MULHERES BRASILEIRAS

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público e privado foi realizada em 2010 pela Fun-

E

ste livro é resultado de profícua parceria entre a Fundação Perseu Abramo (FPA) e o Serviço Social do Comércio (SESC).

Gustavo Venturi e Tatau Godinho (orgs.)

A pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços

Albertina de Oliveira Costa Alexandre Grangeiro Carmen Hein de Campos Dulce Aurélia de Souza Ferraz Gustavo Venturi

dação Perseu Abramo – por meio de seu Núcleo

Após a realização da pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos

de Opinião Pública –, em parceria com o SESC.

espaços público e privado, divulgada amplamente em seminá-

Apresenta um amplo retrato do que pensam mu-

rios pelo Brasil, tornou-se imprescindível produzir uma publi-

lheres e homens sobre diferentes aspectos da di-

cação com uma coletânea de artigos e análises de especialistas

mensão social das relações entre os sexos.

de áreas diversas.

Entre os temas abordados no estudo estão ques-

Neste sentido, o volume conta com a participação de 33 au-

Janaina Marques de Aguiar

tões como a percepção de ser mulher, o imaginá-

toras e três autores do campo das Ciências Sociais, do Direito,

Jurema Werneck

rio de homens e mulheres sobre o feminismo e o

da Psicologia, da Saúde e da Comunicação, lideranças políti-

machismo; a divisão sexual do trabalho e o tem-

cas e governamentais e ativistas de movimentos sociais para,

po livre; a mulher na mídia, autonomia do corpo

à luz dos dados, refletir sobre seus significados na sociedade.

e sexualidade, a saúde reprodutiva e o aborto;

Os leitores e leitoras notarão, no conjunto das contribuições,

a violência doméstica, a Lei Maria da Penha e

quão ampla é a temática que abrange as questões de gênero

a violência institucional no parto; a participação

refletindo dinâmicas sociais complexas que apontam para mui-

da mulher na política e políticas públicas especí-

tos desafios, presentes e futuros, com vistas a uma sociedade

ficas; a situação das mulheres negras e das mu-

efetivamente igualitária entre mulheres e homens.

Hakon Jacino Heloisa Buarque de Almeida Iriny Lopes Ivanete Cordeiro dos Santos

lheres camponesas. A introdução de um enfoque efetivamente de gênero é uma inovação do estudo que, diferente de sua primeira edição (2001), reuniu não só mulheres mas também homens na amostra atual. Distribuídos em 25 unidades da federação,

MULHERES BRASILEIRAS E GÊNERO NOS ESPAÇOS PÚBLICO E PRIVADO

Jacira Vieira de Melo

Laisy Moriére Lilia Blima Schraiber Lourdes Maria Bandeira Lúcia Avelar Lucia Xavier Márcia Thereza Couto Maria Betânia de Melo Ávila Maria José Rosado

M

Gustavo Venturi e Tatau Godinho (orgs.)

Maria Julia Reis Nogueira Maria Luiza Heilborn

ULHERES BRASILEIRAS E GÊNERO NOS ESPAÇOS PÚBLICO E PRIVADO uma década de mudanças na opinião pública Prefácio: Eleonora Menecucci

Maria Teresa Citeli Marisa Sanematsu Marlise Matos Nadja de Figueiredo Araújo Nalu Faria Nilza Iraci Silva Parry Scott Russel

em áreas urbanas e rurais de todas as macrorre-

Rachel Moreno

giões do país, foram ouvidas 2.365 mulheres e

Raquel Viana

1.181 homens.

Regina Figueiredo Edições SESC SP ISBN 978-85-7995-051-3

Fundação Perseu Abramo ISBN 978-85-7643-146-6

Rosineide Meira Cordeiro Simone Grilo Diniz Sonia Nussenzweig Hotimsky Vera Soares


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Introdução

Igualdade de gênero: avanços, estagnações e recuos Gustavo Venturi e Tatau Godinho

Construindo os dados

P

or iniciativa da Fundação Perseu Abramo (FPA), em parceria com o Sesc, realizou-se em 2010 uma pesquisa nacional de opinião pública – homônima ao título deste volume, Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado – com um duplo desafio: atualizar os dados obtidos em survey semelhante, feito quase 10 anos antes, em 20011, e introduzir novas questões e perspectivas não consideradas à época. Afinal, passada uma década, o fato de que resultados do estudo de 2001 continuassem sendo referência para várias questões ainda candentes – como a ocorrência, então apurada, de uma brasileira espancada a cada 15 segundos, quatro por minuto – era, simultaneamente, indicativo da relevância daquele levantamento e da urgência de refazê-lo. Várias perguntas pairavam: qual teria sido o impacto, nesse fenômeno, da vigência da Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340, promulgada em 7 de agosto de 2006)? E da atuação de uma Secretaria de Políticas para as Mulheres, criada em 2003 com status de ministério, no início do primeiro governo Lula? Quanto teria avançado (ou não), em uma década, o protagonismo social e político das mulheres na sociedade brasileira? E os indicadores da discriminação de gênero no mercado de trabalho e da dupla jornada, 1

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Ver Venturi, G., Recaman, M., & Oliveira, S. (orgs.). A mulher brasileira nos espaços público e privado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.

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decorrente do acúmulo com o trabalho doméstico: estariam os homens brasileiros – cônjuges ou filhos – partilhando de modo mais equilibrado com suas companheiras – ou mães e irmãs – a execução dos serviços de casa e o cuidado de crianças e idosos? Como em 2001, buscou-se mensurar não apenas indicadores objetivos de práticas decorrentes das desigualdades de gênero – e suas interfaces com discriminações devidas a outras especificidades sociais de natureza étnico-racial, geracional e de classe social –, mas sobretudo investigar o imaginário da população brasileira sobre os temas em questão. Ao mesmo tempo introduziu-se uma dimensão importante: mesmo sem deixar de manter o foco na perspectiva das mulheres, garantindo assim a comparabilidade dos resultados e reincidindo no intuito de ampliar suas vozes, diferentemente do estudo anterior, em 2010 colheu-se uma amostra complementar junto aos homens, tanto com vistas a uma compreensão mais profunda da questão de gênero, entendida como relacional, quanto para abrir um diálogo com estudos mais recentes e captar a percepção masculina sobre as mudanças nas relações sociais entre mulheres e homens que marcam a sociedade nas últimas décadas. Seguindo metodologia adotada desde 1999 pelo Núcleo de Estudos e de Opinião Pública (NEOP) da FPA2, o planejamento da nova investigação contou com seminários para definir entre os temas mais relevantes as questões que deveriam ser contempladas, aos quais atenderam cerca de três dezenas de participantes, entre militantes do movimento feminista, pesquisadoras/es da questão de gênero nas universidades e gestoras de políticas públicas para mulheres3, além da constituição de um fórum virtual com mais de 70 integrantes para discussão do questionário e acompanhamento da execução da pesquisa. Da riqueza dessa interação resultaram tanto o desenvolvimento do tratamento de algumas questões quanto a introdução de novos temas. Em relação à violência de gênero, por exemplo, passou-se de 12 modalidades investigadas em 2001 para a mensuração de 20 modalidades, além de se levantar a percepção de mulheres e homens sobre a legitimidade do uso de punições físicas para a educação dos filhos. No tema do aborto aprofundou-se a abordagem sobre a proximidade com experiências

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Criado antes que a FPA completasse o primeiro ano de existência, em 1997, como Núcleo de Opinião Pública (NOP), desde fevereiro de 2013 tal projeto teve seus propósitos ampliados, passando a ser denominado NEOP. Os leitores notarão que no decorrer desta obra as autoras e os autores dos artigos farão referência ao núcleo ainda sob a denominação anterior.

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Ver ao final desta introdução, em Agradecimentos, a relação dos participantes nos seminários de planejamento – parte dos quais, autoras de capítulos deste volume – que ocorreram em São Paulo, na sede da FPA, nos dias 7 e 8 de junho de 2010.

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próprias ou alheias, bem como a percepção sobre as punições prescritas às mulheres que o praticam. No plano da política ampliaram-se as questões sobre as restrições e sobre o potencial da participação das mulheres. E temas ainda não explorados em estudos quantitativos de abrangência nacional foram inaugurados – entre outros, o conhecimento, o uso e a percepção da contracepção de emergência (a “pílula do dia seguinte”) e a mensuração da exposição das mulheres a diferentes modalidades de violência institucional no momento do parto. Mas esse processo também teve um custo: para contemplar tantas prioridades o questionário respondido pelas mulheres atingiu quase 150 perguntas (desdobradas em cerca de 650 variáveis) e o questionário masculino quase 110 perguntas (cerca de 380 variáveis). Para que as entrevistas (sempre face a face, via de regra domiciliares) não ultrapassassem tempo médio superior a 45-50 minutos, agravando o risco de as respostas perderem qualidade e credibilidade por fadiga das pessoas entrevistadas, optou-se então por distribuir parte das perguntas em três questionários para mulheres (A, B e C, cada qual aplicado a uma subamostra das mesmas), mantendo-se 85 questões nas três versões (portanto para toda a amostra feminina), e em dois questionários para os homens (A e B, aplicados a duas subamostras dos mesmos), mantendo-se 65 questões nas duas versões (para toda a amostra masculina). Definidos os questionários, o universo (mulheres e homens brasileiros, com 15 anos de idade e mais, residentes nos meios urbano e rural) e o desenho amostral para representá-lo adequadamente em sua diversidade sociodemográfica e regional (ver Anexo, Nota Metodológica), os esforços dirigiram-se então para a capacitação das equipes de campo que aplicariam as 2.365 entrevistas com mulheres e 1.181 com homens que compõem a base final de dados da pesquisa. Coletadas em 25 UFs (unidades da federação) nas cinco macrorregiões do país (N, S, SE, NE e CO), as entrevistas foram dispersadas em 400 setores censitários de 176 municípios na amostra feminina, e em 200 setores censitários de 104 municípios na masculina, estratificados por mesorregião e porte (capitais, regiões metropolitanas e interior, subdividido em tercis de municípios grandes, médios e pequenos). A exemplo de trabalhos anteriores, junto às atividades de instrução sobre os questionários e demais instrumentos de campo – um procedimento necessário e usual em pesquisas quantitativas – o NEOP realizou oficinas de dois dias de duração com as equipes de campo (mulheres seriam entrevistadas só por entrevistadoras e homens só por entrevistadores), com vistas a sensibilizá-las sobre os temas polêmicos envolvidos no estudo, como sexismo, aborto e violência conjugal. Tratava-se ainda de prepará-las para exigências específicas, como a importância de criar situações em que

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sobretudo as mulheres pudessem ser entrevistadas a sós, ou no máximo na presença de filhos pequenos – necessariamente sem a escuta ou vigilância de cônjuges, pais ou mesmo filhos homens adolescentes ou jovens. Tais oficinas, feitas em julho de 2010, ocorreram em 8 das 13 coordenações de campo regionais articuladas para a coleta dos dados, responsáveis por cerca de 85% da amostra, enquanto as 5 coordenações restantes receberam o mesmo material de apoio e as orientações de capacitação por telefone, de modo a perseguir a padronização dos procedimentos e a compreensão dos temas e conceitos envolvidos. A participação de mais de 200 entrevistadoras e verificadoras e mais de 120 entrevistadores e verificadores selecionadas/os para o campo foi condicionada ao atendimento às atividades de capacitação e à aplicação de uma entrevista com cada tipo de questionário respectivo, a título de treinamento. Tal processo foi utilizado ainda como pré-teste final desses instrumentos (pré-teste preliminar já havia ocorrido em São Paulo), produzindo cerca de 800 entrevistas que não foram aproveitadas na base de dados final. Para a sensibilização das equipes foram exibidos e discutidos nas oficinas três curtas: os documentários Clandestinas, de Ana Carolina Moreno (ECA-USP, 2006), e Nem com uma flor, de Sérgio Goldemberg (IPÊ e CECIP4, 1998), que problematizam respectivamente o aborto criminalizado e a violência doméstica, ricos em depoimentos de vivências de mulheres que os enfrentaram; e a ficção Acorda Raimundo, acorda!!!, de Alfredo Alves (Ibase e Iservídeo, 1990), na qual as personagens, um dono de casa e uma provedora, ao inverterem os papéis de gênero tradicionais em cenas da realidade cotidiana, evidenciam alegoricamente a desigualdade da divisão sexual do trabalho. A exibição dos filmes suscitou várias discussões nas oficinas, possibilitando a reflexão sobre boa parte da temática que seria abordada nas entrevistas, trazendo as vivências das/os participantes, seja como vítimas de discriminações e outras violências, seja como portadores/as de preconceitos e de valores conservadores introjetados. Ampliou-se assim a compreensão das equipes de campo sobre a relevância e a complexidade das questões a ser tratadas e, consequentemente, sobre o comprometimento e a seriedade necessários para a execução do trabalho. Equipes preparadas, correu-se para que as entrevistas fossem realizadas nos três primeiros fins de semana de agosto, antes do início, em 19 de agosto, do horário da Propaganda Eleitoral Gratuita na TV e no rádio – referente às eleições gerais de 2010, que se estenderia por 45 dias –, dada a influência nos resultados que decorreria

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Instituto para a Promoção da Equidade e Centro de Criação da Imagem Popular, com apoio de Unifem, Fundação Ford, Fundo Canadá, UNFPA e The British Council.

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da exposição massiva de duas candidatas competitivas na disputa presidencial, Dilma Rousseff e Marina Silva. Além de certamente impactar nas perguntas de intenção e razões de voto e relativas à participação de mulheres na política, avaliou-se que tal exposição poderia alterar as percepções das/os entrevistadas/os também sobre vários outros tópicos da pesquisa. Por fim, posteriormente à coleta dos dados, cerca de 30% dos questionários de cada entrevistador/a foram verificados in loco, com retorno às residências, ou por telefone, confirmando a realização das entrevistas e parte dos dados (aleatoriamente selecionados), primordialmente com a/o própria/o entrevistada/o, secundariamente com outro morador do seu domicílio. Depois de codificadas as respostas abertas e digitadas todas as informações obtidas, as bases de dados de cada amostra foram consistidas, com vistas ao processamento de tabelas bi e trivariadas, cruzando-se os resultados de algumas perguntas entre si e de todas as perguntas pelas variáveis sociodemográficas, gerando gráficos e tabelas, a exemplo dos selecionados para o anexo de dados, ao final deste volume.

Resultados, divulgação e discussão Divulgados a partir de meados de fevereiro de 2011, no primeiro mês os resultados gerais obtiveram significativa repercussão nos meios impressos e eletrônicos de todo o país5. Em seguida, com organização da FPA e do Sesc, entre fins de março e meados de junho daquele ano foram realizados seminários de apresentação e debate da pesquisa em 11 capitais6. E desde então os dados suscitaram muitos outros encontros7 e novas citações na mídia, particularmente relembrados a cada 8 de março,

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Relatório da Paulo Marra Assessoria de Imprensa, contratada pelo Sesc, apontou 391 inserções em veículos jornais, sites, revistas e blogs, 8 em emissoras de rádio e 9 em emissoras de televisão, no primeiro semestre de 2011, veiculadas em todas as regiões do país.

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Em São Paulo, além de apresentação de dados preliminares em novembro de 2010, nas Ciências Sociais da USP, houve um pré-lançamento na Faculdade de Saúde Pública em 29 março de 2011 e depois o lançamento oficial no Sesc-SP em 27 de abril. Seguiram-se duas apresentações em Porto Alegre (PUC-RS e CUT-RS, em 11 de maio) e, por articulação do Sesc Nacional (coordenação de Mauro Lopez Rego e Andrea de la Reza), FPA e diretórios regionais e/ou municipais do PT, seminários em Recife (16/05), Fortaleza (17/05), Belo Horizonte (23/05), Manaus (31/05), Rio de Janeiro (01/06, na Uerj, em articulação com o Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, CLAM), Curitiba (07/06), Florianópolis (08/06) e Goiânia (16/06). Somados, tais seminários – alguns transmitidos via web – contaram com a participação presencial de cerca de duas mil pessoas.

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Entre outros espaços, a pesquisa foi apresentada em sua íntegra às equipes da Secretaria de Políticas para as Mulheres das três gestões que se sucederam no período: de Nilcéa Freire (dez/10), Iriny Lopes

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Dia Internacional da Mulher. Mas evidentemente um banco de dados com o tipo e a quantidade de questões contempladas neste survey tem potencial para um volume de análises quase ilimitado, muito além da apropriação importante mas superficial que seu tratamento noticioso permite. Com o intuito de cumprir ainda que parcialmente essa tarefa – guiada pelo propósito explícito da FPA e do Sesc de contribuírem para diminuir as desigualdades entre mulheres e homens – preparou-se esta publicação. Muitas palestrantes dos seminários de 2011 foram convidadas a desenvolver suas reflexões – em alguns casos completando o ciclo da pesquisa, posto que colaboradoras desde seu planejamento –, incorporando-se ainda novas pessoas a esta empreitada. Assim formou-se o qualificado time de 36 pesquisadoras/es, militantes feministas e gestoras de políticas públicas que, desde suas trajetórias pessoais e inserções sociais diversificadas, debruçando-se sobre os dados desta pesquisa (muitas vezes também dialogando com os resultados de estudos próprios ou outros de seu domínio), redigiram os 24 capítulos que se seguem. As análises cobrem grande parte dos temas investigados, abordando-os, mesmo os mais noticiados, não só com mais profundidade, como também por perspectivas pouco exploradas, quando não totalmente originais. Dividido em dois blocos, a primeira parte deste volume concentra análises sobre indicadores mais culturais ou subjetivos da vivência das mulheres e sobre temas que o senso comum tende a confinar ao espaço privado – como se sabe, inseparáveis de fatores estruturais e da maneira como são reproduzidos (ou ignorados) na esfera das políticas públicas. Nos dois primeiros capítulos, as autoras focam os resultados de perguntas gerais de percepção sobre ser mulher e ser homem, sobre machismo e feminismo, presentes mais no início dos questionários, muitas delas abertas, de caráter qualitativo e exploratório. Albertina de Oliveira Costa destaca como a majoritária percepção de que ser mulher hoje é melhor do “há 20 ou 30 anos” aumenta ainda mais entre as mulheres inseridas no mercado de trabalho formal, com maior renda, mais escolarizadas e mais jovens; ressalta o aparente paradoxo de “um machismo sem machistas”: o diagnóstico generalizado da existência do machismo no Brasil, reconhecido por 90% dos homens, contra apenas 22% que se admitem machistas; e considera intrigante o crescimento entre a pesquisa de 2001 e a de 2010 do contingente de mulheres que se considera feminista (de 21% para 31%), “num contexto de clara retração dos movimentos sociais”. Sugere que isso estaria relacionado a um processo de institucionalização do fe(fev/11) e Eleonora Menicucci (mai/12).

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minismo que, ao mesmo tempo em que teria atenuado sua face mais polêmica, como a defesa de direitos sexuais e reprodutivos, teria avançado na construção da noção de legitimidade da igualdade de gênero no campo dos direitos sociais. Márcia Thereza Couto e Lilia Blima Schriber analisam a noção cultural de machismo expressa nos dados, a partir do referencial de gênero, em sua dimensão relacional, e sob a ótica das masculinidades, também tomadas como construção histórico-social. Questionam o sentido de que cerca de um em cada cinco homens assuma-se machista, frente à percepção de que o machismo é altamente disseminado: esse um quinto seria pouco, expressando condenação do machismo, ou seria muito, expressando a naturalidade e a legitimidade com que é visto? Ressaltam como o modelo hegemônico de dominação masculina tanto atenua entre os homens a percepção do impacto das desigualdades de gênero nas relações cotidianas, posto que portadores de privilégios, quanto lhes impõe uma identidade não isenta de riscos e tensões, diante da possibilidade de perderem reconhecimento social ao nem sempre conseguirem concretizar o papel dominador e provedor que lhes é simbolicamente assegurado – conforme indicam taxas expressivas de respostas à questão sobre “as piores coisas de ser homem”. Os três capítulos seguintes tratam de um dos componentes centrais das relações sociais de gênero que marcam o cotidiano das mulheres brasileiras, transversal às distinções decorrentes das desigualdades regionais, de classe social e raciais: a violência de gênero, sobretudo doméstica ou conjugal. Lourdes Bandeira enfatiza a multicausalidade do fenômeno e aponta “o risco de acentuar a vitimização feminina”, mas sem perder de vista as assimetrias nos conflitos, quando comparadas a frequência, a gravidade das manifestações e as modalidades prevalentes de violência do homem contra a mulher e da mulher contra o homem. Ressalta o processo de reprodução da legitimidade da ação violenta, expressa na relação, demonstrada na pesquisa, entre pais e mães de hoje terem apanhado quando crianças, e muitas vezes considerarem bater nos filhos uma necessidade para educá-los. Aponta ainda o peso das instituições do débito conjugal e do dever da fidelidade, consideradas inerentes ao casamento, com reforço da família e da Igreja, como elementos que se combinam em uma dinâmica que acentua a submissão e a dependência das mulheres, invisibilizando práticas de estupro conjugal e naturalizando a violência doméstica em seu conjunto, vista então como um fenômeno eventual e privado, estranho à sociedade, em vez de socialmente construído. Carmen Campos, pela ótica da sociologia jurídica, sem naturalmente poder ser conclusiva, sugere que a redução de oito (2001) para cinco (2010) mulheres espancadas a cada dois minutos no Brasil pode estar relacionada à vigência da Lei Maria da Penha (LMP) na metade final do período que separa os dois levantamentos,

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acompanhando a queda da taxa de assassinatos de mulheres observada no ano de sua promulgação, bem como, no sentido inverso, o aumento das denúncias de agressões, nas Delegacias da Mulher, em localidades de maior renda e escolaridade. Alerta para o fato de que a alta taxa de conhecimento da existência da LMP não significa que se possa conter esforços para que os direitos nela garantidos sejam efetivamente conhecidos, de forma a que seja aplicada corretamente e venha a ser explorada em todo seu potencial de garantia de novos direitos. Por sua vez, Jacira Vieira de Melo e Marisa Sanematsu ressaltam o quanto a contundência dos números gerais sobre a violência doméstica tende a lhes garantir grande repercussão na mídia, comumente beneficiária de sensacionalismos, ao mesmo tempo em que o aprofundamento da discussão tende a ser negligenciado. Lembram quão pouco foram destacadas informações complementares relevantes, como o fato de não passar da metade a proporção de mulheres agredidas que pedem ajuda, e ainda majoritariamente apenas a parentes próximos, e de um terço as que efetivamente denunciam as agressões sofridas a alguma autoridade pública. Nos dois capítulos seguintes a mídia volta como objeto de análise, com foco em como a imagem das mulheres em geral é retratada na TV. Rachel Moreno destaca os resultados sobre a insatisfação das entrevistadas em relação a como as mulheres costumam aparecer – descontextualizadamente com poucas roupas, como objeto sexual –, apontando a existência de uma maioria com espírito crítico a respeito, ciente de que isso “desvaloriza todas as mulheres”, e a propensão, também majoritária, de apoiar algum tipo de controle da programação e da publicidade – a partir do que discute a regulamentação dos meios de comunicação. E Heloisa Buarque de Almeida, juntando os dados da presente investigação com material de campo etnográfico de outras pesquisas que vem conduzindo, relaciona as percepções sobre as representações de gênero apuradas nos estudos entre as mulheres com as imagens femininas veiculadas na TV, particularmente nas novelas. Aponta a existência de um processo circular de reprodução de representações no qual, ao mesmo tempo em que as programações de TV assimilam a mulher moderna, que trabalha fora, reforçam os papéis tradicionais da boa mãe e dona de casa, desempenhados em segunda jornada. Observa também que, por trás da insatisfação com a exposição excessiva do corpo feminino, podem se combinar pontos de vista distintos, desde considerações de imoralidade à crítica de sua instrumentalização como objeto de desejo, eficaz para o incentivo ao consumo. Maria Luiza Heilborn destaca a sexualidade como uma das esferas da vida em que coexistem mudanças e resistências nos padrões de relacionamento. Ressalta o quanto persistem as assimetrias de gênero no plano privado, em que pesem as conquistas

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das mulheres, decorrentes do movimento feminista, rompendo com a rigidez das expectativas e alocações tradicionais das mulheres nos campos da educação e do exercício profissional, em direção a sua autonomia. Como expressão da parcialidade das mudanças, aponta o fato de as adolescentes e jovens brasileiras, diante da perda de valor da virgindade feminina, poderem experimentar a sexualidade antes do casamento, ao mesmo tempo em que mantêm um padrão de conjugalidade precoce, reproduzindo um modelo procriativo monogâmico que tende a impactar sobremaneira em suas trajetórias, dada a permanência de assimetrias ainda fortemente naturalizadas na divisão desigual do trabalho reprodutivo. Enfatiza a constituição do casal como um “lugar de acolhida, mas também de conflito”, relacionando a cobrança da exclusividade sexual e a expectativa de que a mulher deve estar sexualmente à disposição do cônjuge com a existência de “um núcleo duro na conjugalidade heterossexual”, no qual a prerrogativa de gerir o relacionamento (não apenas, mas também) através de violências verbais, físicas e sexuais constitui-se como um dos componentes da construção do masculino. Em uma leitura transversal da maior parte dos temas até aqui tratados, Parry Scott e Rosineide Meira Cordeiro estabelecem contrapontos entre as mulheres residentes no meio rural e as mulheres no meio urbano, de um lado, e, de outro, entre mulheres e homens do campo. Advertem, no entanto, que a amostragem reduzida de entrevistas no meio rural, onde residem 16% da população brasileira, obriga a uma leitura não segmentada de seu conjunto, com os riscos decorrentes de generalizar observações que suprimem a diversidade que caracteriza tal população, segundo os processos históricos e a estrutura fundiária de sua formação nas diferentes regiões do país. Constatam tendência comum às mulheres das cidades, em que a maioria no campo também considera que a vida das mulheres está melhor hoje que há 20 ou 30 anos, atribuindo tal percepção ao alcance das políticas previdenciária e social. Mas destacam contrastes persistentes, como iniciação sexual ainda mais precoce do que na cidade, maior pobreza, menor escolarização que os homens (ao contrário do que se observa há duas décadas nas cidades) e falta de acesso a serviços de proteção e assistência em situações de violência de gênero – fatores que levam as mulheres do meio rural a apresentar as menores taxas de denúncias das violências sofridas. Abordando a vulnerabilidade por outro ângulo, Dulce Aurélia de Souza Ferraz e Alexandre Grangeiro partem de diferentes expressões da sexualidade e padrões de relacionamentos caracterizados na pesquisa, para relacioná-los à prevenção da Aids. Sugerem que traços predominantes do perfil do comportamento sexual das mulheres brasileiras – como parcerias afetivas estáveis, baixo número de parceiros sexuais e de

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relações concomitantes com outros parceiros – contribuiriam “para a baixa circulação do HIV na população geral e entre heterossexuais”, ao mesmo tempo em que a reprodução de assimetrias de gênero na negociação do uso da camisinha para a prevenção da Aids as tornam antes vulneráveis à epidemia que agentes de sua disseminação. Preconizam, assim, a necessidade de estratégias para a prevenção entre casais estáveis como forma de enfrentamento à feminização, lenta mas contínua, da epidemia no Brasil. A partir de análise multivariada, destacam ainda como desigualdades sociais e geracionais, maior religiosidade (sobretudo entre católicas) e exposição à violência contra as mulheres diferenciam o grau de vulnerabilidade de determinados grupos de mulheres à infecção pelo HIV. Nos capítulos seguintes são abordados diferentes aspectos dos direitos sexuais e reprodutivos. Simone Grilo Diniz relembra o histórico da “desconstrução da maternidade como um dever”, resultante da luta pela “autodeterminação reprodutiva das mulheres como direito”, apontando tanto os avanços como o muito que falta conquistar nesse campo. Entre outras questões, destaca como a valorização masculina de “não engravidar” expressa uma negatividade que é parte de uma “cultura de desvalorização das mulheres”, enquanto para estas o problema que persiste não está na gravidez em si, mas sim no contexto de concepções desejadas ou não desejadas. E aprofundando um tópico dessa temática Regina Figueiredo e Nadja de Figueiredo Araújo focam sua análise no conhecimento, no uso e na compreensão da contracepção de emergência. Alertam que a despeito de tratar-se de um recurso já conhecido pela maior parte das brasileiras seu desconhecimento absoluto ainda é alto em certos segmentos, como as mulheres no meio rural e de baixa renda, e indagam o quanto a crença generalizada e errônea de que é abortivo – instrumentalizada por instituições religiosas conservadoras, como era de se esperar, mas reproduzida até por profissionais da saúde – estaria a diminuir seu potencial de prevenção de gravidezes indesejadas, fenômeno ainda particularmente alto entre adolescentes, exigindo portanto distribuição mais capilarizada e campanhas de esclarecimento. Decorrente de insuficiências no acesso ou no uso correto de meios contraceptivos – sejam regulares ou de emergência –, o aborto é tema dos capítulos seguintes. Nalu Faria faz uma retrospectiva da questão do aborto, lembrando como a busca da unidade na luta contra a ditadura militar no Brasil levou à postergação da entrada desse tema na agenda do movimento de mulheres, em que pesem posições feministas que sempre consideraram a criminalização do aborto um dos pilares da dominação patriarcal e, nesse sentido, sua legalização como central para a emancipação das mulheres. Questiona a estratégia adotada nos anos 1990, que teria priorizado iniciativas

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legislativas e o debate na mídia, em detrimento de mobilizações de base, como em parte responsável pela questão de o aborto ter hoje seu debate interditado – peça de resistência de setores religiosos conservadores, a exemplo do que se viu na última eleição presidencial – e constituir um dos poucos temas em que a pesquisa aqui tratada não apresenta avanços. Desdobrando essa discussão, Maria José Rosado e Maria Teresa Citeli apontam a formação de consensos éticos na sociedade brasileira a respeito do direito ao aborto em algumas situações – a exemplo da crença de que era legal a interrupção em caso de gestação de anencéfalos, elevada mesmo antes que o STF manifestasse tal aprovação. Mas ao mesmo tempo alertam para a inconstitucionalidade dos esforços (e sucessos) da Igreja católica, entre outras, na articulação de intervenções restritivas de políticas públicas que permitiriam ao Estado avançar na efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos, com a qual está comprometido como signatário de acordos internacionais. Observam ainda quão discriminatória resulta tal postura da Igreja, na medida em que as mulheres com renda média e alta, seja para contracepção de emergência, seja para o aborto, podem recorrer a mecanismos do mercado, enquanto as restrições afetam sobretudo as mulheres mais pobres e negras – não à toa as que mais contribuem, por exemplo, com o elevado índice de mortalidade em razão de abortamentos clandestinos ou de suas complicações. Fechando a primeira parte deste volume, Sonia Nussenzweig Hotimsky, Janaina Marques de Aguiar e Gustavo Venturi focam os dados sobre a violência institucional no parto – tema já denunciado desde os anos 1980 pelo movimento feminista e investigado em estudos qualitativos (ou quantitativos de abrangência mais restrita) desde os anos 1990, medido em escala nacional pela primeira vez na pesquisa aqui em foco. Partindo da distinção já estabelecida na literatura de quatro tipos de violência no parto (violência física, violência verbal, negligência e abuso sexual), analisam as diferenças com que esse difundido fenômeno atinge as mulheres de todos os segmentos sociais (na média, um quarto das brasileiras que passaram por algum parto), indicando que varia sobretudo quanto ao tipo de violência percebido, à rede de atendimento utilizada (se pública ou privada) e quanto à escolaridade. Avaliam que a recorrência de formas fortemente padronizadas de abuso verbal, entre outras, captada na pesquisa fornece fortes indícios de que o problema decorre, entre outros fatores, dos processos de formação e de execução das atividades dos profissionais de saúde. Ressaltam os componentes de gênero presentes no fenômeno e o pano de fundo em que se insere, de uma disputa política entre o modelo hegemônico vigente, de partos fortemente medicalizados – que entre outras decorrências faz do Brasil

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um país recordista em taxas de cesáreas –, e um modelo de parto humanizado, que restitui à parturiente a autonomia sobre decisões que afetam seu corpo e o estatuto de sujeito ativo do processo. A segunda parte deste volume concentra análises sobre indicadores mais estruturais da condição das mulheres brasileiras, como as formas de sua inserção (ou não) no mercado de trabalho, sobre percepções acerca desta e de outras esferas do espaço público, como a arena política, bem como, por fim, sobre a elaboração de políticas públicas para as mulheres. Maria Betânia Ávila situa a divisão sexual do trabalho, da qual derivam relações sociais fundadas na desigualdade de responsabilidades e lugares tradicionais para mulheres e homens – em que o homem está para o trabalho produtivo e para a esfera pública (tidos como mundo da cultura) como a mulher está para o trabalho reprodutivo e para a esfera privada (mundo da natureza) –, como elemento estruturante das relações sociais no contexto das sociedades capitalistas (no caso do Brasil, em combinação com as desigualdades raciais). A invisibilidade e o não reconhecimento do valor econômico do trabalho dito doméstico, não remunerado, longe de serem um elemento estranho à lógica da acumulação do capital, ao garantir a reposição da força de trabalho e seu retorno cotidiano ao mercado, constituem-se como um componente intrínseco do sistema de exploração do capital sobre o trabalho assalariado. Observa ainda que a inserção das mulheres no mercado de trabalho, diante do não avanço na divisão do trabalho doméstico – seja pela baixa (quando alguma) participação dos homens nos serviços da casa e nos cuidados com dependentes, seja pela insuficiência de equipamentos e serviços públicos que pudessem suprir tais demandas –, ocorre necessariamente sob “uma tensão entre a busca da autonomia econômica e a desigualdade”. Esta se expressa então por forte assimetria nas jornadas de trabalho (remunerado + não remunerado) entre mulheres e homens, acentuada ainda pela precarização dos vínculos empregatícios e pelas desigualdades salariais. Tal contradição explicaria a estagnação, na década que separa a pesquisa aqui tratada da anterior, no indicador de preferência das mulheres em priorizar a busca da autonomia ou os cuidados com a casa e a família. Nos três capítulos seguintes tais tensões e contradições são aprofundadas pela ótica das desigualdades raciais. Nilza Iraci Silva enfatiza a interseccionalidade que define o lugar das mulheres negras trabalhadoras na dinâmica do mercado de trabalho, ao se entrecruzarem marcadores de gênero, raça e classe social. Reforça a necessidade de se desmistificar visões idealizadas de homogeneidade entre as mulheres, como estratégia para dar visibilidade a diferenças sem cujo reconhecimento não pode haver

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políticas públicas que atendam concomitantemente aos direitos de todas as mulheres em sua diversidade real. Lúcia Xavier e Jurema Werneck resgatam dados secundários do IBGE, do Ipea e do Dieese para ressaltar indicadores de desigualdades decorrentes de interseções de gênero e raça, relativos a indigência, pobreza, mortalidade por homicídios e óbitos maternos, em que invariavelmente as mulheres negras ocupam as piores posições, seja comparativamente às brancas ou, de forma ainda mais acentuada, em relação aos homens brancos, “grupos diametralmente opostos nas sociedades sob vigência do racismo patriarcal”. Criticam o que consideram ter sido as opções dos governos na última década que na opinião das autoras teriam permitido a “tradução das demandas por justiça social em patamares conservadores”, sem alterar estruturalmente a equação das desigualdades. Maria Julia Reis Nogueira e Hakon Jacino, partindo de fontes semelhantes, detêm-se sobretudo no caso do trabalho doméstico remunerado, categoria preponderantemente feminina e negra, ressaltando como nela se entrecruzam “as principais características do trabalho feminino no Brasil nos últimos anos”: seu aumento e sua concentração em um polo precarizado do mercado, e o aumento da presença de outras mulheres “num polo mais desenvolvido”, facultado pelo alívio parcial do trabalho doméstico não remunerado que a contratação de domésticas lhes propicia. Os capítulos seguintes abordam por diferentes ângulos a questão da participação política das mulheres. Lúcia Avelar sistematiza diversos estudos brasileiros que relacionam gênero e política desde 1982 até a presente pesquisa, constatando em comum a eles tendências positivas, com o aumento de valores pró igualdade de gênero na política nos segmentos mais jovens e de maior escolaridade, em que pese a existência de “fortes hierarquias de gênero” em segmentos tradicionalistas, indicando um longo caminho a ser percorrido. Marlise Matos lembra que com apenas 8,6% de mulheres na Câmara de Deputados (44 entre 513 parlamentares) o Brasil ocupa o 118º lugar em termos de representação feminina entre 184 países, expressão ainda de uma cisão entre o público/masculino e o privado/doméstico, a indicar uma “incompletude da cidadania feminina”, cuja persistência impossibilitaria às mulheres a conquista definitiva de direitos. Tal exclusão, avalia, reflete uma sucessão de obstáculos, tanto subjetivos, entre eles a estigmatização do feminismo, quanto objetivos, como a dupla jornada e a desigualdade no acesso aos recursos de campanha, impedindo a superação da desigualdade na representação política. Vera Soares aponta barreiras semelhantes para explicar a baixa presença das mulheres nos parlamentos no Brasil, e destaca a importância de uma compreensão ampliada do conceito de participação política, lembrando que “não há falta de mu-

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lheres ativistas e mesmo lideranças na sociedade civil e no ativismo comunitário” – uma constatação relevante para “desconstruir o mito do apoliticismo feminino”, ou de uma essência feminina não vocacionada para a esfera pública. E Laisy Moriére encontra nas respostas espontâneas a algumas perguntas abertas incluídas na pesquisa, como “o que faria uma mulher ser uma boa governante?”, ou ainda “por que há menos mulheres que homens na política?”, elementos adicionais para explicar o afastamento das mulheres da representação institucional: a introjeção “do papel socialmente atribuído a elas”, como a atuação em áreas que se pode agrupar no campo do cuidado (ajudar os pobres, saúde e educação) e de valores machistas hegemônicos, como a ideia de que política é coisa de homem, ou a de que mulher não vota em mulher – características socialmente construídas mas naturalizadas, a exigir sua desconstrução no imaginário da opinião pública. Por sua vez, Ivanete Cordeiro dos Santos aborda a baixíssima participação das mulheres negras na política institucional: menos de 1% da Câmara Federal na legislação 2007-2010, sendo 25% da população brasileira. Em adição aos obstáculos apontados para a participação das mulheres em geral, lembra o peso das violências simbólicas que recaem sobre as mulheres negras, consideradas “feias, sujas, preguiçosas, hipersexualizadas, burras, resistentes à dor e ao cansaço físico etc.” – definições degradantes que as tornam improváveis sujeitos políticos, seja em cargos de confiança, seja como candidatas cativantes aos olhos do eleitorado, atraentes para os partidos. Conclui pela necessidade de políticas de cotas para mulheres negras e outras ações afirmativas, não só no parlamento, mas também no executivo e no judiciário, como mecanismos por si só insuficientes mas necessários para avançar na superação da sub-representação das mulheres negras na administração pública do país, em direção à radicalização da democracia. Os desafios da construção de políticas públicas para a igualdade entre mulheres e homens constitui o foco da análise nos dois capítulos finais. Raquel Viana, a partir de uma perspectiva municipal, aponta a insuficiência das políticas de trabalho, emprego e renda, associada à baixa oferta de serviços e equipamentos sociais que poderiam minimizar a dupla jornada do trabalho remunerado e não remunerado que recai fundamentalmente sobre as mulheres, “como creches, pré-escolas, lavanderias e restaurantes coletivos” e serviços de atendimento a idosos. Ressalta ainda a insuficiência de serviços que deem conta adequadamente do atendimento às ocorrências de violência contra as mulheres – em suas múltiplas frentes – e dos serviços públicos de saúde, em que as mulheres constituem a maioria dos usuários. E por fim, articulando dados desta pesquisa e de outras fontes, Iriny Lopes, a partir de um

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ponto de vista nacional, acrescenta a importância da educação e de políticas de enfrentamento a todo tipo de discriminação, do combate à pobreza e à desigualdade, acompanhados de recursos para o monitoramento e a avaliação do impacto das políticas adotadas, e ainda a criação “de mais espaços e mecanismos de diálogo social”, como elementos de inclusão e transformação. Em que pese a qualidade do esforço interpretativo das/os autoras/os convidadas/ os para esta publicação, naturalmente as possibilidades de análise da pesquisa aqui editada não se esgotam nos textos que se seguem ou no Anexo de dados selecionados para ilustrar os principais resultados apurados. Nesse sentido, sugerimos aos leitores e leitoras motivados que visitem o portal do Consórcio de Informações Sociais (CIS) – fruto de um convênio USP/Anpocs (www.cis.org.br) – para o qual as instituições envolvidas neste projeto, Fundação Perseu Abramo e Sesc, dentro de seu propósito de ampliação do debate público em prol da igualdade entre mulheres e homens, já doaram o banco de dados da pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado. Ali poderão baixar a matriz gerada por este levantamento, bem como o questionário utilizado, e processar seus próprios dados para novas análises.

Agradecimentos Além das 32 autoras e quatro autores acima citadas/os, agradecemos à Iole Ilíada (FPA) e ao Danilo Santos de Miranda (Sesc), por todo o apoio à pesquisa e pelos textos de apresentação no início deste volume; à Eleonora Menicucci de Oliveira – hoje ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) – interlocutora deste projeto desde o levantamento de 2001 e autora do Prefácio, onde reafirma seu compromisso com a implantação de “políticas públicas focadas em consolidar os direitos das mulheres em toda a sua extensão”. Pela fundamental participação nos seminários de planejamento da pesquisa, realizados em junho de 2010, contribuindo para a definição das prioridades temáticas e para a elaboração conceitual das questões tratadas, agradecemos a: Albertina Costa (Fundação Carlos Chagas), Alcilene Cavalcante (Católicas pelo Direito a Decidir), Ana Frank, Ana Lucia Rezende (Articulação Brasileira de Jovens Feministas), Aparecida de Fátima H. Dias (Fórum Nacional de Mulheres Negras), Carmen Campos (Cladem/Brasil), Célia Regina da Silva (jornalista), Cíntia Rodrigues (Chefe de Gabinete da SPM, gestão ministra Nilcéa Freire), Heloisa Buarque de Almeida (Dep. Antropologia, FFLCH-USP), Jacira Vieira de Melo (Instituto Patrícia

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Galvão), Laisy Moriére (Secretária Nacional de Mulheres do PT), Leandro Feitosa Andrade (Coletivo Feminista – Homens Autores de Violência Contra Mulheres), Maria Amélia S. Alencar (Coord. dos Direitos da Mulher, Taboão da Serra), Maria Aparecida de Laia e Maria Lucia da Silveira (Coord. dos Assuntos da População Negra, SMSP), Maria Betânia Ávila (SOS Corpo, Instituto Feminista para a Democracia), Magna Almeida, Monica Aguiar de Souza (Centro de Ref. de Cultura da Mulher Negra, PT-MG), Nalu Faria (SOF), Patrícia Rangel (CFEMEA), Regina Facchini (UNICAMP-PAGU), Regina Figueiredo (Instituto de Saúde da Secretaria Estadual de Saúde de SP), Rita Quadros (PT-Núcleo Municipal LGBT), Rosa de Lourdes A. dos Santos (Rede Nacional Feminista de Saúde), Roseneide Ferreira da Silva (Elas por Elas), Rosirene de Souza Carneiro (Fórum de Mulheres do RJ), Rosy M. D. Pereira, Sarah Jane A. Jarcen (Marcha Mundial das Mulheres), Silvana Veríssimo, Sonia N. Hotimsky (FESPSP), Terezinha Vicente Ferreira (PT-Coletivo da Secretaria Estadual de Mulheres), Valkiria Kika Silva (Fórum Estadual de Mulheres Negras), Vera Lucia L. Soares (USP) e Vera Machado (PT-Secretaria Municipal de Mulheres de São Paulo), Ana Luiza Salles Souto (Pólis), Cássio Rodrigues (CADS – Prefeitura do Município de São Paulo), Dimitri Sales (CADS – Prefeitura do Município de São Paulo), Gabriela Calazans (NEPAIDS), Grazielli Tagliamento (NEPAIDS), Ideraldo Beltrame (Uninove), Jailson Pereira da Silva (PT-Cotia/SP), Julian Rodrigues (Instituto Edson Néris), Roberto de Jesus (ILGA), Maria Altenfelder Santos (NEPAIDS), Luis Gustavo Bezerra Menezes (ABGLBT), Lula Ramires (CORSA), Márcio Caetano (Arco-Íris), Neide Suzane da Silva Carvalho (Centro de Referência DST/AIDS), Perly Cipriano (SDH – Presidência da República), Rita Ronchetti (Setorial LGBT do PT), e Tarson Nuñes (UFRGS) – aqui citadas/os segundo sua filiação institucional à época dos seminários. Pela parceria profissional na coordenação das equipes de coleta e checagem dos dados em seus estados ou regiões, agradecemos aos seguintes institutos, na pessoa dos seus diretores ou responsáveis diretos pelo estudo: Allan Bruno C. Levorato, Alexandre Landim Felix, Elena Lee Yoo, Irina Frare Cezar, Samuel Ralize de Godoy e Stefani Eveline da Silva (Instituto Júnior de Pesquisa Social, IJPS, CS-USP – SP); Antonio Barbosa (RO); Américo Canto (Instituto Acertar – PA, AM); Carlos Roberto Nunes (Check Pesquisa de Mercado – PE, AL, PB, RN, CE, PI, MA); Clóvis Verdueiro (De Fatos e Dados – RS); José de Matos (Real Marketing – MG, GO, DF, ES); José Renato Melo (Opinião – BA, SE); Márcio Joly (Feeling Comunicação e Pesquisa – SC, PR); Marivaldo N. de Souza (AC); Milton Yano (Ícone Pesquisa e Comunicação – MS e MT), Ricardo Tadeu (RJ) e Waldecy Rodrigues (TO).

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Às equipes de entrevistadoras/es, supervisoras/es de campo, codificadoras/es das perguntas abertas e digitadoras/es, somando mais de 300 pessoas envolvidas no processo de elaboração dos dados, desde sua coleta até o preparo para as análises, nosso agradecimento. Agradecemos ainda a Rita Dias, pelo trabalho criterioso de detalhamento da amostra, supervisão da digitação, consistência e processamento dos dados; a Vilma Bokany (NEOP), Deise de Alba e Wagner Rosas (ECO Assessoria em Pesquisas) pelo apoio na análise dos resultados; às estudantes de Ciências Sociais da USP Carolina Mendes Soares e Mariana Faciulli, pela revisão dos dados citados pelas/os autoras/es, e a Nadja Figueiredo, aplicada assistente de pesquisa em diversas etapas do projeto. E por fim, um agradecimento especial às 2.365 mulheres e aos 1.181 homens que atenderam à solicitação de responderem à pesquisa, dedicando tempo e atenção para externar suas opiniões e valores, e para descrever diversos aspectos de seu cotidiano e de suas vivências, nem sempre de boa lembrança. Abril-Maio de 2013 Os organizadores

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público e privado foi realizada em 2010 pela Fun-

E

ste livro é resultado de profícua parceria entre a Fundação Perseu Abramo (FPA) e o Serviço Social do Comércio (SESC).

Gustavo Venturi e Tatau Godinho (orgs.)

A pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços

Albertina de Oliveira Costa Alexandre Grangeiro Carmen Hein de Campos Dulce Aurélia de Souza Ferraz Gustavo Venturi

dação Perseu Abramo – por meio de seu Núcleo

Após a realização da pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos

de Opinião Pública –, em parceria com o SESC.

espaços público e privado, divulgada amplamente em seminá-

Apresenta um amplo retrato do que pensam mu-

rios pelo Brasil, tornou-se imprescindível produzir uma publi-

lheres e homens sobre diferentes aspectos da di-

cação com uma coletânea de artigos e análises de especialistas

mensão social das relações entre os sexos.

de áreas diversas.

Entre os temas abordados no estudo estão ques-

Neste sentido, o volume conta com a participação de 33 au-

Janaina Marques de Aguiar

tões como a percepção de ser mulher, o imaginá-

toras e três autores do campo das Ciências Sociais, do Direito,

Jurema Werneck

rio de homens e mulheres sobre o feminismo e o

da Psicologia, da Saúde e da Comunicação, lideranças políti-

machismo; a divisão sexual do trabalho e o tem-

cas e governamentais e ativistas de movimentos sociais para,

po livre; a mulher na mídia, autonomia do corpo

à luz dos dados, refletir sobre seus significados na sociedade.

e sexualidade, a saúde reprodutiva e o aborto;

Os leitores e leitoras notarão, no conjunto das contribuições,

a violência doméstica, a Lei Maria da Penha e

quão ampla é a temática que abrange as questões de gênero

a violência institucional no parto; a participação

refletindo dinâmicas sociais complexas que apontam para mui-

da mulher na política e políticas públicas especí-

tos desafios, presentes e futuros, com vistas a uma sociedade

ficas; a situação das mulheres negras e das mu-

efetivamente igualitária entre mulheres e homens.

Hakon Jacino Heloisa Buarque de Almeida Iriny Lopes Ivanete Cordeiro dos Santos

lheres camponesas. A introdução de um enfoque efetivamente de gênero é uma inovação do estudo que, diferente de sua primeira edição (2001), reuniu não só mulheres mas também homens na amostra atual. Distribuídos em 25 unidades da federação,

MULHERES BRASILEIRAS E GÊNERO NOS ESPAÇOS PÚBLICO E PRIVADO

Jacira Vieira de Melo

Laisy Moriére Lilia Blima Schraiber Lourdes Maria Bandeira Lúcia Avelar Lucia Xavier Márcia Thereza Couto Maria Betânia de Melo Ávila Maria José Rosado

M

Gustavo Venturi e Tatau Godinho (orgs.)

Maria Julia Reis Nogueira Maria Luiza Heilborn

ULHERES BRASILEIRAS E GÊNERO NOS ESPAÇOS PÚBLICO E PRIVADO uma década de mudanças na opinião pública Prefácio: Eleonora Menecucci

Maria Teresa Citeli Marisa Sanematsu Marlise Matos Nadja de Figueiredo Araújo Nalu Faria Nilza Iraci Silva Parry Scott Russel

em áreas urbanas e rurais de todas as macrorre-

Rachel Moreno

giões do país, foram ouvidas 2.365 mulheres e

Raquel Viana

1.181 homens.

Regina Figueiredo Edições SESC SP ISBN 978-85-7995-051-3

Fundação Perseu Abramo ISBN 978-85-7643-146-6

Rosineide Meira Cordeiro Simone Grilo Diniz Sonia Nussenzweig Hotimsky Vera Soares


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