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SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO Administração Regional no Estado de São Paulo Presidente do Conselho Regional Abram Szajman Diretor Regional Danilo Santos de Miranda Conselho Editorial Ivan Giannini Joel Naimayer Padula Luiz Deoclécio Massaro Galina Sérgio José Battistelli Edições Sesc São Paulo Gerente Iã Paulo Ribeiro Gerente adjunta Isabel M. M. Alexandre Coordenação editorial Cristianne Lameirinha, Clívia Ramiro, Francis Manzoni, Jefferson Alves de Lima Produção editorial Thiago Lins Coordenação gráfica Katia Verissimo Produção gráfica Fabio Pinotti, Ricardo Kawazu Coordenação de comunicação Bruna Zarnoviec Daniel

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LUIZ CARLOS MACIEL

CLAUDIO LEAL (ORG.)

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© Edições Sesc São Paulo, 2022 © Luiz Carlos Maciel, 2022 © Claudio Leal, 2022 Todos os direitos reservados Preparação Tulio Kawata Revisão Ísis De Vitta, José Ignacio Mendes Capa e projeto gráfico André Hellmeister / Estúdio Collages Diagramação Thais Ventura

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Un21

Underground / Luiz Carlos Maciel; organização Claudio Leal. – São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2022. – 180 p. il.: reproduções facsimilares. Inclui cronologia ISBN 978-65-86111-55-2 1. Cultura Brasileira. 2. Contracultura. 3. Luiz Carlos Maciel. 4. Biografia. I. Título. II. Maciel, Luiz Carlos. III. Leal, Claudio. CDD 301.2 Ficha catalográfica elaborada por Maria Delcina Feitosa CRB/8-6187

Edições Sesc São Paulo Rua Serra da Bocaina, 570 - 11º andar 03174-000 - São Paulo SP Brasil Tel. 55 11 2607-9400 edicoes@sescsp.org.br sescsp.org.br/edicoes /edicoessescsp

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O ensaio enquanto forma literária se define por sua natureza fragmentária. No lugar de pretensões totalizantes, esse tipo de relato converte os leitores em confidentes do eu narrativo. Ao seguirmos na leitura, é como se caminhássemos pelas ruas de uma cidade familiar ao lado de alguém que vai relatando suas percepções, associando pensamentos e lembranças que variam ao sabor dos caminhos que, aos poucos, se abrem. Nesses percursos, quase sempre enunciados em primeira pessoa, o conhecimento articulado é da ordem do específico, do pessoal. Guiado pelos textos de Luiz Carlos Maciel, um dos maiores expoentes da contracultura nacional, o itinerário cronológico deste livro nos leva aos espaços subterrâneos e luminosos das artes cênicas, da música, da filosofia — da cultura, em suma — na segunda metade do século XX. Os ensaios nascem de pessoas, obras e lugares que compuseram a vida do autor, como os palcos do Teatro Oficina, as películas do Cinema Novo brasileiro, a cena musical da Tropicália ou, num sentido mais amplo, o espírito do tempo de Woodstock. Em sua maioria, os textos foram originalmente publicados em periódicos fundamentais para a história do jornalismo brasileiro, como o Última Hora, O Jornal e a coluna "Underground" do Pasquim, que empresta o nome à antologia.

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EXPERIÊNCIAS DO DESBUNDE Ao abranger uma multiplicidade de temas, que cobrem desde o lançamento de um LP de Gil até reflexões acerca da relação entre Heidegger e os hippies, por meio desses estilhaços que refletem a experiência de pensamento de Maciel, assiste-se à construção do panorama designado por alguns historiadores como Pós-modernidade. Saltam à vista características próprias à produção cultural dessa conjuntura histórica, como a recusa de distinções entre alta cultura e cultura popular, o interesse por modelos civilizatórios distintos do ocidental e a ponderação sobre as estratégias do mercado para absorver, quase instantaneamente, as investidas contra o establishment — ainda que sob a forma de simulacros, como define o autor. Tais fatores fazem com que essas reflexões, para além de apresentar identidade com o tempo em que foram escritas, guardem, concomitantemente, profunda atualidade, na medida em que as principais questões que inquietavam a geração dos anos 1970 permanecem atuantes e talvez ainda mais urgentes hoje. Nesse sentido, ao nos depararmos com reminiscências da Guerra Fria, com ameaças às democracias, às liberdades, e tantos outros perigos contra os quais a contracultura buscava respostas, a edição desta obra representa um duplo ensejo. Em primeiro lugar, possibilita a divulgação da produção intelectual de um pensador de relevo. Em segundo, oferece ferramentas para se considerar o presente segundo um viés histórico crítico, perspectiva que caracteriza a ação sociocultural do Sesc, instituição comprometida, desde 1946, com a construção de uma sociedade mais igualitária por meio da educação, da promoção das artes e das humanidades. Danilo Santos de Miranda Diretor do Sesc São Paulo

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SUMÁRIO

MACIEL ­— Caetano Veloso // 11 NOTA DO ORGANIZADOR // 13 INTRODUÇÃO // 15 MUNDO SEM PROMESSAS // 24

56 // A QUESTÃO DO SEXISMO/ ATAQUE E CONTRA-ATAQUE/ LIVING THEATRE NA CADEIA/ JIM MORRISON MORTO/ MORTE PELA BOCA

HIPSTER OFF-BROADWAY // 28 DIALÉTICA DA VIOLÊNCIA // 30 A VOLTA DE OSWALD DE ANDRADE // 37

57 // TIMOTHY LEARY/ ABBIE HOFFMAN/ JERRY RUBIN/ GILBERTO GIL/ BOB DYLAN 59 // A MORTE DO LIBERAL 60 // POLÍTICA

O CASO QORPO-SANTO // 39 60 // MUITO LOUCO, BICHO CAETANO E O FASCISMO DE ESQUERDA// 42 É PROIBIDO PROIBIR // 43 NA SELVA DAS CIDADES // 44 JÚLIO BRESSANE – FAZER CINEMA É MODO DE FAZER POLÍTICA // 45

63 // FASCISMO NO UNDERGROUND 64 // PAULO FRANCIS 65 // QUESTÃO TEÓRICA 66 // CABELO 67 // A CULTURA DA BOMBA

GILBERTO GIL – SEU ÚLTIMO DISCO É BOM DEMAIS // 46 REVOLUÇÃO SEXUAL // 47 O JOVEM BRECHT // 48 MARILYN MONROE // 49

69 // MARTIN HEIDEGGER 71 // CONSELHOS A MIM MESMO 72 // JOHN LENNON E A NEUROSE 73 // CAETANO, MEU SANTO

A ESQUERDA PORNOGRÁFICA I // 50

74 // CAETANO VELOSO

A ESQUERDA PORNOGRÁFICA II // 51

75 // JANIS JOPLIN

A ESQUERDA PORNOGRÁFICA III // 52 CANNABIS SATIVA // 53

76 // RICHIE HAVENS 78 // CADERNO DE IMAGENS

VOCÊ ESTÁ NA SUA: UM MANIFESTO HIPPIE// 54 ANTIUNIVERSIDADE // 55

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JIMI HENDRIX // 102 RONNIE LAING // 104 QUAL É A TUA? // 105 NORMAN O. BROWN // 106 NORMAN MAILER // 111 KEN KESEY // 115 O FRACASSO DA CONTRACULTURA // 116 WOODSTOCK: O FILME // 117 O SOM LIVRE DE MACALÉ // 119 OS NOVOS BAIANOS // 120 GAL // 120 MARIA BETHÂNIA // 121 ENCRUZILHADA DA CONTRACULTURA // 122 FEMINISMO SEGUNDO YOKO // 123

136 // POLÍTICA TAOÍSTA 137 // AS SETE LÍNGUAS DE DEUS 138 // ALÉM DA TEOLOGIA 140 // HERMANN HESSE 141 // O PODER DO JOGO 143 // FOUCAULT: ANTIJURISTAS? 145 // LIÇÕES DOS ANOS 60 146 // LEMBRANÇA DE TORQUATO NETO 147 // A RESPOSTA HIPPIE AO DESENCANTO DE HEIDEGGER

O MESTRE NEGATIVO // 124 A ONDA HITLER // 128

149 // PHILIP K. DICK, O GÊNIO DA FICÇÃO CIENTÍFICA

GURU DO MUNDO OCIDENTAL // 129

150 // MEMÓRIAS DO FUTURO

CHARLIE PARKER VIVO // 131

158 // LISTA DE TEXTOS E PUBLICAÇÕES ORIGINAIS

VIGÊNCIA DE KRISHNAMURTI // 132 160 // O TAO DE MACIEL­— Claudio Leal DON JUAN // 133 166 // CRONOLOGIA ROCK GULCHER // 134 175 // AGRADECIMENTOS 177 // LIVROS DE LUIZ CARLOS MACIEL 178 // SOBRE O ORGANIZADOR

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MACIEL

Luiz Carlos Maciel é uma figura única no panorama intelectual brasileiro. Conheci-o quando ele dirigia espetáculos na Escola de Teatro da Universidade da Bahia. O primeiro trabalho dele a que assisti foi um espetáculo que reunia três peças em um ato de Yukio Mishima, traduzidas por Clarice Lispector, em que era assistente e intérprete do diretor, o estadunidense Herbert Machiz. Em seguida, ele dirigiu o poema dramático Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, para o palco do Teatro Santo Antônio, no bairro do Canela, pequena e bem equipada sala de espetáculos da Escola. Antes, tinha trabalhado como ator num curta enigmático de Glauber Rocha, chamado A cruz na praça, em que ele, lindíssimo, era sexualmente assediado por um passante (interpretado por Anatólio de Oliveira, outro ator da Escola) em frente ao cruzeiro de São Francisco, na região do Pelourinho. Gaúcho, tinha vindo para a Bahia atraído pela ousadia cultural de Glauber. Escreveu livros sobre autores fora do cânone da esquerda lukacsiana. Foi ele quem me chamou para escrever no Pasquim, no aeroporto de onde eu estava partindo para o exílio. Mandei sempre todos os textos para a casa dele. Pouco depois, Maciel iniciava uma coluna que seria voz dissonante no mundo ipanêmico do semanário. Vindo de uma esquerda existencialista sartriana, os temas e as experiências da contracultura, movimento espontâneo e internacional nascido na segunda metade dos anos 1960, o atraíram e ele passou a ser o guia informativo daqueles que, como ele, se inclinavam para uma mudança radical do estar no mundo, em vez de seguir os esquemas da vulgarização do marxismo. Neste livro, podemos acompanhar suas observações das obras de Marcuse, de Norman O. Brown, de Timothy Leary, de Castaneda, entre outras coisas, inclusive nossas estripulias tropicalistas. Ele sempre o fez de modo claro e direto, mas muito pessoal. Nunca ninguém defendeu teses irracionalistas em estilo tão calmamente lógico. Maciel nunca abandonou a esquerda, o que, a meu ver, torna seus argumentos mais complexos e fortes. Hoje que vivemos num mundo em que, com a queda do Muro de Berlim, caíram os princípios do comunismo e, com a crise dos subprimes estadunidense, caíram os princípios do capitalismo liberal, nada é mais oportuno do que ler o que pensou e vem pensando esse autor docemente desaforado. Caetano Veloso

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Luiz Carlos Maciel, em 2016.

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NOTA DO ORGANIZADOR

Esta antologia de Luiz Carlos Maciel (1938-2017) abrange a contracultura brasileira e internacional. Nova consciência, A morte organizada e Negócio seguinte, suas obras mais conhecidas, não incorporaram ensaios aqui reunidos sobre Qorpo-Santo, Oswald de Andrade, Glauber Rocha, José Celso Martinez e o Teatro Oficina, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tropicália e Living Theatre, entre outros temas. No início dos anos 1960, os textos de Maciel revelavam anseios de renovação social e estética, mas sua inflexão contracultural ficou mais nítida a partir de 1967, o ano da erupção tropicalista. A coletânea Underground procura corresponder à diversidade do olhar do principal ensaísta da contracultura brasileira. Reintegrar uma parcela de seu pensamento teatral esteve ainda entre as nossas preocupações. No Rio de Janeiro, Maciel escolheu o texto introdutório e acompanhou boa parte da pesquisa. Morreu em 9 de dezembro de 2017, sem ver seu desfecho. Definido pouco antes de sua morte, o título evoca a sua coluna no Pasquim, “Underground”, a grande arena de ideias de artistas, pensadores, poetas e agitadores do ciclo da contracultura. Nesta seleção, comparecem também seus textos no Jornal do Brasil, Correio da Manhã, Última Hora, O Jornal, Flor do Mal, JA (Jornal de Amenidades), Folha de S.Paulo e Bravo!. O frescor de suas intervenções de juventude seria preservado nos ensaios da maturidade. Ainda confiante na energia histórica dos rebeldes dos anos 1960 e 1970, Maciel desejava que uma antologia ampla de seus textos inspirasse futuras contraculturas, em tempos de ferocidade conservadora. Três profissionais das Edições Sesc merecem um agradecimento especial. Thiago Lins, especializado no mundo cultural dos anos 1960, contribuiu com valiosas observações. Isabel Alexandre e Cristianne Lameirinha demonstraram eficiência e sensibilidade no curso da organização deste panorama crítico. Claudio Leal

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INTRODUÇÃO

Os textos deste livro, em sua maioria, foram escritos há mais de cinquenta anos. O mundo, pelo menos em seus aspectos superficiais, era bem diferente. Não havia computador pessoal, internet, telefone celular, CD, DVD, televisão a satélite e por cabo, as variadas tecnologias digitais de hoje, clones etc. Entende-se, geralmente, que experimentamos um grande progresso científico em função desses novos brinquedos. Contudo, deve-se considerar que havia outras coisas que sumiram, algumas inexplicavelmente. Por exemplo: viagem à Lua. Tínhamos assistido pela televisão, em 1969, a uma viagem à Lua, com desembarque, transmissão direta e tudo mais. Não dá para entender por que nunca mais aconteceu. A Nasa passou a se contentar com passeios dos tais ônibus espaciais, alguns inclusive bem desastrados e todos bem menos espetaculares. Como é sabido, não se foi mais à Lua – e, ao grande primeiro passo da humanidade, anunciado pelo astronauta que caminhou na sua superfície, não se seguiu sequer um segundo. Alguns descrentes dizem até que a tal viagem não passou de um programa de televisão, encenado em estúdio, que enganou as multidões, a exemplo do programa radiofônico Guerra dos mundos, de Orson Welles, ainda nos anos 30 do século passado. Está certo, portanto, que, de lá para cá, a ciência e a tecnologia tenham avançado. Heidegger diz que esse avanço caracteriza o nosso momento histórico e pode levar perfeitamente à destruição da civilização ocidental. Mas tudo bem, dizem que foi avanço, foi avanço. Entretanto, não se pode dizer o mesmo em relação a política, vida social, saúde psicológica, comportamento, liberdade interna e externa, crescimento espiritual etc. Aqui, não houve avanço nenhum. Em tais aspectos de nossa existência, que têm mais a ver com a possível felicidade que ela possa oferecer, não se pode dizer que tenha havido algum progresso significativo. A rigor, podemos até concluir que vivemos uma era de decadência como nunca havia sido experimentada antes. Contudo, como dizem os hindus, uma das principais características de Maya, a ilusão, é fazer parecer que as coisas estão piorando sempre... Não tem jeito. Bem, nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Há, provavelmente, em alguns setores, um nível de consciência mais evoluído, considerando-se muitos preconceitos tradicionais que resistiam obstinadamente ainda nos anos 1970. Há uma consciência mais ampla em matéria de saúde individual, ecologia coletiva, um comportamento mais livre também. O tabu da virgindade para as mocinhas praticamente desapareceu, drogas mais suaves como a maconha não parecem mais tão demoníacas, as opções religiosas se ampliaram, embora não necessariamente para patamares mais altos da consciência etc. Mas o nível geral da alienação, no dizer de Marx, ou o esquecimento

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do ser, no de Heidegger, que é o fenômeno dominante de nossas sociedades, esse é tão alto quanto nos anos 1970, ou mais, e – o que é pior – bem mais sutil. Conforme algumas das mais brilhantes distopias da science fiction, a grande ameaça totalitária é o domínio das máquinas. Mas isso é apenas uma metáfora. As máquinas fatais poderão vir a ser os próprios seres humanos coisificados, robotizados e serializados. Não: não alcançamos a felicidade. Estávamos mais perto dela nas décadas abertamente revolucionárias da juventude de minha geração, apesar da violência das repressões externas e internas que então caracterizavam a experiência de estar vivo. Havia um instinto saudável que exigia a transformação, que queria mudar o mundo e a vida em todos os níveis. A primeira manifestação desse instinto foi política mas, em seguida, ele alcançou o comportamento, a postura existencial e a própria dimensão espiritual da experiência nesta vida. Os primeiros textos desta coletânea foram escritos num momento de transição, de passagem de uma ênfase na política para uma consideração existencial mais ampla. O impacto inicial da contracultura, ainda no final dos anos 1960, havia já se manifestado, mas não fora, contudo, assimilado mais profundamente. Assumo logo uma postura defensiva pelo simples fato de ter me interessado pela contracultura. Não se esperava isso de mim. Afinal de contas, eu era um jovem intelectual de esquerda. O que os textos revelam é que eu preferia, no final das contas, em matéria de intelectual, ser mais jovem do que de esquerda. O confronto com o imperialismo econômico cede, então, ao confronto mais ameaçador com a ciência, a tecnologia e a indústria. A contracultura é vista, nos termos que usei, como antídoto, remédio, às ameaças denunciadas, não pelo marxismo, mas por Heidegger, para dar uma ideia da questão. O cerne da discórdia é a maneira adequada de ver a Razão humana enaltecida, depois de Hegel, por Marx e seus descendentes – e desdenhada pelos hippies. O irracionalismo, segundo o influente György Lukács, era o grande pecado, o portão do inferno. Mas o julgamento intelectual era incapaz de neutralizar a magia dessa nova maneira, não de pensar, mas de sentir a realidade que se apresentava. Embora eu tente fundamentar o fato de levar a contracultura a sério, acenando com predecessores no existencialismo e na psicanálise, estabelecendo a saúde psíquica e o exercício da liberdade como metas supremas, o que realmente seduzia nela era a aventura pura e simples. À prudência iluminista, eram preferíveis os riscos de um pensamento romântico, selvagem, mágico, surpreendente. Na verdade, viver num mundo feito de tantos mistérios tinha muito mais graça do que viver no que já se conhecia, regido pela Razão, e que não tinha graça nenhuma. Relendo esses textos, verifico que eu experimentava uma espécie de necessidade de dar uma satisfação razoável aos meus companheiros de visão política por ter simplesmente ampliado a minha própria visão. Digamos que eu estava mudando de turma, mas queria evitar uma ruptura com meus tradicionais camaradas. Tinha uma motivação dupla: a primeira era estritamente pessoal, afetiva, mas a segunda já envolvia uma racionalização que via neles as conversões mais fáceis e imediatas. Nem sempre eu

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tive razão nessas últimas previsões, mas isso não abalou minha postura. Eu não queria o desacordo e o confronto, mas uma harmonia superior. Para a grande maioria, o fator novo, revelador da nova postura, era sem dúvida o rock. Ou, pelo menos, é preciso reconhecer que, em termos de influência imediata, o rock disputava a primazia com as drogas. Eu era – e continuo sendo, até hoje – um jazzófilo típico; para mim, sempre foi Deus no céu e Duke Ellington na terra. Mas o rock era o hino da nova postura e eu tive de simplesmente aderir – o que era raro entre os jazzófilos, que, em geral, defendiam a “música” em face do “som”. Justifiquei-me, aos meus próprios olhos, primeiro com a qualidade melódica dos Beatles e com o fervor dos Rolling Stones, e finalmente muito com o virtuosismo de Jimi Hendrix, o maior gênio do rock, que sempre considerei um legítimo bluesman. Como, também, o segundo roqueiro mais simpático da minha lista – Santana. Em muitos textos há exortações, considerações, defesas... No dedicado a Norman O. Brown, decido assumir a indulgência de uma reflexão de natureza bastante acadêmica: foi um exercício deliberado. Mas não foi satisfatório para mim próprio e achei que não tinha mesmo jeito para prosa acadêmica. Os textos, em geral, exortam ao abandono da Razão, responsabilizada por tudo que deu errado, já que sempre reclama o mérito por tudo que aparentemente deu certo. Os sentimentos enaltecidos são a sede por aventura e a perplexidade filosófica; eram eles, certamente, que nos animavam no limiar da experiência com a contracultura. A ameaça de um holocausto nuclear impressionou meu espírito desde a época em que estudei nos Estados Unidos, no começo dos anos 1960, ou seja, no auge da Guerra Fria. Lembro que, se um barulho mais forte me acordasse no meio da noite, eu pensava logo que podiam ser os russos chegando, ou bombardeando, talvez com uma bomba H de não sei quantos megatons. Um ensaio de Günther Anders, “Reflections on the H Bomb”, publicado na revista Dissent, teve um impacto que me levou a meu próprio ensaio “A bomba e o horizonte de uma geração”, no qual eu repetia várias de suas reflexões. Ele escreve: Desde que estamos na posição de impor uma destruição absoluta de nosso semelhante, temos poderes apocalípticos. Nós somos o infinito. [...] Como somos os primeiros homens com o poder de causar um cataclismo planetário, somos também os primeiros a viver sob tal ameaça. Como somos os primeiros Titãs, somos também os primeiros anões ou pigmeus, ou como se quiser chamar seres como nós que nos tornamos mortais, não apenas como indivíduos, mas como coletividade. [...] Todos os homens são mortais. Todos os homens são extermináveis. Mas o que pode ser exterminado hoje não são simplesmente todos os homens, mas a própria humanidade como um todo. Se a humanidade for aniquilada, especula Anders, não restará memória em nenhum ser vivo, mergulhando toda existência nas trevas, como se nenhum império tivesse jamais existido, nenhuma ideia, nenhuma luta, nenhum amor, nenhuma dor,

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nenhuma esperança, nenhum consolo, nenhum sacrifício; tudo teria sido absolutamente em vão. E o pior é que tal situação gera uma absoluta indiferença moral pela destruição em massa, porque há um verdadeiro abismo entre nossos poderes letais e nossa capacidade emocional de nos sentirmos responsáveis por nossos próprios atos. Um homem que mata outro sente-se culpado; um homem que bombardeia uma cidade, porém, não se sente responsável pelas vítimas do bombardeio, mesmo mulheres, velhos e crianças; o homem que aniquilar a humanidade, o fará na mais convicta inocência. Hoje não se discute mais a possibilidade de extermínio absoluto da humanidade, mas ela existe, até mais do que nunca. Supomos que, de alguma maneira, isso nunca acontecerá. Mas é uma ilusão acalentada para não termos de encarar a probabilidade dessa possibilidade. Tal era, entretanto, na época, a perspectiva aparentemente realista que conduzia ao horizonte da geração. Devia-se esperar o pior; era, portanto, absolutamente necessário que se tomassem providências radicais. Em ampla medida, a contracultura foi uma resposta à ameaça de um holocausto nuclear que poderia excluir a Terra da lista de planetas habitados. Um amigo meu declarava que os dois eventos fundamentais do século XX eram a bomba atômica e o ácido lisérgico – “a ameaça e o remédio”, ele especificava. “Numa certa medida, o underground aconteceu espontaneamente em toda parte. Era simplesmente o que você podia fazer no mundo da bomba H, se você fosse, por natureza, criativo e preocupado com a humanidade como um todo”, escreveu Jeff Nuttall, autor de um dos primeiros estudos da contracultura, que tem por título Bomb Culture. Não é de admirar que, em tais circunstâncias, tanta gente ficasse muito louca. Na verdade, simpatizávamos com a loucura; para nós, era normal. Mais: de certa maneira, a exemplo de tantas sociedades primitivas, a psicose se apresentava como uma doença sagrada. Muitas das melhores mentes e mais doces almas da geração conheceram bem o universo bizarro das instituições psiquiátricas. Embora eu próprio nunca tivesse sido internado – e provavelmente não serei mais, acho que eles perderam a oportunidade... –, ouvi muitas conversas entre ex-internos em hospícios e sanatórios, alguns, amigos íntimos. Eram conversas que me lembravam outras, entre abduzidos por alienígenas. Em ambos os casos, a experiência era insubstituível como condição do diálogo. Loucos e abduzidos por alienígenas sabem que o inexperiente não pode compreender seus confrontos; as palavras não conseguem dar conta deles. São experiências radicais, ocultas no mistério da terra, inacessíveis às flores da linguagem. Meu encontro com Richie Havens teve um efeito forte sobre mim. Achei que estava diante de um exemplo concreto e genuíno da nova maneira de viver que a contracultura anunciava. Paradoxalmente, o que encontrei em Havens foi exatamente aquilo que não se disseminou. O verdadeiro new way of life era uma questão do domínio da consciência, aquilo que a espreita – para usar os termos de Castaneda – só

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torna possível, ou viável. O rock não era um estilo de vida para os fãs, mas para os músicos de rock era sim. Viver para tocar rock era realmente uma nova maneira de viver. Algo semelhante pode ser dito em relação às drogas, especificamente as alucinógenas. Cedo percebi que seu efeito positivo era efêmero. Serviam para colaborar na desconstrução do robô humano, mas não serviam como novo estilo de vida, especialmente se era para ser a liberdade o seu verdadeiro objetivo. Nos casos do peiote e da ayahuasca, foi inclusive necessário que seitas religiosas, mais ou menos autoritárias, tornassem possível o uso desses alucinógenos como “sacramentos”. Por outro lado, o exemplo clássico da utilização das plantas de poder nos limites estritos do aprendizado é a história de Carlos Castaneda com Don Juan. A mania por drogas mais a ilegalidade juntaram a fome com a vontade de comer. Esta última consolidou os lucros propiciados pela primeira. Não se pode incriminar a contracultura, por exemplo, pela atual situação do narcotráfico e do crime organizado; sua intenção era saudável, seu objetivo era libertador. A verdadeira culpada, a ilegalidade, exilou a saúde e a liberdade para o inferno da transgressão. Assim, o verdadeiro culpado pelo que acontece hoje foi o sistema, que obstinadamente fez questão de manter essas drogas na ilegalidade. As drogas são ilegais porque, desse jeito, há mais gente ganhando mais dinheiro com elas – observou Timothy Leary. Nossa vida sexual também foi vítima das artes do sistema através do processo de “dessublimação repressiva” denunciado por Marcuse. A liberdade sexual degenerou em permissividade e, finalmente, em mera pornografia e obscenidade, visando a bons negócios na alquimia diabólica do capitalismo, que é capaz de transformar tudo em mercadoria e, portanto, dinheiro. A degradação promovida pelo sistema desenvolve-se sob a égide do vil metal, em todos os componentes da tríade libertária clássica dos anos 1960 – sexo, drogas e rock’n’roll. Confesso que não consigo reler esses textos sem uma certa condescendência. Que posso fazer? Eles foram escritos por um homem quarenta anos mais jovem num momento histórico muito especial para as chamadas sociedades ocidentais. Sentía-mo-nos no começo de uma jornada revolucionária e o futuro que imaginávamos era feito só de alegria e triunfo. Não foi bem assim. Há, portanto, nos textos, um otimismo transbordante que hoje parece bastante despropositado. Contudo, não é. No essencial, sua visão ainda me parece justa. Por exemplo: a condenação da família tradicional, ensinada por Reich, continua irrespondível. O fato de que o sistema cria as formas caracterológicas necessárias à sua preservação é, hoje, mais transparente do que nunca. E, por melhores que tenham sido as intenções que a inspiraram, a repressão sistemática que caracteriza a instituição familiar, em seus moldes convencionais, teve resultados reconhecidamente desastrosos. Os diagnósticos do texto são, portanto, corretos; foram os prognósticos românticos, utópicos, que falharam. Entretanto, o desmentido feito pelos acontecimentos não é absoluto. Por exemplo: em função de um encabulado reconhecimento de seus próprios desastres e da conquista subjetiva de uma liberdade interior maior por muitas pessoas, a família tradicional foi obrigada a se flexibilizar para fazer frente a mudanças inexoráveis.

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Ela também foi obrigada a mudar. E suas mudanças foram determinadas pela simples necessidade de manter a convivência possível, a despeito de todas as fragmentações que ela sofreu nas últimas décadas. Hoje as pessoas se separam com mais facilidade; a amizade e inclusive a convivência entre ex-cônjuges tornou-se frequente e natural; e até o antigo estigma de ser “filho de pais separados” deixou de ser estigma. Há uma descontração maior e, embora os valores tradicionais sejam mantidos, uma possível transgressão de um deles não parece mais acarretar o fim do mundo, como acontecia há bem pouco tempo. É verdade que não se realizou a utopia que nos era tão cara na época em que os textos foram escritos. Mas houve transformação, algum progresso, menos obscurantismo – pelo menos em alguns pontos, pelo menos em alguns setores da população. O remédio, portanto, é perseverar. O venerável I-Ching repete muitas vezes o preceito de que “a perseverança é vantajosa”. Estamos perseverando. O próprio fato de que você está lendo este comentário demonstra que não desistimos. Não, não se realizou utopia nenhuma. Apenas ficou evidente, mais uma vez, que os caminhos da liberdade exigem uma marcha realmente longa. Mas ainda estão aí, diante de nós. Muitas personalidades notáveis me conduziram, nos anos 1960, à contracultura. Destaco, entre os pensadores autonômos, Alan Watts; entre os pensadores dedicados ao agitprop da contracultura, Timothy Leary; e, finalmente, entre os pensadores acadêmicos, Norman O. Brown. A eles ainda se juntaria, no final da época, o pensador e feiticeiro Carlos Castaneda. O conjunto de suas obras virou novamente de cabeça para baixo o que Marx havia, supostamente, colocado em pé. Com eles, a vida espiritual teimosamente ganha o primeiro plano e as necessidades materiais recuam para o background. O fato de que parecem pouco influentes no começo deste novo milênio não deve nos impressionar, já que estamos em plena vigência da reação mais sutil e feroz da feitiçaria tecnicista contra o movimento pela expansão da consciência. Aqui é importante apontar o significado do pensamento de Norman O. Brown – o que, num nível mais profundo, traz mais luz à filosofia subjacente, não enunciada, da contracultura. Nos últimos anos, o nome de Norman O. Brown vem sendo relegado a um certo e totalmente escandaloso esquecimento. A chamada nova ordem mundial tem conseguido empurrar para a obscuridade e para o desconhecimento, por parte das novas gerações, as manifestações mais iluminadoras, profundas e poderosas do pensamento em nosso século. Chega mesmo a estarrecer. Trata-se, evidentemente, de um pensamento revolucionário para o século XXI. Brown deixou livros fundamentais. O primeiro é Vida contra morte, exposto num ensaio quase acadêmico, mais adiante, neste livro. O outro é Love’s Body, talvez a obra filosófica mais audaciosa do século passado. E ele ainda deixou uma terceira obra fundamental, Apocalipse e/ou metamorfose. Da política para a vida, prega Brown que leva sua aventura espiritual ao possível extremo. Ele propõe, portanto, a revolução como criação, arte, ressurreição, renascimento em vez de progresso. Para isso, é preciso perceber, em toda cultura, a realidade oculta do corpo humano. A

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Sagrada Comunhão como base da comunidade; a Eucaristia: canibalismo. Deus não é o Logos abstrato, a Razão desencarnada, mas – sustenta Brown – a Forma Humana Divinizada. A secreta tradição tântrica: a libertação através do corpo. A Ressurreição do corpo, da carne. Evidentemente, a vigência da ciência e da técnica, contra a qual Heidegger sabiamente nos adverte, depende de um estado bastante contraído da consciência, caracterizado pelo império do objeto, da coisa. Assim, a guerra mais profunda de nosso tempo é mental; o que ela põe em jogo é a própria consciência da humanidade. Ou ocultamos o mistério – ou seja, o Ser – no jogo mundano através do culto ao dinheiro, do cientificismo materialista e da compulsão para a repetição, indiferentes à violência, à doença e ao horror que elas inevitavelmente geram, ou retomamos a senda áspera da liberdade, desta vez – esperamos – enriquecidos pela experiência infanto-juvenil da contracultura. Foi a contracultura que me conduziu à descoberta – tardia, num jovem tão interessado na especulação filosófica – do pensamento oriental. O livro que me abriu as portas foi The Way of Zen, de Alan Watts, uma figura da West Coast muito popular na época. Watts fora sacerdote anglicano e virara monge zen. Escrevia livros de divulgação do budismo, do taoísmo e outras doutrinas do Extremo Oriente. Fazia programas de televisão nos quais aparecia na indumentária de sacerdote zen, sentado em posição de lótus. Era muito inteligente, articulado, tinha bom senso e bom humor. Fez uma viagem de LSD e escreveu um livro narrando-a e refletindo sobre ela – The Joyous Cosmology. Entre as doutrinas orientais, a que mais me impressionou foi o budismo – e, em seguida, o taoísmo, com a qual se parece num nível profundo. E, dentro do budismo, o mahayana, especialmente nagarjuna e o zen. Trata-se, como se vê, das formas mais sofisticadas, intelectuais, do budismo, em relação a formas mais populares, mitológicas e coloridas, como o hinayana hindu, o budismo tibetano ou a shingon japonesa. Mas não me tornei um orientalista, um cara com mania de Oriente. Já fiz dieta macrobiótica, sou um admirador confesso do aikido, já fiz hatha yoga, e assim por diante. Tudo isso me fez muito bem, mas não me transformou em nenhum fanático. Por isso, não precisei mudar mais nem dar marcha a ré, o que foi tão comum em minha geração. Simplesmente continuo o mesmo Maciel daquela época, mais velho, mais feio, mais fraco e, afinal, não mais sábio, mas mais sabido. Luiz Carlos Maciel Parcialmente extraído pelo autor de “Aqui e agora”. Em: De volta para o futuro. Rio de Janeiro: Book Link, 2004, pp. 11-25.

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SOBRE

O ORGANIZADOR

Claudio Leal

Nascido em Salvador (BA), graduado em comunicação pela Universidade Federal da Bahia, é jornalista e mestre em história, teoria e crítica do cinema pela ECA-USP. Foi repórter do jornal A Tarde e da Terra Magazine, do portal Terra. Em São Paulo, como jornalista freelancer, colabora com a Folha de S.Paulo, além de Época, Piauí, Bravo!, Revista da Gol, Carta Capital, entre outras.

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