– literatura expandida – arquivo e citação na obra de Dominique Gonzalez-Foerster ana pato
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– Prefácio – lisette lagnado
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Dedicar-se à pesquisa significa familiarizar-se com os desvios de um projeto até alcançar a versão a ser difundida na coletividade dos leitores. Para cristalizar a forma que conseguirá êxito dentro de um espaço e tempo de investigação, muitas outras ficaram no rascunho ou permaneceram em latência no campo do imaginário. Considerando que o presente livro aborda o enredo que engendra os arquivos, vale a pena retroceder um pouco e observar algumas etapas anteriores. É preciso esclarecer que esta publicação resulta de um pensamento desenvolvido em âmbito acadêmico e que, entre vários problemas levantados no escopo do mestrado da autora, a maioria das perguntas foi de fato abandonada, enquanto outras foram transformadas, filtradas e apuradas. Ana Pato pretendia examinar bancos de dados e seus efeitos na edificação de uma memória, ora entendida como humana (da ordem da biologia), ora tributária da tecnologia digital. Entre as duas, anunciou a existência de uma memória híbrida como anteparo à impossibilidade de guardar os acontecimentos do real. Soa lugar-comum reafirmar a assimetria que fundamenta as ligações pedagógicas. Se fosse mera banalidade, Maurice Blanchot não teria se referido a uma distância infinita entre A e B; ou, ainda, a uma “relação exorbitante” 1. Quando recebi as linhas gerais do projeto, era improvável supor que esse 1 “A palavra plural”. In: Blanchot, Maurice. L’entretien infini. Paris: Gallimard, 1969, pp. 4-7.
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pedido de supervisão me aproximaria de um desejo também meu. Pior: a proposta de seguir a sistematização de informações como prática artística revelaria minha (obstinada) desconfiança do universo dos software e hardware, cujo funcionamento me escapa e me domina. Os comentários acima reforçam a justeza da escolha de Dominique Gonzalez-Foerster, artista cujo processo de criação recorre a diversas mídias e é pautado por um método acumulativo de referências e homenagens a obras de cineastas, músicos e, principalmente, escritores e arquitetos. Diante da exuberância das fontes a ser analisadas, Ana Pato logo percebeu que a questão ia além da simples lógica de colecionar afinidades. Seu estudo nos ajuda a observar como as noções de apropriação e citação, que vinham carregadas de negatividade e nostalgia com o conceito de “angústia da influência” (Harold Bloom), modelo interpretativo que fundamentou um discurso hegemônico e autoritário, adquirem aqui conotações de outra natureza. Na démarche de Gonzalez-Foerster, esses procedimentos ganham uma temperatura “tropical” ao caracterizar um tipo de inventário que não se reduz a enxergar o mundo como uma grande área dividida entre gênios e seguidores, sitiados por ready-mades. A operação duchampiana do ready-made esgotou-se mais cedo do que pensam aqueles que continuam mencionando Duchamp. Desapareceu o conceito de “indiferença”. Quando tudo é mercadoria, não há mais objeto anódino a ser extraído da sombra,
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apenas produtos à espera de um deslocamento excepcional que levará seu valor a níveis estratosféricos. A “tropicalização” de Gonzalez-Foerster é, portanto, um tipo de ação que recai exclusivamente sobre referências culturais nada “neutras”, conforme exigia o gesto de seu primeiro autor. O que encontramos no lugar? Saímos desapossados da ideia de pureza que, na maior parte das vezes, acompanha os originais. No rasto da história do arquivo, as práticas documentárias tiveram um reforço conceitual nos anos 1990, com a queda real e simbólica do Muro de Berlim, cumprindo a tarefa fundamental de reconstituição de crimes políticos. O viés de Gonzalez-Foerster chega a posteriori, saturado de manipulações e interpretações: eis de novo o documento recolocado em xeque. A artista assume então a prática ficcional como deriva, na tentativa de criar uma máquina semelhante a A invenção de Morel (1940), célebre romance de Adolfo Bioy Casares. Podemos pensar também que sua manobra de reencenar fragmentos escolhidos de um passado (aparentemente) perdido atualiza os book people encontrados no final do filme Fahrenheit 451 de François Truffaut: cada um de nós, convertido em um livro que não pode ser esquecido. Esta é a esperança. Descartada a opção de um citacionismo irônico, seria o caso de afirmar que a “tropicalização” de Gonzalez-Foerster faz parte do ideário da antropofagia cultural de Oswald de Andrade? Em que medida atende ao lema “só me interessa o que não é meu”?
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Prefiro não me alongar a fim de evitar uma dobra excessiva no regime de um texto introdutório. Basta saber que o final desta leitura nos convidará a olhar com menos ingenuidade a digitalização da memória e, nas palavras de Ana Pato, a “repropor a questão do arquivo, uma vez que consegue extrapolar os limites do modelo, perverter o original, corromper as citações e fazer um uso paradoxal das fontes”. O arquivo, tanto pessoal como universal, de Gonzalez-Foerster, elenca Duras, Godard e Sebald, entre mil estratos a serem descobertos. O Brasil contribui, não por acaso, com nomes do mesmo calibre em termos de grandeza: Lina Bo Bardi, Flavio de Carvalho, Maria Martins, Oscar Niemeyer, Hélio Oiticica… – cabendo assinalar sua crescente notoriedade no panorama das teorias da influência. Nessa perspectiva, torna-se indispensável adensarmos uma bibliografia sobre uma artista cuja inserção no circuito internacional coloca em relevo a própria cultura brasileira. Na era da globalização, diminuir especificidades nacionais, em benefício da soberania dos mais fortes, é o combate por excelência dos estudos pós-coloniais. Entretanto, há de ser dito que a participação de Gonzalez-Foerster na representação de uma prática de cidadania é livre de qualquer critério baseado em vínculos de parentesco, local de nascimento ou de residência. E seu contato com o Brasil não é superficial. Antes mesmo de investir no terreno compartilhado com a residência artística do Capacete Entretenimentos, localizado no charmoso bairro histórico de Santa
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Teresa, no Rio de Janeiro, já havia inventado o conceito de Exoturismo para fazer jus a um desejo de “múltiplas identidades”. Isso fica claro na entrevista que complementa o ensaio de Ana Pato. Eu iria mais longe, arriscando que sua relação com este país (mas também com o Japão e a Índia) reúne a noção grega de filia, que indica uma amizade banhada de eros, e a ideia de afiliar-se, associar-se a uma sociedade, ou seja, adotá-la. Quero voltar agora ao contexto da presente publicação e registrar um ponto quase alienígena. Na arte da digressão infinita, um fato precisa ser reiterado sem complacência: são raros os programas de pós-graduação em arte no Brasil que incentivam a reflexão sobre a produção visual contemporânea e, quando ocorre, carecem de editoras capacitadas para disseminar o resultado de anos de “reclusão”, a fim de poder ler, pensar e escrever. Reflexões em profundidade enfrentam uma crônica falta de tempo e concentração, e a tendência é piorar. Pertenço à geração que teve de escolher entre o não tempo da academia e a necessidade de ingressar muito jovem no mercado para conquistar uma independência financeira. Hoje, esses dois tempos passaram a convergir e se sobrepor, claro que não sem prejuízo da qualidade – tema a ser debatido em outro fórum. Algo, no entanto, foi conquistado: o exercício do ensaio. Sem falsos alardes universitários, a dissertação de mestrado de Ana Pato nos leva até o cerne de uma obra que aspira a transcender o espaço expositivo para uma “literatura expandida”,
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“uma nova forma de literatura – não mais circunscrita à palavra ou exclusivamente à comunicação linguística, mas pluridimensional”. Sim, um “novo leitor” é aventado e aguardado. A maior alegria que um orientador pode ressentir não está no prefácio de uma monografia a qual ajudou a dar forma, mas reside nos momentos secretos em que, ao longo da discussão de um texto que nem era seu, teve de refrear inesperados ímpetos de se jogar também numa escrita paralela. A reflexão de Ana Pato abre um campo inédito para compreender facetas a ser exploradas na empreitada de Dominique Gonzalez-Foerster, em especial a vontade de estabelecer “novos modos de escrita”. Tomo isto para mim e deixo cada um descobrir por si outros interesses deste livro.
Lisette Lagnado é crítica e pesquisadora de arte. Foi a curadora da 27 ª Bienal de São Paulo (2006). Tem doutorado em filosofia, com tese sobre Hélio Oiticica e o Programa ambiental (Universidade de São Paulo).
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– Introdução –
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Com tantas coisas para tomar emprestado, sinto-me feliz se posso roubar algo, modificá-lo e disfarçá-lo para um novo fim1. enrique vila-matas Dominique Gonzalez-Foerster é conhecida por uma produção artística que, transitando de forma particular entre o cinema, o vídeo e a instalação, tem a potência de nos conduzir a ambientes radicalmente novos. As atmosferas que compõe evocam o sentido de distopia da paisagem e a dimensão do tempo, operando como uma forma deslocada, imersiva e, por vezes, incômoda de ficção científica. Em muitos de seus trabalhos, o recurso recorrente à apropriação – de obras de arte, de textos literários, de imagens ou de fragmentos de outros autores – sustenta um modelo próprio e, para alguns, desnorteante, de autoria. De muitas formas, o livro é material estruturante nos projetos que a artista, nascida em Estrasburgo, na França, em 1967, criou para mostras como a documenta de Kassel e o Skulptur Projekte Münster, e para espaços como a Turbine Hall, na Tate Modern, em Londres, e o Dia Art Foundation, em Nova York. Sua ligação com a literatura, contudo, transcende 1 Vila-Matas, Enrique, Intertextualidad y metaliteratura: Alocución en Monterrey. Conferência proferida na Cátedra Anagrama de la Universidad de Monterrey, México, em 1º de agosto de 2008. Texto enviado por e-mail pelo escritor em 21 de maio de 2011. (Con tantas cosas que tomar prestadas, me siento feliz si puedo robar algo, modificarlo y disfrazarlo para un nuevo fin.)
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a esfera do objeto. A forma constitutiva como articula a experimentação envolvendo o texto literário aproxima-a do método e do pensamento de autores contemporâneos que, diante das impossibilidades de um mundo onde tudo já foi escrito, exortam a cultura da citação. Uma das estratégias de Gonzalez-Foerster consiste justamente em transpor esse método para o campo das artes visuais. Ao servir-se, assim, de um dispositivo singular, sua prática prenuncia a possibilidade de um novo tipo de escrita: uma literatura que se expande para o espaço expositivo, não mais circunscrita à palavra ou à comunicação linguística, mas pluridimensional. Nessa hibridização de literatura e artes visuais, surge uma literatura expandida. Artista jovem, Gonzalez-Foerster é objeto de uma bibliografia crítica ainda insuficiente. De caráter ensaístico, esta reflexão investiga como, em sua prática, as ideias de apropriação e citação respondem a uma certa intranquilidade diante do acúmulo e da impossibilidade de criar algo novo. Nesse cenário, surge a noção de um universo convertido em biblioteca ou arquivo, onde autores contemporâneos e do passado existem simultaneamente, e onde as relações que podem ser estabelecidas entre objetos guardados – e sacramentados pela prática museológica – são tão ou mais importantes que os próprios objetos. Esta pesquisa tem como objetivo analisar estratégias na obra de Gonzalez-Foerster que podem ser identificadas com uma lógica arquivista. A hipótese, aqui, é de que as categorias de apropriação e de citação,
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conforme mapeadas pela história da arte e pela crítica literária, relacionam-se a tipos de ação em arte contemporânea que estão ligados à noção de arquivo. Para investigar a lógica arquivista em arte contemporânea, precisaremos problematizar o próprio conceito de arquivo. O embasamento teórico para uma nova formulação fundamenta-se no conceito de diagrama, postulado por Michel Foucault (19261984) e tratado por Gilles Deleuze (1925-1995) no livro Foucault (1986). Para Foucault, já não se pode mais interrogar o arquivo sem considerar o conjunto de forças que induzem e organizam as técnicas do saber – destinadas a separar, isolar, reunir, classificar e preservar documentos e objetos. Nesse sentido, o arquivo torna-se, cada vez menos, o conjunto dos discursos produzidos por uma cultura, e o jogo das leis que fundamenta a preservação ou desaparecimento dos enunciados, para assumir a forma de um diagrama, o mapa – ou os mapas sobrepostos – das relações de poder que regem essa cultura. Entende-se arquivo, então, como o conjunto dos vestígios de uma cultura, a serem analisados, no presente, pelo olhar desmistificador do “arquivista”. Por outro lado, de forma alguma a análise da obra de Gonzalez-Foerster deve caber no modelo teórico de uma lógica contemporânea do arquivo. Não se trata de encontrar um procedimento para definir um tipo de arte atual, mas de tentar descrever uma operação artística que nos permite espreitar novas possibilidades de leitura e antecipar questões prenunciadas para a arte nestas primeiras décadas do século 21.
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O período escolhido para o estudo configura-se a partir de um conjunto de desafios e de possibilidades colocados para a arte contemporânea neste início de século. Em um ambiente global de turbulência e transformação, de colapso econômico de países hegemônicos, da privatização dos espaços públicos e da globalização do mercado da arte, indagamo-nos se a arte ainda pode criar desconforto, na forma de questões, dúvidas, suspeitas.
– literatura expandida – Neste estudo, o campo no qual se dará a comparação das categorias de apropriação e de citação com o conceito de arquivo é a análise crítica de um conjunto específico de obras de Dominique Gonzalez-Foerster, produzidas entre 2000 e 2009. A apropriação é compreendida como um procedimento alegórico. Corresponde ao ato de apropriar-se de uma imagem, de um texto ou da obra de outro autor, confiscando seu significado, esvaziando-o de seu conteúdo inicial e sobrepondo uma nova autoria às autorias originais. A citação também corresponde ao ato de apoderar-se de coisas alheias. Seu método, porém, pressupõe a referência à fonte original. É em nome de uma cultura da citação que Gonzalez-Foerster se utiliza da citação corrompida 2, na 2 Termo associado, aqui, à forma como Enrique Vila-Matas apropria-se das citações.
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qual o ato de citar assume as características da apropriação e torna-se uma estratégia para perverter, reduzir ou agigantar o original. Para Gonzalez-Foerster, é na expressão literária que as reaparições de imagens e citações de outros autores se materializam; em especial, ela se remete à obra de dois escritores emblemáticos da cultura e da subjetividade contemporâneas: o norte-americano J. G. Ballard (1930-2009) e o espanhol Enrique Vila-Matas (1948-). Nesse sentido, há todo um paralelo a explorar entre o uso da citação na literatura de Vila-Matas e a construção de ambientes na literatura de ficção científica de Ballard – e os procedimentos de apropriação nas artes visuais. Ballard dedicou-se a produzir uma crítica rigorosa da sociedade contemporânea e a esmiuçar os efeitos nocivos da tecnologia na cultura. Sua ficção não acontece em um futuro imaginário, mas em um presente profético. A intuição aguçada deste autor para detectar uma espécie de doença do homem contemporâneo levou-o a abordar temas como a violência urbana, a catástrofe ecológica, o consumismo, o império das grandes corporações e a decadência moral da sociedade americana. Nos últimos anos, Ballard tornou-se um escritor cult, e despertou o interesse de artistas, cineastas e intelectuais atraídos por sua mitologia do futuro e pelas paisagens distópicas da modernidade que habitam suas obras, crivadas de piscinas vazias e hotéis abandonados.
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– capítulo 1 – A lógica arquivista em Dominique Gonzalez-Foerster
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Vejo-me como uma escritora fracassada mas, ainda assim, alguém com uma fantasia intensa, um desejo obsessivo de escrever 1. Para tratar da questão do arquivo em arte contemporânea, entende-se que ele representa o lugar onde se encontram e estão ligados autores, textos e obras, cada um possibilitando aproximações e combinações múltiplas. O modelo de arquivo que se baseia em classificações fechadas e teleológicas, e que se configura como uma infinidade de documentos empilhados, porém, já não pode mais representar o lugar onde objetos postos em vizinhança ganham sentido. Dar sentido, afinal, também significa corromper o pensamento de um autor, apropriar-se de suas frases, interpretá-las de acordo com interesses próprios. No ato de aproximar coisas distintas, estabelecem-se outros sentidos, alheios ao original. A tentativa de situar a lógica arquivista na produção contemporânea, portanto, esbarra necessariamente na possibilidade de uma reconfiguração do próprio modelo de arquivo. A problemática tratada aqui fundamenta-se na hipótese de que, no âmbito da arte contemporânea, o uso das categorias de apropriação e citação relaciona-se a uma lógica arquivista. Para avaliar a presença 1 Gonzalez-Foerster, Dominique. Dominique Gonzalez-Foerster: chronotopes & dioramas. Organizada pelo Dia Art Foundation, Nova York, na Dia, Hispanic Society of America, 23 de setembro de 2009 a 27 de junho de 2010, p. 53. (I see myself as a failed writer yet still someone with a strong fantasy, an obsessive desire to write.)
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desses mecanismos e de seus desdobramentos nas obras de Dominique Gonzalez-Foerster, tomaremos para análise, neste momento, cinco delas: Tapis de Lecture (2000), Park – A Plan for Escape (2002), Roman de Münster (2007), th.2058 (2008) e chronotopes & dioramas (2009). Todas produzidas na primeira década do século 21, as escolhas reafirmam o interesse em discutir o presente.
– tapis de lecture – A instalação Tapis de Lecture (2000) reúne dois elementos recorrentes na obra de Gonzalez-Foerster, ambos essenciais à compreensão do processo investigado aqui: a apresentação do objeto-livro no espaço expositivo e o desejo de projetar um “lugar” para a leitura. A obra foi criada para a coletiva Voilà! Le monde dans la tête, do Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris. A curadoria de Suzanne Page, Beatrice Parent, Laurence Bosse e Hans Ulrich Obrist, com cerca de cinquenta artistas de vários países, abordava memória coletiva e histórias pessoais a partir de práticas relacionadas a ideias de acumulação, inventário, coleção, arquivo, enciclopédia. A instalação de Gonzalez-Foerster era composta por um tapete quadrado e por livros que a artista empilhava em duas de suas extremidades. Os títulos escolhidos integram sua biblioteca e constituem algumas de suas referências fundamentais; são livros de ficção científica, romances policiais, literatura
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fantástica, ensaios críticos, quadrinhos, incluindo obras de autores como J. G. Ballard (1930-2009), Philip K. Dick, Jorge Luis Borges (1899-1986), W. G. Sebald e Adolfo Bioy Casares, entre outros. A disposição dos livros no tapete corresponde à proposta de biblioteca da artista: as pilhas de livros não são organizadas de acordo com parâmetros de classificação, mas segundo uma outra lógica, que aproxima atmosferas, imagens, sensações. Neste empilhamento, Gonzalez-Foerster organiza seu arquivo de ideias; o livro, para ela, é material de construção. Nesse sentido, é sintomático que um de seus primeiros trabalhos, ainda no âmbito da escola de belas-artes, tenha sido construir uma prateleira com livros no lugar das colunas de tijolos 2. Tapis de Lecture é de uma simplicidade quase desconcertante. A curadora Lisette Lagnado, que desde 2002 estuda a forma como as diversas proposições da artista se concatenam, propondo uma ordem temporal não linear 3 para abordá-las, descreve o trabalho da seguinte forma: Por isso eu talvez pudesse arriscar e chamar mais uma vez a atenção para o Tapis de Lecture [Tapete de leitura, 2000], por sua capacidade fantástica de levar leitores a demolir os muros. Ler no chão, em cima 2 Bibliothèque, Dominique Gonzalez-Foerster, 1985, Accademia di Brera, Milão, Itália. 3 Lagnado, Lisette. “Turbineville: shadow && frayeur”. In: Morgan, Jessica (org.). th.2058. Londres: Tate, 2008, v. 01, p. 107. Ver nota de rodapé da versão em português revisada em março de 2011, especialmente para a edição nº 18 da revista Concinnitas.
– Dominique Gonzalez-Foerster – Bibliothèque, 1985. Madeira, livros, tijolos, 106 × 150 × 22 cm Vista da instalação na galeria Esther Schipper, Berlim, 2012 ©Tony Izaaks
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de um fragmento de tecido, é um convite à leitura na ágora, viagem de todas as viagens; condensa revoluções tecnológicas e transporta o mago Gutenberg aos confins das Mil e uma noites, onde oralidade e vida se conjugam no mesmo tempo 4. Em Tapis de Lecture, Gonzalez-Foerster enfrenta a dificuldade de criar, no espaço expositivo, um ambiente que exorte, como gostaria, à vivência do tempo da leitura. O público passa pela obra e não consegue interagir com ela; escolher um livro e deitar-se no tapete para lê-lo são coisas que não acontecem. A questão da ilegibilidade e do vazio, que incomoda a artista, a perseguirá ao longo de sua produção. Dez anos mais tarde, a artista teria uma experiência diversa ao projetar um espaço de leitura na obra Desert Park (2010), que criou para o Instituto Inhotim. A instalação ambiental é um pequeno deserto no meio da floresta tropical onde se localiza o museu. A paisagem, artificial e distópica, inspira-se em Ballard. Por um morro de areia branca, espalha-se uma coleção de reproduções de pontos de ônibus de concreto; nos bancos, foram deixados livros, a maioria de ficção científica. No parque, o público senta-se para ler; é como se a sensação de estranhamento provocada pelo ambiente reforçasse o desejo de leitura – e/ou como se a ficção científica de Ballard pudesse ser sentida no espaço expositivo de Gonzalez-Foerster. 4 Lagnado, op. cit., pp. 113-115.
– obras (2000-2009) –
– Dominique Gonzalez-Foerster – chronotopes & dioramas, 2009 Detalhe da instalação no Dia at the Hispanic Society, Nova York ©Dominique Gonzalez-Foerster
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– Entrevista com Dominique Gonzalez-Foerster – Iniciada em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, em 22 de janeiro de 2010, e concluída em fevereiro de 2012, por skype.
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No catálogo de th.2058 (2008), você afirma, em entrevista a Jessica Morgan: Estamos tratando de como confrontar o arquivo, a arte e a memória, mas, nesta exploração, pode surgir um relacionamento diferente com o futuro 1. Este é um dos pontos que me interessam em seu trabalho: pesquisar o arquivo como possibilidade ou desejo de futuro e, a partir daí, abordar a relação de poder que há nas escolhas de arquivamento. Discutir a impossibilidade de nos desvencilharmos dos traços de autoria, das narrativas pessoais, das citações corrompidas – como define Enrique Vila-Matas – e da fronteira entre ficção e realidade, na formação de um arquivo. Lendo O mal de Montano (2003), perguntei-me se você não teria sofrido, em th.2058, do mesmo mal que o personagem de Vila-Matas. Sim, é isso mesmo. Esse livro identifica completamente meus sintomas, e que não são só meus ou do Vila-Matas. São também do Jean-Luc Godard. Há muitos casos de mal de Montano, que é a possibilidade do acesso a um arquivo, mas também a ideia das multiple identities, da disorder. Antes do Vila-Matas, o primeiro autor que conseguiu identificar isso foi Borges; nesse sentido, somos todos filhos de Borges. Na maneira de pensar o texto e na 1
Gonzalez-Foerster, Dominique. th.2058. Publicado sob encomenda do Tate Trustees, por ocasião da exposição na Tate Modern, Londres, 13 de outubro de 2008 a 13 de abril de 2009, 2008, p. 188. (We are dealing with how to cope with the archive, art and memory but through this exploration a different relationship to the future can appear.)
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questão do autor, para mim este é o mal do século 21. E acho que vai ficar cada vez pior. O primeiro livro que li do Vila-Matas foi Paris não tem fim (2003). Gostei muito. Estava num período em que não tinha uma boa relação com Paris e, de alguma forma, por meio desse livro, consegui vê-la com outro olhar. A cidade fez mais sentido para mim. Senti-me muito próxima da maneira como ele propõe conectar lugares, textos, autores, pessoas. Como ele monta um mapa que é parte intelectual, parte lugares, ruas e onde também há muitas coincidências. Fui convidada para uma mostra na Espanha e pedi ao curador que convidasse o Vila-Matas para participar. Lembro que chegamos juntos ao hotel, totalmente sincronizados, e, naquele momento, começou um diálogo que acho que era inevitável. Claro que temos muitas diferenças, ele é um homem de outra geração, de outro lugar. O título do texto de Vila-Matas, “Towards a Culture of the Quotation in a Context of Catastrophe”, no catálogo de th.2058, é muito interessante. Escrevi para ele falando da exposição e convidando-o a escrever um texto. Sempre nos comunicamos cada um em sua língua: escrevo em francês, e ele, em espanhol. Mandei um e-mail explicando o que ia acontecer na exposição, falando das citações. Ele traduziu para o espanhol essa parte do meu e-mail, e a incluiu em sua resposta. Não entendi que eu mesma tinha escrito aquela parte do e-mail dele.
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Gosto de seu método. Ele trabalha com o futuro, descreve uma situação que vai acontecer antes que ela aconteça, misturando os dois momentos. Sempre quis escrever, mas não consegui. Para mim, a forma de escrever de Vila-Matas é muito clara. Entendo como ele combina a leitura, o déplacement, o encontro. Sinto-me gêmea de sua forma de construir o texto e da ideia de que tudo é material, cada encontro, cada leitura. E de que, no final, é tudo um grande trabalho de edição, de montagem. O personagem Montano diz que (…) um crítico trabalha no interior dos textos que lê para construir sua autobiografia 2. O interessante é que, fazendo isso, constrói-se o futuro também; não é só um movimento para o passado. Quando era criança, interessava-me por biografias. Acho que seria bom se ensinassem biografias nas escolas, para mostrar as possibilidades de vidas que existem. Ler sobre a vida de Marie Curie ou Andreas-Salomé, por exemplo, foi importante para encontrar modelos femininos. A leitura das biografias foi, para mim, o início da imaginação, o início de uma vida de experiências, mais que a arte ou as artes visuais. Quando decidi fazer a escola de belas-artes, não me sentia pintora, escultora, não tinha claro se queria ser artista. Mas vi um terreno experimental, uma possibilidade de experimentação 2
Vila-Matas, Enrique. O mal de Montano. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 107.