Em Teoria cultural e cultura popular: uma introdução, o professor John Storey analisa a relação entre as áreas aludidas no título a partir das implicações teóricas e metodológicas do estudo da cultura popular. Abrindo mão de uma abordagem linear e convencional, voltada ao levantamento progressivo de uma massa de informações apresentadas sob o viés da evolução histórica, o livro trata a teoria cultural e a cultura popular como formações discursivas de cunho marcadamente ideológico, investigando como tais conceitos foram apropriados pelos mais variados discursos modernos e contemporâneos. Nesta sexta edição, a obra mantém uma linguagem clara e acessível, fazendo uso de inúmeros exemplos relevantes e apropriados a partir dos textos teóricos e das práticas da cultura popular, examinadas aqui com muita perspicácia.
Imagem da capa
Alex Flemming. Série Paulistana . Gravura. 52 x 37,5 cm. 1980 . Acervo Sesc de Arte Brasileira. Fotografia: Everton Ballardin
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ISBN 978-85-7995-091-9
JOHN STOR EY TEORIA CULTURAL E CULTURA POPULAR: UMA INTRODUÇÃO
vigoroso estudo não pretende ser uma história precisa e completa, ou a única maneira possível de mapear o panorama conceitual que é tema de sua obra. “Minha esperança é que esta versão da relação entre cultura popular e teoria cultural encoraje outros estudantes de cultura popular a iniciar seu próprio mapeamento do assunto”, afirma o autor. Ao refletir sobre até que ponto cultura popular é um conceito de contestação e de variedade ideológica, a ser articulado e desarticulado a partir da presença de vários prismas teóricos e metodológicos, John Storey mostra que estudar cultura popular pode ser um assunto “muito sério, um sério assunto político”.
TEORIA CULTURAL E CULTURA POPULAR UMA INTRODUÇÃO JOH N S TOR E Y
O escritor e crítico literário galês Raymond Williams considerava o vocábulo cultura “uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa”, propondo para ele três definições amplas. Na primeira, cultura pode ser usada no sentido de “processo geral de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético”. Uma segunda acepção da palavra sugere “determinado estilo de vida, seja de uma pessoa, um período ou um grupo”. Por fim, para Williams, cultura pode significar aquele conjunto de “trabalhos e práticas de atividade intelectual e, especialmente, artística”. Se definir a palavra “cultura” exige atenção e cuidado redobrados, mapear o amplo e variado panorama conceitual da expressão “cultura popular” é, então, uma tarefa das mais difíceis e espinhosas, uma vez que implica lidar com a ideia igualmente complexa de “diversidade”, associada ao uso do termo de maneira indelével. Normalmente, cultura popular costuma ser definida, implícita ou explicitamente, em contraste com outras categorias conceituais como cultura folclórica, cultura de massa, cultura dominante, alta cultura... Assim, uma definição completa do que seja cultura popular não deveria deixar de levar tais fatores em conta. Além do mais, será sempre possível identificar as conotações políticas, ideológicas e sociológicas, por exemplo, postas em jogo quando se usa o termo “cultura popular”. Portanto, para estudá-la, deve-se confrontar, primeiro, a dificuldade gerada pelo próprio termo. Por meio de Teoria cultural e cultura popular: uma introdução, o leitor compreenderá que cultura popular é uma categoria conceitual a ser preenchida das mais variadas maneiras, normalmente conflitantes, dependendo do contexto ideológico a ser utilizado. Professor de Estudos Culturais na Universidade de Sunderland, John Storey esclarece que este
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Nota à edição brasileira Qual o significado da cultura? Pensando em definições feitas a partir
de teorias e visões de mundo distintas, John Storey introduz o leitor às
principais correntes de discussão sobre o tema, com o objetivo de enten-
der os fatores que levaram à separação radical entre alta cultura e cultura popular. Para isso, aborda os conceitos de cultura e ideologia, essenciais ao entendimento dessa relação.
A partir daí, analisa a ambiguidade a cercar, muitas vezes de forma pro-
posital, a cultura popular e sua contrapartida, a alta cultura, observando
em que medida as nuances entre elas estão ou não claramente demarcadas, além de refletir quanto à influência da sociedade e da história para esse entendimento.
Com uma linguagem clara, Storey se dirige ao público universitário,
questionando conceitos preconcebidos e sua pretendida aceitação. Pergunta-se, entre outros aspectos, quanto aos critérios de distinção, produ-
ção e consumo da cultura popular e alta cultura, a fim de ponderar sobre as possíveis intersecções entre ambas.
Para o Sesc, este livro indaga sobre o que nos parece aparentemente
estável, sem necessariamente sê-lo, isto é, a conceituação e valoração da cultura em si mesma, razão que leva a instituição a publicá-lo.
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Para Jenny e Xiangyan
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Sumário
1 | O que é cultur a popular? Cultura Ideologia Cultura popular Cultura popular como outro Leitura complementar
13 15 19 37 40
2 | A tr adição da “cultur a e civilização” Matthew Arnold Leavisismo Cultura de massa nos Estados Unidos: o debate pós-guerra A cultura dos outros Leitura complementar
44 54 65 76 79
3 | Cultur alismo Richard Hoggart: The uses of literacy Raymond Williams: “The analysis of culture” E. P. Thompson: The making of the English working class Stuart Hall e Paddy Whannel: The popular arts O Centro de Estudos Culturais Contemporâneos Leitura complementar
83 95 104 110 121 123
4 | Mar xismos Marxismo clássico O marxismo inglês de William Morris A Escola de Frankfurt Althusserianismo Hegemonia Pós-marxismo e estudos culturais Leitura complementar
125 130 135 151 167 172 186
5 | Psicanálise Psicanálise freudiana Psicanálise lacaniana Psicanálise do cinema Slavoj Žižek e fantasia lacaniana Leitura complementar
189 209 216 220 225
6 | Estrutur alismo e pós-estrutur alismo Ferdinand de Saussure 227 Claude Lévi-Strauss, Will Wright e o faroeste norte-americano 233 Roland Barthes: Mythologies 239 Pós-estruturalismo 251 Jacques Derrida 252 Discurso e poder: Michel Foucault 255 A máquina panóptica 259 Leitura complementar 265
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7 | Gênero e sexualidade Feminismos Mulheres no cinema Lendo romances Watching Dallas Leitura de revistas femininas Pós-feminismo Estudos sobre o homem e masculinidades Teoria Queer Leitura complementar
267 270 276 290 302 314 318 320 331
8 | “R aça”, r acismo e representação “Raça” e racismo A ideologia do racismo: sua emergência histórica Orientalismo Branquidade (Whiteness) Antirracismo e estudos culturais Leitura complementar
333 337 342 358 360 363
9 | Pós-modernismo A condição pós-moderna Pós-modernismo nos anos 1960 Jean-François Lyotard Jean Baudrillard Fredric Jameson Música pop pós-moderna Televisão pós-moderna Pós-modernismo e o pluralismo de valores O pós-moderno global Cultura de convergência Epílogo Leitura complementar
365 367 372 375 385 397 399 404 410 421 423 425
10 | A política do popular O campo cultural O campo econômico Estudos culturais pós-marxistas: a hegemonia revisitada A ideologia da cultura de massa Leitura complementar
430 452 463 466 470
Referências bibliogr áficas
473
Índice remissivo
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Prefácio P R E FÁC I O À P R I M E I R A E D I Ç ÃO I N G L E S A | Como indica o
título deste livro, analiso a relação entre teoria cultural e cultura popu-
lar. Mas o título também indica que meu estudo é imaginado como uma
introdução ao tema, o que exigiu a adoção de uma abordagem específi-
ca. Não tentei escrever uma história do encontro entre teoria cultural e cultura popular. Em vez disso, preferi focar nas implicações teóricas e
metodológicas e nas ramificações de certos momentos na história do estu-
do da cultura popular. Em resumo, busquei tratar teoria cultural/cultura popular como uma formação discursiva, concentrando-me menos na procedência histórica e mais em como tal formação funciona ideologicamente no presente. Para evitar equívocos e distorções, permiti que críticos e
teóricos, quando e onde fosse adequado, falassem com suas próprias palavras. Ao fazer isso, compactuo com a ideia do norte-americano Walter E.
Houghton, historiador da literatura: “Atitudes são elusivas. Tente defini-
-las e acabará perdendo sua essência, sua coloração e seu tom especial.
Elas precisam ser apreendidas em sua formulação concreta e viva.” Mais
do que isso, em vez de simplesmente pesquisar o tema, tentei, por meio de citações e comentários detalhados, dar ao estudante de cultura popular um “gostinho” do material. Contudo, este livro não pretende servir como substituto da leitura direta dos teóricos e críticos aqui discutidos. E, em-
bora cada capítulo encerre-se com sugestões de leituras complementares, visa-se apenas suplementar a leitura dos textos primários discutidos em
cada capítulo (informações mais detalhadas sobre eles estão nas notas de rodapé ao longo do livro). 9
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Acima de tudo, a intenção deste livro é oferecer uma introdução ao
estudo acadêmico de cultura popular. Como já indiquei, não tenho ilusão
de que seja uma história precisa e completa , ou a única maneira possível de mapear o panorama conceitual que é tema deste estudo. Minha esperança
é que esta versão da relação entre cultura popular e teoria cultural encoraje outros estudantes de cultura popular a iniciar seu próprio mapeamento do assunto.
Por fim, espero ter escrito um livro que possa oferecer algo tanto àqueles
familiarizados com o tema como àqueles para quem tudo é novo, pelo menos como tema acadêmico.
S O BR E A S E D I Ç ÕE S | Nas edições seguintes à primeira, o texto foi
revisado, reescrito e editado. Também foi adicionado material novo à maioria dos capítulos (desde a primeira edição, que tinha cerca de 65 mil palavras, o livro cresceu para mais de 120 mil na sexta edição).
Na segunda edição, foram incluídas seções sobre cultura popular e o
carnavalesco, pós-modernismo e o pluralismo do valor. Também foram expandidas cinco seções: “Estudos culturais neogramscianos”, “Psicanálise do cinema e estudos culturais”, “Feminismo como leitura”, “Pós-modernismo nos anos 1960” e “O campo cultural”.
Na terceira edição, o então sexto capítulo foi renomeado e reorganizado,
sendo adicionada a seção sobre a Teoria Queer e ampliada a seção sobre
a leitura de revistas femininas. Foram incluídas ilustrações e uma lista de sites úteis para o estudante de teoria cultural e cultura popular.
Na quarta edição, foi acrescentado o capítulo sobre psicanálise e as se-
ções “Pós-marxismo”, no quarto capítulo, e “O pós-moderno global”, no
então oitavo capítulo. Também foram adicionados mais diagramas e ilus-
trações. A ordem dos capítulos foi alterada, passando a ser cronológica, 10
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em termos de onde cada um começa. Contudo, o fim de cada capítulo pode, por vezes, interromper a cronologia. Por exemplo, o marxismo se inicia antes do pós-estruturalismo, mas o fim da discussão sobre o marxismo é mais contemporâneo do que o fim da discussão do pós-estruturalismo.
Na quinta edição, foi inserido o capítulo “‘Raça’, racismo e represen-
tação” e as seções “A máquina panóptica”, no sexto capítulo, e “Cultura
de convergência”, no nono capítulo. Também foram acrescentados mais diagramas e ilustrações.
Nesta sexta edição, foram incluídas novas seções sobre “O marxismo in-
glês de William Morris”, no quarto capítulo, “Pós-feminismo”, no sétimo capítulo e “Branquidade”, no oitavo capítulo.
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1 O que é cultura popular? Antes de considerarmos em detalhes as diferentes maneiras como se definiu e analisou cultura popular, quero esboçar algumas características gerais dos debates produzidos por seu estudo. Não é minha intenção, aqui, antecipar descobertas e argumentos específicos: vão ser apresentados nos próximos capítulos. Desejo apenas mapear o panorama conceitual amplo da cultura popular, o que, em vários aspectos, é uma tarefa atemorizante. Parte da dificuldade provém da implícita diversidade, sempre presente/ ausente ao usarmos o termo “cultura popular”. Como vamos ver nos capítulos a seguir, a cultura popular costuma ser definida, implícita ou explicitamente, em contraste com outras categorias conceituais: cultura folclórica, cultura de massa, cultura dominante, cultura do trabalhador. Uma definição completa não deve deixar de levar isso em conta. Além do mais, também veremos que, não importando a categoria conceitual considerada como o outro ausente de cultura popular, será sempre possível influenciar as conotações colocadas em jogo quando se usa o termo “cultura popular”. Portanto, para estudá-la, deve-se confrontar, primeiro, a dificuldade gerada pelo próprio termo. Por isso, é bem provável que o tipo de análise que for feita e o enquadramento teórico empregado para realizar tal análise vão ser largamente influenciados pela definição de cultura popular utilizada. Suspeito que a principal afirmação a ser tirada deste livro pelos leitores é que, na verdade, cultura popular é uma categoria conceitual vazia , que pode ser preenchida de maneiras altamente variáveis e normalmente conflitantes, dependendo do contexto de uso. C U LT U R A | Para definir cultura popular, precisamos definir primeiro o termo “cultura”. Raymond Williams considera cultura “uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa” 1 e propõe três 1 | Raymond Williams, Keywords, Londres: Fontana, 1983, p. 87.
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definições amplas. Na primeira, cultura pode ser usada para se referir a um “processo geral de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético”.2 Poderíamos, por exemplo, falar do desenvolvimento cultural da Europa ocidental e estarmos considerando apenas fatores intelectuais, espirituais e estéticos – grandes filósofos, grandes artistas e grandes poetas. O que seria uma formulação perfeitamente compreensível. Um segundo uso da palavra “cultura” pode ser adotado para sugerir “determinado estilo de vida, seja de uma pessoa, um período ou um grupo”.3 Usando essa definição, se falamos de desenvolvimento cultural da Europa ocidental, teríamos em mente não apenas fatores intelectuais e estéticos, mas, por exemplo, também o desenvolvimento de literatura, feriados, esportes, festivais religiosos. Por fim, Williams propõe que cultura possa ser usada para se referir a “trabalhos e práticas de atividade intelectual e, especialmente, artística”.4 Em outras palavras, cultura, aqui, são os textos e as práticas cuja principal função é significar, produzir significado ou servir de ocasião para produção de significado. Cultura, nessa terceira definição, é sinônimo do que estruturalistas e pós-estruturalistas chamam de “práticas significantes”.5 Usando essa definição, provavelmente pensaríamos em exemplos como poesia, romance, balé, ópera e artes plásticas. Falar de cultura popular em geral significa mobilizar a segunda e a terceira definições da palavra “cultura”. O segundo significado – cultura como determinado estilo de vida – permitiria falar, como exemplos de cultura, de práticas como feriados na praia, celebração do Natal e subculturas de jovens. Essas costumam ser consideradas culturas ou práticas vividas. O terceiro significado – cultura como práticas significantes – permitiria falar, como exemplos de cultura, de novelas, música pop e quadrinhos. Em geral, são os chamados textos. 2 | Idem, p. 90. 3 | Idem, p. 90.
4 | Idem, ibidem. 5 | Ver capítulo 6.
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Ao pensar em cultura popular, a poucas pessoas viria à cabeça a primeira definição de Williams. I D E OL O G I A |Antes de nos voltarmos às diferentes definições de cultura popular, há outro termo que é preciso discutir: ideologia. Ideologia é um conceito crucial no estudo de cultura popular, e, segundo Graeme Turner, “a mais importante categoria conceitual em estudos culturais”.6 James Carey até insinuou que os “estudos culturais britânicos podem ser descritos, com igual facilidade e talvez até com mais precisão, como estudos ideológicos” 7. Assim como a cultura, a ideologia tem muitos significados concorrentes. Muitas vezes fica complicado compreender tal conceito, pois, em boa parte da análise cultural, ele é usado para substituir o de cultura e, especialmente, o de cultura popular. O conceito de ideologia, ao ser usado para se referir ao mesmo terreno conceitual de cultura e de cultura popular, se torna um termo importante na compreensão da natureza de cultura popular. O que vem a seguir é um breve estudo a respeito de cinco das muitas maneiras de compreender ideologia. Vamos considerar apenas aqueles significados que influenciam o estudo de cultura popular. Primeiro, ideologia pode se referir a um sistema de ideias articuladas por um certo grupo de pessoas. Por exemplo, para referirmo-nos a ideias que informam as práticas de determinados grupos profissionais, poderíamos falar de “ideologia profissional”. Também poderíamos falar da “ideologia do Partido Trabalhista”. Assim, estaríamos nos referindo ao grupo de ideias políticas, econômicas e sociais que configuram as ambições e atividades do partido. 6 | Graeme Turner, British cultural studies: an introduction, 3. ed., Londres: Routledge, 2003, p. 167. 7 | James Carey, “Overcoming resistance to cultural studies”, em: John Storey (org.), What is cultural studies?: a reader, Londres: Edward Arnold, 1996, p. 65.
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A segunda definição sugere certo disfarce, distorção ou ocultamento. Usa-se ideologia, nesse sentido, para indicar como alguns textos e práticas apresentam imagens distorcidas da realidade. Produzem o que às vezes leva o nome de falsa consciência. Tais distorções, como dizem, servem aos interesses dos poderosos contra os interesses dos fracos. Usando essa definição, podemos falar de ideologia capitalista, insinuando a forma como a ideologia oculta a real dominação exercida pelos que têm poder: a classe dominante não se vê como exploradora ou opressora. E, talvez mais importante, a forma como a ideologia esconde a real subordinação daqueles que são fracos: as classes subordinadas não se veem como oprimidas ou exploradas. Essa definição deriva de certas conjecturas a respeito das circunstâncias de produção de textos e práticas. Argumenta-se que eles são “reflexões” ou “expressões” superestruturais das relações de poder da base econômica da sociedade. Essa é uma das hipóteses fundamentais do marxismo clássico. Eis a famosa formulação de Karl Marx: Na produção social da sua existência, os homens entram inevitavelmente em
relações definidas, que são independentes da sua vontade, a saber, as relações de
produção adequadas a um dado estágio do desenvolvimento das forças materiais
de produção. A totalidade dessas relações constitui a estrutura econômica da sociedade, os verdadeiros alicerces sobre os quais se ergue a superestrutura legal e política, a que correspondem formas definidas de consciência social. O modo
de produção das condições da vida material condiciona os processos gerais da vida social, política e intelectual.8
Marx sugere que a forma como a sociedade organiza os meios de produção econômica vai ter efeito determinante sobre o tipo de cultura que a sociedade produz ou possibilita. Os produtos culturais dessa relação base/ 8 | Karl Marx, “Preface”, em Contribution to the Critique of Political
Economy, Pequim: Foreign Languages, 1976a, p. 3.
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superestrutura são considerados ideológicos, a ponto de, como resultado dela, implícita ou explicitamente, eles apoiarem os interesses de grupos dominantes, que se beneficiam social, política, econômica e culturalmente dessa organização econômica da sociedade.9 Nesse sentido geral, também podemos usar ideologia para nos referirmos às relações de poder fora da luta de classes. Por exemplo, feministas falam do poder da ideologia patriarcal e de como ela serve, em nossa sociedade, para ocultar, mascarar e distorcer relações de gênero.10 Uma terceira definição de ideologia (muito ligada à segunda e, de certo modo, dependente dela) usa o termo para se referir a “formas ideológicas”. 11 Esse uso pretende chamar a atenção para a maneira como textos (ficção televisiva, músicas pop, romances, filmes etc.) sempre apresentam uma imagem peculiar do mundo. Tal definição depende de uma noção mais conflituosa do que consensual de sociedade, estruturada na desigualdade, na exploração e na opressão. Diz-se que, nesse conflito, consciente e inconscientemente, os textos assumem uma posição. O teatrólogo alemão Bertolt Brecht assim o resumiu: “Boa ou ruim, uma peça sempre inclui uma imagem do mundo […] Não existe peça, nem desempenho teatral, que não afete de certa maneira os estados de espírito e concepções do público. Não existe arte sem consequências” 12. O argumento de Brecht pode ser generalizado a todos os textos. Outra maneira de dizer isso seria simplesmente argumentar que todos os textos são essencialmente políticos. Isto é, oferecem sentidos ideológicos concorrentes, relativos à maneira como o mundo é ou deveria ser. Assim, como afirma Hall, a cultura popular 9 | Mais detalhes sobre essa formulação estão no Capítulo 4. 10 | Ver Capítulo 7; a ideologia do racismo é abordada no Capítulo 8. 11 | Karl Marx, “Preface”, op. cit., p. 5.
12 | Bertolt Brecht, On Theatre, trad. John Willett, Londres: Me-
thuen, 1978, pp. 150-1.
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é um espaço em que “são criados entendimentos sociais coletivos”: um terreno onde se usa “a política da significação” ao extremo, na tentativa de atrair pessoas para determinados modos de ver o mundo.13 Uma quarta definição de ideologia é aquela associada às primeiras obras do teórico cultural francês Roland Barthes.14 O argumento, neste caso, é que a ideologia (ou “mito”, como Barthes denomina) atua principalmente no âmbito das conotações, do secundário – significados muitas vezes inconscientes que textos e práticas carregam, ou podem ser levados a carregar. Por exemplo, um programa político do Partido Conservador transmitido em 1990 terminava com a palavra “socialismo” sendo transportada para uma prisão vermelha. O que se sugeria era ser o socialismo do Partido Trabalhista sinônimo de prisão social, econômica e política. O programa tentava fixar conotações da palavra “socialismo”. Além disso, esperava localizar o socialismo em uma relação binária, em que ele conotasse falta de liberdade, enquanto o conservadorismo conotava liberdade. Para Barthes, esse seria um exemplo clássico das operações da ideologia: a tentativa de tornar universal e legitimar o que, na verdade, é parcial e particular; uma tentativa de fazer passar o que é cultural (feito pelo homem) como algo natural (que apenas existe). Por semelhança, é possível argumentar que, na sociedade britânica, o branco, o masculino, o heterossexual, a classe média passam despercebidos, no sentido de serem os “normais”, os “naturais”, os “universais”, e disso depreende-se que outras formas de ser são uma variação inferior do original. Isso fica claro em formulações como uma cantora pop, um jornalista negro, um escritor da classe operária, um comediante gay. Em cada caso, o segundo termo é 13 | Stuart Hall, “The rediscovery of ideology: the return of the repressed in media studies”, em John Storey (org.), Cultural theory
and popular culture: a reader, 4. ed., Harlow: Pearson Education, 2009a, pp. 122-3. 14| Mais detalhes no Capítulo 6.
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usado para qualificar o primeiro como um desvio das categorias “universais”: o cantor pop, o jornalista, o escritor e o comediante. A quinta definição de ideologia – desenvolvida pelo filósofo marxista francês Louis Althusser15 – é uma que teve muita influência nos anos 1970 e no início dos 1980. Aqui só vou destacar alguns pontos-chave de uma de suas definições de ideologia. O principal argumento de Althusser é que a ideologia não é um mero grupo de ideias, mas uma prática material. O que ele pretende dizer com isso é que se encontra ideologia nas práticas da vida cotidiana, e não apenas em certas ideias sobre a vida cotidiana. E o que tem em mente é, principalmente, a forma como certos rituais e costumes acabam nos ligando à ordem social: uma ordem social marcada por enormes desigualdades de riqueza, status e poder. Usando essa definição, poderíamos descrever o feriado na praia ou a celebração do Natal como exemplos de práticas ideológicas, enfatizando a forma como oferecem prazer e libertação das exigências usuais da ordem social, deixando-nos renovados e prontos para tolerar a exploração e a opressão até que venha a próxima pausa. Nesse sentido, a ideologia serve para reproduzir as condições e relações sociais necessárias para dar continuidade às condições e relações econômicas do capitalismo. Até aqui, resumimos diferentes maneiras de definir cultura e ideologia. O que deve ficar claro, por enquanto, é que cultura e ideologia cobrem quase o mesmo panorama conceitual. A principal diferença entre esses conceitos é que ideologia traz, para o terreno compartilhado, uma dimensão política. Além disso, a introdução do conceito de ideologia sugere que as relações de poder e a política marcam inevitavelmente o panorama cultura/ideologia, sugerindo que estudar cultura popular equivale a algo que vai além de um simples estudo do entretenimento e do lazer. C U LT U R A P O P U L A R | Há várias possibilidades de definir cultura popular. Parte deste livro, é claro, aborda esse processo: as diferentes ma15 | Mais detalhes no Capítulo 4.
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neiras como análises críticas variadas tentaram fixar o significado de cultura popular. Portanto, tudo que pretendo fazer no restante deste capítulo é esboçar seis definições de cultura popular que, de modos diferentes e gerais, configuram o estudo de cultura popular. Mas, primeiro, falemos um pouco sobre o termo “popular”. Williams sugere quatro significados em uso: “bastante apreciado por muitas pessoas”, “tipos inferiores de obras”, “trabalho que deliberadamente visa ser bem acolhido pelas pessoas” e “cultura feita, de fato, pelas pessoas para si mesmas”.16 É claro que, assim, qualquer definição de cultura popular traz, em si, uma complexa combinação dos diferentes significados do termo “cultura” com os diferentes significados do termo “popular”. A história da ligação da teoria cultural com a cultura popular é, dessa forma, uma história das diferentes maneiras como – em trabalhos teóricos, dentro de certos contextos históricos e sociais – os dois termos foram reunidos. Em qualquer tentativa de definir cultura popular, um ponto de partida óbvio é dizer que ela é, simplesmente, aquela cultura que obtém, de muitas pessoas, amplo acolhimento ou apreciação. E, sem dúvida, muitos aprovariam esse índice quantitativo. Poderíamos pesquisar as vendas de livros, de CDs e DV D s. Poderíamos, também, analisar recordes de público em shows, eventos esportivos e festivais, ou ainda os dados de pesquisas de mercado sobre as preferências do público a respeito de diferentes programas televisivos. Tais análises certamente nos informariam muito. O difícil, e paradoxal, pode ser descobrir que é demasiada informação. A não ser que possamos concordar a respeito de um número acima do qual algo se torne cultura popular e abaixo do qual exista apenas cultura, podemos descobrir que obter amplo acolhimento ou apreciação por muitas pessoas inclui tanta coisa, que, como definição conceitual de cultura popular, é quase inútil. Apesar desse problema, fica claro que qualquer definição de cultura popular deve incluir uma dimensão quantitativa. O “popular”, 16| Raymond Williams, Keywords, op. cit., p. 237.
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de cultura popular, parece exigi-lo. O que também fica claro, contudo, é que, sozinho, um índice quantitativo não é suficiente para fornecer uma definição adequada de cultura popular. Tal argumento incluiria, é quase certo, “a oficialmente sancionada ‘alta cultura’, que, em termos de livros, registros de vendas e de público para dramatização televisiva de clássicos, pode justificadamente alegar ser ‘popular’ nesse sentido” 17. Uma segunda maneira de definir cultura popular é sugerir que ela seja aquela que é deixada de lado após termos decidido o que é alta cultura. Cultura popular, nessa definição, é uma categoria residual, que serve para acomodar textos e práticas que não atingiram padrões que os classificariam como alta cultura. Em outras palavras, é uma definição de cultura popular como cultura inferior. O que o teste cultura/cultura popular pode incluir é um leque de julgamentos de valor sobre um texto ou alguma prática específica. Por exemplo, podemos querer insistir na tese da complexidade formal. Em outras palavras, para ser cultura de verdade, precisa ser difícil. Ser difícil propicia, assim, seu status exclusivo como alta cultura. Essa grande dificuldade literalmente exclui – exclusão essa que garante a exclusividade de seu público. O sociólogo francês Pierre Bourdieu argumenta que distinções culturais desse tipo costumam ser usadas para apoiar distinções de classe. Gosto é uma categoria profundamente ideológica: funciona como marcador de “classe” (usando o termo em seu duplo significado: categoria socioeconômica; e sugestão de certo nível de qualidade). Para Bourdieu, o consumo de cultura é “predisposto – consciente e deliberadamente, ou não – a satisfazer a função social de legitimar diferenças sociais”.18 17 | Tony Bennett, “Popular culture: a teaching object”, Screen Edu-
cation, 34, 1980, pp. 20-1.
18 | Pierre Bourdieu, Distinction: a social critique of the judgment
of taste, trad. Richard Nice, Cambridge,
MA :
Harvard University
Press, 1984, p. 5; mais detalhes sobre o assunto estão nos Capítulos 9 e 10.
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vigoroso estudo não pretende ser uma história precisa e completa, ou a única maneira possível de mapear o panorama conceitual que é tema de sua obra. “Minha esperança é que esta versão da relação entre cultura popular e teoria cultural encoraje outros estudantes de cultura popular a iniciar seu próprio mapeamento do assunto”, afirma o autor. Ao refletir sobre até que ponto cultura popular é um conceito de contestação e de variedade ideológica, a ser articulado e desarticulado a partir da presença de vários prismas teóricos e metodológicos, John Storey mostra que estudar cultura popular pode ser um assunto “muito sério, um sério assunto político”.
TEORIA CULTURAL E CULTURA POPULAR UMA INTRODUÇÃO JOH N S TOR E Y
O escritor e crítico literário galês Raymond Williams considerava o vocábulo cultura “uma das duas ou três palavras mais complicadas da língua inglesa”, propondo para ele três definições amplas. Na primeira, cultura pode ser usada no sentido de “processo geral de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético”. Uma segunda acepção da palavra sugere “determinado estilo de vida, seja de uma pessoa, um período ou um grupo”. Por fim, para Williams, cultura pode significar aquele conjunto de “trabalhos e práticas de atividade intelectual e, especialmente, artística”. Se definir a palavra “cultura” exige atenção e cuidado redobrados, mapear o amplo e variado panorama conceitual da expressão “cultura popular” é, então, uma tarefa das mais difíceis e espinhosas, uma vez que implica lidar com a ideia igualmente complexa de “diversidade”, associada ao uso do termo de maneira indelével. Normalmente, cultura popular costuma ser definida, implícita ou explicitamente, em contraste com outras categorias conceituais como cultura folclórica, cultura de massa, cultura dominante, alta cultura... Assim, uma definição completa do que seja cultura popular não deveria deixar de levar tais fatores em conta. Além do mais, será sempre possível identificar as conotações políticas, ideológicas e sociológicas, por exemplo, postas em jogo quando se usa o termo “cultura popular”. Portanto, para estudá-la, deve-se confrontar, primeiro, a dificuldade gerada pelo próprio termo. Por meio de Teoria cultural e cultura popular: uma introdução, o leitor compreenderá que cultura popular é uma categoria conceitual a ser preenchida das mais variadas maneiras, normalmente conflitantes, dependendo do contexto ideológico a ser utilizado. Professor de Estudos Culturais na Universidade de Sunderland, John Storey esclarece que este
4/27/15 12:58 PM