Este livro posiciona a cultura no centro dos debates, para que ela possa se propagar daí para circunferências infinitamente expandidas.
Imagem da capa Carlos Alberto de Oliveira (Carlão) [1951-2013]. Carnaval a cavalo. Acrílica sobre tela. 45 x 45 cm. 2002. Acervo Sesc de Arte Brasileira. Fotografia: Everton Ballardin
A proteção dos bens culturais por meio de instrumentos jurídicos é explicada e debatida nesta coletânea de artigos redigidos por especialistas das mais variadas procedências. O direito à cultura, que abarca o patrimônio material e imaterial manifestado nas formas de expressão, na produção artística e científica, nas edificações e nos sítios naturais, é esmiuçado desde seu surgimento na teoria política do constitucionalismo até sua inclusão nas declarações internacionais de direitos. Também são examinadas a inserção dos direitos culturais na Constituição brasileira e a evolução das políticas públicas de cultura no Brasil. Entre os diversos bens culturais a que se tem direito, são abordados exemplos como a conservação de bairros antigos, a acessibilidade física aos monumentos, a propriedade intelectual de conhecimentos tradicionais, a defesa de línguas indígenas e de locais sagrados, o registro de manifestações folclóricas, o trabalho arqueológico na investigação de crimes e a criação de espaços para a memória histórica. O estudo desses e de outros bens culturais, reconhecidos como direitos humanos, evidencia a importância que eles têm para muito além de suas comunidades de origem e ajuda a disseminar os meios disponíveis para preservá-los.
BENS CULTURAIS E DIREITOS HUMANOS
Os novos e múltiplos sentidos dos bens culturais corroboram a frase que o prof. Miguel Reale, ex-reitor da USP, concebeu para inscrever ao redor da Torre do Relógio, na Cidade Universitária: “No universo da cultura, o centro está em toda parte”. Os dizeres parafraseiam um aforismo difundido sucessivamente por Rabelais, Montaigne e Pascal: “O universo é uma esfera cujo centro está em toda parte, e a circunferência em parte alguma”. A versão medieval dessa máxima atribuía a mesma definição à divindade. No mundo secularizado, a posição central que era atribuída ao divino passou a ser ocupada pelo cultural, não dado por Deus, mas construído pelas pessoas.
Das concepções etnográficas da cultura, no início do século XX, à visão da cultura como patrimônio coletivo dinâmico, no início do século XXI, os bens culturais foram valorizados como elementos essenciais para a vida em sociedade. O registro do patrimônio imaterial brasileiro pelo Iphan, desde 2000, mostra que as manifestações culturais não são mera curiosidade folclórica. Elas constituem uma afirmação da dignidade intrínseca de seus praticantes e do valor social, artístico e histórico que possuem para todo o país.
BENS CULTURAIS E DIREITOS HUMANOS Inês Virgínia Prado Soares e Sandra Cureau (org.)
A proteção do patrimônio coletivo pelo poder público confere a ele o caráter de direito. Nem privilégio, nem favor: a cultura é um direito. Os direitos culturais são reconhecidos por tratados internacionais como parte dos direitos humanos de segunda geração, junto com os direitos econômicos e sociais. Ao contrário dos direitos civis e políticos, de primeira geração, que vedam a interferência do Estado nas liberdades individuais, os direitos culturais estão entre aqueles que exigem uma atuação positiva do Estado para promovê-los. A distinção entre gerações de direitos, todavia, é lógica e não cronológica. Todos devem ser atendidos simultaneamente. Entretanto é comum ouvir que não se deve gastar com cultura enquanto a saúde e a educação não forem plenamente atendidas, não se pode esperar para ter cultura. A cultura não é luxo, não é cosmético. A função dos bens culturais não é apenas tornar a paisagem urbana mais agradável. Ao tombar o Sesc Pompeia, em março de 2015, o Iphan destacou, além dos “valores técnicos e estéticos” da obra, a preservação de elementos tradicionais contidos na edificação e sua conversão para o uso cultural. Em outros casos, a preservação de locais com passado funesto, como centros de detenção e tortura, revela que os bens culturais não proporcionam somente amenidades, mas exprimem os anseios mais profundos do ser humano, como a busca pela memória e pela verdade, necessárias ainda que dolorosas. Bens culturais são portadores de sentido. Por isso tornam a vida possível, por isso são direitos inalienáveis.