Prefácio
Há uma diferença radical entre o ofício do mateiro e o de um fotógrafo: a obra deste consiste em captar os reflexos da luz nas coisas visíveis, a fim de apreender a riqueza de um instante, revelar a imanência objetiva e significante do objeto captado, numa espécie de enquadramento do real cujo êxito depende, em grande medida, do faro aguçado pela experiência e da prevalência de uma subjetividade artística. O mateiro, por sua vez, produz suas conclusões a partir do que não é visível, trabalha quase às cegas e analisa seus objetos através daquilo que não se deixa e não se pode ver, que se esconde, num fenômeno que confere à composição mateira — numa hipotética imagem — um mosaico difuso repleto de incertezas reveladoras. Ao primeiro, cabe a escolha do que revelar em tantas imagens possíveis; ao segundo, a identificação da presença na ausência.
O ofício do indigenista mateiro de que trata este livro é o de confirmar os caminhos percorridos em sua itinerância por povos indígenas isolados a partir de seus vestígios singulares; conjugar o conhecimento mateiro — apenas superficialmente intuitivo —, valendose da experiência empírica acumulada em anos de trabalho na aparente solidão das florestas, com as novas fronteiras abertas por ramos da ciência ainda em seus primórdios; e estabelecer nexos improváveis
Sebastião Salgado
a partir da meditação proporcionada pelo próprio isolamento — prerrogativa ex officio —, de modo a formular reflexões profundas. Seu ponto de partida são as pequenas e sempre bem-vindas brechas que as matas, em seu labirinto fechado e inextricável, oferecem como uma espécie de dádiva àqueles que se lançam à desventura de afrontá-la, no intuito de perscrutar o mistério de povos isolados em sua cosmovisão e em sua alteridade, tão diversas e desconhecidas aos olhos leigos. Eis alguns dos elementos que caracterizam o trabalho do mateiro, que, talvez por uma deliciosa ironia do destino, não permite que seus agentes tenham contato direto com o próprio objeto de estudo, algo completamente improvável a qualquer outra modalidade de conhecimento que aspire ao status de ciência. Trata-se de um paradoxo cuja superação certamente atentaria contra a existência do ofício: um hipotético encontro entre os profissionais que realizam o trabalho de monitoramento e os isolados engendraria a tragédia fundamental, a abertura irrevogável da caixa de Pandora, cujos efeitos, como uma espécie de pecado original, haveriam de ressoar e consumar, uma vez mais, a violação inaceitável de um limite — apesar do lúgubre fato de tal violação, ao longo da história, ter ocorrido tantas vezes, em consequência da sanha inabalável dos homens brancos em sua sede exploratória. É o que ainda se vê acontecer em lugares tão distantes do território amazônico quanto as terras yanomami, munduruku e do Vale do Javari, para falar apenas dos casos que atingiram manchetes de jornais nos últimos anos.
Cangussu, ao longo de sua narrativa, parece ter clara consciência de onde pretende chegar e, mais importante, deixa manifesto o que se pode esperar do ofício indigenista/ mateiro, revelando ou admitindo, sempre que possível, as diversas limitações com que se depara durante o trabalho investigativo, a fim de afastar a tentação de que nós, leitores, nos excedamos nas atribuições conferidas ao trabalho desenvolvido por esses profissionais.
O presente título, Vestígios da floresta: povos indígenas refugiados da Amazônia, trata do olhar investido de um saber que a nós, leitores, assombra pela perspicácia que assume em seus contornos traçados sempre a partir de uma rotina silenciosa, uma intuição apurada pela dúvida, uma visão que
se beneficia da privação, um exercício cognitivo que repele o óbvio e não se deixa encantar pelo grito sedutor do que está mais evidente.
Em sua missão descritiva, o autor adota uma postura amistosa e estabelece um compromisso didático com seus leitores, a fim de nos mostrar, como se fôssemos levados por sua mão a uma expedição de monitoramento, a exuberância das florestas, os segredos que se ocultam em seus detalhes, os recônditos inóspitos e reveladores da agência vegetal — enfim, os maiores ou menores indícios no trabalho de detecção e monitoramento de povos originários. Através de sua exaustiva descrição desse mundo vegetal, o autor paulatinamente nos revela o tênue traço que difere uma palmeira de outra, à primeira vista idênticas, e as valiosas pistas que esses improváveis vestígios podem fornecer a respeito tanto dos isolados quanto de suas práticas, devidamente inscritas em cada mínimo rincão dessa ainda imensa massa verde incrustada em solo amazônico. A riqueza de detalhes proporcionada por sua narrativa opera no sentido de desmistificar, passo a passo, a técnica que esses profissionais, quase sempre ungidos pela opinião pública com certa aura heroica, empregam em seu cotidiano. À medida que entramos nas matas por meio de sua exposição minuciosa, passamos a constatar, com maior lucidez, que o trabalho mateiro não reivindica para si atributos tais como bravura, temeridade, valentia ou coragem. Vestígios da floresta se preocupa, com senso de justiça e sensatez, em nos colocar perante os dilemas, as dificuldades e, sobretudo, as inseguranças que esses profissionais encaram em suas rotinas.
Conheci Daniel Cangussu em 2017, na cidade de Lábrea, no Amazonas, por ocasião de uma expedição ao território dos Suruwaha, como parte do projeto Amazônia Minha convivência com ele foi de grande auxílio na relação com aquele povo de recente contato. Neste livro, percebo que Cangussu parece emular os atributos de sua personalidade: o tom comedido, a discrição gestual, a perseverança e a convicção da causa que tomou para si. São qualidades imprescindíveis ao ofício que desenvolve na região sul do Amazonas, facilmente detectáveis nestas páginas por todos aqueles que o conheceram pessoalmente — ofício esse que
seguiu exercendo junto com uma geração de indigenistas resilientes, apesar das limitações enfrentadas — e depois exercidas ativamente — pela Funai na implementação de sua política do não contato, estabelecida ainda nos anos 1990 por Sydney Possuelo.
Biólogo de formação e indigenista quase que por acaso, Daniel é um daqueles casos raros de indivíduos que se encontraram com sua verdadeira vocação: o trabalho em defesa dos povos isolados e de recente contato. Tanto assim que eu não poderia imaginá-lo de outro modo que não aquele do qual fui testemunha ocular. Com sua timidez eloquente, Cangussu me expôs minuciosamente as características dos povos com que trabalha: os Jamamadi, povo constituído por vários grupos de contato mais intenso com não indígenas; os próprios Suruwaha, de contato recente; e os Hi-Merimã, grupo que conserva algum grau de parentesco com os Jamamadi, mas que optou, em algum momento de sua trajetória, por evitar o contato com os brancos, permanecendo até hoje em isolamento.
Em tese, seu trabalho consiste em vigiar as entradas das terras indígenas a fim de evitar que esses grupos sejam assediados por invasores. Na prática, contudo, o trabalho indigenista vai muito além da “bisbilhotagem” desses povos — termo utilizado pelo próprio Cangussu —, e contempla uma miríade de técnicas e ciências para que o monitoramento e a proteção de povos originários sejam efetivamente concretizados: do conhecimento mecânico capaz de manter em operação o motor de uma embarcação, passando pela botânica, a ecologia e a arqueologia, até chegar às novas perspectivas oferecidas pela etnologia ameríndia e pela etnobotânica. A esse último segmento científico, em particular, Cangussu oferece fascinantes contribuições. Ele explica com riqueza de detalhes, por exemplo, como os isolados Hi-Merimã manejam as espécies não domesticadas de seu território. Eles não fazem uso da mandioca, tão propalada entre a maioria dos povos ameríndios. Eles se alimentam de uma batata gigantesca chamada cientificamente de Casimirella ampla, cujo consumo por etnias amazônicas parece ter antecedido a disseminação da própria mandioca. Vi essa incrível batata pela primeira vez por meio de uma foto tirada por
Elizabeth Miguel, companheira de Cangussu. Segundo ele, o consumo ainda em voga da Casimirella pelos Hi-Merimã pode constituir um importante indício da ancestralidade e da própria história desses povos isolados. Outra espécie tuberosa, a batata-pajé, presente na foto que ilustra a capa desta publicação, revela a centralidade que as batatas assumem nesse contexto.
Mais do que oferecer uma visão abrangente do trabalho indigenista no âmbito da política do não contato, Vestígios da floresta proporciona um compêndio de informações valiosas destinado a ilustrar o olhar dos leigos a respeito do trabalho conduzido pela Funai, e representa também a conjugação de dois predicados raramente vistos de maneira tão clara: o conhecimento mateiro, predominantemente empírico e transmitido pela oralidade — e aqui devemos mencionar Rieli Franciscato, mateiro experiente de quem Cangussu foi uma espécie de pupilo —, e a inclinação científica e investigativa do autor. Esta obra, portanto, encarna uma grande novidade não só pela escassez de publicações indigenistas, mas sobretudo pela forma como somos levados a conhecer as insólitas peculiaridades desse trabalho tão necessário: por meio do relato fiel que Cangussu ora nos apresenta, imbuído da sinuosidade inerente aos varadouros amazônicos em sua exposição cristalina e comodamente dotado de contribuições ao trabalho mateiro em suas quebradas argumentativas, refletidas com a nitidez de um igarapé no espelho destas fascinantes páginas.
Todo conhecimento cósmico é um ponto de vida (e não apenas um ponto de vista), toda verdade é o mundo no espaço de mediação do vivente […]. Para conhecer o mundo é preciso escolher em que grau da vida, em que altura e a partir de que forma se quer olhá-lo e, portanto, vivê-lo. Precisamos de um mediador, um olhar capaz de ver e viver o mundo lá onde não conseguimos chegar.
EMANUELECOCCIA
Notas botânicas
[NOTA 1]
O senhor Domingos é ribeirinho, reside na comunidade da boca do Apaã no rio Mamoriazinho, afluente da margem esquerda do médio rio Purus. Pertence a uma família de migrantes que deixou a seca do Nordeste para buscar uma vida melhor na Amazônia. Esses novos habitantes da floresta passaram a atuar diretamente sob a administração de “patrões”, em uma relação de semiescravidão e endividamento compulsório. Tornaram-se extrativistas: copaibeiros, sorveiros, seringueiros, castanheiros e caçadores (sobretudo para a obtenção de peles de felinos, conhecidas como “fantasias”). Os produtos desses trabalhos eram repassados a baixo custo aos patrões e regatões, personagens do processo de colonização de toda a Amazônia. A antiga colocação do São Raimundo, onde Domingos e sua família viviam, está hoje situada no interior da TI Hi-Merimã, cuja demarcação foi oficialmente publicada em 2005. Após o processo de desintrusão, a família de Domingos se estabeleceu no igarapé Apaã, hoje Reserva Extrativista Médio Purus. No Relatório de Identificação e Delimitação da referida TI, publicado em 2000, a etnóloga Luciene Pohl transcreve o seguinte depoimento de dona Inês, mãe de Domingos, falecida em 2018:
Eu criei meus filhos todos foi na faca da borracha, só quem me conhece sabe! Eu vim foi do Ceará. Nós morávamos no Abureté. Eu tinha 9 anos. No tempo que nós viemos, era no tempo dos emigrantes […]. Nós éramos os soldados da borracha, arigó. No começo nos chamavam de brabo, só chamavam de brabo, mas meu papai já era acostumado no Amazonas.
Ele trabalhava no Amazonas, mas voltava para o Ceará, e assim vivia até que ele nos trouxe […]. Quem tinha colocação
cá embaixo era o Antônio Adolfo e o Pedro Veriço, que já eram daqui. Aí nós abrimos uma colocação, passamos necessidade de farinha. Meu menino morreu por falta de farinha, aí acabou tudo.
Esses trabalhadores adentraram os territórios indígenas num processo que culminou na disseminação de doenças e na irrupção de diversos conflitos armados, num período marcado pela acentuada depopulação dos povos nativos da região. O Mamoriazinho, rio por onde provavelmente teriam chegado os primeiros brancos ao território dos Jamamadi, em busca de seringa e sorva, é chamado por esse povo indígena de Fakuma (rio da dor), em alusão à recente história de epidemias e massacres que marcaram a região.
A narrativa apresentada por Domingos se passa no interior do território dos povos madi — um dos grupos da família linguística arawá —, região localizada no interflúvio do médio
Cuniuá/Purus. Esses povos indígenas se distribuem em grupos diminutos com acentuado padrão de mobilidade. Embora hoje muitos dos habitantes desse território se autoidentifiquem como Jamamadi, eles são de fato um coletivo de povos. O termo “jamamadi” deriva de duas palavras de origem arawá, zama e madi, que significam “povos da mata”, como eram genericamente reconhecidos os coletivos habitantes das terras firmes à margem esquerda do médio Purus. Os Banawá, habitantes do mesmo interflúvio, já foram chamados de Jamamadi do Apituã, assim como os Hi-Merimã eram conhecidos como Jamamadi do Piranhas. A etnóloga Karen Shiratori fornece informações sobre esse grupo:
Atualmente, o etnônimo [jamamadi] abarca os remanescentes de alguns grupos falantes de dialetos da mesma língua madi que viviam na região [...] do interflúvio entre o rio Piranha, o igarapé Mamoriazinho (referido como Mamoriá Mirim em alguns relatos)
Ainda sobre os subgrupos madi, cabe atentar para o sistema onomástico vegetal empregado nesse contexto etnográfico. Os Hawa estão diretamente associados à palmeira patauá, hawa (Oenocarpus bataua), assim como os Kosiba estão associados ao babaçu, kosi (Attalea speciosa); os Boti, ao ouricuri, boti (Attalea phalerata); e os Wayafi, a uma espécie de punã, waya (Iryanthera spp.), utilizada pelos demais grupos arawá na confecção das zarabatanas. Nesse sistema de nomeação dos subgrupos madi, os próprios Hi-Merimã, segundo os Jamamadi, também estariam associados a uma árvore, uma espécie de embaúba (Cecropia sp.).
No processo de desintrusão, Domingos e sua família saíram da colocação do São Raimundo e passaram a residir na boca do Apaã. Nota-se, entretanto, que o Apaha (Apaã) também é território madi tradicionalmente ocupado pelos Wayafi, conforme aponta Shiratori. Segundo Berinawa (Gasparino Jamamadi), importante liderança Wayafi falecida em 2019, nas cabeceiras do Apaã ainda há quatro grandes blocos de warakana, que foram enterrados por seu avô Afi antes de deixar a região, fugindo de conflitos. Warakana é uma cera produzida a partir da resina da árvore Symphonia globulifera. O cerol, como é popularmente conhecida essa resina entre os ribeirinhos, é utilizado por muitos grupos indígenas para afixar e impermeabilizar a fita de cipó ambé ao longo do corpo da zarabatana ou para encerar linhas, que se tornam impermeáveis e mais resistentes. Diversos povos amazônicos fazem uso da seiva da Symphonia globulifera na produção de resinas. A receita 1. Karen Shiratori, O olhar envenenado: da metafísica vegetal Jamamadi (médio Purus, AM), tese (doutorado em Antropologia Social) — UFRJ, Rio de Janeiro, 2018, p. 345.
3 e o rio Purus. Os mais mencionados são: os Hawa, do igarapé Aripuanã; os Nakanike, do igarapé Sabuhã; os Boti, do igarapé Mamoriazinho; os Wayafi, do Apaha; os Kosiba, do rio Curiá; e os Hi-Merimã, do alto Riozinho e do Mamoriazinho 1
Warakana, 2018.
da fabricação do warakana Jamamadi, no entanto, é muito mais elaborada. Além do leite amarelo típico, ingrediente principal, são utilizadas seivas lactescentes da sorveira e do cipó da fruta sete-gosto, conhecido pelos Jamamadi como sabano.
[NOTA 2]
A foz do igarapé Canuaru abriga uma das três bases da coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental Madeira-Purus/Funai, departamento de vigilância e proteção da TI Hi-Merimã. Responsável por monitorar o setor sul desse território indígena, conta com servidores e mateiros colaboradores, além dos indígenas Jamamadi da TI Jarawara/Jamamadi/Kanamati. São muito comuns entre os profissionais que atuam nessa região da TI os relatos sobre peixes descendo mortos pelos leitos secos do Canuaru e do Mamoriazinho, sobretudo de agosto a outubro, no auge do verão amazônico — período marcado pela estiagem e pela diminuição do volume dos cursos d’água. Esses peixes mortos revelam a intensa atividade pesqueira dos Hi-Merimã no alto desses rios ou de seus afluentes. Essa modalidade de pesca utiliza ictiotóxicos ou barbascos, plantas capazes de envenenar ou asfixiar peixes para sua poste-
Já foram registradas barragens de pesca confeccionadas pelos Hi-Merimã no alto de ambos os rios, assim como no próprio igarapé Vara, mencionado no relato. Essa pescaria é feita apenas nos tempos de seca.
5 rior captura. A espécie mais amplamente utilizada é o kona/kunaha (Deguelia utilis), conhecido como timbó. A técnica consiste em construir uma barragem com varas no leito do igarapé onde se fará a pescaria. Seções da raiz de Deguelia utilis são cortadas e levadas até o igarapé. Um local acima da barragem, na margem do igarapé, é escolhido para se “bater o timbó”, ou seja, macerar as raízes da planta. O bagaço resultante é, então, armazenado em panacos de palha, que são mergulhados no curso d’água para que o sumo leitoso desça pela correnteza e alcance os peixes. Mortos ou atordoados, os animais são capturados durante a pescaria ou ficam presos na barragem de varas, sendo recolhidos posteriormente.
A Deguelia utilis é amplamente cultivada por alguns povos da região, a exemplo dos Suruwaha, que estabeleceram uma profunda relação com a planta, sendo ela a espécie utilizada em suas práticas de morte ritual. Mas há outros ictiotóxicos utilizados pelos povos no Purus. A seiva do assacu (Hura crepitans) é empregada pelos Paumari e Apurinã em suas pescarias em grandes lagos ou, ainda, para desentocar cardumes em meio à canarana2 nas margens do Purus. A Ryania speciosa é utilizada pelos Paumari para capturar jacarés. Além da própria Deguelia utilis, outros dois ictiotóxicos são cultivados nos roçados dos Suruwaha: bakiama (Clibadium sylvestre) e mama (Manihot esculenta). As mulheres Suruwaha produzem pequenas iscas a partir de uma receita que consiste em macerar as folhas de bakiama com larvas de formiga e misturá-las à massa da mandioca não espremida. Com o resultado dessa mistura, confeccionam bolinhas
2. Também conhecida como cana-brava ou cana-do-rio, a Gynerium sagittatum pode ser encontrada às margens de lagos e rios, a exemplo do rio Purus.
com as mãos e lançam-nas em poços e lagotes. Ao ingerirem as iscas, os peixes ficam atordoados por alguns segundos, ocasião em que são capturados pelos indígenas na superfície da água. Outra espécie de timbó menos tóxica e utilizada pelos madi em suas pescarias é o mamatafo (Deguelia urucu), conhecido como timbó vermelho. Essa planta é encontrada ao longo do Canuaru e do Mamoriazinho, assim como em grande parte dos córregos e pequenos cursos d’água da região, crescendo em associação com outras espécies utilizadas pelos povos indígenas, a exemplo de palmeiras como o patauá, a bacaba (Oenocarpus mapora) e o açaí (Euterpe precatoria). Enquanto a presença das palmeiras se deve ao descarte de sementes dos frutos coletados no entorno e levados até o acampamento, a presença do mamatafo e do kona se deve provavelmente ao enraizamento de seções da planta que não foram completamente maceradas nas pescarias.
A etnografia arawá é associada ao uso e à manipulação de venenos vegetais, sendo possível observar a formação de nichos culturais como parte da integração entre o manejo vegetal e a pesca. As plantas arbustivas e não comestíveis são pouco abordadas em estudos sobre a formação de nichos culturais e paisagens domesticadas, em virtude do desconhecimento acerca de seus usos e de sua baixa visibilidade florística.
Página ao lado: Barragem de pesca suruwaha, semelhante às barragens produzidas pelos Hi-Merimã, 2018.
Acima: Kona/kunaha (Deguelia utilis), 2018.
Ao lado: Panaco dos Hi-Merimã com raízes de timbó maceradas, encontrado nas margens de um pequeno lago de seu território, 2021.
[NOTA 3]
A indústria seringalista e a ação continuada dos patrões forçaram os sertanejos a invadir e a se estabelecer nos territórios indígenas da Amazônia. Domingos conviveu durante toda a infância com os caminhos e varadouros dos Hi-Merimã, visitando acampamentos abandonados e interagindo com os vestígios produzidos por seus novos vizinhos. Os Hi-Merimã, por sua vez, certamente acompanharam à distância a movimentação dos brancos por suas terras, afastando-se das áreas mais violentas e marcadas por epidemias, fazendo tapagens3 em seus caminhos principais e, em alguns casos, alertando sobre sua presença por meio de silvos e batidas em sacopemas.
3. Bloqueios erigidos pelos povos indígenas em seus varadouros. Servem de alerta para que outros não avancem a partir daquela marcação. Folhas de palmeiras, galhos e arbustos atravessados no interior dos varadouros são evidências de tapagens.
Acima: Varadouro hi-merimã, 2013.
Ao lado: Moquém e cerâmica hi-merimã, 2013.
A convivência de Domingos e Carlinhos com os vestígios permitiu-lhes uma leitura precisa do contexto. A capacidade de reconhecer e datar os varadouros indígenas é uma habilidade essencial desenvolvida ao longo dos anos de vivência na floresta e, atualmente, é empregada por profissionais das Frentes de Proteção Etnoambiental da Funai. Varadouros em meio a densas colônias de caranaí (Lepidocaryum tenue), por exemplo, típicas das florestas do sul do Amazonas, desafiam os mateiros mais experientes. Seus talos — os pecíolos da pequena palmeira — são apenas retorcidos para fora do caminho e não completamente seccionados, levando meses para manifestar os primeiros sinais de murcha e esmorecimento das folhas. Em situações assim, outros elementos da paisagem devem ser considerados a fim de se datar o varadouro e evitar encontros fortuitos indesejados.
Entre os Hi-Merimã, o machado também vem de pequenos furtos, feitos em acampamentos de seringueiros e copaibeiros ainda em atividade em seus territórios, mesmo depois da demarcação e desintrusão. A história geológica do interflúvio do médio Juruá/ Purus fez dele um território quase isento de rochas resistentes em sua superfície. Não há ali pedras adequadas para a produção e amolação de ferramentas líticas. As de aço dos Hi-Merimã, segundo a análise dos vestígios nos cortes das árvores, estão sempre desamoladas, sem fio. Machados de pedra e demais ferramentas líticas são raros e parecem ter pouca importância histórica ou simbólica para os povos arawá, se comparados aos seus vizinhos Tupi Kagwahiva.
Embora os Hi-Merimã façam derrubadas seletivas na floresta, concentradas sobretudo nas fruteiras e palmeiras, praticamente não as fazem nas adjacências de seus acampamentos. Em muitos casos, o tronco de árvores vivas é utilizado como esteio de suas casas, assim como o tronco daquelas mais finas, geralmente empregado na construção de moquéns.
[NOTA 4]
Os Hi-Merimã constroem acampamentos nas proximidades dos igarapés de seu território. Na várzea dos pequenos cursos d’água, esses acampamentos estão associados às pescarias coletivas comuns nos meses mais secos do ano. A estiagem prolongada se reflete na simplicidade das coberturas. As habitações preferenciais desse povo na estiagem são os “rabos de jacu”, confeccionados com a afixação de folhas de palmeiras no solo, escoradas por uma trave de sustentação. Esta pode ser de vara ou cipó. A inclinação das folhas pinadas, característica das espécies mais utilizadas na construção desses acampamentos, age como uma calha contra a água das chuvas e do orvalho da madrugada. Em alguns casos, esses acampamentos recebem acabamentos com folhas de bananeira-
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Acima: A caminho das malocas suruwaha, 2018.4
Ao lado: Acampamento hi-merimã, 2013.
Abaixo: Cesto de patauá em acampamento hi-merimã, 2023.
4. Ao indigenista Gunter Kroemer, in memoriam: Gunter teve um importante papel na luta pela garantia de direitos e na formulação de políticas públicas voltadas aos povos indígenas do médio rio Purus. Um de seus livros mais importantes intitula-se A caminho das malocas Zuruahá (São Paulo: Loyola, 1989).
11 -brava (Phenakospermum guyannense). Todavia, o patauá, a bacaba e a inajá (Attalea maripa) são as palmeiras mais utilizadas nos rabos de jacu pelos Hi-Merimã — com destaque para o patauá, dominante na Amazônia. Como esses acampamentos de verão dependem da disponibilidade dessas palmeiras, a concentração destas deve ser considerada nas estratégias de proteção desse território, sobretudo quando os patauazais estão fora da área demarcada.
Os acampamentos de inverno hi-merimã, por sua vez, são mais elaborados e à prova de chuvas torrenciais. São construídos no alto das terras firmes, mais afastados das zonas de alagamento dos igarapés. O modelo de construção é do tipo “barracão de duas águas”. A cobertura é feita com “panos de caranaí”, estruturas confeccionadas a partir das folhas de Lepidocaryum tenue. As folhas e os pecíolos dessas palmeiras são trançados e entretecidos ao longo de seções e paxiúbas5 ou varas. Uma vez encaixadas umas sobre as outras, essas seções oferecem uma cobertura vedada. Após secarem, as folhas do caranaí ficam com uma coloração brilhante, como se estivessem revestidas de verniz. É também com essa técnica que os Suruwaha, vizinhos dos Hi-Merimã, cobrem suas malocas de cerca de 15 metros de altura e 30 metros de diâmetro. Enquanto os acampamentos de verão se caracterizam pela intensa atividade de pesca, uma peculiaridade dos acampamentos de inverno são os artefatos utilizados no processamento de frutos das palmeiras, com destaque para o patauá, a bacaba e o açaí. Os frutos são processados em pilões de casca do jutaí (Hymenaea parvifolia) e suas sementes são descartadas nas proximidades dos acampamentos. Ao se mudarem para a calha de outro igarapé, os Hi-Merimã terão deixado um ambiente enriquecido com diversas palmeiras
5. Troncos (estipes) da palmeira Socratea exorrhiza
e árvores frutíferas, prática que influencia significativamente a população dessas espécies em seu território.
Os arcos suruwahas são de pupunha (Bactris gasipaes), presente em seus roçados. Como os frutos das pupunheiras são apreciados por eles, essas palmeiras são derrubadas para a fabricação de arcos apenas ocasionalmente, e só as mais antigas das capoeiras mais distantes. Mesmo os pupunhais mais velhos são manejados e cuidados por eles. Já os Hi-Merimã não sofrem com isso, pois utilizam diversas palmeiras para confeccionar suas armas de caça. O domínio das técnicas agrícolas e das plantas dos roçados é utilizado pelos Suruwaha para marcar o contraste entre sua humanidade e a indigência hi-merimã, “povos sem agricultura que vivem na mata andando sem paradeiro definido, como queixadas”, como dizem os Suruwaha.
Acima: Frutos do patauá, 2023.
Ao lado: Patauá germinando em acampamento de pesca hi-merimã, 2016.
Mawaxu e o arco de patauá, 2013.
Mas as diferenças entres esses povos nem sempre estão tão cristalizadas. Mawaxu, um dos donos de maloca suruwaha, me confessou certa vez que prefere arcos de patauá. A partir do estipe, ele confecciona arcos grandes e resistentes adequados para caçar queixadas, pois, além de lançar a flecha, o item também é utilizado para empurrar e bater nos porcos mais agressivos em meio às grandes varas de queixadas. Segundo ele, nem sempre há pupunhas maduras e grandes o suficiente para fazer esses arcos. Indagado sobre como seus arcos remetem aos Hi-Merimã, ele diz em tom de brincadeira: “Sou como um Hi-Merimã. Antigamente os Suruwaha utilizavam arcos de bacaba e patauá, como os Zamadi”, acrescenta Mawaxu. Narrativas como essa nos levam a refletir que, apesar da importância que as plantas dos roçados têm hoje para povos como os Suruwaha e os Jamamadi, ambos vizinhos dos Hi-Merimã, esse hábito pode ser relativamente recente na história dos grupos arawá no interflúvio Juruá/Purus.
[NOTA 5]
A batata mencionada corresponde à raiz tuberosa da planta Casimirella ampla, uma liana da família Icacinaceae, conhecida
pelos Jamamadi como yamo e pelos Suruwaha como zamahu Viajantes que passaram pelo Purus no século XIX, a exemplo de Richard Spruce, atentaram para a importância dessa batata na dieta dos povos da região, sendo consumida em grandes quantidades por todas as comunidades indígenas.
Os acampamentos Hi-Merimã observados pelas equipes da Funai apresentam vários vestígios associados ao uso dessa planta, atestando o protagonismo dela na alimentação desse povo. Com os relatos e vestígios, podemos supor que as batatas são coletadas e levadas até os acampamentos, onde são raladas com o auxílio da raiz da paxiubinha (Socratea exorrhiza). A massa resultante desse processo é tóxica, razão pela qual é submetida a sucessivas lavagens. O líquido resultante da lavagem da massa é colocado para descansar, permitindo decantar a fécula da batata, que será submetida a outras etapas alternadas de lavagens e períodos de descanso, até que todo o veneno da fécula tenha sido eliminado. Por fim, seu bagaço é descartado, o que gera montes residuais desse material nas proximidades dos acampamentos. Acreditamos que a fécula seja consumida com carnes de caça ou peixe ou empregada em beijus. Durante uma expedição em 2016, um bloco de massa foi encontrado nas proximidades de um acampamento dos Hi-Merimã. A análise bromatológica dos grãos de amido desse bloco revelou se tratar de uma massa vegetal formada a partir da fécula de diversas plantas, entre elas, a Casimirella ampla As batatas Casimirella spp. vêm sendo descritas entre outros grupos indígenas como um alimento comum em períodos anteriores ao contato. Os Mura do baixo rio Madeira, por exemplo, afirmam que a batata manhafã era muito consumida no passado e ainda serve de referência para o reconhecimento dos locais ancestrais. Os próprios Jamamadi afirmam que, antes da época dos patrões, não conheciam a mandioca, e faziam seus beijus e grolados da massa do yamo e de outras sementes e frutos da mata. Esse tubérculo no território Hi-Merimã traz informações para além do consumo e atenta para uma janela histó-
Acima: Casimirella ampla, 2018.
Ao lado: Daniel Jamamadi extraindo batata da Casimirella ampla, 2018.
rica amazônica. A presença das mulheres no relato pode não ser um caso fortuito. É possível que a coleta dessas batatas pelos Hi-Merimã seja uma atividade feminina. As atividades de colheita da mandioca nos roçados entre os demais povos arawá das terras firmes também estão associadas às mulheres. A colheita da mandioca constituiria, afinal, uma atualização de uma prática ancestral de coleta e processamento desses tubérculos? É interessante salientar ainda o uso do machado pelas Hi-Merimã.
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Ver essa ferramenta sendo utilizada para cortar raízes de uma batata, e não para cortar madeira, nos faz refletir acerca do uso e da diversidade de aplicações das ferramentas líticas do passado.
[NOTA 6]
Matamatá é o nome popular atribuído a diversas espécies de árvores do gênero Eschweilera que, assim como outras representantes da família Lecythidaceae, têm uma entrecasca de fibras contíguas ao longo do tronco das árvores. Essas fibras, uma vez destacadas do tronco, transformam-se nas enviras. Isso faz com que grande parte das Lecythidaceae sejam chamadas genericamente de envireiras. O uso dessas árvores pelos povos indígenas é amplo e especializado. As maqueiras suruwaha, por exemplo, são confeccionadas a partir das fibras da Eschweilera amazonica. Outras variedades de matamatá produzem fibras consideradas de qualidade inferior, sendo voltadas para fins mais rústicos, como amarrações em acampamentos e produção de alças para o transporte de caças.
Os sukwady (tangas) suruwaha são feitos de algodão cultivado, e não a partir de enviras. Nossa hipótese é que o uso do algodão
Página ao lado:
Maqueiras suruwaha em acampamento de caça, 2018.
Ao lado: Canela-de-jacamim (Rinorea flavescens), 2023.
17 seja uma inovação recente nesse contexto etnográfico, como é o caso da própria agricultura. Registros históricos e fotográficos que atestam o uso de fibras de palmeiras e de Lecythidaceae com esse mesmo fim entre os povos do Purus corroboram essa hipótese. Acerca dos brincos e adornos labiais e nasais utilizados pelas mulheres Hi-Merimã, a canela-de-velho está associada na bibliografia botânica à planta Miconia albicans, abundante no Nordeste brasileiro e detentora de propriedades medicinais. Como espécies com um âmago mais denso e, consequentemente, melhor polimento são as preferidas para adornos corporais dessa natureza, aventamos a possibilidade de que a planta usada pelos Hi-Merimã seja a Rinorea flavescens, também empregada por outros povos indígenas da Amazônia para a confecção de adornos labiais — a exemplo dos Yanomami. É conhecida popularmente como canela-de-jacamim e, provavelmente, denominada canela-de-velho no Purus.
[NOTA 7]
Evidenciam-se novamente o intercâmbio e a assimilação de palavras entre as diferentes línguas e culturas do Purus. Ao se referir ao peixe que Carlinhos trazia consigo e pronunciar repetidas vezes atixã, uma corruptela da palavra “matrinxã”, a mulher Hi-Merimã
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mais velha demonstra conhecimento da língua do invasor e relativiza a categoria “isolados”, tão cheia de equívocos e más interpretações. As mulheres Hi-Merimã conheciam não apenas alguns aspectos da língua dos ribeirinhos, como também, provavelmente, os hábitos, moradias e ferramentas dos dois homens. Sabiam se tratar de integrantes da família que até pouco tempo antes habitava uma área mais acima no Canuaru — justamente por isso as mulheres Hi-Merimã adotaram uma postura destemida. Por outro lado, Domingos indica a planta chini panga como a responsável pela tintura utilizada pelas mulheres. Mais do que a precisão da identificação botânica, o curioso aqui é notar que o termo utilizado provém da língua quéchua e designa a planta urtiga (Urera spp). Em quéchua, chini = urtiga e panga = folha. Enquanto a palavra matrinxã parece ter subido o rio levada pelos colonizadores oriundos do Nordeste, a expressão chini panga deriva do alto Purus, talvez tendo descido o rio com os caucheros peruanos — ou povos Aruak, vizinhos dos Quéchua. De todo modo, não há registro do uso de folhas de urtiga por parte dos povos do Purus na feitura de tinturas corporais ou na extração de quaisquer tipos de pigmentos.
Renealmia crescendo em capoeira/tapera suruwaha, 2018.
Acima: Niadiru (in memoriam), mulher indígena suruwaha, debulhando sementes de idiahy (urucum, Bixa orellana), 2010.
Ao lado: Mão pintada com pigmento dos frutos de Renealmia, frutos maduros da Renealmia e pequeno bloco de tinta de urucum produzido pelas mulheres Suruwaha, 2018.
Entre os povos arawá, há o uso de pigmentos vegetais. Há registros do crajiru (Arrabidaea chica) pelos Paumari no passado. O chá de crajiru, preparado de suas folhas verdes, tem coloração avermelhada, tanto que seus frutos eram comumente usados por indígenas para tingir corpos e objetos. Há citações sobre sua propriedade corante no clássico Iracema, de José de Alencar, ao final do capítulo XXIII: “Ao romper d’alva, Poti partiu para colher as sementes de crajuru que dão a bela tinta vermelha […]”. Os Suruwaha cultivam amplamente o idiahy (Bixa orellana) em seus roçados. Já os Jamamadi relatam que costumavam extrair de
uma planta conhecida como yunisi uma tintura de coloração arroxeada, mas que hoje não a utilizam mais. Seria o yunisi a planta conhecida por Domingos pelo nome de chini panga?
Outro grupo de plantas, pertencentes ao gênero Renealmia, pode estar relacionado à pintura das mulheres Hi-Merimã.
Uma dessas plantas está associada às capoeiras dos Jamamadi e Suruwaha, a Renealmia aromatica. A polpa de seus frutos é um dos ingredientes para uma receita de mingau de milho. Segundo os Jamamadi, a receita dos antigos não levava milho, e sim outras massas, provavelmente fécula de tuberosas e sementes. Essas plantas não são cultivadas diretamente por esses povos. Uma vez colhidos os frutos nas capoeiras próximas, as sementes são descartadas nas proximidades das casas e dos acampamentos. No caso dos Suruwaha, por exemplo, a concentração do kaxiniari, como é conhecido por eles, representa o local exato de antigas malocas, e não de velhos roçados. Patauazais, bacabais e kaxiniarizais são taperas, casas dos antepassados desses grupos arawá. Segundo os Jamamadi, os antigos se pintavam com o sumo da casca do yusi, termo pelo qual designam todas as espécies de Renealmia. As variedades que apresentam frutos menores não são utilizadas na alimentação, mas ambas oferecem a tinta arroxeada bastante apreciada pelos madi.
[NOTA 8]
Um dos itens da cultura material registrados no interior dos acampamentos abandonados pelos Hi-Merimã são as tochas. Esse vestígio sugere que pequenos deslocamentos noturnos são realizados pelos Hi-Merimã com certa frequência. Essas tochas são confeccionadas a partir de pinas de folhas de palmeiras com amarrações de cipó ou envira. Sua ponta é formada por uma alça feita para envolver um pedaço de breu, material combustível que alimenta a chama. A julgar pela análise das tochas encontradas
pelas equipes de monitoramento nos acampamentos abandonados, os breus mais utilizados são resinas enrijecidas dos jatobás (Hymenaea spp) e da mescaou breu-branco (Protium heptaphyllum). No relato em questão, o fato de a mulher Hi-Merimã ter de empreender uma caminhada de algumas horas até alcançar seu acampamento possivelmente atesta a utilização de sua própria tocha para facilitar o deslocamento noturno pela floresta, e não de um tição, conforme sugeriu o senhor Domingos.
À esquerda: Tocha hi-merimã, 2021.
Ao centro: Breu de jatobá6, 2020.
À direita: Breu de mesca, 2023.
6. Encontradas em registros fósseis, essas resinas vegetais são conhecidas popularmente como “âmbar”, e por vezes são consideradas pedras preciosas.
[NOTA 9]
Em 2018, realizamos uma expedição de monitoramento no setor leste da TI Hi-Merimã. Na ocasião, os membros da expedição analisaram vestígios deixados pelo grupo isolado em sua recente passagem pelas cabeceiras do igarapé Canuaru, como acampamentos, varadouros, cerâmicas, plantas de uso cotidiano e diversos artefatos da cultura material com idades distintas, o que revela um uso cíclico do território por parte dos Hi-Merimã. Um dos varadouros mapeados conduziu a equipe até a capoeira do São Raimundo, antiga colocação da família do senhor Domingos, conforme transcrito no relato. Assim como outras antigas colocações de ribeirinhos em território hi-merimã, essa área se caracteriza pela presença de castanheiras (que não chegam a conformar um grande castanhal passível de exploração comercial), bem como de cupuaçu (Theobroma grandiflorum), cacau (Theobroma cacao), açaí (Euterpe oleracea)7, entre outras espécies exóticas domesticadas que, embora ocorram naturalmente em outras partes da Amazônia, foram levadas para a região por seus antigos donos e ainda se mantêm, mesmo que decadentes, a despeito do avanço da floresta nativa.
Foi possível observar no local as ruínas das antigas habitações, sobretudo os esteios de quariquara (Minquartia guianensis)8 das casas de palafitas e parte do barro da estrutura do velho forno
7. A espécie Euterpe oleracea não é endêmica do sul do Amazonas. Sua chegada à região está relacionada a projetos de agroecologia e fomento à agricultura familiar desenvolvidos pela Igreja católica. É conhecida regionalmente por açaí-de-planta. No sistema de classificação elaborado pelo professor Charles Clement, é considerada uma espécie semidomesticada. Açaizais formados por Euterpe oleracea tendem a declinar rapidamente quando tomados pela floresta nativa do Purus. A espécie manejada pelos Hi-Merimã é a Euterpe precatoria, considerada incipientemente domesticada e, segundo os ribeirinhos do Purus, de sabor muito mais apreciável do que a espécie exótica.
8. A madeira da quariquara é classificada como pesada, resistente ao corte e de grande durabilidade (quase imputrescível). Sua resistência ao apodrecimento faz da quariquara a principal espécie na confecção de esteios e postes. Na Amazônia, ela pode ser encontrada em construções monumentais, a exemplo do alicerce do Teatro Amazonas, e nos esteios das malocas suruwaha.
Cerâmica hi-merimã (canto inferior esquerdo) em meio a ruínas da colocação do São Raimundo, 2018.
23 da casa de farinha, junto a pratarias esmaltadas e garrafas de vidro. Em meio às ruínas dos brancos, estavam os vestígios dos Hi-Merimã — vestígios que se sobrepõem uns aos outros na floresta. Nessa última passagem pela capoeira do São Raimundo, os Hi-Merimã consumiram frutos maduros de açaí e cupuaçu e ataram suas maqueiras nos velhos esteios de quariquara. Havia muitos ouriços de castanha queimados no local. Eles queimam os ouriços a fim de facilitar a abertura deles sem comprometer os gumes dos terçados, seguramente escassos. O fato mais intrigante foi que os Hi-Merimã derrubaram as castanheiras para acessar os ouriços, motivo de estranheza e pesar entre os “mateiros-castanheiros” que integravam a equipe de expedição. Como já mencionado, a derrubada de árvores frutíferas é corriqueira entre os Hi-Merimã, sendo um vestígio característico. As espécies das quais se consome apenas a polpa, e não as sementes — a exemplo do patauá, do bacaba e do açaí —, parecem se beneficiar dessa prática hi-merimã. Mesmo que as palmeiras adultas sejam derrubadas durante a permanência do grupo em determinada região, ele forma pequenos nichos enriquecidos decorrentes do descarte das sementes no interior da floresta. Com essa prática, os Hi-Merimã protegem as sementes da predação natural de imensas varas de queixadas, que
maceram completamente os frutos e sementes no processo de mastigação. Por outro lado, as castanheiras não parecem se beneficiar dessa prática de derrubadas, uma vez que, diferentemente do que ocorre com as palmeiras, suas sementes são completamente consumidas.
No caso em questão, é precipitado afirmar o que motiva os Hi-Merimã a derrubar castanheiras produtivas. O certo é que agem assim com todas as espécies. O resultado desse manejo são florestas caracterizadas pelo domínio de patauás e uma quase ausência de castanheiras. Os Suruwaha, aliás, não possuem uma palavra específica para a castanheira e associam-na a uma espécie dos jara, os brancos. As castanheiras no território hi-merimã, com exceção de poucas isoladas em meio à floresta, estão associadas às capoeiras dos brancos.
Ao que tudo indica, do mesmo modo que os castanhais foram expandidos em razão do manejo dos povos indígenas do passado, singularidades etnográficas arawá — e não fatores ecológicos/ambientais — foram determinantes para se compreender a escassez de castanhais no interflúvio do médio Juruá/Purus. A capoeira do São Raimundo se caracteriza hoje pela ascensão de palmeiras frutíferas dividindo o espaço com algumas poucas castanheiras que ainda — mas não por muito tempo — permanecem de pé.