INTERVENÇÕES URBANAS
São Paulo, metrópole contemporânea, megacidade, está às voltas com novas situações que lhe impõem reconfiguração, num processo inevitável e incessante. Diante desse fato, Arte/ Cidade apresenta-se como um projeto de intervenções urbanas e artísticas pelo qual outras estratégias são discutidas, tendo em conta a permanente reestruturação metropolitana, mas contrapondo-se à apropriação institucional e às imposições do mercado. É assim que dependências de indústrias desativadas, um prédio antigo que foi matadouro municipal, um prédio de requintada arquitetura que foi sede de banco, entre outros bens superados em sua utilidade pela dinâmica urbana, assumem funções inusitadas por meio da intervenção. O projeto Arte/Cidade, que se vem realizando em São Paulo desde 1994, tem aqui um livro à altura de sua ousada proposta, com fotos, mapas, desenhos técnicos e textos que expõem as ideias do empreendimento e as experiências nele colhidas. Editado em parceria pelo Senac e pelo Sesc São Paulo, Arte/Cidade é mais uma contribuição dessas instituições para a reflexão sobre a metrópole paulista.
Arte/Cidade é um projeto de intervenções urbanas que se vem realizando em São Paulo desde 1994. Seu ponto de partida é a metrópole contemporânea enquanto espaço complexo e dinâmico, em permanente mutação, engendrando novas e inusitadas
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configurações urbanas. Trata-se de operações que questionam o estatuto e os proce-
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confronto com os processos decorrentes da globalização exige um deslocamento das
URBANAS
ARTE/cidade
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dimentos convencionais da arte, da arquitetura e do urbanismo, na medida em que o linguagens e técnicas estabelecidas. A proposta é tomar São Paulo como um campo onde todas as questões sobre as cidades e a arte estão sendo jogadas. Quando as recentes políticas urbanas de revitalização e as formas estabelecidas de arte pública entram em colapso diante da complexidade e escalas das novas situações, Arte/Cidade se propõe a discutir novas estratégias urbanas e artísticas de intervenção em megacidades. Arte/Cidade visa realizar intervenções capazes de transcender sua locação imediata e remeter ao vasto território da megacidade e das reconfigurações globais da economia, do poder e da arte. Provocar nossa percepção para situações que não se restrinjam mais à exploração in loco, ao escrutínio visual. Intervenções que levem em consideração os processos de reestruturação metropolitana e global, mas que se contraponham à apropriação institucional e corporativa dos espaços urbanos e das práticas artísticas. Trata-se de consolidar o repertório desenvolvido pelos projetos mais recentes para o espaço urbano. É indispensável, para se operar em escala urbana, desenvolver instrumentais e procedimentos estéticos e técnicos adequados: conversão das propostas em projetos (com desenhos técnicos), equacionamento das questões técnicas (materiais, estruturais) e políticas (relações com as comunidades e poderes públicos envolvidos) colocadas para sua implantação. As experiências realizadas por Arte/Cidade estabeleceram um conjunto extraordinário de procedimentos, tanto no que se refere à escolha de situações quanto às táticas artísticas e urbanísticas empregadas. Mas essas modalidades de prática no espaço urbano também suscitam questões, por causa de suas relações com operações de redesenvolvimento urbano e com políticas de instituições ligadas à arte.
Nelson Brissac Peixoto (organizador)
Este livro reconstitui as três primeiras edições de Arte/Cidade, com o levantamento das situações urbanas, os projetos de implantação, a apresentação de algumas das propostas de intervenção acompanhadas de descrições e desenhos técnicos e os textos críticos publicados na imprensa.
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habitual. Trabalhos que acabam refletindo as discussões e o embate com o local. Criações que também resultam em trazer à luz lugares carregados de valor histórico ou simbólico, em confrontar situações espaciais e sociais só colocadas pela metrópole. Uma tentativa de estabelecimento de novos mapas e visões da cidade.
introdução Arte/Cidade é um projeto de intervenções urbanas. Realizado em São Paulo, em três fases distintas, a partir de 1994, teve como ponto de partida a metrópole contemporânea, em que o urbanismo e a arquitetura são continuamente redesenhados, em que se cruzam as diversas linguagens e suportes. Um espaço de trânsito intenso, de permanente reordenamento dos lugares, das dinâmicas econômicas e sociais e dos dispositivos de comunicação. Trata-se de operações que primeiro problematizam o estatuto da obra de arte e da arquitetura, na medida em que questionam sua autonomia e postulam todo o espaço circundante, a paisagem urbana, como parte constitutiva das intervenções. Junturas entre as diferentes produções individuais, que exigem dos participantes um deslocamento dos suportes convencionais para enfrentar um espaço inusitado e uma convivência pouco
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Toda intervenção na cidade é necessariamente plural. É urbanística, arquitetônica, política, cultural e artística. A particularidade de Arte/Cidade consiste em reconhecer essa complexidade, em que as ações não são vistas isoladamente (segundo regras próprias, como num museu), mas no interior desse campo mais amplo que é a cidade. Como intervir num universo desprovido de sistema centralizador e unificador? Trata-se de lidar com o indeterminado, o que escapa, o que não tem medida. Toda intervenção na cidade existente deve levar em conta esse imponderável. Não se detém por completo o controle das condições nem as consequências das ações ali realizadas. Na metrópole toda intervenção é necessariamente pontual, sem pretender abranger o todo. Aqui predomina o princípio da ação/reação. Cada gesto provoca contínuas rearticulações, dando novas funções e sentidos para locais e serviços. A intervenção é uma inscrição num fluxo mais amplo e complexo que é a dinâmica urbana. Implica entender a cidade como algo em movimento. Não na forma de vetor progressivo, orientado, mas em várias direções. Intervir: um gesto sobre o que já está em movimento. Como surfar ou entrar numa frequência. É um paradigma da metrópole contemporânea: uma vasta rede que existe por si, em que sempre se entra em movimento. Isso sintetiza a natureza atual da metrópole: um universo onde só se pode interferir indiretamente, por reverberação. Uma ação, necessariamente local, ecoa em outros
pontos, como por ondas. Não há mais como pretender uma ordenação planificada do espaço urbano. Daí sua condição relativamente superficial e efêmera, embora buscando escavar mais além da superfície da cidade. Os dois blocos iniciais de Arte/Cidade foram realizados pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, na gestão de Ricardo Ohtake. Originaram-se da ideia de oferecer uma alternativa ao modo tradicional, compartimentalizado, de incentivo público da produção cultural, implantando um projeto que, tendo a cidade como espaço e catalisador, articulasse as diferentes linguagens e suportes da criação artística contemporânea. Mas, embora originado no âmbito da administração pública, Arte/Cidade não tem um perfil institucional rígido. As primeiras edições já contaram com o apoio de diversos órgãos governamentais e
empresas privadas. No seu terceiro bloco, Arte/Cidade passou a ser realizado por uma entidade própria – o Grupo de Intervenção Urbana –, reunindo criadores e especialistas das diversas áreas da produção e organização da cultura e da cidade. A realização de intervenções sem um contexto institucional preestabelecido, que determine o seu formato, organização e recursos, implica buscar novas formas de iniciativa. Arte/Cidade demandou variadas e constantes negociações com os diversos órgãos político-administrativos do governo diretamente envolvidos na ação, além das instituições e empresas que viriam a apoiá-lo. A grande complexidade que envolve um projeto de intervenção urbana exigiu mobilizar um amplo e variado leque de realizadores e patrocinadores. Trata-se de um espectro de apoiadores que levou anos para ser composto e que talvez nenhum outro projeto não institucional já tenha exibido. Uma alternativa dinâmica aos mecanismos tradicionais e burocratizados de exibição de obras de arte e de planejamento urbano. Uma atuação nessa escala na cidade tem de ser, necessariamente, pluralista. Esse é, talvez, o legado maior desse projeto: além de seus eventuais ganhos estéticos e urbanísticos, ele é um exemplo de que se pode agir mesmo numa megalópole descontrolada e opressiva como São Paulo. Não se pode ter, pela própria natureza da intervenção – sua escala e abrangência –, todas as condições políticas e orçamentárias reunidas
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antes de iniciar-se o processo. São traçadas as linhas gerais (conceitos, área a ser tratada), os artistas, arquitetos e especialistas convidados passam a se reunir e preparar seus projetos, ao mesmo tempo que são negociados permissões e suportes. O resultado final dependerá da confluência desses aportes. Arte/Cidade é um projeto que se consolida in progress. É isso o que diferencia uma intervenção urbana de um evento institucional. Trata-se de um novo modelo de produção de cultura e cidade. A arregimentação inicial de artistas, arquitetos e instituições é essencial para a obtenção de recursos e respaldo político, ainda que implique grande desgaste, devido à falta de recursos e aos atrasos. Mas é o único modo de fazer avançar o projeto, de formatá-lo técnica e artisticamente. Só a elaboração de projetos arquitetônicos detalhados de adequação dos espaços e serviços urbanos a serem utilizados permite estabelecer negociações com as empresas e órgãos públicos que podem realizá-los. Só o desenvolvimento dos projetos artísticos e arquitetônicos de intervenção pode dotar o conjunto da empreitada de credibilidade diante dos patrocinadores, além de possibilitar um desenho final da área a ser ocupada. É um processo contínuo de mobilização. Uma intervenção como Arte/Cidade consiste em continuamente criar fatos consumados. Implicar um setor para comprometer outros.
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Intervenções urbanas dessa natureza – independentes de um programa governamental – não podem esperar primeiro reunir o apoio e os recursos necessários para sua realização. Essas condições são, mesmo que isso possa parecer paradoxal, um resultado. São reunidas à medida que a intervenção vai se fazendo. Daí as intervenções serem precedidas de um longo processo de preparação e divulgação, servindo para introduzir a ideia na comunidade e galvanizar o apoio indispensável. Os patrocinadores e realizadores têm de ser periodicamente mobilizados por acontecimentos (cerimônias, fóruns de debates, artigos na imprensa) e iniciativas exemplares. Em se tratando de uma empreitada que só se materializa pela conjunção da participação de múltiplos envolvidos, eles têm de ser permanentemente atraídos para essa parceria. Implica, portanto, uma aposta: o comprometimento público dos organizadores com algo que não tem suas condições garantidas e pode não se efetivar. Mais: a grande escala e o número
de pessoas envolvidas são as condições (e não obstáculos) para sua eventual viabilização. Toda intervenção urbana é, necessariamente, um projeto de alto risco. É um projeto que ninguém individualmente pode garantir. Daí a possibilidade de fracasso total. Não há como realizá-lo apenas em parte, sem descaracterizar sua natureza urbana. É tudo ou nada. Só a intervenção na sua totalidade pode dar sentido para ações parciais. Isoladamente, iniciativas individuais tendem a se perder na imensidão e no caos da metrópole. No conjunto, elas circunscrevem um vasto espaço, uma situação complexa. As intervenções promovidas por Arte/Cidade são, porém, investigativas e críticas, especulações essencialmente artísticas sobre a natureza e o destino daquelas áreas da cidade. Não visavam determinar o perfil definitivo dos lugares. Nem efetivar reformas estruturais na trama urbana, tarefa que cabe aos órgãos administrativos da cidade. Aqui se tratava de intensificar a percepção desses espaços, trazer à tona significados ocultos ou esquecidos, apontar para novas possibilidades e usos, redimensionar sua organização estrutural, sugerir novas e inusitadas configurações. As primeiras intervenções ocorreram no antigo Matadouro da Vila Mariana, zona sul da cidade. Cerca de quinze artistas e
arquitetos criaram, depois de vários encontros preparatórios no local, em que se discutiram as linhas gerais e o projeto específico de cada convidado, obras especialmente concebidas para a situação. Nesse primeiro bloco havia uma estrutura arquitetônica pesada e isolada do resto da cidade, que recebeu artistas voltados para um corpo a corpo com a matéria, a inércia e o peso das coisas. O segundo bloco teve lugar numa área demarcada por três edifícios, em torno do viaduto do Chá, no centro de São Paulo. Foram ocupados o topo dos prédios, a área do vale e as ruas circundantes. Cerca de vinte artistas e arquitetos conceberam intervenções para esse grande espaço, além de criar obras específicas para CD-ROM. Antigos dispositivos de olhar, mecanismos de comunicação, projeções, estruturas em suspensão e sistemas interativos foram instalados em toda a área, formando um universo em circulação. Já no último bloco, realizado em 1997, tivemos uma estação de trens e um trecho ferroviário que passa por locais significativos do período fabril da cidade: os silos e construções abandonados de um antigo moinho e os galpões e
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chaminés que restam de um grande complexo industrial na zona oeste da cidade. Aqui se evidenciou, mais do que nas outras intervenções, o significado particular desses sítios. Dessa vez, cerca de quarenta artistas, além de um grupo de arquitetos, prepararam intervenções nos locais. Os visitantes percorriam de trem esses diversos lugares, numa composição ferroviária especialmente reservada para o evento, que parava nos vários sítios dessa situação urbana. Uma evolução pode ser percebida de um bloco da série para outro. As obras concebidas pelos artistas e arquitetos passaram a ser cada vez menos relacionadas com sua produção regular (concebida e realizada em ateliê ou estúdio), para refletir cada vez mais a relação com a situação e os locais. Um aprendizado foi sendo feito aí, um procedimento foi sendo configurado. O último Arte/Cidade foi antecedido de projetos de adequação dos locais para as intervenções e a frequentação do público. Também o ramal ferroviário passou por uma adequação, além de ter sido elaborado um programa técnico específico para a operação de uma composição especial para o Arte/Cidade. No geral, as intervenções tenderam a levar mais em consideração o sítio, a inserção arquitetônica, a escala urbana, a complexidade das situações e os componentes sociais e políticos – embora o projeto, dadas as inevitáveis limitações de uma proposta sem precedentes, não
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consolidada perante a opinião pública, não tenha podido explorar devidamente todas as possíveis relações com a dinâmica da cidade e as operações (revitalização, implantação de novos sistemas de transporte e comunicação, reconstrução e reordenamento em escala urbana) previstas ou em andamento para as diversas áreas em que ocorreu. O projeto caracterizou-se por ocupar edificações em momentos de transição, quando estavam sendo suspensos seus usos tradicionais e decididas suas futuras utilizações. O antigo matadouro era uma dependência pública já destinada a posterior uso cultural. A agência do Banco do Brasil, quase desativada, não tinha destinação decidida, tendo sido adventada sua transformação em centro de cultura. Já o prédio da Eletropaulo, outro importante marco do patrimônio histórico, já estava vendido e seria transformado em shopping center. Toda a área da Matarazzo também começaria, logo a seguir, a ser utilizada para a construção de um conjunto de prédios de escritórios, preservando-se apenas as antigas chaminés.
Cada projeto de intervenção ocorreu, portanto, num momento propício para introduzir a discussão sobre esses processos de conversão. Uma avaliação do impacto desses projetos na releitura dos lugares e situações da cidade e do papel que possa ter tido nas operações urbanas que estavam sendo ali implantadas. Oportunidades que não foram completamente percebidas nem aproveitadas, em parte por causa das dificuldades – quando não existiam precedentes de práticas semelhantes – de introduzir abordagens alternativas nas negociações com as instituições e empresas que cediam esses espaços, muitas vezes interessadas em controlar e utilizar a iniciativa. A área do centro onde ocorreu o segundo Arte/Cidade, o vale do Anhangabaú, passara por profundas transformações urbanísticas nos anos 1980, quando foi construído o jardim sobre a via expressa para automóveis. Só indiretamente o projeto trouxe à discussão os princípios e resultados da implantação desse novo espaço público na cidade. Não foi feito um levantamento sequer desse processo de reurbanização, nem foi ele tomado como referência das intervenções. No caso do terceiro Arte/Cidade, a situação era ainda mais complexa. Toda a região, ao longo dos ramais ferroviários, foi recentemente alvo de uma operação urbana – questionável do ponto de vista arquitetônico e urbanístico – que definiu novos parâmetros de ocupação do terreno e incentivou empreendimentos
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imobiliários. Um grande rearranjo da população pobre estava ocorrendo na cidade, sem que isso fosse efetivamente levado em conta. Os interesses em jogo eram muito maiores do que o anunciado. Ao se realizar em terreno já controlado por uma construtora, o projeto acabou se colocando numa situação em que não poderia ser diretamente crítico. Mas como, então, criar uma interface com a dinâmica urbana, com a política urbana que está sendo proposta? A arte (e a arquitetura) pode sustentar esse projeto, sem ser instrumentalizada? Além disto, as companhias ferroviárias (todas públicas) que operavam aqueles ramais começavam, nesse período, a ser privatizadas. O futuro do transporte ferroviário em São Paulo, no entanto, já foi uma questão explicitamente colocada por Arte/Cidade, até mesmo com debates com seus responsáveis. Mas sem que se tenha dado continuidade à discussão sobre as alternativas existentes para esse tipo de transporte e para os terrenos e instalações antes utilizados pela ferrovia. Também não se aprofundou devidamente a avaliação do papel que Arte/Cidade possa ter cumprido nesse processo.
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Enfim, que impacto Arte/Cidade produziu na cidade? Como a arte pode interagir com a produção real da cidade? O que fazer para que não se resuma a “arte na cidade”? Pode ainda a arte propiciar um olhar novo, um pensamento prospectivo sobre a cidade? Seria ela ainda capaz de instaurar um espaço reflexivo? Neste sentido, como afirma a arquiteta Regina Meyer, Arte/Cidade foi uma despedida: uma vontade de assumir a cidade como arte. Até que ponto a cidade, normalmente tida como espaço da funcionalidade e domínio do permanente (até mesmo por causa dos custos que envolvem qualquer ação de dimensões urbanas), pode ser tomada como um campo de experimentação, de testes? Como se pode fazer a invenção, o ensaio mais comprometido com a criação, no âmbito do urbanismo? Em que medida os artistas e arquitetos aqui reunidos responderam ao desafio dessa relação entre arte e cidade? Em muitos casos, com diferentes graus de sucesso, artistas tenderam a fazer operações de
caráter arquitetônico e arquitetos acabaram atuando como artistas. Onde estaria a justa proporção dessa equação? Uma abordagem que transcenda a vivência imediata das situações, a apreensão intuitiva que redunda necessariamente em resultados apenas estetizantes, mas ao mesmo tempo introduza a dimensão da experimentação (própria da arte) em procedimentos mais adequados à lógica da edificação e do funcionamento da cidade. É possível fazer da metrópole um canteiro de renovação da percepção, da experiência e da produção de espaço? Aqui talvez residam os limites de Arte/Cidade: de uma fase a outra, o projeto ganhou escala, mas nunca adquiriu outra dimensão. Não se imbricou efetivamente nos processos de produção e administração da cidade. Uma experiência que parece apontar para uma direção: a superação da escala. Assumir a diluição na cidade, deixando de ser uma exposição. Intervenções que vão se fazendo e, para o público, apenas estejam lá (no local, em documentação, on line), no contexto do espaço urbano e da vida social. O que implica também, no tempo, deixar de ser um evento, mas um conjunto difuso de iniciativas cuja amarração conceitual se faça por suas reverberações e registros. Exatamente como se constrói a metrópole.
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A intervenção de Carmela Gross obedece à mesma mecânica obsessiva que impera no local. Todo o piso de um dos salões foi mapeado por meio de uma grade de buracos. Embora os buracos sejam irregulares e de diferentes contornos, cada escavação é meticulosamente desenhada, com proporções rigorosamente determinadas. Tal como a demarcação do terreno para uma intervenção cirúrgica ou militar. Uma exigência de precisão que remete aos sistemas de pesos e medidas que organizam um matadouro, evidenciando a doentia insistência por controle desses dispositivos que o século XIX engendrou – mesmo para produzir a morte. Um evidente excesso de cálculo, para afinal resultar em buracos escavados no chão.
CARMELA
GROSS
As incisões iniciam um movimento descendente, condicionado pela bruta fisicalidade do lugar. Como se essas perfurações larvais pudessem ser uma busca de novos horizontes, uma tentativa de insuflar um pouco de ar num ambiente asfixiante. Mas, janelas perversas, dão para o chão. Não por acaso uma de suas referências são os quadros de autópsia de Rubens, artista do desenho massivo e da solidez corpórea. Esses buracos fazem um mapeamento negativo do espaço, indicam tudo aquilo que não é, que não se pode ver. O peso que afunda o chão.
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Meu trabalho trata do espaço construído. Vórtice é uma instalação ambiental, realizada como um grande desenho em perspectiva em forma de triângulo truncado. Pintado em preto sobre sessenta chapas brancas de plástico rígido, o trabalho tem 15,50 metros de extensão por 11 metros de profundidade. No desenho mostro as imagens de quatro fileiras de janelas, dispostas verticalmente e em afunilamento em direção ao ponto de vista. Foi feito para ser colocado no chão, em conexão com as oito janelas do quinto andar da Eletropaulo que dão origem à projeção. Minha intenção foi construir um espaço virtual vertical que, para um olho situado na convergência da perspectiva, proporcionasse a ilusão de um abismo transparente, onde se pudessem ver as janelas dos quatro andares inferiores e adjacentes ao andar em que a obra se localiza. Regina Silveira
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FICHA TÉCNICA Projeto e direção Regina Silveira Assistentes Eduardo Verderame Lúcia Harley Claudio Opazo Paulo Silveira Agradecimentos Plásticos Metalma S. A. Gráfica Unida Artes Gráficas e Editorial Ltda. Papéis Suzano W5 Camisetas
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Tadeu Knudsen retoma o princípio dos dispositivos de projeção. É uma tentativa de evocar – na escala do Anhangabaú – os elementos constitutivos do cinema, tornados arcaicos pelo rápido desenvolvimento das técnicas digitais de produção das imagens. Uma tela pendurada por vários balões, uma estrutura com cerca de 30 metros de altura, rivalizando com os prédios do entorno. Redefinindo o desenho urbano de um dos cruzamentos mais significativos da cidade. A certa distância, um palco dotado de um refletor igual aos de cinema, projetando sobre a tela as sombras dos que ali se exibirem. Passagem do mais leve ao mais pesado, questão própria da era que inventou o cinema.
KNUDSEN
Assim como o cinema era originalmente destinado a mostrar o rosto das pessoas comuns, essa encenação traz os transeuntes da grande cidade. Expostos, porém, no anonimato das sombras. O dispositivo enfatiza essa contradição própria do espetáculo, o destino do cinema na metrópole, que destaca os indivíduos para mostrá-los impessoalmente. Intervenção concebida mais como feira popular, o espetáculo de sombras aparece como evento de rua. Retoma o cinema na virada do século, quando era visto não só como uma tecnologia de ponta, mas também como um evento dotado de magia, “o mistério de uma sala escura penetrada por sombras e luzes”.
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corte transverso balões com 2,5 m de diâmetro para o içamento da tela
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palco refletor
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A estrada de ferro corta a cidade como uma cicatriz, através de fábricas, moinhos e pátios ferroviários abandonados. Um percurso que se faz numa área esquecida, para a qual a cidade deu as costas. Viagem por um mundo em suspensão: apesar da passagem do trem, reina a mais completa imobilidade. Esses espaços estão à espera de que alguma coisa aconteça. Aqui, o passado aguarda o futuro. Em nenhuma outra parte da cidade a destruição e o abandono foram tão sistemáticos e intensos. Aqui surgiu uma área de desagregação, desprovida de vida, onde impera uma sensação de decadência, de desorganização e perda. Mas também uma certa grandeza emana do ordinário, do descartado, naqueles lugares sem destino. Arauto da modernidade, a mecânica ferroviária introduz a questão da aceleração, permitindo às metrópoles expulsar sistematicamente seus habitantes para as periferias e criando zonas desertificadas em seu interior. Com o trem, os indivíduos têm o primeiro dispositivo industrial de desterritorialização, a experiência da dissolução da paisagem que a arte moderna levaria ao limite. As redes ferroviárias foram pontos de fuga inscritos na paisagem urbana, vetores cortando os antigos labirintos de ruas.
A Paris do século XX imaginada por Jules Verne é uma imensa e intrincada rede de vias férreas, cruzadas umas sobre as outras. Os trens, impulsionados por um sistema de ar comprimido, atingem grandes velocidades. Um disco, movendo-se dentro de um tubo como uma bala num cano, leva consigo, por força eletromagnética, o primeiro vagão, cujas rodas são imantadas. Esses novos propulsores permitiriam composições ferroviárias muito mais leves e velozes. Trata-se do mesmo dispositivo de ejeção que Verne concebe para levar seus personagens à Lua. Um enorme canhão, mais parecido com uma chaminé, que dispara a cápsula como se fosse um projétil. Todas as suas viagens extraordinárias são impulsionadas pelos princípios da balística: lançar o mais rápido e o mais distante possível. A modernidade se faz, efetivamente, sob o signo da ejeção. A propulsão engendra vetores: passar direto, levar adiante. É o que tornou a área das intervenções de Arte/Cidade um deserto, uma terra de ninguém. A implantação da rede ferroviária no Brasil – enfrentando serras e relevo acidentado – foi um ato de conquista. A linha de trem foi uma cunha usada para ganhar território. A estrada de ferro é o caminho por onde as coisas vieram e partiram, se perderam. Coisas que são usadas, desgastadas e esquecidas. Foi o trem que ajudou a criar nossa percepção do passar do tempo. Trouxe a experiência do ritmo, da sequência. Não por acaso o trem e o cinema foram desenvolvidos praticamente na mesma época: esses elementos são constitutivos do dispositivo e da linguagem cinematográficos, como o travelling. O trem inaugura o processo de aceleração das cidades, a rápida sucessão dos estilos arquitetônicos que caracteriza a metrópole contemporânea. A ferrovia, contudo, é também um mundo de coisas que se opõem ao movimento, que oferecem resistência. Coisas feitas para ficar, não disponíveis à manipulação. Coisas que, apesar de aviltadas, recusam-se a desaparecer. Dessa persistência talvez provenha sua dignidade. Uma altivez de coisas enraizadas. Não têm
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PROJETO ESPECIAL DE ARTE/CIDADE Releitura do material histórico e desenvolvimento do projeto gráfico Ricardo Ribenboim Produção Luli Hunt Realização Espectrom Sign e Marker Luís Villaça Meyer Filho Agradecimentos Boris Schnaiderman Flávia Castro e Castro
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A antiga caldeira da Matarazzo deixou de funcionar há muito tempo. Mas é como se as máquinas que a alimentavam continuassem seu trabalho. O óleo que escorre delas, para o andar de baixo, traz consigo toda a potência e a agressividade daquelas instalações industriais. Mostra que aquela saga não acabou. As imagens projetadas sobre esse mar de óleo, criadas por Marcello Dantas e Roberto Moreira, vão buscar no passado essas histórias que ainda pedem para ser contadas.
O dispositivo construído consistiu num reservatório de óleo montado sob uma das máquinas deixadas no piso superior da edificação. Esse óleo escorre para o andar inferior, cobrindo sete bancadas de concreto ali existentes. Sobre elas foi pendurado igual número de tambores de óleo, tendo no interior monitores de televisão em preto e branco.
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institucionais dos anos 1920-1930 sobre operações industriais. Um clichê do maquinismo da época. Tudo ritmado por ruídos que combinam respiração e pulsação maquinal, como o funcionamento de um pistão.
É como se estivessem entranhadas no óleo, lá no fundo, as imagens que geraram aquele universo fabril. Com os monitores suspensos cerca de 80 centímetros em relação ao plano do óleo, as imagens refletidas parecem estar proporcionalmente mergulhadas no líquido. Geradas dentro de uma máscara circular, as imagens vão se expandindo até superar os limites da tela, para novamente se contraírem, até se tornarem um ponto negro. Essa pulsação faz com que pareçam vir do fundo, subindo à superfície. Como se o óleo retivesse, como moléculas, o código genético do passado, da memória daquele lugar.
As imagens veiculadas pelos monitores tornam-se visíveis ao incidir na superfície do óleo acumulado sobre as bancadas. São imagens de documentários
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furo na laje
cabos de aço
tonéis fornecidos pelo artista
mureta a ser construída
tubulação para óleo
bomba para tirar o óleo do reservatório e despejar sobre a máquina reservatório existente
corte esquemático
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A intervenção de Ruy Ohtake na área da Matarazzo é um gesto de dimensões urbanas. Uma estrutura triangular de aço inox revestida de vidro laminado, de 10 metros de base e altura, foi colocada no terreno entre a antiga edificação industrial e a avenida. Acoplada a um cilindro, ela gira em torno do próprio eixo, movida por um motor ligado a um elaborado sistema de tração e rodas. Ao mover-se, a estrutura traz para o interior desse terreno murado e abandonado as edificações e o movimento do entorno e, ao mesmo tempo, reflete a antiga construção para quem passa na avenida. Reconecta aquela área, hoje isolada, com a cidade. Articula todos esses elementos num campo urbano ampliado. Uma tubulação inflável de nylon, cheia de ar, cuja base de alimentação foi instalada no subsolo da estrutura, deveria ligar esse dispositivo ao topo de uma das chaminés, formando um arco de cerca de 80 metros de altura. Era um pórtico que não apenas demarcaria essa área de intervenção, como também seria visível desde o outro local do projeto, o moinho. Introduziu uma referência nessa região que, por sua extensão e falta de pontos de observação, impossibilita qualquer apreensão visual abrangente. Uma instalação que destaca a escala urbana de Arte/Cidade. O excesso de peso, correspondente ao ar da tubulação, impediu que ela se sustentasse e resistisse aos fortes ventos que sopram àquela altura. Eliminada a tubulação, a intervenção se concentrou na recomposição espacial do terreno, evidenciando a dinâmica hoje oculta daquela área situada entre a avenida e o rio.
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Mostra canta réquiem para espaço urbano
Marcelo Coelho Fui ver a exposição Arte/Cidade, no antigo Matadouro Municipal (largo Senador Raul Cardoso, 207). Nunca soube que havia um Matadouro Municipal nem um largo Senador Raul Cardoso. Era um sábado à tarde. O lugar estava deserto. Os eventos ali realizados – palestras, espetáculos teatrais – recebem um público enorme. Mas talvez seja melhor visitar o matadouro assim deserto.
Essa velha instalação pública desativada recusa-se a oferecer qualquer visão de conjunto. Os galpões escuros e vazados parecem ser muitos, parecem ser poucos. O visitante não conhece a lógica industrial que organizou aquele espaço. A sensação não é a de se perder num labirinto – palavra que pressupõe corredores, becos, ângulos e muros. A sensação é a de simplesmente não se saber onde está. Que lugar é esse?
É um espaço de pesadelo – e o fato de aquilo ter sido um antigo matadouro carrega associações macabras. Um labirinto seria coisa mais lógica, cerebral. O matadouro é vago, vazio, como um lugar de sonho, difícil de lembrar depois, quando acordamos.
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Às vezes, tenho pesadelos diferentes dos propostos aqui. Sonho com ruas cada vez mais estreitas, mais cheias de gente, até que elas acabam e, para seguir caminho, sou forçado a entrar dentro das casas das pessoas, atravessando salas, quartos, pulando varandas, tudo num ambiente de favela, de casbá, de cortiço.
O insólito, o unHeimlich do matadouro está relacionado com outro tipo de vivência urbana. As obras de arte ali expostas têm a ver, direta ou indiretamente, com o tema da cidade – Cidade sem janelas é o título desse projeto. Trata-se menos da cidade enquanto aglomeração, favela, trânsito, e mais da cidade como zona morta, edifícios abandonados, ruína.
Assim é que descobrimos, tão perto das avenidas que levam ao Ibirapuera, um espaço morto, o do matadouro. O edifício é reocupado por artistas, quase que ao modo de uma pajelança, de um milagre: expõe-se, podre mas vivo, como um cadáver ressurreto.
Assistimos à ressurreição de um matadouro, ato evidentemente paradoxal. Não há urubus em volta, só críticos de arte, vanguardistas e “darkettes”.
Antonio Saggese
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Lá há instalações, obras de arte, projeções de filmes, performances. Vários artistas foram convidados a participar do projeto: Arnaldo Antunes, Marco Giannotti, Carmela Gross, José Resende... De certa forma, cada um deles contribuiu para a criação de uma obra de arte coletiva. A intenção de cada autor retrai-se um pouco, ocupada pela experiência geral que absorve o visitante, a de entrar num matadouro abandonado.
Em tese, não é o matadouro, mas a cidade, o tema da cidade, o que está em discussão. Cidade sem janelas, esse o mote do trabalho coletivo, exposto com inteligência por Nelson Brissac Peixoto no catálogo da mostra.
Tento interpretar algumas das obras expostas. Marco Giannotti pegou uma sala, cobriu-a inteiramente de tinta vermelha. Fechou as janelas que a sala tinha e, numa parede sem janelas, pintou três janelas, com tinta preta. As janelas reais ficaram fechadas; as janelas pintadas existem, mas são pretas. Nega-se a estrutura original do matadouro, mas não há, nessa negação, nenhuma utopia, nem mesmo o trompe-l’œil
Eder Santos
de uma janela perfeitamente desenhada, que enganasse o espectador. A ideia é fechar o espaço, cobrindo-o (não sei se é tolo de minha parte interpretar assim) de sangue, coisa a esperar num matadouro. De todo modo, não é o trabalho que me interessou mais. Passando para outro recinto, encontramos só o chão, esburacado por Carmela Gross. Buracos no chão de cimento. Um pouco como se dissessem (a interpretação também é óbvia): não temos janelas na cidade, que nos abram para outras perspectivas; temos só buracos no chão. O efeito do trabalho é mais inquietante que o de Giannotti.
Há maior carga de emoção, a meu ver, nos dois trabalhos seguintes. Eder Santos projeta três vídeos não sobre telas, mas sobre três montes de terra. Os vídeos apresentam imagens vistas da janela de um trem. O efeito é bonito. Vemos as vistas de uma janela de trem em movimento caindo sobre a terra seca. Mudança sem sair do lugar e, como em Carmela Gross, a ditadura do chão. Já as fotografias de Antonio Saggese, em painéis suspensos no teto, mostram a vida
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urbana sob um signo de exéquias, de funeral. Trata-se de estátuas sendo carregadas, transportadas como que num ritual de enterro. O matadouro é aqui interpretado como lugar de morte dupla – morte dos que já estão mortos, morte das estátuas. Senti, entretanto, um descompasso entre as fotografias em si mesmas e a maneira como foram expostas no lugar. Não “compuseram”, por assim dizer, o espaço em que transita o visitante. Coisa que Giannotti e Carmela Gross souberam fazer. Matadouro é, de qualquer modo, o tema do vídeo de Arthur Omar. Talvez a obra mais emocionante e perturbadora da exposição. Chama-se Inferno. Dispõe, em semicírculo, televisões que narram a morte de um boi a pauladas, com chamas de fogo aparecendo o tempo todo na tela. Mais acima, perto do teto, quatro televisões mostram imagens de nuvens no céu azul.
Estamos longe da cidade e perto do matadouro. Mas o trabalho do magarefe, repetitivo, brutal (assassinar bois), ecoa em duas outras obras. A de José Resende, performance realizada com a ajuda de operários, levantando
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blocos de pedra, com a ajuda de guindaste, como se nos oferecesse à vista uma das proezas inúteis de engenharia da prefeitura; e a de Jorge Furtado, um filme que mostra gente num trabalho repetitivo ao som de um poema de João Cabral de Melo Neto.
Reservo para o final a instalação de Carlos Fajardo, a única, a meu ver, realmente “bonita”. Você entra numa sala escura e encontra uma espécie de skyline de maquete de cidade, feita só de riscos azuis fluorescentes, algo próximo a um temário de Gerald Thomas. É uma cidade sem janelas, morta, mas riscada de luzes assimétricas, como a esperar que alguma coisa aconteça – um terremoto, um King Kong, uma manhã.
Carlos Fajardo
Arnaldo Antunes soube ocupar o espaço do matadouro de maneira original, alegre, crítica. Cobriu algumas paredes com cartazes – chamados “lambe-lambes”, que anunciam nos postes e tabiques de São Paulo algum show de Tim Maia ou uma peça de teatro. Não são cartazes, em rigor, são folhas de papel, com letras pretas ou vermelhas, colocadas para avisar espetáculos sem mídia. Antunes usou esse meio para desarticular provérbios, “quem não tem cão caça com gato”, ou juntar
Arnaldo Antunes
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INTERVENÇÕES URBANAS
São Paulo, metrópole contemporânea, megacidade, está às voltas com novas situações que lhe impõem reconfiguração, num processo inevitável e incessante. Diante desse fato, Arte/ Cidade apresenta-se como um projeto de intervenções urbanas e artísticas pelo qual outras estratégias são discutidas, tendo em conta a permanente reestruturação metropolitana, mas contrapondo-se à apropriação institucional e às imposições do mercado. É assim que dependências de indústrias desativadas, um prédio antigo que foi matadouro municipal, um prédio de requintada arquitetura que foi sede de banco, entre outros bens superados em sua utilidade pela dinâmica urbana, assumem funções inusitadas por meio da intervenção. O projeto Arte/Cidade, que se vem realizando em São Paulo desde 1994, tem aqui um livro à altura de sua ousada proposta, com fotos, mapas, desenhos técnicos e textos que expõem as ideias do empreendimento e as experiências nele colhidas. Editado em parceria pelo Senac e pelo Sesc São Paulo, Arte/Cidade é mais uma contribuição dessas instituições para a reflexão sobre a metrópole paulista.
Arte/Cidade é um projeto de intervenções urbanas que se vem realizando em São Paulo desde 1994. Seu ponto de partida é a metrópole contemporânea enquanto espaço complexo e dinâmico, em permanente mutação, engendrando novas e inusitadas
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configurações urbanas. Trata-se de operações que questionam o estatuto e os proce-
INTERVENÇÕES
confronto com os processos decorrentes da globalização exige um deslocamento das
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ARTE/cidade
CIDADE ARTE/
arte/ cidade
dimentos convencionais da arte, da arquitetura e do urbanismo, na medida em que o linguagens e técnicas estabelecidas. A proposta é tomar São Paulo como um campo onde todas as questões sobre as cidades e a arte estão sendo jogadas. Quando as recentes políticas urbanas de revitalização e as formas estabelecidas de arte pública entram em colapso diante da complexidade e escalas das novas situações, Arte/Cidade se propõe a discutir novas estratégias urbanas e artísticas de intervenção em megacidades. Arte/Cidade visa realizar intervenções capazes de transcender sua locação imediata e remeter ao vasto território da megacidade e das reconfigurações globais da economia, do poder e da arte. Provocar nossa percepção para situações que não se restrinjam mais à exploração in loco, ao escrutínio visual. Intervenções que levem em consideração os processos de reestruturação metropolitana e global, mas que se contraponham à apropriação institucional e corporativa dos espaços urbanos e das práticas artísticas. Trata-se de consolidar o repertório desenvolvido pelos projetos mais recentes para o espaço urbano. É indispensável, para se operar em escala urbana, desenvolver instrumentais e procedimentos estéticos e técnicos adequados: conversão das propostas em projetos (com desenhos técnicos), equacionamento das questões técnicas (materiais, estruturais) e políticas (relações com as comunidades e poderes públicos envolvidos) colocadas para sua implantação. As experiências realizadas por Arte/Cidade estabeleceram um conjunto extraordinário de procedimentos, tanto no que se refere à escolha de situações quanto às táticas artísticas e urbanísticas empregadas. Mas essas modalidades de prática no espaço urbano também suscitam questões, por causa de suas relações com operações de redesenvolvimento urbano e com políticas de instituições ligadas à arte.
Nelson Brissac Peixoto (organizador)
Este livro reconstitui as três primeiras edições de Arte/Cidade, com o levantamento das situações urbanas, os projetos de implantação, a apresentação de algumas das propostas de intervenção acompanhadas de descrições e desenhos técnicos e os textos críticos publicados na imprensa.
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