de ações culturais reali-

escritores abordaram a obra daqueles que os influen-

zadas em algumas unidades do Sesc São Paulo, exibidas também pelo SescTV,

ciaram, e tradutores discorreram sobre as obras magis-

e agora encadernadas nesse volume. Sérgio Molina se empenha em desvendar

trais que traduziram. Como não poderia ser diferente,

as tramas de Miguel de Cervantes e seu D. Quixote; Maria Esther Maciel apre-

os convidados se revelaram grandes leitores, em um

senta os paradoxos de Jorge Luis Borges; Marcelino Freire comenta sua relação

diálogo franco sobre as sutilezas e as concepções, as

com Manuel Bandeira; Lygia Fagundes Telles investiga a Capitu de Machado

anedotas e as poéticas de outros vinte escritores clássi-

de Assis; Leonardo Fróes se debruça sobre a obra de Virginia Woolf; Juliano

cos e contemporâneos, alimentando o perene diálogo

Garcia Pessanha se encontra com Franz Kafka; Eric Nepomuceno narra suas

entre a literatura de nossos dias e a tradição, preser-

aventuras ao traduzir Gabriel García Márquez; Julián Fuks mergulha na obra

vando assim a vitalidade do encontro e a densidade

de James Joyce; Márcio Souza apresenta Inglês de Souza; Boris Schnaiderman

da experiência.

conta a história de Lev Tolstói; Manuel da Costa Pinto reflete sobre Albert

o tradutor Sérgio Molina elucida que: “Tertúlia provém

Cláudio Willer retoma a mística de Hilda Hilst; Bernardo Ajzenberg escreve

do castelhano, nasce no universo cultural da Espanha.

sobre a trajetória de Philip Roth; Contardo Calligaris compartilha o prazer de

E embora para nós a palavra soe um tanto rebuscada,

ler Luiz Alfredo Garcia-Roza; Paulo Bezerra conta como traduzir a consciência

lá ela é bem usual e despretensiosa, com uma cono-

de Fiódor Dostoiévski; Rodrigo Lacerda revela a armadilha de João Antônio;

tação que tem muito mais a ver com o espírito destas

Nélida Piñon analisa Pedro Páramo, de Juan Rulfo; Luiz Ruffato aponta a inexis-

nossas tertúlias: um bate-papo regular concentrado

tência de uma linhagem literária de João Guimarães Rosa; Mamede Jarouche

em torno de determinado assunto, mas sem perder o

apresenta As mil e uma noites; e Tiago Novaes homenageia Moacyr Scliar,

frescor da despretensão”.

além de ter sido o responsável por promover esse encontro de amigos auto-

Pois Tertúlia é isso: um bate-papo, sem a pressa

ia

Camus; Ana Miranda divaga sobre a vida e poesia de Augusto dos Anjos;

Tiago Novaes (org.)

Em sua magistral apresentação de Dom Quixote,

obra, de transcender a convenção, seduzir ou frustrar

nda

túl

verso cultural da Espanha e, embora para os brasileiros soe um tanto rebus-

Antes de publicar seus livros – isto é, de conceber a

Ter

publicações recentes que Tertúlia: o autor como leitor traz ao público. Idealizado e organizado pelo escritor

Tertúlia  o autor como leitor

É esta dimensão singular e pouco explorada nas

a erg Mir enb z j A Ana o man nard ider a Ber n ch is S ller Bor Wi o i aris d u allig C Cla o no tard uce m Con o Nep Eric ks n Fu nha á i l Ju essa P o an óes Juli o Fr d r a n s Leo ato elle Ruff es T z i d u n L agu che ia F o arou Lyg J Pint e ed sta m o a C M da uel reire Man no F i l e c uza Mar l o So acie i c M r á r e M sth ia E n Mar Piño ida l é N erra Bez a o l cerd Pau a L rigo lina Rod Mo o i g aes Sér Nov o g Tia

res e leitores em torno da literatura de cada um e de todos nós.

das convenções jornalísticas ou midiáticas, a uma dis-

o m o rc

tância justa e sadia da instituição acadêmica, e que se dá em um espaço instituinte de pensamento e amizade.

to u a o

Um diálogo sobre livros e entre livros, sobre escritores e entre escritores, sobre leituras e entre leitores. ISBN 978-85-7995-073-5

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a frase, a língua – o autor foi e continua sendo sempre um leitor. O ideal de criador que ele conjura e o imaginário que elabora de seus próprios leitores mantém relação íntima com a perspicácia de suas leituras, com a regência de um cânone privado, a constelação íntima dos autores que opta por admirar e com os quais irá dialogar. Nesse mesmo sentido, o tradutor, em seu ofício, também é um autor. Sua fidelidade está na atenção perseverante e arriscada da transmissão dos sentidos, das vozes, de uma coerência com a mensagem silenciosa da obra original. Para tanto, cumpre que faça uma infinidade de escolhas cuja natureza é a da própria criação literária. E, sendo autor, o tradutor é, por consequência, um leitor ávido cuja missão consiste em aproximar mundos culturais e linguajeiros distintos, sem deixar de preservar-lhes a essência e as vicissitudes.

r o t i le

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(o aes

ov

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deliberadamente o seu público, garimpar a metáfora,

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