CIDADELA DA LIBERDADE

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LINA BO BARDI E O SESC POMPEIA

CIDADELA DA LIBERDADE



André Vainer e Marcelo Ferraz

LINA BO BARDI E O SESC POMPEIA

CIDADELA DA LIBERDADE

organização


Lina Bo Bardi, 1982 Foto de Olney Kruse


Cidadela / cidadão / cidadania Cidade é belíssima, e grato o seu convívio. Toda cortada de ruas habilmente estreitas [...] tudo diminuindo com astúcia o espaço de forma tal, que nessas artérias não cabe a população. (Mario de Andrade, Macunaíma)

Foi com o desenvolvimento das ações socioeducativas em seu entorno que o centro cultural, esportivo e de saúde traduziu e alargou os efeitos da maturação cultural. Um movimento que teve início em 1982, nas relações entre público, artistas, produtores e equipe de funcionários, ressignificando a preservação do patrimônio arquitetônico.

A emergência da sociedade urbano-industrial na virada do século teceu o movimento das transformações que se estendeu por São Paulo em meio a um impulso progressista. Entre os resultados que se desprenderam deste processo está a perda das referências da população frente à redução dos espaços de convívio. A experiência da cidade, então, transformou-se para seus habitantes num entrave que os avanços da tecnologia e da economia mundial não contribuíram para ultrapassar.

À época, São Paulo experimentava uma mobilização histórica singular, animada por valores humanistas e pelo desejo de justiça social irradiado a partir das campanhas por eleições diretas no país. A cidade aspirava se tornar um espaço de convivência, promotora de civilidade. Aspirava, sobretudo, se desenvolver num longo prazo, pensando no futuro, na continuidade, nas permanências, com uma perspectiva de transformação social e cidadania.

Na contemporaneidade, na qual o transitório rege a dissipação e a velocidade, a cidade persiste em descartar suas identidades. Nos esquecimentos e ruínas, que resultam das sucessivas camadas de apagamento e reconstruções, podem-se perceber a intensidade do descuido e o significado dos contínuos processos paliativos de modernização. A cidade, pela força humana, tornase espaço de intolerância, de fragmentação e de esquecimento.

O Sesc Pompeia integra hoje a rede de 32 espaços culturais do Sesc em São Paulo, localizados na capital, interior e litoral. Permanece, desse modo, a inspirar novas experiências que possuem raízes na valorização da qualidade de vida, nas relações sociais estabelecidas pelas atividades artísticas, esportivas e físicas, inclusão digital, lazer, recreação, alimentação e segurança alimentar, saúde, odontologia, férias e turismo social, educação ambiental, desenvolvimento infantil e juvenil e terceira idade.

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Diante do colapso das tentativas de equalização social, que dominam as perspectivas no século XXI, o homem se defronta com os aspectos e limites das onipotentes intervenções urbanas, que se fundem, desgastando os gestos, os olhares e os brincares. Na subversão de tantos esgotamentos do tempo urbano, um portão de fábrica resiste. Porém ele se abre para uma rua de dentro. No meio desta conexão, de um lado, se faz a rua de asfalto, expressão da tensão celerada que movimenta e distancia. De outro, a rua de paralelepípedos, que desperta o equilíbrio e aconchega os visitantes, sob a vigília da carranca de Pirapora. Os galpões que cercam a rua do Sesc Pompeia criam um encanto, irradiado tanto da arquitetura atrativa de Lina Bo Bardi quanto dos diálogos possíveis que se abrem ao espaço urbano, entornando, com seus antigos tambores, a dimensão coletiva da cultura.

Este livro, que se originou do catálogo da exposição Cidadela da Liberdade, traça o caldeamento do projeto de Lina Bo Bardi, envolvendo a cultura brasileira em sua vastidão simbólica. Como um amálgama, a publicação revela por seus textos, desenhos e fotos a atemporalidade das práticas criativas e educativas adotadas pelo Sesc, inseridas no espaço poético das linhas da arquiteta, suas artérias. As artérias expostas em que “cabe” a população, diria Macunaíma. Cabe a população que permanece aprendendo uma com a outra, uma entre outra. Cabe a população que usufrui sua cidade, sua história, suas identidades. Cabe a população que constrói dúvidas, transforma pensamentos, reinventa sonhos. Danilo Santos de Miranda Diretor Regional do Sesc São Paulo


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Cartaz da exposição “Cidadela da Liberdade”. Design Victor Nosek, 1999


Treze anos depois André Vainer e Marcelo Ferraz Em 1999, organizamos uma exposição no Sesc Pompeia, durante a IV Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, intitulada “Cidadela da Liberdade”. Naquele momento, além de abordar o projeto e a obra arquitetônica de Lina Bo Bardi, tínhamos como objetivo evidenciar certos conceitos que compõem uma das mais nobres funções da arquitetura: a de prover e construir o espaço da convivência. Neste caso, o ingrediente era o espaço da Fábrica da Pompeia, sua arquitetura, seu design, impregnados da memória do passado industrial, dos sentimentos táteis de materiais empregados, das experiências de escalas totalmente contrastantes e dos percursos de livre escolha. A velha fábrica, recuperada e transformada, apresentava-se então como um espaço privilegiado para pensarmos e experimentarmos todos esses temas de forma intensa. Demos a nossa exposição o nome “Sesc Pompeia – Cidadela da Liberdade”, uma combinação de palavras significando bastião guerreiro de defesa (a cidadela) que zela por um dos mais caros valores humanos: a liberdade. Ponto luminoso no coração da metrópole brasileira, essa pequena cidade sem automóveis reúne e abriga pessoas para celebrar a vida. Liberdade é sentimento comum ao imenso e variado público que tem frequentado esse muito democrático centro de cultura e lazer. Hoje, treze anos depois e trinta anos após a inauguração da Pompeia, voltamos a refletir sobre o projeto, revendo e ampliando o catálogo da exposição de 1999 e transformando-o em um livro. Do original, guardamos o título, os desenhos, as imagens e os textos, os quais, ordenados de outra maneira, foram ampliados com mais imagens e textos, propiciando novas leituras e conexões. Agora, deverá se transformar em importante fonte de pesquisa e inspiração aos muitos estudiosos do mundo inteiro que se debruçam sobre obra tão peculiar. Os sinais vitais da cidadela continuam vigorosos, aguentando necessárias mudanças de uso e programação, naturais demandas contemporâneas. Tudo ali parece feito na justa medida do espaço e das estruturas. O segredo, ou receita, como dizia Lina, não é muito complicado: “uma aguinha, um

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foguinho, crianças, jovens e velhos, todos juntos e livres para fazer o que quiserem... e pronto” – eis a matéria-prima de sua arquitetura. Parece ser este o sucesso do aconchego urbano, algo tão raro e desejado em nossas duras cidades. Ali na Pompeia, a cidadela continua em pé, sem sinais de cansaço, em defesa da convivência entre todos, iguais ou diferentes.


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O edifício da fábrica recém-construído, bairro da Pompeia c. 1940


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O projeto arquitetônico

O projeto do Sesc Pompeia teve como premissa básica recuperar e manter a velha fábrica, intervindo com maior ou menor intensidade sempre através de uma perspectiva contemporânea. Desenhos de Lina Bo Bardi


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Área de convivência


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Mobiliário da área de convivência


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Área de convivência


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Teatro


A obra A restauração dos galpões foi realizada de 1977 a 1982, tendo seus princípios e critérios básicos fundamentados na Carta de Veneza – uma concepção dinâmica que deixa patente a história viva do edifício e visíveis as diversas técnicas que foram empregadas ao longo do tempo. O bloco esportivo foi aberto 78

ao público em 1986, tendo sido construído em concreto numa concepção simples e funcional. Recuperação do telhado

Limpeza das telhas

Concretagem das lajes de leitura da biblioteca


79 Concretagem do laguinho

Ateliê de cerâmica

Instalação das poltronas do teatro

Piso dos ateliês



O novo uso da velha fábrica

Em 30 anos de atuação, o Sesc Pompeia apresentou múltiplas atividades em todos os seus setores, utilizando inclusive a rua central com feiras e festas populares, sempre buscando mostrar propostas culturais inovadoras e espetáculos de vanguarda a preços acessíveis. Todo o material de divulgação das atividades e eventos era impresso no próprio Centro, nos ateliês de tipografia e de gravura.


Área de convivência, biblioteca e galpão de exposições

NELSON KON NOVA

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Teatro

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“Os teatros greco-romanos não tinham estofados, eram de pedra, ao ar livre e os espetadores tomavam chuva, como hoje nos degraus dos estádios de futebol, que também não tem estofados. Os estofados aparecem nos teatros áulicos das cortes, no Setecentos

e continuam até hoje no conforto da sociedade de consumo. A cadeirinha de madeira do Teatro da Pompeia é apenas uma tentativa de devolver ao teatro seu atributo de ‘distanciar e envolver’ e não apenas sentar-se.” Lina Bo Bardi


Nove anos Marcelo Ferraz e André Vainer, 1986

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Começamos em 1977, pelo levantamento da antiga fábrica de tambores dos irmãos Mauser: um escritório no canteiro de obras, com desenhos de observação passados para a prancheta, medidas no lugar, voltas e mais voltas pelos velhos galpões. O projeto era verificado a cada passo na realidade da obra, e ali era feito com a mais ampla participação: engenheiros, mestres, operários... Para nós, estagiários, era tudo novidade. Lina nos cobrava, pela falta de medidas nos desenhos, com belas broncas e com delicada amizade, nos introduzindo às maravilhas da profissão de construir. O trabalho era fascinante, pois praticávamos arquitetura em seu sentido mais amplo: restauração, edifícios esportivos novos, teatro, restaurante, oficinas, todo o mobiliário, sinalização, trajes dos funcionários e, por fim, montagem de grandes exposições que marcaram época, como “Design no Brasil”, “Caipiras, capiaus: pau a pique” ou “Mil brinquedos para a criança brasileira”. Em 1982, teve início a primeira etapa, e o centro começou a funcionar na antiga fábrica. Com Lina, ajudamos a escolher, entre os operários de obra, o corpo de contínuos que até hoje vêm cuidando da manutenção do centro. Em 1986, o bloco esportivo foi inaugurado, completando o centro de lazer, convivência e esporte não competitivo. Nos primeiros anos de funcionamento, sob sua supervisão, a Fábrica da Pompeia foi uma grande novidade no cenário cultural brasileiro. Ali, Lina levou a cabo a arquitetura do comportamento humano, projetando espaços e neles interferindo, criando contextos e provocando a vida. O convívio entre os homens era o grande gerador de tudo. “Aqui, fizemos uma pequena experiência socialista”, disse Lina repetidas vezes. Éramos uma grande orquestra afinada, regida por um grande maestro. Foram nove anos de muito trabalho.

“Nada mais cômodo, no mundo, da (do que a) postura idealista e metafísica, que permite uma saída qualquer, que não toma conhecimento da realidade objetiva fugindo do seu controle. Observando uma coisa é preciso examinar sua essência, considerando sua exterioridade apenas uma porta que dá acesso ao conhecimento de sua realidade. É o único método certo. O método da análise científica. As causas externas operam através das internas. O ovo que recebe adequada quantidade de calor se transforma num pintinho, mas o calor não pode transformar em pintinho uma pedra.” Texto escrito na lousa do escritório por Lina Bo Bardi, atribuído a Mao Tse-Tung


Numa velha fábrica de tambores... Marcelo Ferraz

Lina Bo Bardi, Luis Octavio Martini de Carvalho, André Vainer e Marcelo Ferraz

André Vainer, Marcelo Ferraz e Lina Bo Bardi

André Vainer, Lina Bo Bardi, Marcelo Ferraz, Guilherme Dagli e Ernesto Wlasson. Ao fundo, a lousa com o texto escrito por Lina

Em 1982, uma bomba explodiu no ambiente arquitetônico brasileiro, mais especificamente em São Paulo. Essa bomba era o Centro de Lazer Fábrica da Pompeia, hoje conhecido simplesmente como Sesc Pompeia. Por que bomba? Porque era inenquadrável nas gavetas da arquitetura corrente. Era estranho. Era feio? Fora de escala? Bruto, mas também delicado? Seguramente, era algo que não fazia parte do universo possível, alcançável às mãos dos arquitetos atuantes. Foi de fato uma bomba, um choque. Lina Bo Bardi, depois de amargar um ostracismo de quase dez anos, vítima do regime militar e também das “vistas grossas” da arquitetura oficial, surpreende a todos com esse presente a São Paulo. Paris acabara de inaugurar o Centro Georges Pompidou – Beaubourg, modelo extravagante de arquitetura que causava frisson nos estudantes e jovens arquitetos e que logo se tornaria referência. Simbolizava uma via de escape ao modelo modernista, já um tanto deteriorado. Por consequência, era inevitável sua comparação ao novo centro de lazer que nascia no bairro da Pompeia: linguagem industrial, mudanças bruscas de escala, cores, muitas cores e, principalmente, “estranheza” com a vizinhança. Mas, apesar de tudo isso, as duas propostas eram muito distantes e dessemelhantes em suas origens, seu ideário e seus resultados. Convidada por Renato Requixa e Gláucia Amaral, diretores do Sesc à época, Lina mergulhou numa viagem que seria a mais fecunda e prolífica de sua vida, já na idade madura. E nós, André Vainer e eu, no início como estudantes e depois como recém-formados, participamos dessa privilegiada aventura. Durante nove anos (1977 a 1986), desenvolvemos com Lina esse projeto, numa atividade diária em meio ao canteiro de obras: acompanhamento dos trabalhos, experimentações in loco e grande envolvimento de técnicos, artistas e, sobretudo, operários. Esta postura foi, também, uma verdadeira revolução no modus operandi da prática arquitetônica vigente. Tínhamos um escritório dentro da obra; o projeto e o programa eram formulados como um amálgama, juntos e indissociáveis; ou seja, a barreira que separava o virtual do real não existia. Era arquitetura de obra feita, experimentada em todos os detalhes. Em 1982, foi inaugurada a primeira etapa do conjunto, a readequação da antiga fábrica de tambores dos Irmãos Mauser

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O bloco esportivo Com a construção iniciada no final de 1982 e inaugurados em outubro de 1986, os dois blocos de concreto aparente são interligados por quatro níveis de passarelas que levam aos quatro ginásios poliesportivos, a piscina aquecida e o deck/ solarium – uma praia urbana nos fins de semana.


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A Flor de MandacarĂş


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A antiga chaminé da fábrica, em tijolos aparentes, fora demolida um pouco antes do início das obras. Lina Bo Bardi resolve então que a caixa d’água deveria ser o novo marco vertical do conjunto. Projetamos então uma torre com 70 metros de altura. Os engenheiros queriam utilizar formas de aço deslizantes, como é de costume. Lina, por seu lado, não queria uma coisa comum, igual a todas as torres de todas as fábricas de hoje, lisas, sem personalidade. Queria uma torre marcada pelas etapas da concretagem, com as “rendas ou bordados” resultantes do processo. Instalase no canteiro uma enorme discussão que toma dias, ou semanas: de um lado, a engenharia dizendo ser mais rápida e econômica a solução em aço; do outro lado, Lina buscando algo diferente, mas ainda pouco definido. Fizemos um protótipo – com madeira de obra e pedaços de pano (sacos de estopa baratos, utilizados para transportar batatas). O protótipo funcionou. Com apenas dois conjuntos de formas de madeira, dez vezes mais baratas do que as formas de aço, realizamos os 70 metros da caixa d’água em 70 dias. Com os panos enfiados no fundo das formas antes de cada concretagem, obtivemos o resultado que queríamos, de um rendado. “Uma homenagem a Luis Barragán e suas Torres Satélite, na cidade do México”, declarou Lina.


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Show de Gilberto Gil na inauguração do conjunto esportivo. 1986


Vi vo minha v ida aprendendo sem parar, às vezes dói, às vezes encanta. Nunca me lembro de, num pedaço de tarde, ter aprendido tanto. O Brasil precisa ver este Cent ro de Lazer, que é uma árvore, para fazer dele semente.

Darcy Ribeiro livro de visitas, 1983

apoio


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