PUBLICAÇÃO ONLINE DA EDITORA EDITA-ME REVISTA GRATUITA QUARTO NÚMERO
NÃO PENSE. LEVANTE-SE E ANDE COMER POUCO, MUITO POUCO CAFÉ FAZ-SE EM CASA, NO ACONCHEGO DO LAR AQUECE-SE O CORPO COM COBERTORES OU COM OUTRO CORPO MELHOR A SEGUNDA HIPÓTESE TOMAR BANHO AOS DOMINGOS E FERIADOS, OU SÓ AOS DOMINGOS, PORQUE VÃO ACABAR OS FERIADOS TALVEZ NÃO ACABEM COM OS DIAS DO SENHOR OU DA NOSSA SENHORA NESSES TAMBÉM SE PODE TOMAR BANHO NOS OUTROS DIAS USAM-SE OS LAVATÓRIOS E OS BIDÉS, AQUELES EQUIPAMENTOS QUE ESTAVAM A CAIR EM DESUSO MAS QUE, NO PORTUGAL DO SÉCULO XXI, SÃO DO MAIS AVANÇADO QUE HÁ NÃO PENSE. LEVANTE-SE E ANDE A ROUPA AINDA SERVE. A NOVA MODA É A RECUPERAÇÃO DO VELHO RECICLAR É O MOTE DAS NOVAS TEMPORADAS QUE SE PROLONGARÃO NÃO SE SABE BEM POR QUANTO TEMPO ANDAR A PÉ E MUITO, FAZ BEM E AJUDA A MANTER O PESO MAS AS HORAS GASTAS NOS TRANSPORTES SERÃO SEMPRE BEM APROVEITADAS A LER UM LIVRO OU A LER O LIVRO DO VIZINHO, ELE QUE GASTE O DINHEIRO A FALAR DAS FÉRIAS QUE HÁ MUITOS ANOS SE FAZIAM, OU DA DESGRAÇA DA VIZINHA NÃO PENSE. LEVANTE-SE E ANDE ALMOÇOS VEGETARIANOS OU FRUGAIS, NAS MARMITAS DE TRANSPORTE QUE SE COMPRAM NO CONTINENTE AQUECIDAS NOS MICROONDAS DO TRABALHO. CAFÉ? DEMASIADO PODE FAZER SUBIR A TENSÃO NÃO PENSE. LEVANTE-SE E ANDE O SERÃO BEM OCUPADO COM A ROUPA, A LOUÇA, O PÓ, O ASPIRADOR. PURO EXERCÍCIO MELHORA AS ARTICULAÇÕES DE VEZ EM QUANDO VÊ-SE A TV, RTP, TVI E SIC, QUE NÃO HÁ DINHEIRO PARA PAGAR O RESTO NEM INTERNET, NEM JORNAIS, NEM CINEMAS, NEM CONCERTOS, NEM MUSEUS AS NOITES DE SONO SÃO MAIS PROFUNDAS NÃO PENSE. LEVANTE-SE. ANDE
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Revista Me n 4
EDITA-ME
POR CARLOS LOPES
E eis-nos chegados ao nº 4 desta publicação. Conforme afirmado no número anterior, ela tem-se revelado o ser vivo que sempre pretendemos que fosse, progredindo em participações, tamanho e diversidade.
Neste número, desenvolvemos novas vertentes em rubricas já existentes (como o caso da secção RE(C)TIFICA-ME, na qual criámos o “Consultório de Língua Portuguesa”) e continuámos a criar novas rubricas. Porque como desde sempre afirmámos, todas as formas de arte teriam o seu lugar nesta publicação, neste número contamos honradamente com a nova participação do Prof. Rocha de Sousa, que abre a secção EXPRESSA-ME – dedicada às artes plásticas – e com a nova participação da Prof.ª Cláudia Dias, que abre a secção ACTIVA-ME – dedicada à arte da dança.
Para além destas participações diretas, temos ainda via entrevistas, a participação de nomes de elevado reconhecimento como Valter Hugo Mãe, a propósito do seu último romance O Filho de Mil Homens e Cláudio Souto, a propósito da sua participação nos projetos musicais de Pedro Abrunhosa e outros.
Para além das anteriormente mencionadas, continuamos a contar com as valiosas participações dos nossos autores e colaboradores, que persistentemente, continuam a fazer desta nossa publicação uma realidade, que a todos nos deixa orgulhosos. Uma vez mais, acreditamos ter um número recheado de bons conteúdos, capazes de proporcionar bons momentos de leitura, como espero que aconteça com todos. Abraço, Carlos Lopes.
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5 9 13 33 51 63 69 79 87
CRÓNICAS DO INTERIOR Alexandra Malheiro EXPRESSA-ME Rocha de Sousa
CURTA-ME Carolina Alão . Maria Sofia Magalhães Carlos Silva . Julieta Lima . Jorge Pópulo . Maria Marujo . Miguel Santos Teixeira
RIMA-ME Carla Marques . José Bernardes Julieta Lima . Joaquim de Matos Pinheiro Jorge Pópulo . Maria Sofia Magalhães Miguel Santos Teixeira CONTA-ME Miguel Santos Teixeira . Henrique Normando . Miguel Leitão ARTIGO EDITORIAL Carlos Lopes RE(C)TIFICA-ME Ana Salgado
OPINA-ME Celeste Pereira . Entrevista a Valter Hugo Mãe
DESCOBRE-ME Gisela Casimiro por Ruth Ministro
93 99 111 119 125 131 137 145
CONVIDA-ME Rui Sequeira
AVENTURA-ME Pedro Branco . Sara Maia Prata ILUSTRA-ME Miguel Ministro
COMPÕE-ME Pedro Lopes . Entevista a Cláudio Souto FILMA-ME Adrião Pereira da Cunha ATIVA-ME Cláudia Dias
FOTOGRAFA-ME Tiago Gonçalves
INVENTA-ME Miguel Santos Teixeira . Nuno André Marques Nantes
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CRÓNICAS DO INTERIOR
ESTA SECÇÃO DESTINA-SE A CRÓNICAS COM A ASSINATURA DA AUTORA ALEXANDRA MALHEIRO. SENDO UMA PROPOSTA DA MESMA E UMA PRESENÇA ASSÍDUA, A SECÇÃO ASSUMIU A IDENTIDADE QUE A AUTORA, LEGITIMAMENTE, ESCOLHEU.
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CRÓNICAS DO INTERIOR
POR ALEXANDRA MALHEIRO
É de crise o tempo, dizem, de aperta-o-cinto, diariamente nos relembram. Não há dinheiro, não há emprego, não há vontade, não há comida nos pratos dos pobres, não há perspectivas nem expectativas, não há futuro, não há futuro…
Apostado em fazer de conta que corta na despesa cortando em número os ministérios, ao mesmo tempo que multiplica secretarias de estado, o actual governo deixou de fora um ministério que não nos devia faltar e tão importante ele seria que começamos a ver a sua importância no preciso momento em que notamos que nos falta – o Ministério… da Ausência.
Quando nascemos somos felizes, felizes de existir até encontrarmos a primeira, das muitas, ausências que havemos de experimentar vida afora, a ausência do ambiente aquoso uterino. Sentimos falta de ar à nascença, e por essa ausência desatamos a gritar, até percebermos que assim conseguimos mesmo que nos entre ar pelos pulmões dentro. Começa assim e vai por aí fora, a fome é outra das nossas primeiras ausências, uma barrigada de choro e, assim esperamos, resolvem-nos de novo o problema. Pelos oito meses, a nossa vida muda, percebemos algo que até ali desconhecíamos – a Mãe afinal não faz parte de nós, é outro e sendo outro pode
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afastar-se, desaparecer, tornar-se ausente, só nessa altura percebemos isso e é assim que passamos para o patamar seguinte do calvário deste sofrimento por ausência. Quando percebemos não apenas o que nos falta mas tudo aquilo que agora temos e nos pode vir a faltar, compreendemos até onde pode ir a nossa infelicidade – começamos logo aqui a sentir-nos infelizes por antecipação. Conforme vamos experimentando ausências, que deixam de ser apenas imaginadas ou pressentidas para passarem a ser reais, vamo-nos tornando infelizes. Infelizes de ausência. Se repararmos, face às ausências que a vida nos vai colocando, quase sempre temos vontade de chorar. Uns cumprem-na em marés de salgadas lágrimas e outros nem por isso, por serem especialistas em travarem-nas a tempo, mas lá
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que a vontade surge, isso surge e porquê? Porque as primeiras ausências que experimentamos na vida, as que atrás referi, eram resolvidas após o choro, criamos essa memória inconsciente e ela acompanha-nos, até percebermos que nada nos resolve o choro se a ausência que temos não for coisa que uma Mãe a jeito nos possa resolver (e quase nunca é, quando na idade adulta). Os que são pobres têm ausência de quase tudo, é bom de ver, de casa, de comida, de roupa, até se arrastarem à ausência do sonho e da vontade, mas os que tudo têm no sector material padecem de toda a espécie de ausências outras, de afecto, de tempo, de silêncio, de amor(es). Há um sem-fim de ausências que cada um sabe e sente conforme os contornos que a sua vida vai tomando. É, portanto, um sentimento democraticamente distribuído. Se temos pouco,
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CRÓNICAS DO INTERIOR
ALEXANDRA MALHEIRO NASCEU EM 1972 NO PORTO, EM MIRAGAIA, MAS VIVE DESDE SEMPRE NO BONFIM. É LICENCIADA EM MEDICINA E
ESPECIALISTA EM MEDICINA INTERNA E É TAMBÉM NO PORTO QUE EXERCE.
AUTORA DE CINCO LIVROS DE POESIA,
ENTRE OS QUAIS GEOGRAFIAS DISPERSAS E LUZ VERTICAL QUE CONTA COM
PREFÁCIO DE PEDRO ABRUNHOSA.
TEM TAMBÉM POEMAS EM ALGUMAS
ANTOLOGIAS E ARTIGOS ESPALHADOS AQUI E ALI EM JORNAIS E REVISTAS,
COLABORAÇÕES PONTUAIS QUE LHE DÃO MUITO GOZO.
TEM UMA PÁGINA DE AUTOR EM
somos plenos de ausências mas ainda que tenhamos muito, há sempre nem que seja apenas uma ausência que nos entristece, nos tolhe, nos faz definhar. Ninguém é imune à ausência. Há os que vivem infelizes percorrendo toda a espécie de ausências e há os que, sendo felizes, tremem de perder para a ausência os objectos que alimentam a sua felicidade. No intervalo entre estes residem todos os outros, cada um que encontre o seu lugar no longo espectro.
Por isso sou favorável à criação de um Ministério da Ausência. A sua inexistência actual faz de mim uma pessoa ansiosa e infeliz, mal tratei de o imaginar, já lhe sinto a falta! Portanto, senhores governantes, façam o favor de meter mãos à obra, que já tenho saudade antecipada do subsídio de férias e de Natal, meus bons e velhos amigos que não vejo por que perder, sempre os tratei tão bem e éramos tão felizes os três. Ministério da Ausência já! É isso ou um pacote de lenços.
www.alexandramalheiro.no.sapo.pt
QUE CONVIDA A VISITAR.
Obras publicadas pela EditaMe:
EXPRESSA-ME
AS ARTES PLÁSTICAS SÃO, TALVEZ, DAS FORMAS DE ARTE COM MAIOR VISIBILIDADE E EXPOSIÇÃO PÚBLICA. O PROF. ROCHA DE SOUSA, DEU-NOS A HONRA DA SUA PARTICIPAÇÃO, ABRINDO ESTA NOVA SECÇÃO, NA QUAL PARTILHA A SUA VISÃO.
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EXPRESSA-ME
POR ROCHA DE SOUSA Flores brancas, sem nome para mim, nada sei de flores, só de pétalas. E estas são maleáveis, invadem o meu espaço como brumas evocadas. Sinto o desejo de as pintar e tudo o que me ocorre é usar branco de zinco, o único que me resta entre tubos e pincéis secos. Procuro, assustado, o conteúdo das caixas, são restos, pedaços de sonhos, cores ao acaso, azuis e vermelhos e amarelos primários, congelados no interior do estanho. Olho em volta e em volta só vejo o que foi um lugar de trabalho, a oficina, cortinas cinzentas, rasgadas, entre molduras despidas, panos sujos, em montes, onde a limpeza dos pincéis deixou marcas de mais cores ou tonalidades envelhecidas pelo tempo e pelo pó. Submerso na memória das memórias, sinto de novo o palpitar das cores e gosto, como sempre, de as ver assim baças, reguladas pelo branco das pétalas que as distancia de mim, obra do fazer a perder o azul em dissolvências enviesadas. A cor aparece e desaparece. Tudo o que resta tem a neutralidade de um sono vazio, a preto e branco. Mas todos sabemos que a cor não é apenas assunto de pintores. E que a relação dela com o perfume não passa de uma passagem subjectiva entre olhares e cheiros.
O lixo reflecte cores.
Um velho sentado é um velho sentado que eu vejo tendencialmente feito de cinzentos, semelhança na diferença dos restos de tecidos desbotados. São as convenções do pensar em devaneio, os desvios do olhar na fabricação do ver. Ver é por isso tão contingente como as obscuridades do ser. Penso então em alguém solitário, só imagino um velho, aquele de há pouco ou outro qualquer. Mas o sol intensifica-se atrás das sebes. Ora aí está a imagem na qual a contraluz (luz) confere ao verde várias tonalidades de sombra verde, valores, uma espécie de sinfonia em parte atonal e que vibra em mil fracções de verde logo que o sol começa a subir na oblíqua de uma curva: tudo muda e ganha outros nomes (como diria Goethe). Mas essa luz mutante é sobretudo um modo de ver, por vezes infiltrado pelo imaginário, uma branda passagem entre o tempo e as sensações. Porque a cor (o verde ou outra ao acaso) não se percebe só, com efeito, num espaço de impulsos psicológicos ou psíquicos, romance do gosto e da sensibilidade do ser. Não está nas coisas e nos seres como pele de incitamentos. Ela
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EXPRESSA-ME
DESDE MUITO CEDO DEDICADO À LITERATURA, ROCHA DE SOUSA
ESCREVEU GUIÕES E DEU APOIO À
está antes em nós, na contingência da recepção visual da luz que vem do espaço e é reflectida pelos materiais em diferentes comprimentos de onda. Seja como for, qualquer simplificação desta mecânica cósmica não alcança o sentido de tudo num sentido só.
O velho sentado, de olhos tombados sobre o visível, sabe que o tempo e a cor mudam, lá fora e dentro de nós. Quando esse velho, ele e nós, regressamos a casa, o verde das sebes ou da paisagem começa a tornar-se insonso, quase perdido do nosso olhar. Resta dizer que o velho pintor estava sonhando com a contingência do seu ofício. Sonhava na sua cama, se a tinha. Estar lá fora, a olhar e a pensar no ver (a sofrer), lembra o longo acto de imaginar a pintura a congelar-se na tela. Mas o filme desta história teria de ser um plano fixo?
Ah, as folhas de novo, como se vogassem na neve, um verde fugidio ali. Para onde foi alguém na história bela de todas as viagens? Belo é tudo e é nada, porque tudo passa pela nossa subjectividade mais secreta. Bela é a mão branca tombada (pétala?) sobre uma nesga de terra, ao fim do imenso travelling de Tarkovsky num dos seus melhores filmes. A cultura do ver e do ser, em profundidade, faz-nos descobrir o transcendente a surgir dessa mão em perda, talvez em espera, única com toda a certeza.
REALIZAÇÃO DE SÉRIES TEMÁTICAS DEDICADAS ÀS ARTES
CONTEMPORÂNEAS. «A MÃO: O HOMEM EM DESENVOLVIMENTO» FOI UMA DESSAS PRÁTICAS, UMA DAS MAIS NOTADAS.
TEM ESCRITO CENTENAS DE TEXTOS DE ANÁLISE E REPRESENTAÇÃO DE EXPOSIÇÕES INDIVIDUAIS OU COLECTIVAS.
DESDE OS ANOS 60 QUE TEM
PARTICIPADO EM VÁRIAS EXPOSIÇÕES COLECTIVAS, NO PAÍS E NO
ESTRANGEIRO. ALGUMAS DAS SUAS
OBRAS ESTÃO INTEGRADAS EM MUSEUS NACIONAIS E INTERNACIONAIS.
Obras publicadas pela EditaMe:
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CURTA-ME
DESAFIO À CRIATIVIDADE DOS AUTORES NO SEU PODER DE SÍNTESE, CURTA-ME DESTINA-SE A TEXTOS CURTOS, DE APENAS UMA PÁGINA.
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CURTA-ME
POR CAROLINA ALÃO
Podia começar este preliminar por: “No tempo em que os animais falavam...”, ou, recuando mais ainda: “No tempo em que as pedras falavam...”, mas julgariam então que vos ia contar uma “história da carochinha”. Digamos, para não ficarem desapontados, que vos vou contar uma história com História. Vou contar-vos a história do Panchatantra com História dentro, mas não irei dizer qual é o quê, portanto cabe-vos a vocês fazerem a separação entre a ficção e a realidade, entre a fábula e a verdade, se tal for possível.
No tempo em que as pedras falavam havia um manuscrito, chamado Panchatantra, redigido em sânscrito, que continha uma série de apólogos destinados tanto a ensinar, como a divertir. Dizem que remonta ao ano 300 da nossa era, mais coisa menos coisa, mas, na verdade, não se sabe a data exacta, nem o conteúdo, visto que desapareceu. Diz-se tanta coisa acerca do Panchatantra, que uma vida talvez não bastasse para recolher o que existe sobre o tema. Por isso, chamamos esta tentativa de incompleta, por termos consciência das nossas limitações.
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CAROLINA ALÃO NASCEU EM PAÇOS DE FERREIRA EM 1969. VIVE NO PORTO.
ESTUDOU SOCIOLOGIA NA FACULDADE
Como já havia essa noção de que para ensinar era preciso divertir, recorreu-se a exemplos retirados da vida animal. Pois é, a arte do entretenimento não é assim tão recente como a imaginávamos, nem a parabólica, que antes de estar nos telhados dos nossos prédios estava nos discursos e na filosofia dos pregadores. Diziam-se discursos parabólicos porque recorriam frequentemente à parábola, ou a exemplos. Mas as imagens que recebemos nas nossas televisões, não serão elas uma forma sofisticada de parábolas, de exemplos cuidadosamente seleccionados para ilustrar uma ideologia, um discurso dominante? Do mesmo modo podemos questionar se as parábolas, as alegorias, as fábulas, não seriam as imagens daquilo que se pretendia ensinar, transmitir, doutrinar, propagandear nos tempos idos. Não se diz que uma imagem vale mais do que mil palavras?
No tempo em que as pedras, os animais e os homens falavam (hoje não falam, comunicam) havia um manuscrito em sânscrito, chamado Panchatantra, que continha uma série de apólogos, parábolas, alegorias, fábulas, contadas a partir de exemplos baseados na vida animal. Como esse manuscrito se perdeu, imaginêmo-lo como uma resma de folhas em branco (ou de pergaminhos, é mais bonito), folhas essas onde se foram escrevendo, reescrevendo, traduzindo e adaptando sucessivas histórias, dependendo do gosto e do interesse das diversas épocas e dos sucessivos tradutores. FIM DA PRIMEIRA PARTE.
Mais informações disponíveis no blogue www.fabulassonhadas@wordpress.com
DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO. É FORMADORA EM VÁRIAS ÁREAS E É VOLUNTÁRIA PARA A LEITURA EM DIVERSAS BIBLIOTECAS.
NOS TEMPOS LIVRES DEDICA-SE À
RECOLHA, PESQUISA E TRADUÇÃO
DE FÁBULAS, CUJOS RESULTADOS VAI PUBLICANDO NO BLOGUE
fábulassonhadas@wordpress.com
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POR MARIA SOFIA MAGALHÃES Não pense. Levante-se e ande. Comer pouco, muito pouco. Café faz-se em casa, no aconchego do lar. Aquece-se o corpo com cobertores ou com outro corpo. Melhor a segunda hipótese. Tomar banho aos domingos e feriados, ou só aos domingos, porque vão acabar os feriados. Talvez não acabem com os dias do Senhor ou da Nossa Senhora, nesses também se pode tomar banho. Nos outros dias usam-se os lavatórios e os bidés, aqueles equipamentos que estavam a cair em desuso mas que, no Portugal do século XXI, são do mais avançado que há.
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MARIA SOFIA MAGALHÃES NASCEU A
27 DE DEZEMBRO DE 1961, É CASADA, MÃE DE DOIS FILHOS.
É ESPECIALISTA EM ANATOMIA
PATOLÓGICA E DIRECTORA DO SERVIÇO DE ANATOMIA PATOLÓGICA DO
HOSPITAL FERNANDO FONSECA, EPE. POSSUI DESDE 2005 UM BLOGUE DE AUTOR “DEFENDER O QUADRADO”, QUE CONVIDA A VISITAR EM
http://defenderoquadrado.blogs.sapo.pt
Não pense. Levante-se e ande. A roupa ainda serve. A nova moda é a recuperação do velho. Reciclar é o mote das novas temporadas, que se prolongarão não se sabe bem por quanto tempo. Andar a pé e muito, faz bem e ajuda a manter o peso. Mas as horas gastas nos transportes serão sempre bem aproveitadas a ler um livro ou a ler o livro do vizinho, ele que gaste o dinheiro, a falar das férias que há muitos anos se faziam, ou da desgraça da vizinha. Não pense. Levante-se e ande. Almoços vegetarianos ou frugais, nas marmitas de transporte que se compram no continente, aquecidas nos microondas do trabalho. Café? Demasiado pode fazer subir a tensão.
Não pense. Levante-se e ande. O serão bem ocupado com a roupa, a louça, o pó, o aspirador. Puro exercício, melhora as articulações. De vez em quando vê-se a TV, RTP, TVI e SIC, que não há dinheiro para pagar o resto. Nem internet, nem jornais, nem cinemas, nem concertos, nem museus. As noites de sono são mais profundas. Não pense. Levante-se. Ande.
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CURTA-ME
POR CARLOS SILVA Júlia abriu o seu pequeno caderno de capa preta revelando o cravo seco entre as suas páginas. Com cuidado depositou o pequeno tesouro em cima da mesa da sala para que Alfredo pudesse apreciar. O rapaz pouca atenção deu às páginas, os seus olhos estavam enfeitiçados por aquelas tranças pretas com madeixas violetas, pelas quais se apaixonara quando as viu descer o Chiado. – Foi com esta flor que tudo começou. – Disse ela – Foi ela que me fez deixar de ser a Júlia advogada para dar vida à Júlia florista. Essa flor, do craveiro nas águas-furtadas por cima da varanda da minha primeira casa. – Podias dar-me a morada? Gostava de ir lá, ver com os meus olhos…
A rapariga riu-se.
– A casa já não existe. Ainda no Domingo passado lá passei. Está tudo tão mudado! Nem janelas com tabuinhas, nem cortinados de chita às pintinhas, nem espreitadelas furtivas das vizinhas. Agora é uma casa de penhor, gerida por um sujeito que é lingrinhas. Para terem feito da casa o que fizeram, mais valia que a tivessem mandado para as alminhas. Os meses que Alfredo já dedicara àquela rapariga faziam o monólogo parecer normal. Estava apaixonado. Não havia dia que pudesse não a ver, não havia hora que não pensasse nela. Hoje era a primeira vez que tivera coragem de lhe dirigir a palavra. Contou-lhe as vezes que a esperara em S.
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Pedro de Alcântara, só para a ver passar. Revelou-lhe as inúmeras vezes que a tentara abordar, apenas igualadas ao número de vezes que o corpo se recusara a fazê-lo. Ela, simplesmente, sorriu e convidou-o para beber café em sua casa. Subiram os rangentes degraus de madeira até ao terceiro andar onde fizeram amor, que a falar não se podiam dar. Puseram as almas a cantar, como Júlia dizia, porque as almas sabem escutar. Dormiu com ela uma semana, inebriado de paixão, afogando-se nos seus carinhos. Partia de manhã, arrastava-se pela vida, só voltava à noite, sempre em silêncio. Ao fim dos sete dias é que voltaram a falar, para revelar o segredo que ela era. Nesse dia ela abriu-lhe a porta ainda antes de ele bater: – Chegaste a horas, como de costume. – Foi à cozinha, buscar uma bica acabada de tirar – Bebe um café e depois leva-me aos fados. É lá onde eu sossego as desventuras do amor a que me entrego. Alfredo não sabia negar um pedido de Júlia. Mesmo que soubesse, nunca o faria.
Chegaram cedo demais, mal o restaurante acabara de abrir. Escolheram a mesa mais perto do local onde a fadista iria chorar a cantar e aguardaram. Antes que os empregados pudessem trazer os pratos e talheres, Júlia encheu a mesa de objectos inauditos das mais variadas proveniências. Todos eles eram um pino que formava um segredo para a chave daquele mistério. O mistério que levava Alfredo a tê-la apanhado a roubar, como uma criança, de vestido branco e sandálias, exclamando assustada: consertei as figurinhas…
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Tudo começara com aquele cravo e aquela casa. O rapaz inclinou-se para ouvir a história. – Há gente que fica na história da gente, e outras de que nem o nome lembramos ouvir. As coisas vulgares da vida não deixam saudade, só as lembranças que doem ou fazem sorrir. Percebes? – Sim.
– Nas águas-furtadas havia uma mulher que plantava os cravos mais lindos de Lisboa. Todos os dias, bom dia, boa noite, água e amor. Todos os dias lhe dizia um adeus sem resposta, confiando que já lhe era tarde para falar. No dia em que ela morreu, veio o caixão, foi o corpo, mas os cravos mais lindos não. Deixou-me em testamento o segredo das suas flores. Uma frase apenas resumia o procedimento: Lágrimas de um amor perdido é rega única e suficiente. – E então guardaste um cravo, para te lembrares dela.
– Guardei-lhe um cravo, para que essa Lisboa não fosse esquecida. Cada pessoa é uma Lisboa. Cada sua história é uma rua errada à toa. Os encontros são os mercados, as memórias prédios abandonados. As paixões são o Rossio, os desgostos enchem o rio. E as pessoas, as pessoas são essas que nos enchem a saudade. Alfredo olhou para a parafernália com redobrada atenção. – Cada objecto representa uma pessoa que conheceste. Cada objecto conta uma história de Lisboa que tu não queres esquecer.
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– Cada objecto é de uma Lisboa que luta para não ser esquecida. É um emaranhado de cordões que nos entrelaça o peito e que precisa de ser solto! Corro risco de sufoco com esta voz que me grita! Por mais que eu faça ou não faça, quem manda é ela, por mais que eu diga. Mesmo que eu diga que não quero ser escrava dela e deste fado. Mesmo que fuja em desespero, ela aparece em qualquer lado. Por muito que eu apague a chama, ela renasce ainda maior. Por muito que me afaste dela, fica mais perto, até maior! Por isso vês, não tenho outra opção senão coleccionar todas as Lisboas que não querem desaparecer.
Na hora seguinte, enquanto os primeiros jantares eram servidos, Júlia mostrou-lhe o que estava para além de cada objecto. A madeixa loira que o Sueco cortara para dar ao seu amor de Verão. O último pedaço de giz do antigo mestre-escola, que continuara a ensinar à varanda, para quem quisesse aprender. O brinquedo trazido para o filho de um amor clandestino. O primeiro euro do artista que vira nas sete colinas as curvas do corpo da sua musa. As calças vermelhas, apenas compradas porque já não havia nada a perder. O punhal que matara, à traição, um mouro na conquista de Lisboa. O postal que fizera uma alemã trocar o currywurst pela sardinha. O cromo trocado na infância que ditara um casamento. As cuecas trocadas na juventude que ditaram um divórcio. A cruz do cavaleiro monge. O papelote do dito maior mastro do Mundo. Entre muitos outros objectos, recuperados dos escombros de tantas outras Lisboas. No final, já fora do restaurante, repousando um casaco sobre os ombros gelados de Júlia, Alfredo apenas conseguiu suspirar com pena:
– Tantas Lisboas e uma só cidade.
Apanharam um táxi para a casa dela. Estava tudo escuro e deserto no bairro que era alto. Era lá que ela morava, mesmo ao lado da Lisboa nocturna, das bebedeiras, dos amigos, das loucuras e das conversas que só o luar sabe iluminar. Entraram em casa, sem tocar nos interruptores, e sentaram-se em frente à televisão desligada. Finalmente ele conseguia percebê-la. Eram troncos da mesma raiz da vida que os juntou. Entendia finalmente, mergulhado naquele silêncio de amantes onde a noite era mais forte, porque é que ela arriscara tanto para ter aquele objecto que se erguia entre eles e a televisão.
Era belo, ostentava uma riqueza que nunca houvera senão em si próprio. As doze figurinhas ajoelhadas à sua volta, em penitência constante… ou talvez admiração… Sentia a vibração das centenas de Lisboas que por ali tinham passado. Conseguia cheirar os odores antigos, ouvir as ladainhas, sentir todas as épocas em que ela existira. Não havia melhor lugar para ela que no meio das outras Lisboas todas que Júlia reunira. Júlia levantou a cabeça do ombro de Alfredo e esticou o braço, tocando numa das figurinhas que se havia partido no transporte. A Custódia de Belém ganhou vida, como uma estrela, para contar as suas histórias à única mulher que a podia ouvir. Uma lágrima solitária escorreu pela face da rapariga das tranças pretas. Aninhou-se em Alfredo e murmurou:
– Espero ainda que me perdoes a minha inocente inclinação para o mal.
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CARLOS SILVA NASCEU NO AUSPICIOSO
ANO DE 1989 EM LISBOA E DESDE AÍ, O MUNDO CONTINUOU A MUDAR.
A SUA MENTE HIPERACTIVA NUNCA LHE DEU DESCANSO E O DIA EM QUE ISSO ACONTECER ASSUSTA-O DE MORTE.
ACTUALMENTE ESTUDA PARA SER UM HOMEM DE CIÊNCIA, MAS QUANDO
NINGUÉM ESTÁ A OLHAR ESCREVE AS
HISTÓRIAS QUE ANDAM PELA SUA CABEÇA. ALGUMAS OBRAS E NOVIDADES DO
AUTOR PODEM SER ENCONTRADAS EM: www.carlossilva.webs.com
Obras publicadas pela EditaMe:
Obrigado a todos os fados e canções (e seus intérpretes) da minha vida:
A moda das tranças pretas (Vicente da Câmara), Cheira a Lisboa (Amália Rodrigues), A Casa Da Mariquinha (Amália Rodrigues), Loucura (Mariza), Leva-me aos Fados (Ana Moura), Apanhada a Roubar (Naifa), Chuva (Mariza), O Fado não é mau (Deolinda), Fado Tordo (Mariza), Clandestino (Deolinda), Calças Vermelhas (Naifa), Cavaleiro Monge (Mariza), A Problemática Colocação do Mastro (Deolinda), Há palavras que nos beijam (Mariza), Uma inocente inclinação para o mal (Naifa). Aos quais peço que me perdoem por ter roubado o sentido às palavras, colhendo frases para dar origem a este conto.
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CURTA-ME
POR JULIETA LIMA
Sangue, papagaios rubros, relâmpagos com as cores do arco-íris a explodir de um cano negro sobre a alvura da tijoleira branca.
Um fio insidioso a escapar-se. Duas asas a descaírem num rodopio de roupas brancas. O desespero ergueu-se entre dois braços e uma serpente vermelha avançou sob o terror atónito das vítimas.
– Olhos abertos! Não podes desmaiar agora. Tudo era silêncio e sangue morno. Nem um gemido, só medo e mais sangue. Eu ganho forças, reteso-me.
A noite transformou-se num semáforo verde, o carro avançou sem travões impelido por uma
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força que talvez deus mandasse. Talvez houvesse deus e eles conseguissem chegar a tempo e talvez não e aquilo fosse o diabo, mas se há diabo tem de haver deus, seu contrário. E se não houvesse nada neste desgraçado universo onde se nasce e morre sem esperança, correndo como agora contra aquela corrente que parecia misturar-se à baba da morte? Não tenho tempo para conjecturas. Destas filosofias só os mortos sabem. Devo concentrar-me. – Bolas!
O carro rodopiou na estrada molhada. Endireitou-se. Senti-me sacudido mas aguentei. Levaria a cabo a minha missão. – Tenho frio.
– Respira fundo, estamos a entrar no hospital. Foram meteóricos, os minutos seguintes.
– O feto não mexe mas está vivo, temos de o pôr cá fora.
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– Já!
– Incisão!
– Vigiem a mãe, a criança está bem.
Não torci, não quebrei, só a tesoura afiada conseguiu separar-me do corpinho vibrante que eu defendera até ao limite da minha fragilidade. – Bebé milagre, oh meu amor!
Ouço o vagido forte do menino. Parece querer agradecer-me antes que me levem.
Cumpri o meu dever. Estou agora no contentor para a incineração.
Irei com o fumo juntar-me às nuvens, fazer parte da galáxia onde, à tardinha, os milagres se juntam e os anjos tomam chá com as estrelas. Em seu redor há luas sorridentes e constelações brilhantes de cordinhas frágeis que quiseram ser amarras, e conseguiram.
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CURTA-ME
Há uma loja de brinquedos à beira de uma estrada por onde passo.
No exterior há uma pessoa vestida de brinquedo. O corpo coberto de alto a baixo por uma espécie de «babygrow» de pêlo com uma cabeça de urso. Há já muitos anos que ali passo e aceno ao urso com o mesmo ar vazio com que ele acena a todos os passantes. E vou sempre com a pergunta a doer – o que é que faz um homem/mulher viver vestido de urso e passar dias a fio a dizer adeus a quem passa? No verão passado, ao calor do meio-dia doeu-me mais e inverti a marcha. Fui a caminho do urso no intuito de falar com ele/a,
tentar saber por que preço se prestava ao suplício de passar os dias à torreira do calor, sempre na mesma posição, sempre a acenar. Estendi-lhe a mão e o urso, meio receoso, retribuiu o cumprimento. Era mão de homem preto. No fundo do ursino capuz, tinha uns olhos escuros mais tristes que uma noite sem lua. «Desculpe, posso falar consigo, passo aqui há tanto tempo… queria saber de si, se só tem este trabalho, onde vive». O urso afinal era homem, voltou a olhar-me das profundezas de uma tristeza inexplicável e balbuciou «Nã fala português». No outro lado, o dono da loja olhava-me meio desconfiado. Dirigi-me a ele, pedi desculpa por estar a importunar o funcionário e fiz-lhe saber do meu padecimento pelo calor desumano que
Revista Me n 4
JULIETA LIMA NASCEU EM OLHÃO EM 1949.
RESIDE EM ALMANCIL DESDE 1980. FOI BANCÁRIA NO BES, AGENTE DA TRANQUILIDADE SEGUROS E
SIMULTANEAMENTE EMPRESÁRIA NO RAMO IMOBILIÁRIO.
É MÃE DE QUATRO FILHAS. ESCREVE POESIA E PROSA.
O SEU 1º LIVRO DE POEMAS,
NO ORVALHO DAS HORAS FOI
POR JULIETA LIMA
aquela criatura padecia diariamente (não lhes perguntei a troco de quê nem de quanto). Muito enxuto, disse-me que aquilo era muito agradável, que ele mesmo e a esposa muitas vezes vestiam o disfarce e faziam de ursos, que o «urso» era muito bem pago e muito feliz, que a roupa de pêlo era muito fresquinha e que no pino do calor até lhe davam água e lhe punham um chapéu-de-sol.
Atrás de nós, o urso, ora numa perna, ora na outra, acenava.
Lembrei-me de chamar a SIC mas ocorreu-me que o homem poderia estar aqui imigrado ilegalmente e que por causa das minhas manias poderia ser repatriado sei lá para onde, para se vestir sei lá de quê. Fugi dali para fora. Hoje passei por lá de manhã. Anunciava o «Halloween», desta vez tinha uma cartola preta, uma capa e uma foice de papelão na mão esquerda. Com a direita acenava. Acenava talvez à vida que há para lá do destino de um homem que ganha a vida feito urso, a acenar, mais nada, a acenar.
PUBLICADO EM 1989. PELA EDITA-ME PUBLICA AGORA O LIVRO DE
CONTOS PORTA SIM PORTA NÃO.
Obras publicadas pela EditaMe:
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CURTA-ME
“Não tenho fome, apenas alguma sede.” Foram as primeiras palavras que lhe proferiu, ao fim de algum tempo sentado à sua frente.
POR JORGE PÓPULO
Estivera ausente por horas de desespero, para ele e para ela. Agora, ali, preso a um tempo, a um espaço e a uma pessoa, apenas soletrava pequenas nascentes de água salgada nos bugalhos vivos e coloridos do mais verde acastanhado que a natureza pode conceber. Dir-se-ia que as palavras não se encontravam com o pensamento; dir-se-ia que havia tanto a dizer, mas tão pouco discernimento e vontade de o fazer. Sabia que a iria magoar… Tentou uma, tentou duas, mas terminava como começava: um longo suspiro, inerte no ar, naquele ar que estava mais suspenso do que o habitual.
Revista Me n 4
Ela, impávida e não menos escura do que a cal, sentia-se como um imenso funil. Só tinha ouvidos, nada mais. Para seus pecados, o seu sentido mais apurado não encontrava o estímulo procurado. Aquilo que recebia poderia escutá-lo de olhos fechados e só com o coração. Não precisava de ouvidos. Queria bem mais, muito mais! “Diz-me!” Lançou enfim, acutilante no rasgar do silêncio.
Porém, ele, mascarado para si mesmo, confortava-se com a noção de que já tudo dissera. Doce ilusão, de fraca demora. Se não fosse para desenrolar o novelo da angústia, não teria regressado sequer. Ai, como seria bom esquecer e retomar o de sempre, esquecendo tudo o demais! Não pode ser. Ele é mensageiro do presente e do futuro, do que está para acontecer. Então? Ainda sem fome, começou a falar de fruta.
“Hoje, abri uma maçã e pensei como é possível um pequeno botão resultar num corpo doce e sumarento, rijo mas imediatamente macio. Com cor vermelha, alegre e de um branco imaculado por dentro. Saboreei-a com satisfação, crente na sua magnífica prontidão de me alimentar o corpo e a alma. Quanto mais desvendava a maçã, mais gostava do que sentia, do saber que ela me transmitia. Pensei novamente: qual maravilha da natureza providenciou este querido encontro com tão belo ser nascido de um botão e trazido pelo acaso?”
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Nesse momento, suspirou mais uma vez e, como que queimado pela labareda do candeeiro, tapou o rosto com as mãos, dando o primeiro gemido.
Ela, sempre pragmática na reflexão do mundo, nada entendia daquela estranha conversa. Já o olhava com o paternalismo do coitadinho, misturado na irritação crescente pela ignorância do motivo de tamanho atraso. Dois dias e seis horas para além da hora religiosa de chegar a casa ao fim da tarde, de todos os dias de trabalho… É muito tempo para passar despercebido. Consumia horas longas em que não dava pela presença dele, noites que dormia como que sozinha, manhãs em que se esquecia que acordava acompanhada ou refeições em que não via o outro prato. E ele sempre ali, como um odor que se aproxima e tenta apegar, de fragrância falhada. Contudo, dois dias e seis horas é mesmo muito tempo! Por isso há que apertar com ele e puxar pela verdade.
“E que qualidade espantosa tinha essa maçã, que te fez desviar perdido, como um miserável, para longe das tuas obrigações?” E ele… após um segundo gemido e já com as águas da nascente a borbulhar como germes de pequenas avalanchas, respirou fundo e deixou a dor disparar o mal que o matava por dentro e que tanto cuidara evitar propagar-lhe o contágio...
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Revista Me n 4
CURTA-ME
JORGE PÓPULO NASCEU EM 1970. NOS
BRAÇOS GRANÍTICOS DO INVICTO BERÇO PORTUENSE E DA ALCOFA DE MATIZ
TRANSMONTANO, VIU A LUZ EMANADA DA MATERNIDADE, PARA LOGO
ESPREITAR AS CORES DA EXISTÊNCIA, NO BAIRRO DO LEAL.
“A maçã, tão bela e rosada a princípio, mostrou-se de um branco imaculado de seguida. Doce, suculenta, macia, de corpo inteiro. Começou depois a minguar. Já não se via o rosado e o branco passou a amarelecido. De tal forma que não demorou muito a deparar-me com um caroço duro, rugoso, áspero, de pevides amargas e secas, sem esperança. Encontrei o fim da maçã e isso fez-me regressar ao fim de dois dias e seis horas.” E ao terceiro gemido e já sem barragens que a segurassem, levantaram-se as águas em catadupa.
“A qualidade espantosa que encontrei na maçã foi verificar a analogia que existe entre ela e tu. Tal como a maçã, surgiste do acaso, formosa, sem reservas e de presença afogueada, com toque de carinho aveludado. Fui-te descobrindo em marés de espuma branca que banhavam o meu contentamento, de uma felicidade que quase podia trincar, tão forte era a sua manifestação. Fechava os olhos e saboreava-te em ledo esquecimento do mundo.” Parou, respirou fundo e não segurou mais o martírio: “Como a maçã, desapareceste, murchaste, secaste. Não passas agora de um caroço com pevides negras e inférteis. Na maçã convenci-me finalmente do fim de um ciclo. E a vida é um grande pomar…” “Há coisas que tinha de te dizer.”
DECIDIU QUE A HISTÓRIA ERA O SEU RUMO. ACABOU POR ENGROSSAR O EXÉRCITO DE ESTUDANTES
UNIVERSITÁRIOS. VIAJOU POR MUNDOS DISTANTES, PRESOS NO PASSADO, MAS CORREDIÇOS PARA O FUTURO.
FICOU A CONHECER MELHOR O PRESENTE. ESTUDOU CIÊNCIAS DOCUMENTAIS E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO.
ACTUALMENTE, TRABALHA E ESTUDA NA FACULDADE DE ENGENHARIA DO PORTO.
ESCREVE NAS HORAS LIVRES. NAS HORAS MAIS SUSCEPTÍVEIS, SOBRETUDO…
Obras publicadas pela EditaMe:
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POR MARIA MARUJO desde que me conheço que me sei filha do Dia e do Suspiro. mesmo que, sendo filha do António e do Paulo, a verdade é que me sei filha do Dia e do Suspiro. chamo-me Sorriso. pasmem-se e sorriam, o meu nome é Sorriso e sou filha do António e do Paulo. mas minto com a verdade quando vos digo que sou filha do Dia e do Suspiro.
ele não sabia o meu nome e eu fui-lhe chamando vários à medida que a minha língua foi aprendendo a enrolar-se dentro da minha boca para que sons dessem lugar a sons donos de palavras. um dia aprendi a dizer diospireiro. mas ele nunca aprendeu a dizer Sorriso. apenas sabia que era eu. tal como deve ser.
uma dessas árvores foi plantada no dia em que nasci nesta casa, na casa do pai António e do pai Paulo. é um diospireiro. crescemos juntos em centímetros. crescemos juntos em raízes. a largura da minha mão nos seus ramos, o alcance do meu abraço no seu tronco.
ao longo dos Outonos, fomo-nos provando e saboreando, trocas de oferendas: a sua sombra frágil como o meu corpo, o seu fruto doce de travo áspero como eu, o seu fruto gelatinoso com
a nossa casa é alta de tetos, de amor, de carinho e de muita alegria. fica no rés do chão. lá fora temos um quintal e nele, sem nos pedir, porque sabendo que sim, vivem muitos gatos. todos os que querem, aliás! com eles e connosco vivem muitas plantas e árvores e nelas vivem insectos e pássaros.
ao longo dos Outonos, ele e eu fomos florindo e perdendo de novo folhas e fortalecendo. ao longo dos Outonos, fui descobrindo que os nativos americanos acreditavam que dele emanava a sabedoria do futuro e ele, ele foi aprendendo a conhecer os meus sorrisos. os sorrisos da Sorriso, diziam os meus pais e eu sei que ele também os conhecia, pois dele emanava a sabedoria do futuro.
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CURTA-ME
MARIA MARUJO, NASCIDA EM 1971, TRANSMONTANA.
RESPIRA DA SUA ESCRITA E VIVE
DO AMOR À SUA FAMÍLIA, AOS SEUS AMIGOS E AOS SEUS ANIMAIS.
vontade de mergulhar… o meu olhar, diziam. o seu amarelo cheio de laranja que o vestia nos Outonos, como o ruivo do meu cabelo em todas as estações.
um dia foi Outono. eu fazia dezassete anos. entrei em casa de forma diferente. como nunca tinha entrado. estava em casa apenas o meu pai António. viu-me ir diretamente à cozinha, viu-me abrir a gaveta onde guardávamos os talheres e viu-me tirar uma colher. e depois conseguiu ainda ver-me sair em direção ao quintal e deixou de me ver. se tivesse continuado, ter-me-ia visto tirar um dióspiro, ter-me-ia visto abri-lo como quem abre a alma, bem devagarinho. e se estivesse atento, como o diospireiro estava desde que o tempo era tempo, ter-me-ia escutado o pensamento, saber-me-ia apaixonada. e olhando-me, poderia ter dito ao meu pai Paulo, quando este chegou: a nossa filha ama! e talvez tivessem sorrido!
quando a primeira colher deixou que o néctar doce de travo amargo, finalmente reconhecido, me tocasse o palato, eu pude pensar: que dia! e pela primeira vez de mim se libertou um suspiro. e pela primeira vez me encontrei cara a cara com o meu pai Dia e o meu pai Suspiro, assim, pela primeira vez amando e comendo um dióspiro!
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POR MIGUEL SANTOS TEIXEIRA
Esplanada neste dia de 33 graus. Jolas e tremoços em barda. Uma sombrinha e uma vista deslumbrante sobre o rio. A manhã vai correr célere e o tempo abrandará lá pela hora de almoço. Assim mesmo, lento. Hora e meia que mais irá parecer uma eternidade. E as jolas a escorrer rumo a um estômago quente, que as acolhe de tripas abertas! Um arroto após outro, entre duas idas ao WC, e eis que voltam à mesa, frescas como viçosas alfaces acabadas de colher pela madrugada. Louras, pretas, ruivas, venham elas sedutoras que as nossas gargantas sequiosas dão-lhes seguimento. E quando olharmos em redor e tudo virmos a triplicar, sabemos que é hora de pedir uma última, aquela que nos vai deixar definitivamente a dormir!
Logo abaixo do tampo da mesa, encontra o seu amigo semimorto. Olha-o sem reacção, mas ainda assim procede à sua reanimação, despejando-lhe lentamente o néctar da vida pelas goelas abaixo. Não mais o abandonaria, pois o seu estado era crítico e precisava de assistência constante, novamente ao interior.
Manda vir mais uma, aquela que o vai recompor. Ele reabre os olhos e vê, acreditando que as suas preces foram ouvidas. Gole após gole sorve com vigor cada gota daquela poção pronta a dar-lhe uma segunda oportunidade.
A receita de alquimista que lentamente o revigora. Mas eis que demora e com esta se vai, definitivamente. Rumo a um coma que o faz pairar cinco centímetros acima do seu próprio estado físico. Sobrevoa a sua presença e olha-a sem surpresa. Sabe que vai para melhor, para a terra da eterna frescura. Não sem antes a sua mão cá fora lançar, para uma última dose de tremoços reclamar.
Jura a si mesmo que será a última vez que se envolverá em tão estranhas andanças. Já o haviam avisado e os sinais da vida não o deveriam ter enganado em tão importante questão. O trabalho é para todos, menos para ele. A sua função neste planeta não será só essa. Existem mais altas esferas para girar.
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Revista Me n 4
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Assim, sim. Vai realizado. Satisfeito por esta sua última bebedeira ter sido de caixão à cova e na companhia de um amigo homem de que diz gostar. Não deixa mulher, nem filhos, apenas aquela saudade de com os copos vibrar e de muitas garrafas cheias ajudar a esvaziar. Lá vai ele, a caminho da tal luz de que tanto se fala. Perdeu a razão, talvez. Perdeu o tino que nos faz mortais.
MIGUEL SANTOS TEIXEIRA, NATURAL DE CABINDA, ANGOLA, CONTA 45 ANOS, É
REDACTOR PUBLICITÁRIO DE PROFISSÃO E ESCRITOR/CRONISTA DE PAIXÃO. VIVE EM OEIRAS E TEM VÁTIOS LIVROS
PUBLICADOS POR DIVERSAS EDITORAS. PARA MAIS SOBRE A SUA ESCRITA, CONVIDA A VISITAR AS MORADAS: NEXUS.BLOGS.SAPO.PT E
HTTP://MIGALHAS.BUBOK.PT/
Será que por lá também servem imperiais?
Se não servirem, ele já decidiu. Não vai. Ouviu dizer que no paraíso existem minis, bem como imperiais servidas em copos refrescados. Mas ouvir dizer não é o mesmo que, com toda a certeza, saber. Por isso, na dúvida, trava o seu ritmo, olhando para o que resolvera deixar para trás. Indeciso, relembra que poderia não ser o céu na terra, mas que nunca lhe faltou o que beber. Hesita, balança e quando o médico de serviço se prepara para anunciar a hora da sua morte, eis que dá sinal de vida. Afinal reconsiderou e decidiu-se a uma derradeira viagem por este lado de cá.
Safa! E se não houvesse cerveja por lá?! Mais vale prevenir. É mais seguro por aqui ficar.
– Graças a Deus! – Berrou a enfermeira espavorida e nervosa face à possibilidade de ali o ver finar-se. – Tragam cervejas para todos! Muitas e frescas, que este homem resolveu connosco continuar. Na nossa presença, a apreciar que os dias também podem ser feitos de dois dedos de conversa e umas jolas frescas pelo meio. Haja alegria e, quem sabe, também Casal Garcia.
Obras publicadas pela EditaMe:
RIMA-ME
ÁREA DESTINADA AOS NOSSOS POETAS E À SUA POESIA.
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Revista Me n 4
RIMA-ME
CARLA MARQUES NASCEU EM LUANDA, ANGOLA, A 22 DE NOVEMBRO DE 1966. LICENCIADA EM DIREITO PELA
UNIVERSIDADE PORTUCALENSE E COM BACHARELATO EM COMUNICAÇÃO
SOCIAL, PELA ESCOLA SUPERIOR DE
JORNALISMO, SENTIU DESDE SEMPRE NECESSIDADE DE DAR UMA VIDA
ÚNICA ÀS PALAVRAS QUE LHE IAM SURGINDO.
POR CARLA MARQUES às vezes há um chão que me foge dos pés. refugia-se num habitáculo sem formas geométricas conhecidas e diz-me que aí se encontram espalhadas as letras da solidão. arranho a terra como arado em ferrugem deixo que as rugosas dores me abram feridas vivas como foguetes fátuos em lágrimas de festa.
há um chão que me foge dos pés quando do asfalto negro um fumo envolvente lança as garras das noites de insónia. não te sei dizer se há um fim antes de cada princípio, ou se na coexistência dos dois o sonho e a realidade se fundem como hélio no inchaço cómico de um balão vermelho. há este cruzar de dedos, antes de a vida se cruzar com as incógnitas que se desenham ao virar da esquina. sento-me sobre o pensamento para que não voe. tenho que o deixar amadurecer, antes que a fruta apodreça e com ela a razão de ser desta existência parda!
EDITORA NO JORNAL O PRIMEIRO DE JANEIRO DESENVOLVEU, TAMBÉM, OUTRAS FUNÇÕES NO ÂMBITO DA COMUNICAÇÃO SOCIAL.
Obras publicadas pela EditaMe:
Revista Me n 4
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POR JOSÉ BERNARDES
I
Trazei-me um fardo de linho e uma ideia Convocarei pena e mão sobre um plano alvo Deixai-me na solidão derramar a vida morrendo gota a gota criando apenas uma pequena fresta por onde tu adivinho das palavras alheias me lês na morte
Perguntas-me: por onde andaste? – De rodear a terra e passear por ela Não saberás tu Senhor que nos expulsaste da tua face por sermos quem somos que os meus passos se guiam pelos olhos esses mesmo que não entendem a tua criação e andam ao sabor das estações roubadas e dadas uma a uma? Não saberás tu que o natal faz-se todos os dias em que um homem morre mesmo aos domingos quando a tua presença é por demais requerida? E morro um pouco senhor das azuis pastagens sempre que me é solicitada esta forma de olhar o mundo e se faz do meu corpo um vaso comunicante não da tua palavra mas da essência da criação que descobrimos quando as portas do teu jardim derradeiramente se cerraram nas nossas costas Se não querias poetas no Éden não deverias ter criado quem nos abrisse os olhos
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Revista Me n 4
RIMA-ME
II
Trazei-me um busto de alva aurora com sua fronte aberta e seu ventre criador Sobre ela desenharei a fonte donde brota o desejo e a concretização do desejo Derramarei vida pelas pontas das árvores de seu ventre brotadas Deixai-me a sós com a dor do parto e nascerão quartos e camas de onde se vêem os sóis Irei perder-me na noite dos uivos lancinantes
Perguntas-me: por onde andaste? – De rodear a terra e passear por ela Não saberás tu senhora que o amor recomeça cada vez que o dia se faz? Não saberás tu senhora que os meus passos se guiam tanto pelo voo dos pássaros como pela tua mão? Não tivésseis dito tu e eu seríamos ainda crianças Contemplaríamos face a face descobrindo cada passo singular Assim sobram-nos as deixas migalhas com que o acaso nos alimenta Corro o mundo procurando-te Tocas-me Corro novamente cobrindo-me de pó E tocando-te saboreio a terra e as nuvens És a âncora és a fisga
Revista Me n 4
III
Dá-me a tua face eterna e a morna bolsa onde se conservam as raízes Eu devolvo-te o punhal que em tempos rompeu o cordão Há uma espera no tempo que nos contempla face a face Há um colo morno que se derrete na preservação da memória Um afagar de canções embaladas pelo princípio do mundo Uma mão dada e retida no peito para sempre dois braços embraçados no meu sono Perguntas-me: por onde andaste? – De rodear a terra e passear por ela Não saberás tu Mãe que a vida se faz pela dor da libertação? E que o amor se alimenta de uma perda que constantemente nunca se esgota? Não saberás tu Mãe que a mão que afaga é a mesma que devolve ao mundo? Corte-se o cordão enterre-se o punhal Devolva-se a vida à vida ao passeio contemplativo e erga-se o mais sublime dos monumentos um contínuo lembrar perpetuado na memória colectiva Para sempre a mão que afaga pairará sobre nós
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Revista Me n 4
RIMA-ME
IV
Pela fronte aberta do peito cantante anunciasse a manhã clara no disposto das peças que tão bem se conjugam como a pérola e a concha o arado e a terra a mão e a pena a concha da mão que pare da terra uma leve pérola de pássaro Tão brilhante a manhã Tão clara pela passividade da luz que se refracta na água de um quieto lago Faço-me ao caminho por veredas encharcadas de orvalho bebedouro dos primeiros insectos cantina dos primeiros pássaros Assumo a posição vertical dos antepassados no gasto trilho que rodeia o eternamente desconhecido Como eles invento passo a passo o passeio criando em cada momento a vida seja na paisagem árida da solidão na integração bucólica das verdes pastagens na saudade do amor distante Passeio pela forma com aquilo que a vida me dispôs aos pés e que uso com pouco saber e atabalhoado afinco Na mochila trago um léxico usado e desbaratado ideias por abrir sem prazo de validade e uma caixa onde guardo aragens de terras distantes e imaginadas Vou pousando os pés um a um seguindo em frente Nem sei o que vou encontrar deixo-me navegar pelas estrelas mesmo sendo como anteriormente disse de manhã Hei-de daqui a pouco sentar-me à sombra de um sobreiro comer da terra beber das flores extasiar-me com a abóbada abertamente azul de onde brotarão pássaros febris e alados na busca de uma chuva de cores que refresque este céu exaltado
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JOSÉ BERNARDES NASCEU EM1966 NA
Observo a estrada: caminham mães secando as veias pelos seus filhos agudos partem homens cobertos de pó vindos do estrangeiro bovinos ruminam continuamente a mesma ideia banal monges sem rosto flagelam-se por um caminho mais recto o cego canta a um canto a canção que atenta ao tempo e nem por isso a idade floresce ou os olhos da multidão se abrem E viajando liberto cavalos nascidos das amoras troto alimentando-me de rubras serenas Pelo caminho amontoo restolho deixando espaços por onde florescem libertas flores por onde se solidifica a ideia em pequenas bolhas simbólicas em istmos tenuemente ligados em suspiros libertos do peito prisão
Procuro a fonte onde desafogar a tarde ressequida tão longínqua do fresco despertar matinal Refaço-me ao caminho e ao passear por ela rodeio-a presenciando maturando vivendo
CIDADE DE LISBOA, ONDE VIVEU ATÉ 2007. NESSE ANO MUDOU-SE PARA VILA NOVA DE GAIA ONDE RESIDE ACTUALMENTE.
LICENCIADO EM MATEMÁTICA APLICADA SEMPRE TRABALHOU NAS ÁREAS DAS TECNOLOGIAS DE INFORMAÇÃO.
DESDE QUE SE CONHECE QUE SE
INTERESSA POR ARTES, EM PARTICULAR POR LITERATURA E MUSICA.
A ESCRITA SURGE NUMA FASE AVANÇADA DA SUA VIDA.
EDITOU A SUA PRIMEIRA OBRA,
RESULTADO DE UMA MATURAÇÃO
INTERIOR E DE UM ESTADO DE ALMA MAIS OBSERVADOR QUE INTERVENIENTE.
Obras publicadas pela EditaMe:
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Revista Me n 4
RIMA-ME
Jaz o lobo no tojo Tem a perna gangrenada pelado o pêlo hirsuto o olhar entreaberto O ouvido antes desperto já não ouve mais nada Lá longe andam gazelas Perdidas da manada E perto ali ao lado corre um ribeiro fresco onde antes se banhava
A força que o erguia Em salto pelas fragas Já quase não lhe chega p’ra suportar as chagas E o tojo onde dormia rugia fornicava A cama tão macia que o corpo descansava tem uma dureza agreste que os ossos lhe magoam sem que perpetre um gesto
É cheia a lua? É nova? O vento de onde sopra? Que cheiro é este agora que o seu olfacto arguto não sabe desvendar? É ela A paz que chega de manso sem ruído e em seu peito aconchega um lobo já vencido
POR JULIETA LIMA
Revista Me n 4
JULIETA LIMA NASCEU EM OLHÃO EM 1949.
RESIDE EM ALMANCIL DESDE 1980. FOI BANCÁRIA NO BES, AGENTE DA TRANQUILIDADE SEGUROS E
SIMULTANEAMENTE EMPRESÁRIA NO RAMO IMOBILIÁRIO.
É MÃE DE QUATRO FILHAS.
Não vês a preia-mar não ouves as gaivotas Se é dia ou já é noite não podes perceber A dor é capitaina no alto do navio
De quem serão os rostos que a névoa te revela no posto de comando às voltas nas marés? De quem serão os olhos São olhos? São escolhos? Podem até ser astros ou náufragos a ser que ao ver o barco ir se amortalham nos mastros De quem serão os braços Que o barco/pando afundam? Os braços? Serão remos? Não sabes Eu não sei Ai nada que sabemos
ESCREVE POESIA E PROSA.
O SEU 1º LIVRO DE POEMAS,
NO ORVALHO DAS HORAS FOI
PUBLICADO EM 1989. PELA EDITA-ME PUBLICA AGORA O LIVRO DE
CONTOS PORTA SIM PORTA NÃO.
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Revista Me n 4
RIMA-ME
POR JOAQUIM DE MATOS PINHEIRO
I
II
Olho um pássaro que passa, mansamente, sobre a líquida toalha, enquanto escreve um risco no céu claro e resplendente – assinatura da vida, só e breve.
É pela estrada da Samba que te esqueço, Cidade de feitiços, que me encanta. No bornal das lembranças que te ofereço Deixo a placidez do sol que se levanta
É por trás das palmeiras que se estende a brilhante e lisa toalha da baía que o meu olhar afaga, assim, dormente, no suave esmorecer de cada dia.
Fugaz chispa de luz na água acende a despedida do sol suave e quente, no breve dia que vai chegando ao fim
e o pássaro me leva os olhos, ternamente, até ao coração de Luanda, simplesmente, que ao meu coração se funde, enfim.
A estrada da Samba é o meu caminho, na longa marcha que me leva ao sul. É por aí que vou, e vou sozinho, Coberto pelo céu, que brilha, azul.
É pela estrada da Samba que prossigo Esta aventura de me ir embora Quando o meu desejo é não partir: Cidade que se aparta e vem comigo E que comigo anda a toda a hora Eu fujo de ti – sem querer fugir...
Revista Me n 4
III
IV
Trocam-se abraços e dançam as fogueiras velando o homem velho que na paz descansa. Recolhem-se as balas às suas cartucheiras e voam as mensagens com sabor a esperança.
Banho-me só, nas noites vãs, despertas, Em que consumo os anos por que passo. E guardo-te em vigílias, mãos abertas, Sem saber o que fazer, e o que não faço.
Rufam os tambores na madrugada lenta, lá longe, por entre os caules de capim. Grita-se ao vento que a dura tormenta Parece, agora, ter chegado ao fim.
Lá vai essa notícia mundo afora, como quem anuncia que é a hora de se abrirem, enfim, portas à paz.
Rufam os tambores a hora do regresso: mas eu estou velho e sei que o recomeço fica lá longe e eu já não estou capaz!...
Banho-me nas águas do passado Como quem se banha nas águas do mar. Enruga-se-me a vida, triste fado, Como a pele, ao sol, vai enrugar.
Banho-me nas águas do passado, Doces calmarias de um desejo Que me alimenta de pão em cada dia.
E vou contigo, lado a lado, Roçando-te as ruas, como um beijo, Feito de saudade – desfeito de alegria.
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Revista Me n 4
RIMA-ME
JOAQUIM DE MATOS PINHEIRO
NASCEU EM SERPA E RESIDE NA MAIA.
ECONOMISTA POR FORMAÇÃO E GESTOR POR OFÍCIO, DESENVOLVEU A SUA
ACTIVIDADE AO SERVIÇO DE VÁRIAS EMPRESAS, SEM NUNCA DESCURAR UMA INTENSA LIGAÇÃO À
COMUNICAÇÃO SOCIAL. ARTIGOS SEUS ESTÃO DISPERSOS POR JORNAIS E
REVISTAS NACIONAIS E ESTRANGEIROS.
ENQUANTO EDITOR, DIRIGIU A EDITORIAL CULTURANG, EM LUANDA, SOB CUJA
CHANCELA PUBLICOU IMPORTANTES
AUTORES ANGOLANOS. FEZ PARTE DO
PRIMEIRO CONSELHO DAS COMUNIDADES
V
Os nomes das ruas que eu recordo São a reconstrução do que passou. Os nomes das ruas que eu esqueci São a imagem de tudo o que mudou.
Ande pela Marginal devagarinho, ou passe pela Mutamba num delírio, Todas as ruas são, num torvelinho, Cruéis algozes deste meu martírio. Às vezes, porém, é a saudade Do tempo que ficou além do tempo E se passeia nas ruas de Luanda.
É por elas que passa, na cidade, O tempo que ficou aquém do tempo – E é para lá que o coração me manda.
PORTUGUESAS, APÓS A CRIAÇÃO DESTE ÓRGÃO CONSULTIVO DO GOVERNO,
TENDO OCUPADO CARGOS DE DIRECÇÃO EM DIVERSAS ASSOCIAÇÕES CÍVICAS E CULTURAIS.
Obras publicadas pela EditaMe:
Revista Me n 4
Ter-te Assim na mão Escarlate fogueada Em tons castanhos De quase silêncio Assim Macia aveludada Como só pode ser a pele Tocada da amada Perfumada Quente e Madura Bem talhada Com aroma a madrugada Cúmplice da noitada… Corres-me com o sono, Como o vento Instiga a folha de Outono E a cada abraço Enrosco-me em teu tronco Profundamente enraizado, Na tua casca trigueira, No teu beijo Selvagem, Como o luar No teu segredar De brisa matreira… E porque vejo uma lágrima? Sabes que vais para voltar… Pássaro transumante Quando vais admitir Que te encante Com a paixão De constante sentir? Morre para nascer, Nasce para morrer… Comigo…
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JORGE PÓPULO NASCEU EM 1970. NOS
BRAÇOS GRANÍTICOS DO INVICTO BERÇO PORTUENSE E DA ALCOFA DE MATIZ
TRANSMONTANO, VIU A LUZ EMANADA DA MATERNIDADE, PARA LOGO
ESPREITAR AS CORES DA EXISTÊNCIA, NO BAIRRO DO LEAL.
DECIDIU QUE A HISTÓRIA ERA O SEU RUMO. ACABOU POR ENGROSSAR O EXÉRCITO DE ESTUDANTES
UNIVERSITÁRIOS. VIAJOU POR MUNDOS DISTANTES, PRESOS NO PASSADO, MAS CORREDIÇOS PARA O FUTURO.
FICOU A CONHECER MELHOR O PRESENTE. ESTUDOU CIÊNCIAS DOCUMENTAIS E CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO.
POR JORGE PÓPULO
ACTUALMENTE, TRABALHA E ESTUDA NA FACULDADE DE ENGENHARIA DO PORTO.
ESCREVE NAS HORAS LIVRES. NAS HORAS MAIS SUSCEPTÍVEIS, SOBRETUDO…
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RIMA-ME
MARIA SOFIA MAGALHÃES NASCEU A
27 DE DEZEMBRO DE 1961, É CASADA, MÃE DE DOIS FILHOS.
É ESPECIALISTA EM ANATOMIA
PATOLÓGICA E DIRECTORA DO SERVIÇO DE ANATOMIA PATOLÓGICA DO
HOSPITAL FERNANDO FONSECA, EPE.
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POR MARIA SOFIA MAGALHÃES
alta a pulga coça o braço morde a perna seu madraço porte-se bem porte-se mal já ficou sem o natal meu amigo não se queixe morra a boca pelo peixe puxe o cinto falta o ar não o sinto acreditar tire as meias que lhe sobram tem buracos sem remendos arre burro que o carrega a esmola que se nega o salário que não dá arre burro venha cá que não ouço tilintar a moeda no seu bolso é tão curto o que é bom torna e vira o mesmo tom.
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alta o braço morde a pulga coça a perna seu madraço porte-se mal porte-se bem o natal é que já não tem.
POSSUI DESDE 2005 UM BLOGUE DE AUTOR “DEFENDER O QUADRADO”, QUE CONVIDA A VISITAR EM
http://defenderoquadrado.blogs.sapo.pt
Obras publicadas pela EditaMe:
Revista Me n 4
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POR MIGUEL SANTOS TEIXEIRA Por aqui Sem certezas, garantia de coisa alguma Terreno lamacento Um pântano de cidades, altos edifícios, o maior de todos sou eu Ou quero ser Por ali Da mesma forma conteúdo dúbio Será refúgio? A caverna escura, escavada na rocha fria Abrigo de morcegos, seres da noite que se põe em pleno dia Invade o espaço, viola a fronteira alheia, abominável Fedor pestilento, o que faz é nojento
Por aqui, por ali Bifurca-se-me o espírito Sou estátua, ser estático e rígido que não enfrenta o futuro Esse muro de lamentações que se interpõe entre o ser e serei O nevoeiro cerrado, de armadilhas artilhado
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Revista Me n 4
RIMA-ME
Que fazer? Avançar ao 6º sentido? Apenas porque instintivo, fruto genuíno sem parecer da razão?
A quem recorrer? Senão a mim, ao eu feito eu neste espaço que se abre em dois e me confunde Corpo e mente, qual deles dormente Sou figura desfigurada, ser que se derrete à chama da incerteza Quem me chama? De onde vêm estas vozes vorazes Vociferadas a plenos pulmões, gritos mudos, imperceptíveis Comprei bilhete e nem sei para onde Ou por onde Por aqui? Ou apenas por ali?
Revista Me n 4
É nas palavras que me refugio Nesse amontoado de tanta coisa Composição de passo terno, legado eterno
Avassalador Adamastor, monstro esguio, fugidio Lago de lava, caldo em brasa Espigão afiado que se perfaz nosso fado
Diz-se destino, ri-se na nossa cara, gela-nos as veias Soma-nos máscaras às que já pesam e nos vergam
Porque me escondo nelas? Nas palavras hipócritas, falsas Prepotentes feras que vivem do cinismo acutilante e certeiro Que rasga a eito, direito à máquina que vive presa a este peito Porquê, se o sei assim?
Elas falam-me, dizem-me, contam-me enquanto me escondem e omitem Coisas como a lição, a moral, não lhes reconheço Mas rendo-me ao cenário sempre imaculado, à visão feita ilusão de jardins floridos, prados incansáveis, rosas sem espinhos, esses mesquinhos Nas vertentes que, mesmo escarpadas, são nossas aliadas E nelas me revejo O pôr-do-sol perfeito, o ar rarefeito Fim do dia a preceito Tudo vislumbro deste leito É isso que nas palavras encontro Esse consolo, esse abraço sufocante Que mesmo asfixiante é melhor que tudo o resto. Tudo o resto que é tudo.
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MIGUEL SANTOS TEIXEIRA, NATURAL DE CABINDA, ANGOLA, CONTA 45 ANOS, É
REDACTOR PUBLICITÁRIO DE PROFISSÃO E ESCRITOR/CRONISTA DE PAIXÃO. VIVE EM OEIRAS E TEM VÁTIOS LIVROS
PUBLICADOS POR DIVERSAS EDITORAS. PARA MAIS SOBRE A SUA ESCRITA, CONVIDA A VISITAR AS MORADAS: NEXUS.BLOGS.SAPO.PT E
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CONTA-ME
LUGAR PARA CONTOS COM UM MÁXIMO DE QUATRO PÁGINAS NA SUA FORMA ORIGINAL.
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CONTA-ME
POR MIGUEL SANTOS TEIXEIRA Era domingo de Páscoa e Bernardo andava excitadíssimo à procura daquele sumo de que lhe haviam falado na escola. Do sumo que se bebia nesta época de paz e amor entre todos os cristãos devotos. Nem na despensa, nem no frigorífico, nada. Mariana, por seu turno, procurava no roupeiro do seu quarto a cruz que a mãe lhe havia pedido para colocar à mesa durante a refeição que os aguardava na sala grande, apenas usada nesta altura do ano para receber o senhor padre naquele que era o tradicional almoço de Páscoa da família Alcobia. Com a comida a arrefecer no tacho e o senhor padre desesperado face ao correr do tempo, que insistentemente confirmava no seu relógio de pulso com a ajuda daqueles óculos de lentes grossas e de dedadas preenchidas, Isabel resolveu procurar os seus dois filhos. A Bernardo, foi encontrá-lo na cave remexendo por entre a garrafeira do pai, na esperança vã de que repousasse ali o tal de sumo pontífice, aquele que deve beber-se durante a Páscoa. Já Mariana despejara todo o conteúdo do seu guarda-fatos e espalhara-o pelo espaço da cama e alcatifa do seu quarto, na mesma esperança vã do irmão de encontrar o que tão afincadamente procurava: o crucifixo com a imagem do Senhor. À falta de outra utilidade, usara-o em tempos para pendurar um conjunto
saia casaco que, entretanto, deixara de lhe servir e, lembrava-se agora, oferecera àquela instituição de caridade que de quando em vez apelava à boa vontade dos que têm a mais para darem aos que têm a menos. Sem sumo pontífice nem crucifixo em casquinha com que decorar a mesa, Isabel recorreu a um dos seus trabalhos em barro há muito esquecidos na cave e que fizera em tempos, também por alturas da Páscoa. Este simulava a adoração de Cristo por uns quantos fiéis chorosos que o olhavam pendurado na cruz em sofrimento. De regresso à sala, acompanhada dos seus dois petizes, Isabel colocou a peça de barro no espaço que deveria ser ocupado pelo tradicional crucifixo e deu início à refeição. Não sem antes o senhor padre proceder à oração que agradecia os alimentos que ali se preparavam para degustar e com os quais contavam amainar a fome que deles se apossara há mais de uma hora atrás. Finda a oração, seguiu-se uma azáfama e um tráfego aéreo acima daquela mesa que mostrava claramente o apetite que a todos atacava por igual. Nem o senhor padre parecia querer controlar as boas maneiras recomendáveis, dando mostras de uns ímpetos animalescos que repetidamente atribuía ao apetite voraz aliado ao adiantado da hora. Munido de faca e garfo, nem ligou ao que prega na freguesia e que defende que
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MIGUEL SANTOS TEIXEIRA, NATURAL DE CABINDA, ANGOLA, CONTA 45 ANOS, É
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a primazia deve ser dada às senhoras e crianças presentes. Qual quê. Naquele momento de aflição, era mais: os ratos são os primeiros a atirarem-se à comida do Alcobia. Isabel e Tomás Alcobia, seu esposo, estavam atónitos com a falta de postura do padre. Que nojeira ele fazia em seu redor. Por sorte havia a Mercedes, a mulher-a-dias. Que, no dito seguinte, haveria de recolher os despojos daquela refeição quando viesse fazer a faxina à sala e voltar a fechá-la até ao próximo ano. O que ninguém previra, nem mesmo o retirado professor Zandinga, era que aquele fosse o derradeiro repasto do senhor padre, até então tão empenhado em levá-lo a bom porto, entenda-se, às suas entranhas. Apanhado de surpresa por um pedaço de galinha do campo que se alojou onde não era suposto, impedindo-o de respirar, o senhor padre fraquejou. Esbugalhou os olhos e levou ambas as mãos à garganta, tentando impedir o inevitável. Na génese de todo aquele aparato, estivera algo com que não contara e que precipitara a sua morte: a imagem da queda do Senhor da cruz, bem na frente dos seus olhos. Este, igualmente incrédulo face aos modos do santo padre, resolvera atirar-se do alto da cruz que ocupara de forma precária até então, vindo a cair redondo sobre o tampo da mesa, o que lhe provocou algumas fracturas expostas. Ainda tossiu e esperneou, mas nada do que lhe fizeram de seguida o fez voltar à vida. Nem a ele, nem ao senhor padre. Em tom de remate final, Mariana ainda teve tempo de comentar: com pregos Alcobia, nada disto acontecia!
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CONTA-ME
POR HENRIQUE NORMANDO
O gato libertino estava entradote... na idade, bem entendido. Afinal, ele já estava na sua sétima vida. Mas mantinha uma certa vivacidade e poucas coisas lhe metiam medo. Continuava a correr de telhado em telhado, procurando formosas donzelas, para manter o seu status e para demonstrar a si próprio que se mantinha activo e na plena posse das suas faculdades físicas e mentais... e principalmente... sexuais. Sim, este gato não era um gato qualquer. Era... acreditem ou não... descendente directo do gato do Marquês. Do Marquês... desse mesmo... do Marquês de Sade.
Um dia, nas suas aventuras nocturnas pelos telhados, entrou pela varanda de uma formosa donzela, chamada Justina. Entrou–lhe pelo quarto no exacto momento em que ela se preparava para se deitar. Despida, com os seus longos cabelos aloirados e escovados, Justina, a custo, reprimiu um grito ao ver aquele gato enorme. Justina sofria de uma estranha aversão a gatos, denominada ailurofobia. O gato, bastante peludo e enorme, parecia encantado a olhar para ela. Justina desmaiou. Caiu sobre a cama, inanimada, por longo tempo. Quando veio a si, ao olhar para o relógio viu que eram três horas. Como se tinha preparado para se deitar cerca da meia-noite, concluiu facilmente que tinham passado cerca de três horas desde que vira o gato. Sobressaltada, Justina levantou-se e procurou por toda a casa, não fosse o gato estar escondido em algum canto. Nada. O gato simplesmente tinha desaparecido.
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Justina fechou as janelas do quarto, fechou bem a porta e preparou-se para dormir. Durante a noite pareceu-lhe sentir que alguém lhe mexia nas pernas... e nas nádegas. Estaria a sonhar? Justina levantou-se sobressaltada. Acendeu a luz. Olhou em volta. Não viu nada de anormal. Voltou a apagar a luz, deitou-se de lado e voltou a tentar adormecer. Tinha, no entanto, a estranha sensação de que alguém estava deitado a seu lado. Alguém que lhe tocava. Com suavidade. Justina, relutante, deixou-se envolver. Alguém lhe mexia nos seios. Justina deu um salto na cama. Acendeu a luz. Olhou à sua volta. Nada. Justina não viu nada. Como era possível? Seria fruto da sua imaginação? Justina decidiu dormir, pondo ao seu lado uma velha e forte bengala que pertencera ao seu avô. Sentiu-se assim mais protegida. Antes de voltar a adormecer, sentiu uma estranha falta de ar. Perguntou a si mesma se seria um sintoma alérgico por ter tido um gato dentro do quarto. Sentia-se, no entanto, bastante excitada, algo que há muito tempo lhe não acontecia. Justina, ainda que agitada, acabou por adormecer. Acordou com a luz do sol filtrada pelas cortinas do quarto. Levantou-se e dirigiu-se à casa de banho para se lavar e preparar-se para sair.
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Justina saiu em direcção à loja de flores, da qual era proprietária há alguns anos. A meio da manhã, entrou um cliente que pretendia comprar um ramo de rosas vermelhas. Seis rosas vermelhas para oferta. Justina olhou para ele discretamente. Tratava-se de um homem elegante, com idade indefinida, parecido com o David Bowie, de olhos claros e olhar felino. Sorridente, ele olhou para ela, pagou as flores e, saindo da loja, entrou no carro que se encontrava no ângulo de visão de Justina. Era um cabriolet desportivo, cor de mel, que rapidamente se dirigiu para a avenida principal que ficava do lado esquerdo da loja. Justina ficou pensativa.
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Aquele olhar não lhe era estranho. O contacto com a mão dele quando procedeu ao pagamento deu-lhe um ligeiro arrepio, pouco habitual. Pouco depois, entrou na loja Monique, a sua amiga francesa que tinha vindo de Paris há cerca de um ano e tinha um negócio de flores não muito longe da loja de Justina. Monique perguntou-lhe com um sorriso trocista: “Hey, quem era aquele bonitão que acabou de sair da sua loja?” Justina riu-se e limitou-se a responder: “Um cliente de passagem, Monique. Apenas, um cliente de passagem.” Foram as duas tomar café à “Casa do Café”, ali mesmo ao lado. Conversaram um pouco e Monique disse que tinha ido ao médico
para ver se tinha algum problema na coluna. Ultimamente tinha fortes dores nas cervicais, que de vez em quando a atormentavam. Contou ainda que o médico a examinou, nua, sobre a marquesa, passando-lhe com os dedos na zona onde Monique se sentia mais queixosa. Depois mandou-a encostar à parede em frente à secretária, mandando-a mudar de posição várias vezes para, segundo disse, detectar eventuais desvios na coluna. Monique perguntou a Justina se era este o habitual comportamento de um médico especialista em ortopedia. Justina não soube responder. Nunca tivera necessidade de consultar um ortopedista. Depois de tomarem o café, regressaram às respectivas lojas, para completarem o seu dia de trabalho. E o dia passou sem incidentes dignos de registo. No final do dia, Justina regressou a casa. Quando se estava a aproximar, olhou para a janela do apartamento e reparou que a janela se encontrava semi-aberta. Ficou aterrorizada. Ela tinha a certeza que tinha deixado a janela fechada. Bem fechada. Ficou sem saber o que fazer. Ainda pensou telefonar a Monique e pedir-lhe que viesse ter com ela, subindo as duas ao apartamento. Mas, pensando bem, era desagradável estar a incomodar a amiga depois de um dia de trabalho. Àquela hora, Monique devia estar a preparar-se para se encontrar com Fabrice, o seu namorado francês.
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Estava Justina nestas cogitações, quando parou junto a si o Cliente que lhe tinha comprado as rosas vermelhas. Ele sorriu para ela e, ao ver o seu estado de agitação, perguntou-lhe: “Posso ajudá-la?” “Não, obrigada. Estou bem. Não se preocupe.” Mas ele insistiu: “Permita que lhe ofereça um café. Nessa loja, aí já em frente.” E sem esperar que ela lhe respondesse, estacionou o carro e foi ter com ela. “ Não se preocupe. É o tempo de tomarmos um café e de se acalmar.” Justina acabou por ceder. Sentaram-se nas cadeiras austríacas daquele “Old-Fashion Café” e conversaram por algum tempo. Em certo momento, Justina sentiu que tinha que
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desabafar e contou, um pouco a medo, a razão da sua preocupação. A janela aberta fazia-a sentir medo que alguém tivesse entrado no seu apartamento. Claro que Justina entendeu que devia omitir o episódio do gato. Ele tirou um cartão do bolso onde estava impresso o seu nome: Afonso Francisco. Justina achou que talvez pudesse confiar nele e ficou receptiva a que ele a acompanhasse ao seu apartamento, para confirmarem se alguém lá tinha entrado, ou se algo de anormal se passava. Chegados ao apartamento, Justina abriu a porta e entraram. Não viram nada de anormal. Justina sentiu, no entanto, uma enorme falta de ar e teve que se sentar. Afonso abriu um pouco mais a janela e abanou-a com um leque decorativo que Justina tinha no quarto. Em vão. Justina acabou por desmaiar. Afonso foi à cozinha buscar um copo com água, mas não a conseguiu fazer beber. Justina estava inanimada. Afonso despiu-a cuidadosamente e deitou-a. Depois, durante um longo tempo acariciou-a. Beijou-a nas faces e nos olhos. Tentou reanimá-la, acariciando-lhe as partes mais íntimas. Por vezes parecia que Justina ia reagir. Mas não. A sua respiração tornara-se apenas mais ofegante. Afonso tentou uma relação mais íntima. Um pouco dolorosa dada a posição lateral de Justina. Obteve como reacção alguns gemidos que eram um misto de dor e de prazer.
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Revista Me n 4
CONTA-ME
HENRIQUE NORMANDO, PSEUDÓNIMO DE MANUEL H. MARTINS DE CAMPOS.
DEPOIS DE UMA CARREIRA ACADÉMICA E PROFISSIONAL LIGADA À GESTÃO
EMPRESARIAL, NUNCA PERDEU DE VISTA A SUA VOCAÇÃO LITERÁRIA E
ARTÍSTICA, TENDO COLABORADO E
RECEBIDO FORMAÇÃO NO CAMPO DAS ARTES, COM O MESTRE JOÃO HOGAN E MARIA GABRIEL.
NO PLANO LITERÁRIO COLABOROU COM ALGUNS JORNAIS E REVISTAS.
EDITOU, TAMBÉM, ALGUNS LIVROS NO CAMPO DA POESIA.
Obras publicadas pela EditaMe:
Finalmente, Afonso verificou que o estado de espírito de Justina tinha acalmado. A sua respiração era serena. Os seus lábios entreabriam-se num ligeiro sorriso. Afonso entendeu que era altura de se retirar. Mais tarde, quando Justina acordou, viu que tinha dentro de um jarro, que estava sobre a cómoda, um ramo com seis rosas vermelhas. Sobre a cama, um cartão de Afonso Francisco, com a seguinte inscrição: -”Le coeur a des raisons que la raison ne connaît pas” Afonso
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Desconfiança, incredulidade! Insinuações, palpites, ditos cruzados, conversas truncadas! Perguntas a medo!… Finalmente, e ainda de dia, nos postes da via pública, quase todas as lâmpadas se acenderam!
POR MIGUEL LEITÃO
Grande agitação, mulheres precipitando-se escadas abaixo. Chamam umas pelas outras… “Deus do céu! Anda daí ver, que até parece milagre!” Pasmadas, gesticulam, apontam para cima e largam “ahs!” de estupefacção que fazem calar os “velhos do Restelo”, eternos descrentes que até tinham apostado que… “só por artes do Demónio é que a luz viria por fios iluminar os becos da aldeia!” Mas ela aí está!
Ofegantes, mestres-de-obras cruzam-se com electricistas e trocam palavras. Umas, que são ordens. Outras, que… “sim senhor, vou já pôr as coisas como o patrão gosta que elas fiquem.” E o capataz a insistir… “mas tem de ser rápido, que o engenheiro vem aí e tudo tem de estar como deve ser.” Fazem-se ajustes, reapertam-se parafusos, verificam-se fusíveis, revêem-se ligações, trocam-se lâmpadas, rectificam-se pormenores. Tudo O.K.
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CONTA-ME
Os responsáveis da autarquia, inchados de orgulho, tentam alvitrar o dia da inauguração… “quando poderá ser?” Na tentativa de acertar uma data, puxam pela fala dos técnicos, pedem desculpa de incomodar os senhores engenheiros, telefonam para a Câmara… “saiba V. Exa. que é importante saber quando é que…”
E já não duvidando da realidade da energia eléctrica, e sonhando com os benefícios que pode vir a trazer, os cépticos e os “do contra” parece que desapareceram, que se evaporaram, e agora só se vêem entusiastas a emitir opiniões, a sugerir ideias, a estabelecer projectos para a festa de arromba do dia da inauguração! Alguns contam como foi noutras freguesias… “mas na nossa terra tem que ser melhor, que é uma vergonha as pessoas encolherem-se e ficarem-se atrás!” Teria de vir uma banda de música, a da Eira Queimada, que não há quem lhe chegue! Nem que leve mais caro, é bem merecido. É a que toca melhor e, por isso, é vê-la em Lamego, todos os anos, na procissão dos Remédios! E fogo, tem de haver fogo, com os bombeiros a tomar conta por causa de algum azar, que as aldeias sem luz, roídas de inveja, eram bem capazes de já estar a rogar uma praga certeira. Paga-se o que for preciso, e dá-se-lhes de comer, que os comes não hão-de faltar. As mulheres capricharão para obsequiar os bombeiros e também as entidades e os convidados principais. E vinho, vinho bom para todos, que um dia não são dias e já que o povo contribui, tem o direito de se divertir e ficar alegre!
Mas o melhor era falar com o Professor e o Padre, metê-los ao barulho, que… “com tantos estudos que têm, e com tantas idas aqui e ali, têm obrigação de saber como é que estas coisas se fazem bem feitas.” Consultados que foram, estabeleceu-se um programa de cães e galinhas fechados, de ruas varridas e enfeitadas a preceito com colchas nas varandas como nas procissões e duas bandeiras de papel nas janelas: de um lado, verde e vermelha, a imitar a nacional, do outro, verde e amarela como a dos paços do concelho.
E, junto à cabine, abrir-se-ia uma cova, onde os chefes de família iriam lançar, na altura em que se acendessem as lâmpadas, os seus velhos candeeiros de petróleo, que seriam enterrados pelo próprio coveiro na presença das autoridades. Cerimónia bonita, significativa, mas meramente simbólica. Só desceram à terra as candeias amolgadas, furadas, sem registo, já velhas, sem préstimo. As que ainda estavam em condições ficaram guardadas, que eram precisas: a esmagadora maioria das famílias não prescindia do petróleo que, por ignorância, por desconfiança ou, sobretudo, por falta de meios, não tinha ainda mandado pôr a electricidade em casa. Do programa constava também um discurso do Presidente da Junta e outro do Regedor, que teriam de alinhavar meia dúzia de frases que se referissem ao “progresso”, ao “esforço e boa vontade dos dirigentes” e ao “reconhecimento do povo”.
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Eu tinha apenas cinco anos quando estas coisas se passaram, mas como sabia ler desde os quatro, o professor achou bonito que também lesse um discurso, que ele mesmo redigiria. Treinado em casa, sob a orientação e orgulho de meus pais, foi a vez de ir, na véspera da inauguração, à presença do Professor, para o ler bem lido e bem alto. Estava aprovado! Seria um sucesso!
Chegou o dia e a hora da leitura definitiva perante a multidão que me rodeava, abafando-me a voz. Estava tudo a correr bem, quando senti uns braços que me alçavam do chão e elevavam no ar. Não deixei de ler, durante a subida, até que o “elevador” estacionou. Um cheiro forte a água-de-colónia inundou-me as narinas. Retirei os olhos do papel e vi, à distância de meio palmo, uma cara bolachuda, emoldurada por uns óculos redondos, espessos, encavalitados numas orelhas disformes, carnudas, ridículas! Não conhecia quem me pegou ao colo nem a importância que tinha, mas dispensava muito bem aquele sorriso de cartão encerado a tentar cativar-me!
O discurso escrito, redigido pelo Professor, voou para um lado e eu voei para o outro, por cima das pessoas, em direcção a minha casa. Não sei o que se passou a seguir, mas sei que nunca mais me senti à vontade a falar em público. Ainda hoje não sou capaz de o enfrentar, mesmo que se trate de uma reunião de condomínio. Claro que fui professor. Mas para nós, professores, os alunos não são “público”. São algo de tão especial, tão transparente, tão próximo, tão identificado connosco, que dar uma aula é como se estivéssemos a conversar, a falar para nós mesmos, a falar com os nossos botões.
MIGUEL LEITÃO NASCEU EM 1946 NO
ARCOZELO, CONCELHO DE MOIMENTA DA BEIRA.
LICENCIOU-SE EM 1975 EM FILOSOFIA, ÁREA EM QUE EXERCE FUNÇÕES DOCENTES.
PROFESSOR E CO-AUTOR DE MANUAIS DE FILOSOFIA E DE PSICOLOGIA,
SEMPRE REPARTIU A SUA ACTIVIDADE
COM A POESIA, TENDO JÁ PARTICIPADO EM DIVERSAS PUBLICAÇÕES.
NO CAMPO DAS ARTES VISUAIS
DEDICA-SE AO DESENHO E À PINTURA, CONTANDO JÁ COM VÁRIAS
EXPOSIÇÕES INDIVIDUAIS E COLETIVAS. PUBLICOU RECENTEMENTE O LIVRO DE POESIA “O TEMPO E AS COISAS” PELA EDITA-ME.
Obras publicadas pela EditaMe:
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ARTIGO EDITORIAL
A escrita de um livro é a concretização de um projecto. Qualquer projecto deve obedecer a regras definidas, para que a sua concretização seja concluída com sucesso, sendo que no caso da escrita, são as regras desta que devem ser observadas para que um texto (seja ele de qualquer tipo) tenha a qualidade mínima.
A publicação do primeiro livro, para além de ser a concretização de um sonho, é acima de tudo uma revelação: a partilha com os leitores da forma, capacidade e estilo de um novo autor. É logo na primeira publicação que se estabelece a distinção entre um autor e um escritor, salvo – eventualmente – no caso da poesia.
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POR CARLOS LOPES Raramente um escritor – ou um autor que se propõe a vir a assumir esse estatuto – publica o primeiro livro que escreveu (temos por exemplo o caso de João Tordo, que apenas após a publicação de 3 romances seus viu publicado O livro dos Homens Sem Luz, o primeiro romance que escreveu). E porquê isto?
Uma questão que costumo colocar a quem se propõe publicar o seu primeiro livro é “Qual o valor acrescentado da sua obra? Em que é que ela faz a diferença, em relação às obras que conhece?” e o facto é que são poucos os autores que respondem ou sequer sabem o que responder a esta questão. Algumas (poucas) vezes, obtive a resposta: “É o meu primeiro livro!”, o que de facto,
no fundo, até serve como resposta, pois tem na revelação de um novo autor a diferença perante as obras que o mercado conhece, sendo este também o “valor acrescentado” que a publicação daquela obra traz ao mercado: mais um autor. Mas… será este motivo suficiente para ser publicado?
Quem dá uma resposta destas, está logo à partida a revelar uma atitude de autor e não de escritor, ou pelo menos de um autor com propensão ou desejo de se vir a tornar um escritor.
Já anteriormente escrevi um artigo sobre “a pressa” de um autor em editar (Revista-Me nº2). Não querendo voltar a esse assunto, importa referir que um autor sente urgência em publicar o
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seu primeiro livro, ao passo que um escritor tem urgência em atingir o seu ponto de maturação de escrita, aquele com que se identifique e que melhor o defina, antes de se apresentar aos leitores sob a forma de um livro. Daí muitas vezes os escritores não publicarem o seu primeiro livro, mas sim outro produzido numa fase mais avançada.
Apesar do que afirmei até este ponto, isto não significa que um autor não se possa vir a tornar num escritor. Aqui entra a vontade e dedicação do autor, bem como a função do editor. Da parte do autor, lendo muito – tarefa indispensável que lhe permite tomar conhecimento do que de melhor se publica - e desenvolvendo hábitos de escrita, definindo um rumo e uma forma de escrita que o distinga dos demais. Da parte do editor, primeiro analisando a qualidade da obra que está a ser proposta para publicação e seguidamente tentando aferir o potencial do autor. Se a qualidade de uma obra (embora contendo sempre em si um grau de subjectividade) é de “fácil” aferição – funcionando muitas vezes por exclusão pela qualidade de escrita –, a determinação do
potencial de um autor já não é tão linear. Muitas vezes somos abordados com o primeiro livro escrito por um autor, acabadinho de produzir, em que o primeiro impulso foi enviar para uma editora: atitude de autor; ao invés de procurar opiniões prévias, de alguém que reconheça com propriedade para dar uma opinião avalizada: atitude de escritor. Outras (menos) vezes, somos surpreendidos com a apresentação de obras que já passaram pelo crivo de diversas pessoas, muitas das vezes obras já com anos desde a sua escrita como um todo, ou das partes que a constituem (no caso da poesia), ou então, solicitando simplesmente à editora uma avaliação do enviado. Este é o primeiro indicador de que estamos na presença de um potencial escritor. Mas nem todos os autores têm a pretensão de se virem a tornar escritores. E se o seu objectivo é apenas publicar um livro, desde que a obra tenha qualidade, também existe lugar para o seu livro no plano da publicação. Cabe à editora tudo fazer para que o livro chegue ao público com o máximo de qualidade, para que este não desiluda o leitor, pelo menos, pelos seus parâmetros mais básicos.
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Tudo o abordado até este ponto refere-se apenas à primeira parte do título deste artigo, a publicação da primeira obra. Avançando agora para a segunda parte, importa aqui reforçar tudo o afirmado anteriormente, pois quando falamos de novas obras de autores já publicados, temos de considerar não só a obra que analisamos no momento, mas também todo o histórico e percurso enquanto autor. Não porque a partir da segunda obra um autor possa passar a ser considerado escritor. Longe disso! No entanto, existe um acréscimo de responsabilidade do autor e, por inerência directa, da editora, para com os seus leitores.
Se a primeira obra é um ponto de partida, uma obra continuada – em qualquer dos graus de continuidade – tem necessariamente de representar uma evolução. Tem necessariamente de conter valor acrescentado, só que, desta feita, não em relação ao mercado, mas em relação ao autor em si mesmo e às suas obras anteriormente publicadas. Todas. Não faz por isso sentido propor a publicação de uma obra no mínimo “tão boa” como a anterior. Cada nova obra tem de ser
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sempre – e cada vez em maior grau – melhor que a sua antecessora. Daí que a avaliação vai sendo cada vez mais exigente, mais “depuradora” e o trabalho de edição vai sendo cada vez maior, devendo ser a obra mais trabalhada por parte da editora, mas principalmente, por parte do autor. Daí ser natural tornar-se cada vez mais difícil conseguir a edição de uma obra continuada na mesma editora. No entanto, o optar por fazê-lo e o consegui-lo é um garante, e até uma demonstração pública perante o mercado e os leitores, da vontade do autor em evoluir no sentido de se vir a tornar um escritor, ponto em que, legitimamente, este poderá sentir a vontade de “voos maiores”. Em resumo: se numa primeira obra o autor se está a revelar, nas obras continuadas está a fidelizar leitores e a definir, por mérito, um (muito importante) espaço, quer para as suas obras, quer para si mesmo, enquanto autor/ escritor, pelo que deverá encarar cada livro não como “um filho”, mas sim como um cada vez maior e melhor “pedaço de si”.
RE(C)TIFICA-ME
ESTA ÁREA DE CARACTER PERMANENTE, É DEDICADA AOS PRAZERES E CURIOSIDADES DA NOSSA TÃO RICA E DIVERSIFICADA LÍNGUA. COM A ASSINATURA DA DRª ANA SALGADO.
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RE(C)TIFICA-ME CURIOSIDADES DA LÍNGUA
«O caminho chegou ao fim. O caminho de retorno a casa da Rita havia terminado. Dispensado o táxi, entraram em casa e, num abraço apertado e longo, ela murmurou-lhe por entre o silêncio: – “Obrigada pelo apoio. Obrigada pelo carinho. Obrigada pelo teu silêncio…”» in FILIPE PAIXÃO, A Vida nos Dias, p. 78
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POR ANA SALGADO A palavra obrigado é uma das palavras mais usadas como fórmula de agradecimento. Obrigado significa «agradecido, grato». Nesta passagem do mais recente romance de Filipe Paixão, Rita mostra-se agradecida a Alexandre e a forma usada tem a marca do feminino (obrigada), uma vez que é ela que agradece. Obrigado é um adjetivo que concorda em género e número com o sujeito falante: obrigada, se se tratar de uma pessoa do sexo feminino; obrigado se se tratar de uma pessoa do sexo masculino. O vocábulo obrigado também pode ser uma interjeição, mas nesse caso mantém-se sempre invariável independentemente do género ou número do sujeito falante. Segundo este ponto de vista, quer um homem quer uma mulher podem dizer
simplesmente obrigado, mas um homem nunca deve dizer obrigada.
Eu que sou mulher, agradeço a todos os meus leitores, à leitora e ao leitor, da seguinte forma: muito obrigada por me lerem! Como vimos, a palavra varia de acordo com o sexo da pessoa que agradece (quando estou a fazer uso da palavra enquanto adjetivo) e não de acordo com a pessoa a quem nos dirigimos. CONSULTÓRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA Faça as suas perguntas para retifica-me@edita-me.pt e veja as suas dúvidas esclarecidas.
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POR ANA SALGADO Findo o verão, é altura de fazer um balanço, refletir, traçar novos caminhos e atingir novos objetivos. Por isso, prezado leitor, convido-o a refletir comigo sobre a noção de desvio, mais concretamente sobre uma certa atitude complacente para com desvios cometidos na língua e, com esta premissa, desafiá-lo a adotar um novo comportamento perante a nossa querida língua. Andamos todos muito ocupados, stressados, preocupados com a crise do país, mas será que devemos relaxar no nosso discurso ou descurar a nossa escrita? Ora, se há desvios é porque há um afastamento daquilo que é estabelecido como padrão ou uma falta de
observância de alguma regra. De facto, e no que diz respeito à língua, também nesta área existe uma norma, a chamada norma culta da língua ou norma padrão. E o que vem a ser isto de ‘norma culta da língua’? De uma forma sucinta, digamos que é o modelo instituído pela prática da língua das pessoas mais instruídas, cujas regras são explicitadas pela gramática, que é difundido pelos meios de comunicação social (ou, pelo menos, devia ser) e que deve ser ensinado nas escolas. A norma deve ser seguida por toda a sociedade e quem não a utilize pode mesmo correr o risco de ser excluído ou desprestigiado socialmente.
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Como é do conhecimento geral, o papel primordial de qualquer língua é estabelecer comunicação e esta tem de ser eficaz. Para garantir essa eficácia, fazemos uso desse padrão linguístico, a dita norma culta ou norma padrão, pela qual se faz uma seleção do que deve ou não ser usado na língua. Nasce assim a dicotomia dos conceitos ‘certo’ e ‘errado’: CERTO: é todo uso linguístico que segue as normas da língua-padrão;
ERRADO: é todo uso linguístico que não segue as normas impostas pela gramática.
No caso do português, os instrumentos de normalização linguística, isto é, daquilo que é considerado correto, datam do século XVI, na época do Renascimento que se caracteriza por uma valorização das línguas vernáculas em detrimento do latim. Com o passar dos tempos, estes instrumentos têm-se tornando, necessariamente, cada vez mais sensíveis à diferença entre língua oral e língua escrita e entre contextos informais e formais de uso da língua. A norma resulta do equilíbrio entre o bem falar e escrever registado como modelo e das práticas linguísticas adotadas pela comunidade de falantes.
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É certo e sabido que a língua é dinâmica e está em permanente evolução. A língua altera-se por si só, dado que se encontra em constante renovação, mas também se altera porque alguém a altera e é aqui que surgem os ‘atropelos’ na nossa língua. Assim, a dicotomia “certo” ou “errado” acaba por ser algo controversa. Não há consenso entre os sujeitos falantes e até mesmo entre gramáticos e linguistas, porque, por um lado, há os puristas e os conservadores da língua que não admitem qualquer mudança, por outro lado, há os que tudo admitem, com a crença de que o povo é quem manda na língua. Ao efetuar uma análise de desvios na língua, conclui-se que muitos deles, outrora condenados pelos puristas inflexíveis e, por consequência, não considerados pela norma padrão, acabaram por ser aceites e legitimados. Já em artigo anterior (sobre a forma presidenta), vimos que uma elevada frequência de uso de uma determinada forma vocabular pode provocar alterações na própria gramática, ainda que essa forma não seja entendida como a mais correta do ponto de vista vernáculo. Muitas das mudanças da língua começam por ser consideradas erros e, à medida que se vão impondo, acabam por ser aceites e por entrar na norma. Desta forma, e apesar de a norma ter de ser necessariamente tida em conta, observa-se que o uso também faz lei e qualquer erro pode
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vir a tornar-se uma forma adotada. Segundo este ponto de vista, correto é aquilo que se tem dito, não necessariamente aquilo que deve dizer-se. Cometer erros em conversas informais é comum e de mais fácil perdão. Sendo o discurso oral mais espontâneo é mais sujeito a imperfeições, mas em discursos formais e na língua escrita, é conveniente respeitar as regras gramaticais. Ainda que esses erros se situem nos mais diversos planos da língua, é possível identificar alguns tipos que costumam ocorrer com mais frequência. Os tópicos onde se encontram mais desvios à norma padrão são: a pronúncia, a ortografia, a morfologia, a semântica, a regência, a concordância e a pontuação. Irei passar em revista alguns erros frequentes que resultam de tendências sentidas pelos falantes de português, e que embora não impeçam a compreensão da mensagem, poderão ser considerados desvios à gramática normativa. ERROS COMUNS DE PRONÚNCIA Em certos casos, a pronúncia corrente de determinadas palavras não significa que essa seja a forma mais correta de as pronunciar. Já se deu conta de como pronuncia a palavra alcoolemia? Acentua a vogal e ou a vogal i? Diz /alcoolémia/ ou /alcoolemia/? Pois bem, os puristas da língua defendem que a forma correta é alcoolemia, sem acento gráfico. Apesar de a pronúncia /émia/ ser bastante frequente, os puristas defendem a pronúncia /emía/ por se tratar de uma palavra com sufixo de origem grega terminado em -ia, acentuado no i, o qual pressupõe a formação de
palavras graves (acentuadas na penúltima sílaba), tal como acontece, por exemplo, em anemia ou leucemia. Generalizou-se a pronúncia /émia/ e, por isso, alguns dicionários já aceitam a forma acentuada (que é o caso dos dicionários da Porto Editora), embora (ainda) com remissão para a forma considerada mais correta do ponto de vista vernáculo. Em bom português diga e escreva: alcoolemia e não alcoolémia.
Caso idêntico acontece quando se ouve a palavra /biópsia/ em vez de /biopsia/, talvez por analogia com a palavra autópsia. Neste caso, é muito provável que a forma e a pronúncia se alterem, dada a tendência dos falantes para a pronunciarem como sendo palavra esdrúxula (com acento na vogal o) e, por isso, esta forma já começa a surgir atestada em vários dicionários. Este não deixa de ser um caso curioso, pois a maior parte dos falantes pronuncia a palavra como esdrúxula aparente, mas continua a escrevê-la sem acento. De facto, uma coisa é a fala, outra a escrita. Um outro caso: /logótipo/ ou /logotipo/? A forma mais correta de um ponto de vista etimológico é logótipo, uma vez que estamos perante uma palavra esdrúxula (acentuada na antepenúltima sílaba). Esta palavra tem origem no grego e o último elemento formação (‘typos’=tipo) pressupõe a formação de palavras esdrúxulas e não graves, como, por exemplo, protótipo (também do grego ‘protótypos’). Sendo a variante logotipo tão corrente, esta forma também já vem registada em alguns dicionários de língua portuguesa. O mesmo acontece, por exemplo, com o vocábulo /termóstato/, que até os especialistas na sua maioria pronunciam /termostato/
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(acentuando a vogal a). O dicionário da Porto Editora regista ambas as formas, como esdrúxula e como grave, admitindo as duas pronúncias. Imagine-se ainda, caro leitor, a comer dióspiros e a cheirar túlipas (acentue corretamente as palavras, no primeiro caso, a vogal o e, no segundo, a vogal u). Aposto que têm um sabor e um cheiro bem diferentes aos que está habituado! Resumindo, podemos concluir que uma coisa é a pronúncia etimológica recomendada pelos puristas, outra o hábito linguístico com que determinado vocábulo acaba por se fixar na língua. ERROS DE ESCRITA Erros de escrita ocorrem nas mais variadas situações, pelo que me vou cingir apenas àqueles que tenho encontrado nos últimos tempos.
Há muito boa gente que confunde os verbos coser e cozer na hora de escrever. Estes verbos são homófonos, isto é, têm a mesma pronúncia, mas apresentam grafia e significado diferentes. O verbo coser significa “costurar, remendar”, enquanto o verbo cozer tem como significado “cozinhar”. Escreva-se “cozido à portuguesa”, mas “cosi as calças”. Talvez já tenha sido assombrado por esta dúvida: bem-vindo ou benvindo? A forma correta é bem-vindo. O adjetivo bem-vindo é formado pelos elementos bem e vindo e a regra manda hifenizar. Benvindo existe na língua, mas é um nome próprio. Escreva sempre: “Bem-vindo!”.
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Outro vocábulo que é muito maltratado é Pirenéus (e não Pirinéus). Este topónimo vem do grego ‘Pyrenaîa’ (cadeia de montanhas entre a Gália e a Hispânia), pelo latim ‘Pyrenaeos’ (montes). Pronuncia /pirinéus/? Mas não se esqueça de escrever sempre com e: Pirenéus. Ainda no plano da escrita, também são muito comuns os erros por falta de acentuação. Geralmente este tipo de erros ocorre por dois motivos: o falante desconhece as regras ortográficas e como consequência dá erros quando escreve, como acontece, por exemplo, no caso de vocábulos como bainha, em que o i é acentuado oralmente, mas na escrita não tem acento gráfico. Esta vogal i quando seguida de nh dispensa o acento, como acontece também em moinho ou rainha. Outro erro também muito comum é acentuar a palavra raiz em que neste caso temos um i tónico antecedido de uma vogal com a qual forma hiato, seguido de um z que faz parte da mesma sílaba, e seguindo a regra não há acento gráfico; o falante não sabe identificar a sílaba tónica, como no caso de rubrica que deve ser pronunciada como palavra grave, com acento tónico na penúltima sílaba (-bri-) e, em geral, as palavras graves não levam acento. A pronúncia desta palavra como esdrúxula, apesar de muito usual, só poderia ser admitida se a sua grafia fosse rúbrica, a qual não se encontra dicionarizada. ERROS DE MORFOLOGIA Aqui os desvios costumam surgir com mais frequência nos seguintes casos: na formação
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do plural dos nomes compostos, como no caso de guardas-chuvas ou paras-choques, em que o correto é guarda-chuvas e para-choques, uma vez que o primeiro elemento destes compostos é uma forma verbal e, portanto, não forma plural; no género dos nomes, em que refiro o caso de TAC. Este acrónimo de «Tomografia Axial Computadorizada», é do género feminino em concordância com o elemento “tomografia”. O género de acrónimos e siglas é sempre semelhante ao núcleo (isto é, ao elemento essencial) da unidade em questão e que, geralmente, é o primeiro elemento. A designação de “um TAC” é aceite quando se faz referência ao exame médico complementar de diagnóstico que é “a TAC”. E já que falo de siglas, um outro erro muito frequente é o de pluralizar estas unidades. Lê-se muitas vezes, por exemplo, “os CD’s” ou “os DVD’s”. Na verdade, as siglas não formam plural, sendo o artigo que as precede que dá a informação do número. Relativamente ao uso do apóstrofo, esta partícula nunca forma o plural, nem em português nem em inglês (onde é um caso possessivo). Diga e escreva corretamente: “recebi muitas SMS; Portugal faz parte dos PALOP; os PEC levaram à crise política”; por último, no emprego verbal, verifica-se uma grande confusão quando se pretende conjugar determinados verbos, como é o caso do verbo intervir. Este verbo é um derivado de vir, logo toda a sua conjugação é igual à deste verbo (vir) e não de ver. Por exemplo, as formas correctas de terceira pessoa são interveio e intervieram e não interviu ou interviram.
ERROS DE SEMÂNTICA Estes erros ocorrem quando se usa uma palavra em lugar de outra por falsa associação de sentido entre elas. Troquemos isto por miúdos:
Em contextos informais, é comum usar-se o verbo destrocar com o sentido de «trocar uma quantia de dinheiro por valor igual em moedas ou notas de valores mais baixos», mas se não pretender um registo informal, deverá sempre utilizar o verbo trocar. O problema é que o prefixo des- é entendido como meramente protético, isto é, apenas com uma função de reforço (ex.: destrocas-me esta nota?), mas, de facto, este prefixo indica negação quando aposto ao verbo trocar, tendo como sentido «anular ou desfazer uma troca», como em “fui à loja pela segunda vez para destrocar a gravata”. Também é muito habitual, o verbo despoletar ser usado com um sentido contrário ao original. O verbo espoletar significa «pôr espoleta em» e despoletar significa o «tirar a espoleta a». A espoleta é o «dispositivo que produz a detonação de cargas explosivas». Quando pomos a espoleta, isto é, quando ativamos esse dispositivo, usamos o verbo espoletar, enquanto se tirarmos a espoleta, a carga explosiva fica inativa. Ao transitar do vocabulário técnico da artilharia para a linguagem comum, com um sentido figurado, espoletar adquire o sentido de desencadear, provocar. Sendo despoletar formado pelo verbo espoletar, a que se juntou o prefixo des-, que indica ação contrária, ele deveria ser usado com o sentido oposto, à semelhança de fazer e desfazer, pegar e despegar, etc. Acontece, todavia,
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que a maioria dos falantes emprega despoletar com o sentido original de espoletar, isto é, com o significado de desencadear e este sentido já se encontra registado em alguns dicionários, como é o caso dos dicionários da Porto Editora. Se preferir contornar a controvérsia, recomendo o uso de sinónimos, preferindo usar deflagrar, desencadear ou provocar. ERROS DE REGÊNCIA A regência é a relação de dependência entre duas palavras numa construção, na qual uma (a regida) complementa a outra (a regente). Por vezes, surgem-nos dúvidas quanto à regência de determinados verbos, nomes e adjetivos. Vejamos o seguinte exemplo: ir ao encontro de ou ir de encontro a? A construção ir ao encontro de tem o sentido original de «ir em direção a» e, por extensão de sentido, é usada com o significado de «estar de acordo com», tendo um significado antagónico à expressão ir de encontro a que significa «ir contra; embater». É errado “foi de encontro aos meus objetivos”, para significar concordância, sendo o correto “foi ao encontro dos meus objetivos”. A expressão ir de encontro é bem empregue numa frase como “foi de encontro a uma árvore”.
ERROS DE CONCORDÂNCIA O verbo haver é um verbo muito maltratado na língua. Sempre que este verbo é usado como
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impessoal com o sentido de existir, só se conjuga na 3.ª pessoa do singular. Diga corretamente: “Houve pessoas…”. Isto para não falar do hás de e não hádes. Ora, o único Hades de que ouvi falar era um deus grego. ERROS DE PONTUAÇÃO A rainha dos sinais de pontuação é a vírgula. Separar o sujeito do verbo é um grave erro gramatical. Este pequeno sinal de pontuação pode alterar completamente a sua intenção. Repare na diferença: «Não, gosto de ti!» ou «Não gosto de ti!» Aconselho-o a pontuar corretamente ou poderá ser alvo de um mal-entendido! Com o que acabamos de ver, é possível fazer uma distinção entre erros bastante graves e outros que são tão comuns que até nos questionamos se se trata, de facto, de um erro ou de uma mudança em curso na língua. Sempre que os erros deixam de ser captados imediatamente, significa que já estamos de tal forma habituados a esses desvios à norma, provocados quer por descuido quer por ignorância das normas, que os mesmos (até) poderão vir a ser instituídos como norma. Não me alongo, nem me ‘desvio’ muito mais e deixo-lhe apenas um conselho: procure saber qual a forma correta, mesmo que em certos casos a sua opção seja outra, e use-a sempre em discursos e textos formais.
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ANA SALGADO NASCEU EM 1978 NA CIDADE DO PORTO.
É LICENCIADA EM LÍNGUAS E
LITERATURAS MODERNAS, VARIANTE DE ESTUDOS PORTUGUESES, RAMO CIENTÍFICO, PELA FACULDADE DE
LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO. DESDE 2002, TRABALHA NO
DEPARTAMENTO DE DICIONÁRIOS
DA PORTO EDITORA, ONDE EXERCE AS FUNÇÕES DE COORDENADORA,
REDATORA E REVISORA. TEM DEDICADO A SUA CARREIRA AO ESTUDO DA
LÍNGUA PORTUGUESA, COLABORANDO EM VÁRIOS PROJETOS DE EDIÇÃO E
DE PROCESSAMENTO DE LINGUAGEM
NATURAL. NESTE ÂMBITO, COORDENOU A EDIÇÃO DO VOCABULÁRIO
ORTOGRÁFICO DA LÍNGUA PORTUGUESA, SOB A ORIENTAÇÃO CIENTÍFICA DO
Prezado leitor, quero terminar dizendo-lhe que a minha grande motivação ao escrever estes artigos é o contributo, por reduzido que seja, para a preservação de uma riqueza imensurável. Ao respeitar as palavras e a sua história, estamos a defender o magnífico património da língua que, no fundo, faz parte da nossa história, da sua, da minha. O acervo da língua pertence-nos e cabe-nos, a todos nós, defendê-lo, não só aos estudiosos da língua ou aos professores. Pense nisto! Errar é humano, mas vigie o seu discurso, esteja mais atento à sua escrita. Vale apenas o que (lhe) soa bem ao ouvido? Não! E para combater dificuldades na escrita, leia mais. O livro é uma excelente companhia, viaje e sinta o prazer da leitura. Falar e escrever bem são provas de amor pelo nosso idioma e gostaria que o caro leitor as partilhasse comigo.
PROFESSOR JOÃO MALACA CASTELEIRO, BEM COMO AS ÚLTIMAS EDIÇÕES
DO DICIONÁRIO EDITORA DA LÍNGUA PORTUGUESA SEGUNDO A NOVA
ORTOGRAFIA E AS OBRAS ACORDO
ORTOGRÁFICO – O QUE MUDA E ACORDO ORTOGRÁFICO NO ENSINO BÁSICO. SENDO UMA DAS RESPONSÁVEIS PELA PÁGINA DO CONVERSOR ORTOGRÁFICO DA
PORTO EDITORA, É UMA DAS PESSOAS
MAIS ENVOLVIDAS NA APLICAÇÃO DAS NOVAS REGRAS ORTOGRÁFICAS EM
TODO O GRUPO PORTO EDITORA E UMA DAS FORMADORAS SOBRE O TEMA.
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PORQUE É IMPORTANTE A PARTILHA DE TUDO O QUE GOSTAMOS, AQUI SE FARÁ REFERÊNCIA A OBRAS DE OUTRAS EDITORAS, PELA OPINIÃO DE CELESTE PEREIRA.
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POR CELESTE PEREIRA Um romance absolutamente incrível de lindo. Acabei agora mesmo de o ler e já lhe tenho saudades.
Saudades das personagens. Tão genuínas, tão simples, tão rudes, mesmo estúpidas, às vezes e, porém, tão puras, tão belas, tão gordas de afectos e de esperança.
Adoro o Crisóstomo, que se sente apenas pela metade, que aos quarenta anos quer ter um filho e que o procura, que não desiste, que acredita que uma família se pode construir. Gosto tremendamente do Camilo, que vai aprendendo que ser filho é muito mais do que ter um pai. E que ter a nossa família pode depender muito da nossa vontade, da nossa capacidade de compreensão, de aceitação.
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Gosto da Isaura e do Antonino, personagens chicoteadas pela vida, pelo amor torcido, escangalhado, desajeitado dos seus pais e que, apesar disso, lá conseguem ajuntar os seus pedaços e tornarem-se pessoas de corpo inteiro. Lindas como o nome (a Isaura) e como a sua bondade (o Antonino).
Gosto da Matilde que, presa entre um mundo de amor e outro de ignorância, acaba a acreditar que, também ela, fará parte do grupo dos felizes. E gosto da Rosinha, da Mininha, do Gemúndio… que, juntamente com os restantes, compõem uma verdadeira jóia. Imperdível.
Saudades da beleza das palavras que Valter tão bem sabe esgrimir. Também elas descomplicadas, também elas vindas de um léxico próprio das pessoas simples, também elas avassaladoras no seu sentido e na sua carga de amor e de verdade. Saudades da forma como Valter primeiro solta os novelos, redondos, cheios e independentes uns dos outros. Depois, com o decorrer dos medos, das tristezas, das esperanças, dos amores, pega-
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lhes nas pontas, entrelaça-lhes os fios na trança mais perfeita, mais possível e mais encantadora, que é a dos afectos. Escrita belíssima. De uma beleza que apenas as coisas simples adquirem quando devidamente conjugadas com a sensibilidade de quem as observa. O livro, como a maioria dos livros de Valter, balanceia entre a rudeza e a candura, num casamento de extrema felicidade.
Aqui podemos ler acontecimentos arrepiantes que nos levam à maior negrura de alma para, logo depois, nos depararmos com o belo, o cristalino, o mais radioso. Aliás, nesta obra o autor leva esse belo ao altar do fantasioso, do assombroso, do conto de fadas. Obrigatório ler quanto antes.
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valter hugo mãe nasceu em saurimo, angola, no ano de 1971. licenciado em direito, pós-graduado em literatura portuguesa moderna e contemporânea. vive em vila do conde.
publicou cinco romances: o filho de mil homens (2011), a máquina de fazer espanhóis (2010) o apocalipse dos trabalhadores (2008), o remorso de baltazar serapião, vencedor do prémio josé saramago (2006) e o nosso reino (2004).
a sua obra poética está revista e reunida no volume contabilidade(objectiva/alfaguara, 2010). é autor dos livros para os mais novos: o rosto (agosto 2010), as mais belas coisas do mundo (agosto 2010), a verdadeira história dos pássaros (2009) e a história do homem calado (2009). escreve a crónica autobiografia imaginária no jornal de letras.
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valter hugo mãe é vocalista do grupo musical governo e esporadicamente dedica-se às artes plásticas.
letrista dos músicos/projectos mundo cão, paulo praça, indignu, salto, frei fado del’rei, blandino e eliana castro. recebeu, em 2009, o troféu figura do futuro, atribuído pelo correio da manhã. recebeu, em 2010, a pena de camilo castelo branco. em 2010 recebeu a medalha de mérito singular de vila do conde. Biografia retirada da página Web do autor http://www.valterhugomae.com/info/ Fotografia por Nélio Paulo
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DADO QUE O LIVRO ACERCA DO QUAL ALVITRO DESTA VEZ É O FILHO DE MIL HOMENS DE VALTER HUGO MÃE E UMA VEZ QUE O PRÓPRIO VALTER, GENEROSA (E IMPRUDENTEMENTE) SE PRONTIFICOU A RESPONDER A UMAS QUANTAS PERGUNTAS, AQUI ESTOU A PARTILHAR CONVOSCO AS RESPOSTAS ESPERANDO QUE, ATRAVÉS DELAS, POSSAMOS CONHECÊ-LO UM POUCO MELHOR.
PROCUREI QUE FOSSEM ALGO DIFERENTES DAS HABITUAIS POIS A ESSAS JULGO QUE JÁ ESTARÁ O VALTER CANSADO DE RESPONDER. ALÉM DISSO, PODEREMOS ENCONTRAR A MAIORIA DAS RESPOSTAS ÀS QUESTÕES MESMO MUITO FREQUENTES, EM QUALQUER SITE DE UM QUALQUER CANAL TELEVISIVO DE GRANDE COBERTURA OU ATÉ, QUEM SABE, DE UM DESSES JORNAIS OU REVISTA DE GRANDE TIRAGEM E QUE TÊM A MANIA DE CHEGAR A TODO O LADO. PARA NÓS, PORQUE MERECEMOS, RESERVEI QUESTÕES MAIS ORIGINAIS. ATENTEM POIS!
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Celeste Pereira — Para começar, aqui vai uma questão mesmo muito inteligente e que nunca ninguém lhe deve ter posto. Uma assim do tipo: — o que vem primeiro? O ovo ou a galinha?
Valter Hugo Mãe — Pois, não sei. Tenho dias de achar uma coisa e dias de achar outra. O pior é não achar nada ou grande coisa. Gosto, contudo, muito mais da ideia de ovo, que tem o seu mistério e pode ser mágico. Já a galinha é inegavelmente estúpida. Eu creio que foi o ovo que deu um jeito de inventar um bicho estúpido onde parasitar.
Como é que nasce em si a ideia para um romance? Como é que enrola esse novelo? É o Valter que o vai enrolando e tornando-o naquilo que é ou, pelo contrário, surge-lhe completamente enrolado, em catadupas, e cabe-lhe depois a si o trabalho de o desenrolar? Escrevo sempre depois de saber sobre o que quero escrever e depois de definir duas ou três personagens principais. Depois disso, o texto desenvolve-se pela coerência da narrativa, fazendo avanços e recuos como lhe for natural. Nunca sei como terminarão as personagens. Sei quem são, nunca sei previamente o que lhes acontece.
Escreve quase sempre sobre pessoas simples, desafortunadas, com vidas complicadas, doridas e… desafortunadas. Assim acontece também em O Filho de Mil Homens. Porquê esta constante?
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Talvez porque sejam as pessoas que me impressionam, as que me parecem legitimamente necessitar de se tornar o centro das nossas preocupações. Tenho pouca paciência para personagens menos intensas, dessas longe de arriscarem perder ou ganhar tudo. Gosto de personagens no limite porque acho que o comum dos cidadãos está efectivamente no limite.
O Valter também acha que faz parte do grupo dos “felizes” a que, a dada altura, Matilde, personagem deste livro, acredita pertencer? Porquê? Isso acaba por ser uma pergunta muito pessoal, a de saber se sou ou não feliz. Entendo que a felicidade é um instante e que pela sua repetição vamos correndo. Repito-a o melhor que posso. Não me posso queixar. Creio que a partir de um determinado ponto na minha vida tenho sido dado a alguma sorte. Quando acaba um livro como é para si soltar-se das personagens? Não sente saudades?
Sinto-me magoado por me deixarem do lado de fora do livro. Tenho uma certa nostalgia do livro que imediatamente se cura pela disponibilidade criada para um novo texto. E começar um livro é maravilhoso. A escolha de tudo, de novo, é como mudar de casa, conhecer as vistas, o modo do sol, os vizinhos. É muito entusiasmante e fica-se com os sentidos redobrados.
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Na minha opinião esta obra tem o seu quê de fantasioso, de conto de fadas… Qual é o seu conto de fadas preferido? Há algum? Ainda não foi escrito?
Não sou um leitor de contos de fadas, acho que venho mais do suspense e mesmo do horror. A minha escola passa também muito pelo surrealismo. Creio que me defino mais por essa maravilha permissiva de querer que a realidade seja outra coisa, de querer que o mundo seja outra coisa. De todo o modo, história da Gata Borralheira talvez me tenha impressionado muito quando miúdo. Tinha sempre medo que não terminasse bem. Detestava que, ao ouvir de novo, pudesse haver a surpresa de o sapato servir também a uma impostora. Odiaria se o príncipe escolhesse uma impostora. Ficava muito aliviado quando tudo dava certo. Já era uma criança romântica. Truques para escritores. As palavras surgem, nos seus livros, descomplicadas e belíssimas. É mesmo assim fácil? É mesmo assim descomplicado escrever desta forma?
Não tem que ver com complicação, passa antes por uma questão de natureza. É assim que, por natureza, escrevo. Não sei fazer de outro modo. Para as pessoas que ficam com saudades logo a seguir a acabarem o livro, algumas palavras de conforto? Algum conselho para pessoas “Valter Hugo Mãe – dependentes” em recuperação?
Não sei se há gente assim. Mas sugiro talvez que ouçam a Billie Holliday ou o Chet Baker, que leiam Ruy Belo, que vejam o filme sobre a arte de Pina Bausch, do Wim Wenders. Estarão ao pé daquilo de que já não abdico e que justifica muito do meu prazer de estar vivo.
CELESTE PEREIRA NASCEU A 19 DE JUNHO DE 1954 EM CHAVES, ONDE VIVEU ATÉ AOS 10 ANOS.
FOI ENTÃO QUE VEIO PARA O PORTO, ONDE ESTUDOU, TIRANDO O CURSO DO MAGISTÉRIO PRIMÁRIO NO CONTURBADO ANO DE 1974.
FEZ AINDA UMA BREVE INCURSÃO
PELAS CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO COMO COMPLEMENTO NECESSÁRIO PARA O SEU EXERCÍCIO DOCENTE E UMA
LICENCIATURA EM HISTÓRIA PARA PURO DELEITE PESSOAL.
ESTEVE, NA MAIOR PARTE DA SUA
CARREIRA DE DOCENTE, LIGADA À GESTÃO ESCOLAR.
Obras publicadas pela EditaMe:
DESCOBRE-ME
ESTA SECÇÃO DESTINA-SE A DIVULGAR AUTORES AINDA DESCONHECIDOS, POR NÃO PUBLICADOS, MAS DOS QUAIS GOSTEMOS DE LER O QUE PRODUZEM. EM CADA EDIÇÃO, UM AUTOR PUBLICADO POR NÓS, ESCOLHE E APRESENTA UM AUTOR A DESCOBRIR.
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INTRODUÇÃO POR RUTH MINISTRO
Há muitas formas de começar um poema. Pode começar-se por uma ideia, por um sonho, por um verso que nos aflora os pensamentos e não nos deixa até o escrevermos no papel. Gisela Casimiro começa os poemas por dentro do corpo. Começa-os por um sorriso, por uma lágrima, por uma linha de vida marcada ruga no coração. Nascida a 30 de Outubro de 1984, na Guiné-Bissau, ofereceu a alma a Portugal em 1988, e das raízes africanas guarda apenas com carinho os sons crioulos que aprendeu a ouvir, achando, porém, que não lhe vestem bem a voz. Uma infância atribulada pelo grande incêndio que devastou o Chiado no ano da sua chegada, levando-lhe a si e à sua família tudo o que tinham, cedo lhe desvendou a faceta cruel e impiedosa da vida, mas também os caminhos iluminados pela fé e pela esperança.
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Os seus primeiros poemas publicados surgem em 2004, num Livejournal que lhe mudou a vida, abrindo-lhe os olhos para o interminável e fascinante mundo das artes e da cultura. Fez amizades duradouras, apaixonou-se pela música, pela fotografia, e desde então não deixou de sonhar com a criação da sua própria revista ligada às artes e à literatura, projecto que aos poucos tem ganho forma e que pretende concretizar em breve, junto com a publicação de um livro de poemas, Poesia em Voz Alma e, quem sabe, um romance. Sonhadora e romântica, já quis ser jornalista só para poder ver o mundo com os seus próprios olhos, mas acabou por render-se à paixão pelas letras, ingressando na vertente das Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade Nova de Lisboa. A sua poesia e prosa poética rasgam-nos o peito de tão cruas, de tão reais. Não há nada de ficção, de plástico ou de falso naquilo que escreve. Nos
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dedos tem a inocência perdida pelas estradas que trilhou, a doçura de uma criança, a dor e a felicidade, o amor e o desamor, a vida e a morte, a presença incontestável de Deus. Caracteriza a sua escrita como “simples, circular e não polida”, acessível a todos os que tiverem o coração aberto para a deixar entrar. Porém, não a vejo assim tão simples. Considero-a de uma construção cuidadosa e sólida, rica em palavras, significados, formas e sentires. Fernando Pessoa, Eugénio de Andrade, Carson McCullers, Daniel Faria, Leonard Cohen e Sophia de Mello Breyner Andresen são algumas das suas fontes de admiração e inspiração. José Tolentino Mendonça, outro dos seus ídolos, escreveu-lhe um dia numa dedicatória “Para a Gisela há uma estrela”. Eu concordo. Há muitas formas de começar um poema e os da Gisela começam na luz.
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DESCOBRE-ME
Um anjo começa na luz e não termina, nunca termina Um anjo nasce muito antes da vida e não termina, existe para além do corpo e não termina, enfrenta a morte e não termina Um anjo acaba apenas onde começa, existe para além do tempo e dos lugares para além do Homem e suas maldades – guardião da ternura e da coragem para sempre, para sempre a sua presença na mais doce, na mais leve aragem Um anjo começa e jamais termina pois a sua luz é a da eterna vida
Todo o dia um branco luto cobriu a cidade e foi triste a minha canção. Não se avistavam nuvens e ainda assim houve quem chovesse na minha cidade, quem talvez como eu tentasse conter um lago entre as mãos sem nunca antes ter aprendido a nadar. Não reconheci ninguém durante todo o dia e ninguém me procurou. Todo o dia os parapeitos das janelas me reconheceram mas pássaro algum deles levantou voo, e só eles se lembravam ainda do meu nome. Todo o dia o horizonte esteve longe, embora agora eu pudesse cartografá-lo no silêncio da minha pele, se assim quisesse, mas não eram as coisas possíveis que então eu amava, que desesperadamente eu buscava. Durante todo o dia, quando as crianças levantavam voo, podia por vezes ter sido a partir do céu, podia ter sido de encontro à terra. Eu estive aqui durante todo o dia: com as crianças, nos campos, colhi pássaros todo o dia: todo o dia quis morrer até ti e não consegui. Todo o dia nevou sobre o meu coração. Todo o dia te chamei com a minha canção.
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Por toda a minha alma se ouvia agora um grito – quero refugiar-me deste dia quero ir morar para uma fotografia quando apenas um segundo antes éramos tão inocentes dessa outra vida Por esses dias não havia ainda lugar na terra no céu para nenhum amigo – era a imortalidade tão mais do que apenas um mito
O amor chegará na bicicleta em que nunca ninguém te ensinou a andar
Quererei sempre para ti a pureza eterna estação do ano para as crianças MAIS PALAVRAS DA AUTORA EM http://giselacasimiro.blogspot.com/
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CONVIDA-ME
SENDO ESTA REVISTA DE CONTEÚDOS EXCLUSIVOS DE AUTORES E COLABORADORES DA EDITA-ME, ENTENDEMOS COMO IMPORTANTE DAR VOZ A UM “OUTSIDER”. ASSIM, EM CADA EDIÇÃO, SERÁ FORMULADO UM CONVITE A ALGUÉM QUE, NÃO TENDO SIDO EDITADO PELA EDITA-ME, SEJA DE RECONHECIDO VALOR PARA NÓS.
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Revista Me n 4
CONVIDA-ME
Nada tenho contra a PlayStation. Muito pelo contrário.
Nada tenho contra as redes sociais. Muito pelo contrário.
Nada tenho contra as séries juvenis. Muito pelo contrário.
Nada tenho contra tantas outras coisas usadas como bodes expiatórios para o tipo de sociedade que estamos a criar. Muito pelo contrário.
Neste momento deverá estar a interrogar-se onde quero chegar com tais afirmações, mas acredite, o meu objectivo é muito simples, quero apenas partilhar consigo uma ideia.
POR RUI SEQUEIRA
Siga o meu raciocínio! Acompanhe-me nesta viagem, para a qual o convido desde já mesmo sem saber a sua idade, a sua cor política, muito menos o seu credo. Mas como escrevi este texto para leitores de ambos os sexos, de todas as idades, todas as ideologias, todos as crenças e todas as raças, estou certo de que aceitará o convite. Um desafio que nos fará pensar em conjunto. Aceita? Venha daí!
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Quantas vezes já ouviu a expressão “somos um país de poetas”? Certamente que muitas, no entanto, já alguma vez reflectiu naquilo que realmente poderá estar por detrás de tal afirmação? Será por sermos um dos países que mais escritores oferece ao mundo? Pensarão uns que sim, outros que não. Eu pertenço indiscutivelmente ao primeiro grupo. Contudo, dissequemos um pouco sobre esta matéria. Perdoem-me todos os outros, mas vou somente enumerar alguns nomes que me ocorrem de momento: Gil Vicente, Luís de Camões, Eça de Queirós, Fernando Pessoa, José Saramago, Florbela Espanca, Agustina Bessa-Luís, Edgar Cardoso, Carlos Tê, Pedro Abrunhosa, Herman José, Luís Miguel Rocha. Surpreendido com a menção de alguns nomes? Não fique! Escritor será todo aquele que coloca no papel, ou noutro suporte qualquer, os seus estados de alma, os seus sonhos, as suas criações literárias, em suma, tudo aquilo que cada um queira partilhar com o mundo através de palavras mudas, mas sentidas, verdadeiras, por vezes até adornadas de forma invisível, com angústia. Teremos então uma lista com poetas, guionistas, romancistas, letristas e até mesmo cronistas. Certamente acrescentaria muitos outros nomes, no entanto, o objectivo não
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é um exercício de memória. Agora pergunto, o que têm todos estes nomes em comum? O facto de terem escrito algo que ficará para sempre nos anais da história? Claro que sim, mas não é esse o trajecto da nossa viagem. Porque se fosse, incluiria orgulhosamente nomes de cozinheiros, de apresentadores de televisão, de jogadores de futebol, de ex-strippers, de ex-não-sei-o-quê e de mais alguns, com a convicção de que criaria uma lista interminável. Bem sei, e certamente concordará comigo, que não fosse o facto de a caixa mágica ter tirado grande parte deles do anonimato através de um qualquer programa televisivo, esses só conseguiriam publicar através de uma modesta edição de autor ou recorrendo a um “print on demand”. E agora, meu caro leitor, esta verdade levar-nos-ia a um outro tema que me preocupa em particular: os autores não publicados. Já tive o privilégio de ter nas mãos belíssimas obras, acredite que algumas magnificamente bem escritas, no entanto, são constantemente rejeitadas pelo mercado editorial. E sabe porquê? A resposta é muito simples, os seus autores não têm mediatismo. E digo-o sem qualquer tipo de orgulho, muito pelo contrário. No entanto, não quero deixar passar esta oportunidade para dar uma palavra
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de esperança a todos eles. Palavras leva-as o vento, bem sei, mas por favor, continuem a escrever, continuem a criar, pois o dia chegará, acreditem. Não desistam. Autores como Stephenie Meyer e J.K. Rowling também viram as suas obras recusadas dezenas de vezes. Mas há uma coisa que vos peço, nunca paguem para serem publicados. Tantas e tantas coisas poderiam agora ser escritas, mas não é esse o trajecto da nossa viagem. Voltemos então aos nomes que mencionei. A sua característica comum é a Cultura. Todos os nomes que enumerei, e certamente todos aqueles que poderia acrescentar, têm em comum serem pessoas cultas. Não, não estou a querer dizer que quem escreve é mais culto que todos os outros. Não, nada disso. Felizmente temos imensas pessoas cultas que infelizmente nunca nada escreveram, ou que pelo menos tenha sido publicado. Mas não é esse o trajecto da nossa viagem. Aquilo que quero dizer é que todas estas pessoas não são cultas porque escreveram, muito menos que tenham escrito por serem cultas, mas sim, uma vez mais, partilhar consigo esta ideia. Todas estas pessoas são indiscutivelmente cultas. Cultas porque viajaram. Cultas porque aprenderam. E aprenderam porque viram, mas acima de tudo aprenderam porque leram. Obviamente que também aprendemos quando ouvimos, umas vezes os mais velhos, outras os mais novos. “Vivendo e aprendendo”, como uma vez ouvi e tantas vezes o digo. Mas não é esse o trajecto da nossa viagem.
Ler é indiscutivelmente o acto que mais nos enriquece culturalmente. Seja um jornal diário, desportivo ou não, um jornal semanário, uma revista cor-de-rosa, um romance, um thriller, um guia turístico, uma poesia, uma crónica... Com qualquer um deles, a experiência será certamente um ensinamento, e sendo assim, não tenha qualquer dúvida de que ficará mais rico, mais conhecedor, mais culto.
Agora vou lançar-lhe um desafio. Olhe à sua volta. Quantas pessoas vê neste momento a ler? Poucas? Então já sabe daquilo que falo. Muitas? Fico imensamente feliz, acredite. Não tem pessoas presentes no seu raio de visão? Então prolonguemos este desafio para o seu dia. Fique atento. Fale sobre esta matéria com os seus amigos, com a sua família. Ouça os motivos daqueles que não lêem e encoraje-os. Não aceite desculpas como “não tenho tempo” ou “os livros são muito caros” ou ainda “não gosto de ler”. Se me permite deixo-lhe algumas sugestões. Para os primeiros, bastam duas páginas enquanto vão ao wc, cinco minutos durante o intervalo de uma novela ou de um reality show. Para os segundos, fale-lhes da existência de feiras onde se compram livros a partir de um euro, promova a cultura da partilha de livros com colegas. Para os terceiros, que tentem ler algo sobre um tema de que realmente gostem e que não leiam seguindo tendências, modas ou opiniões. Que comecem por livros ilustrados, se assim preferirem. Uma óptima opção são as revistas que acompanham os jornais ao fim de semana.
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RUI SEQUEIRA, NASCEU EM FRANÇA A
Para todos eles, e para todos nós, tentemos também ler em família. Incentivemos os nossos filhos a substituir alguns minutos de televisão por um livro. A substituir alguns minutos da consola por um livro interactivo. A substituir alguns minutos da internet por uma revista. Façamo-los acreditar e provemos que existe tempo para tudo. O importante é a criação de hábitos de leitura. Conhecer é aprender. Aprender é saber. Saber também é ensinar os outros. E com os livros, conhecemos, sabemos, aprendemos e ensinamos. Não duvide! Portugal será certamente melhor. www.ruisequeira.net facebook.com/ruimfsequeira
13 DE MAIO DE 1972.
FILHO DE EMIGRANTES, MUITO CEDO TOMOU O GOSTO POR HISTÓRIA,
CULTIVANDO O ENTUSIASMO PELAS
CULTURAS E PELOS POVOS., NUTRINDO
UM CARINHO ESPECIAL PELA HISTÓRIA DE PORTUGAL E PELOS MONUMENTOS HISTÓRICOS QUE FAZEM PARTE DA PAISAGEM LUSITANA.
OUTRA DAS SUAS PAIXÕES É A
LITERATURA. LEITOR ASSÍDUO, E
AGORA A DAR OS SEUS PRIMEIROS PASSOS COMO ESCRITOR.
LIGADO PROFISSIONALMENTE ÀS NOVAS TECNOLOGIAS NUMA
SOFTWARE HOUSE NACIONAL, TEM NA ESCRITA O ESCAPE DO DIA-A-DIA.
TEM NA FAMÍLIA O PILAR DA VIDA, E NOS AMIGOS A FONTE DE
CRESCIMENTO COMO PESSOA.
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AVENTURA-ME
COMO NÃO PODIA DEIXAR DE SER, TERIA DE EXISTIR UMA ÁREA INFANTIL NA NOSSA REVISTA. PEDRO BRANCO (PROFESSOR DO ENSINO BÁSICO) TOMA AS RÉDEAS DESTA SECÇÃO, COM UMA PROPOSTA TRIPARTIDA, ENVOLVENDO CRIANÇAS (ALUNOS), PAIS E PROFESSORES. ESTA ÁREA SERÁ AINDA COMPLEMENTADA COM CONTOS PRODUZIDOS POR OUTROS AUTORES.
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AVENTURA-ME CRIANÇAS
POR PEDRO BRANCO – O que estavas a fazer no meu sonho?!!! – protestou a Marta ao chegar às aulas.
– Desculpa?!!! – admirou-se Raul, que foi apanhado de surpresa por uma entrada tão de rompante da sua colega de carteira.
– Ontem à noite tive um sonho e tu entravas nele. – explicou ela. – E qual o problema? – Raul continuava sem perceber o que se estava a passar.
– O problema?!! O problema?!!! É que o sonho era meu e quem manda nele sou eu! E não queria que entrasses nele, porque estou zangada contigo desde ontem. – Por não te ter emprestado a minha bicicleta?
– Claro! Ou julgavas que já me tinha esquecido?
– Eu expliquei-te, Marta. Precisava dela porque tinha de ir comprar chocolates para a minha vizinha Rita, que estava doente, de cama, e não se conseguia levantar. Escusavas de ser tão egoísta... – Era só por um bocadinho. Só queria ir à loja do senhor Vítor levantar a minha encomenda para a minha prima Inês, que faz anos. Tu é que estavas a ser egoísta! Continuavam eles nesta discussão, quando entra a professora Ana, com o seu ar calmo e compreensivo. – Então, meninos? O que se passa?
Marta e Raul explicaram-lhe tudo, um pouco enervados ainda.
A professora ouviu-os com muita atenção (como normalmente faz sempre que algum aluno lhe
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conta um problema) e disse: – Sabem o que vos digo?
As crianças estavam curiosas. E ela continuou...
– Eis um caso gravíssimo. Nem sei como ainda se conseguem falar hoje! E virou-se para Raul.
– Parece impossível! Entrar num sonho sem ser convidado... E virou-se para Marta.
– Que horror, Marta! Zangares-te porque não te emprestam uma coisa... E virou-se para os dois.
– Se fosse a vocês, nunca mais falavam um com o outro. Pelo menos até aos 15 anos. – 15 anos?!!! – perguntaram as crianças ao mesmo tempo. – Porquê 15 anos?!
– Porque aos 15 anos só faltam 5 anos para se ter 20 anos. – Explicou a professora, levantando um pouco a sobrancelha para parecer mais importante. – E o que é que isso tem a ver? – questionou o rapaz.
– Sim. O que é que isso tem a ver?!! – admirou-se a rapariga. – Nada. – continuou a professora.
– E?!!! – Raul já estava um pouco irritado. Marta acenava com a cabeça, em gesto de concordância
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e estranheza com as respostas da professora Ana. – E, nada. – disse a professora. – Não percebo porque estão assim admirados com as minhas respostas...
– É porque parecem não ter muita lógica, professora. – Disse, meio a medo, o Raul. – Quer dizer... – reforçou a Marta. – As suas respostas não parecem muito importantes para o que se estava a passar. Nesse preciso momento a professora dá um grito, salta para cima de uma cadeira, aponta para a janela de onde se via o campo cheio de flores, vira-se para as crianças e diz, em tom de quem está a fazer um discurso:
– Ora aí está, meus amigos! As coisas têm a importância que a gente lhes dá, quer pareçam ter lógica, quer não. E a vossa discussão não foge à regra. Se acham que isso vos leva a alguma coisa de positivo, então podem dar-lhe importância. Se acham que não vos leva a nada, muito pelo contrário, o melhor é passar um pano sobre o assunto e seguir com a vida e a amizade como elas merecem, isto é, como este campo florido cheio de cores... – e aponta para a janela – em que podemos sentir os sorrisos do vento e o cheiro da terra. Marta e Raul olharam um para o outro, encolheram os ombros como quem diz “Que disparate o nosso!”, dão um abraço e vão os dois montados na bicicleta do Raul à loja do senhor Vítor levantar a encomenda para o aniversário da Inês. Depois, seguem diretamente para a festa, nas Caldas da Rainha, onde se divertem muito.
À noite, quando cada um adormeceu na sua cama, em suas casas, devem ter sonhado, mas não sei com o quê.
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AVENTURA-ME PROFESSORES
Vivemos atualmente tempos conturbados nas nossas escolas, em virtude de uma reorganização administrativa que ainda não se percebe muito bem no que vai dar, quer pelas pressões sobre os professores derivadas de um processo de avaliação de desempenho que ainda não se percebe muito bem no que vai dar, quer através da implementação de medidas de restruturação curricular e no sistema de avaliação que, mais uma vez e também, ainda não se percebe muito bem no que vão dar. Vivemos, portanto, sem saber muito bem no que vai dar a nossa vida e, consequentemente, a dos nossos alunos.
É no meio destas questões que me interrogo, como profissional e pedagogo, se tenho o direito de me deixar afundar e asfixiar neste mar incerto e turbulento, levando as minhas crianças comigo na minha falta de energia e no meu desânimo. A resposta é-me imediata, óbvia, mas de difícil implementação: Claro que não!
E o que faço eu?
Sem querer ser ou sequer parecer super-herói (embora muitos professores se possam atribuir este pomposo título em função dos contextos em que exercem a sua atividade), o que faço é tentar aproveitar todas as situações como oportunidades de desenvolvimento de um trabalho positivo, que possa ajudar a promover as aprendizagens dos meus alunos e, forçosamente, o seu sucesso escolar. Vou então tentar exemplificar este meu estar com o caso concreto dos exames ou dos chamados testes que, como sabemos muito bem, estão cada vez mais a tomar conta das nossas práticas, relegando para segundo plano outro tipo de trabalho, bem mais fundamental no crescimento das crianças (veja-se, por exemplo, a abolição da área de Projeto no 2º e 3º ciclos) e na construção de uma escola mais alegre, mais formativa e até com menos problemas de indisciplina.
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POR PEDRO BRANCO Saberemos nós, profissionais de educação, seguramente, que é bem mais difícil fazer perguntas do que dar respostas. Saberemos, por outro lado, também, que quando se vivem os processos por dentro, depois mais facilmente conseguimos compreendê-los e utilizá-los.
Então porque não colocamos os nossos alunos a construir fichas e testes que possam, para além de contribuir para uma aprendizagem mais significativa, servir de preparação para esta realidade que, felizmente ou infelizmente (não é isso que me interessa discutir aqui), faz parte das suas vivências? Eu ponho, desde logo, os meus alunos nesta potente e rica tarefa, que os vai capacitando para entender melhor até a lógica de funcionamento de um sistema educativo com o qual têm e terão de lidar durante toda a sua escolaridade.
Organizo-me de forma a que os alunos consigam, numa primeira fase, realizar o esboço de uma proposta de ficha, para que depois, juntamente com eles, eu a trabalhe de forma a que fique definitiva e seja posteriormente testada pelos colegas e corrigida pelos próprios.
Ensinar os alunos a construir fichas e testes é, portanto, uma ação de aprendizagem (quem faz uma ficha aprende sempre mais do que quem responde a uma ficha, seja ela de que tema for), mas também um imperativo ético e moral, uma vez que estamos a contribuir para uma melhor compreensão de toda uma estrutura escolar e que seguramente irá ajudar os alunos a responder com menos insegurança e com mais capacidade a um sistema ainda muito assente neste tipo de práticas. Teremos, pois, uma escola melhor. E este é o meu grande desejo.
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AVENTURA-ME PAIS
Todos os dias somos assaltados pela comunicação social, que nos alerta para uma realidade que sentimos na pele, com mais ou menos intensidade: a crise económica. As famílias estão, pois, a viver tempos difíceis e que seguramente irão mudar muito os paradigmas sociais a que estavam habituadas.
sim com diálogo e com a implementação de medidas positivas e que consigam, para além de ir respondendo às necessidades básicas de sobrevivência, transformar-se em dinâmicas unificadoras e de aproximação entre todos.
Por isso, na minha opinião, é importante que os pais estejam com alguma atenção e cuidado à forma como os seus filhos estarão a processar toda essa informação. Isto é, penso que é fundamental que todos consigam encontrar uma forma de, juntos, fazer face às dificuldades, não através da revolta ou da depressão, mas
Por exemplo...
Os nossos filhos, obviamente, não escapam a esse assalto, estando, portanto, naturalmente, preocupados com o que se anda a passar.
Pretendo, pois, alertar, para a necessidade de envolvermos os nossos filhos, por mais novos que sejam, nas reflexões e nas decisões do dia a dia, agora bem mais complexo e a exigir maiores cuidados. Porque não realizamos com os nossos filhos a lista das compras, procurando nessa dinâmica algum trabalho pedagógico, quer na análise dos preços, quer mesmo na escolha dos bens a adquirir?
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PEDRO BRANCO NASCEU EM
POR PEDRO BRANCO
PARIS EM 1965.
PROFESSOR DO 1º CICLO,
DESENVOLVE TAMBÉM A SUA ACTIVIDADE NO CAMPO DA MÚSICA, TEATRO E POESIA.
Porque não fazemos a ementa semanal e respetiva contabilidade em conjunto com os nossos filhos?
Porque não negociamos com eles uma gestão contabilística semanal ou mensal, que consiga ter um caráter formativo, e que se transforme também num momento de envolvimento e responsabilização de todos nas opções que se podem ou não, em determinado momento, tomar? Porque não desenvolvemos com os nossos filhos outras formas de vivências, que não obriguem a tantos gastos?
Porque não assumimos nas nossas famílias uma gestão mais ecológica dos transportes privados? Porque não analisamos em conjunto as contas do gás, da água, da eletricidade, do telefone, da televisão, da internet... de maneira a que se consigam promover medidas de redução da despesa? Porque... Porque... Porque...?
Penso que sempre que envolvemos os nossos filhos na vida que nos pertence a todos, melhor esta será e mais sólidas as relações entre nós e eles. Isto é o que vou tentando fazer, aprendendo a olhar para as questões e para os problemas com os olhos dos meus filhos, bem mais otimistas e positivos que os dos adultos!
Obras publicadas pela EditaMe:
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AVENTURA-ME CONTOS
A família estava toda reunida na cozinha a acabar de tomar o pequeno-almoço. – Meninos, – disse a mãe – agora vão lavar os dentes e depois desçam com as vossas mochilas para o pai vos levar para a escola. E Gonçalo, não te esqueças de usar o copo de dentes para bochechar em vez de deixares a torneira com a água a correr, como é costume.
– Está bem, mãe, vou encher o copo novo que me compraste com água – respondeu-lhe o Gonçalo. A casa de banho era partilhada com a sua irmã mais velha chamada Beatriz. Ela já estava a acabar de lavar os dentes, penteou o seu cabelo comprido e pegou num dos frascos de perfume e vaporizou um pouco nos pulsos e atrás das orelhas.
– Despacha-te, sua vaidosa – disse-lhe o Gonçalo – não quero chegar atrasado por tua causa. Dito isso, começou a lavar os seus dentes. Lembrando-se das palavras da sua mãe, pegou no seu copo de plástico novo e encheu-o de água, logo fechando a torneira. O copo era muito engraçado, pois tinha uma cara pintada e também braços e pequenos pés de plástico. O pai já os estava a chamar no fundo das escadas e, com a pressa, o Gonçalo esqueceu-se de despejar a água do copo, que ficou quase cheio pousado no lavatório. Quando já toda a família estava fora de casa, na escola ou no trabalho, a casa ficou em silêncio… ou não…
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POR SARA MAIA PRATA Ouviam-se alguns ruídos: o relógio da sala, que soava de hora em hora, o frigorífico velhinho que de vez em quando soltava um estranho barulho, o vento que entrava pelas frinchas das portas e das janelas e um outro ruído muito estranho. Era a água, que estava dentro do copo de dentes, a resmungar.
– Que chatice, não sirvo para nada – dizia ela. – Ainda por cima estou dentro deste copo de plástico ridículo. Como eu queria estar dentro de um destes maravilhosos frascos de vidro que têm formas tão diferentes. Uns são pequenos e redondos como uma bola, outros altos e esguios com a forma de um cone e ainda outros com formas estranhas mas muito bonitas. E as cores dos líquidos que estão lá dentro, são tão diversas e coloridas. Mas, o melhor, é o cheiro desses perfumes. Estou cansada de estarem sempre a usar-me para bochechar e depois deitarem-me fora para um cano velho e ferrugento. Vou fugir daqui! – Disse ela e, aproveitando os braços e pés do copo de plástico, desceu pelo lavatório para o chão e depois iniciou a difícil tarefa de saltar, de degrau em degrau, as escadas até chegar ao andar de baixo. Já junto à porta de entrada da casa, viu que não iria conseguir sair, pois a mesma estava fechada. Começou a andar à procura de outra saída e chegou à cozinha. Aí, viu que a porta tinha um pequeno rectângulo que se abria e que servia para a entrada do pequeno cão da família. Assim, enfiou-se nesse pequeno buraco e, de repente, viu-se num mundo maior do que alguma vez imaginara (que era apenas o quintal da casa).
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Iniciou a sua longa caminhada pela relva, mas já estava tão cansada do enorme esforço para sair de dentro de casa, que teve de parar. Sentiu algo estranho a mexer no cimo do copo e perguntou: – Quem és tu e o que fazes?
– Sou um pequeno pássaro e estou a beber um pouco de água, pois tenho muita sede – respondeu-lhe o passarinho.
– Sede? O que significa isso? – Perguntou a água.
– Não sabes? Mas és água e as pessoas e os animais, como eu, bebem-te quando têm sede, porque ou estão cansados, ou porque está calor e tu serves para nos refrescar. – Eu sei que sou um líquido insignificante, sem cor, sem sabor e nem cheiro tenho!
– Olha, amiga água, podes não ter cor, sabor ou cheiro, mas és um bem muito precioso. Por exemplo, eu ando há semanas a voar com o meu bando e se tu não existisses, nós já tínhamos desfalecido, pois precisamos de beber de vez em quando. – Mas não podem beber perfume? Têm cores e cheiros maravilhosos – disse a água. – Perfume? Isso é para as pessoas cheirarem
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AVENTURA-ME CONTOS
melhor mas não se pode beber – respondeu-lhe o pássaro. E agora desculpa, amiga água, mas já vejo o meu bando lá longe e tenho de ir voar com eles ou perco-me. Até à próxima!
– Obrigada – disse a rosa – Sabes, água, há dias que não chove e se não formos regadas murchamos.
Sentindo-se mais animada, depois da sua conversa com o pássaro, a água continuou a sua caminhada.
– Não deves ter inveja dos perfumes, pois eles não existiriam se não fôssemos nós. Os primeiros perfumes eram águas aromáticas a que depois foram juntando óleos com pétalas amassadas de flores como eu, a rosa. E não sabes o que é a chuva? É a água que cai das nuvens que vês lá no céu e que rega as árvores, plantas e flores e enche os rios e as barragens – explicou-lhe a rosa. E agora deixa-me ficar quietinha, pois vem aí um enxame de abelhas.
E a água ficou a ver o pássaro a voar e a ficar cada vez mais pequeno, à medida que ia subindo no céu azul.
Depois de andar mais um pouco, estacou perante um belo canteiro de flores, belas, coloridas e muito cheirosas. Então alguém chamou: – Água, querida água, derruba-nos um pouco de ti sobre nós, pois está muito calor e não tem chovido – disse uma rosa.
– Não percebo. Também querem beber-me como o pássaro? – perguntou-lhes a água. – Beber? Como? Queremos é que nos regues, ou seja, que derrubes um pouco de ti sobre nós – disse a rosa.
A água achou aquilo muito esquisito mas fez-lhes a vontade.
– Mas vocês são tão bonitas, com diversas cores e cheiros que me fazem lembrar os perfumes que eu tanto invejo – disse a água. – E, já agora, o que é isso que vocês chamam de chuva?
A água estava agora muito baralhada e confusa, mas continuou a andar até ver uma grande sombra e parou. – Que coisa mais feia! – disse uma árvore.
A água sobressaltou-se e derrubou um pouco de si nas enormes raízes da árvore.
– Ah! És um copo muito estranho, mas essa água soube-me mesmo bem – disse a árvore.
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SARA MAIA PRATA NASCEU EM 1964 NA CIDADE DO PORTO.
DESDE A ADOLESCÊNCIA QUE FOI DESENVOLVENDO O GOSTO PELA
– Desculpe, senhora árvore, mas assustei-me – disse a água. – Não faz mal, com o calor que está e como já não chove há muitos dias, esse bocadinho de água veio mesmo a calhar, pois as minhas raízes estavam já a ficar secas – disse a árvore. – Sabe, senhora árvore, eu hoje de manhã, quando ainda estava dentro de casa, só pensava em como seria maravilhoso ser um perfume, colorido, cheiroso e dentro de um frasco de vidro bonito. Mas sou apenas um líquido incolor, sem cheiro, sem sabor e ainda por cima havia de estar dentro deste copo de plástico ridículo – disse a água. – Ha, ha, ha! – Riu a árvore – Se não houvesse água não existiria vida, sabias disso?
– Agora já me apercebi da minha razão de ser, pois encontrei um pequeno pássaro e umas belas flores que me explicaram que não é preciso ser belo como os perfumes para se ser importante. As coisas mais simples e às quais não se dá o devido valor são, por vezes, as mais importantes – disse a água, agora já contente por saber da sua utilidade.
LEITURA E ALIMENTOU O DESEJO
DE UM DIA ESCREVER UM ROMANCE. APÓS O CASAMENTO E COM DOIS
FILHOS RAPAZES, DECIDIU ESCREVER EM 2010 O SEU PRIMEIRO LIVRO DE CONTOS INFANTIS, PUBLICADO
PELA EDITA-ME. AS AVENTURAS DAS VOGAIS, O SEU NOVO LIVRO SERÁ PUBLICADO AINDA ESTE ANO.
Obras publicadas pela EditaMe:
ILUSTRA-ME
VÁRIAS OBRAS NOSSAS SÃO ILUSTRADAS. NESTA ÁREA SÃO APRESENTADAS, PELA MÃO DE MIGUEL MINISTRO, ILUSTRAÇÕES QUE POVOAM OS NOSSOS LIVROS.
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ILUSTRA-ME
POR MIGUEL MINISTRO
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ILUSTRA-ME
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MIGUEL MINISTRO NASCEU EM LISBOA NO ANO DE 1985.
É LICENCIADO EM DESIGN DE
COMUNICAÇÃO PELA ESAD DE MATOSINHOS.
COLABORA COM A EDITA-ME
COMO ILUSTRADOR E DESIGNER.
Obras publicadas pela EditaMe:
AS ILUSTRAÇÕES PRESENTES NESTA SECÇÃO REPRESENTAM UMA SELECÇÃO RECOLHIDA
DE TRÊS LIVROS DE HENRIQUE NORMANDO, PUBLICADOS PELA EDITA-ME.
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COMPÕE-ME
A MÚSICA É UM ELEMENTO FUNDAMENTAL NA VIDA DA EDITA-ME. COMO TAL, PENSÁMOS QUE FARIA SENTIDO UMA SECÇÃO DESTINADA A ELA. PEDRO LOPES, MÚSICO RESIDENTE DA EDITORA, É QUEM ASSINA ESTA RUBRICA.
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COMPÕE-ME
foto da autoria de Paulo Bico
QUANDO OUVIMOS UMA MÚSICA, QUANDO DEIXAMOS QUE UM RITMO OU AS PALAVRAS ENTREM EM NÓS E NOS FAÇAM MEXER, A MAIOR PARTE DAS VEZES FICAMO-NOS POR AÍ MESMO. NÃO VAMOS MAIS FUNDO. A MAIOR PARTE DAS VEZES, “ESQUECEMO-NOS” QUE HÁ UMA MÁQUINA DE SUPORTE A ESSES RITMOS. UMA BANDA É UMA “MÁQUINA” COMPLEXA, COMPOSTA POR VÁRIOS MEMBROS. CADA UM É UMA RODA DENTADA QUE FAZ O GRANDE ENGENHO FUNCIONAR, NÃO MENOS IMPORTANTES QUE O SEU “FRONT-MAN”.
HOJE ESCREVO PARA VOS FALAR DE CLÁUDIO SOUTO, PIANISTA DE PROFISSÃO, NASCIDO A 02 DE DEZEMBRO DE 1973, PARTICIPOU EM VÁRIOS PROJECTOS, DOS QUAIS SE DESTACA PEDRO ABRUNHOSA, COM QUEM TRABALHA DESDE 1990.
POR PEDRO LOPES
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Pedro Lopes — Pianista... como começou tudo? Cláudio Souto — Começou exactamente tinha eu 6 anos de idade quando o meu pai me pôs um teclado à frente e ensinou-me a tocar umas melodias básicas, foi aí que me despertou a vontade de tocar.
Sempre sonhou ser pianista? Ou as coisas foram simplesmente acontecendo?
A partir do momento em que despertei para a música. Como é evidente com 6 anos de idade não pensava em ser músico profissional, essa vontade surgiu quando tinha 14 ou 15 anos de idade, ainda estudava, mas a vontade já não era muita, a vontade era estudar música e seguir com uma carreira de músico. Tem saudades do fenómeno de popularidade e do sucesso que foi o “Viagens”? Não posso dizer que tenho saudades, recordo os bons momentos com muita satisfação e alegria por ter estado presente nele, mas saudade não sinto porque é preciso ter noção de que de facto foi um fenómeno único e difícil de repetir por todo um conjunto de factores. Qual o concerto que mais o marcou?
Tenho vários, mas um deles foi a primeira vez que toquei no Coliseu do Porto, em 1994, era novo e antes do fenómeno do álbum “Viagens” sonhava com o facto de um dia tocar nessa sala mítica da cidade do Porto.
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Uma peripécia que tenha acontecido num concerto?
São tantas, nestes anos todos... eh eh eh... Uma delas foi na viagem do hotel para o local do concerto em Viseu, chegámos ao local prontos para subir ao palco, e reparámos que faltava o Pedro Abrunhosa. Como já estávamos muito atrasados, tivemos de subir ao palco e começar o concerto e esperar que o Pedro chegasse.
Imagino que um concerto seja muito desgastante, muita concentração, muita responsabilidade, muita adrenalina... No final, ainda restam forças para mais alguma coisa? Sempre!! Há sempre força para analisar o que correu bem e o que correu mal, para no próximo ser sempre melhor, e depois ou vamos sair todos juntos ou às vezes ficamos na conversa no hotel, ou até mesmo vamos jogar playstation até às tantas da manhã.
Já tocou com grandes estrelas, como por exemplo Maceo Parker, Ricky Peterson... como foi a experiência?
Aprendi com todos os grandes nomes com que já toquei, mas o mais engraçado é que todos eles têm uma coisa em comum: Todos eles são pessoas super simples, boa onda e aí o prazer em tocar com eles é redobrado.
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COMPÕE-ME
Quanto tempo demora a fazer um CD? Desde a sua fase primária até à fase final?
Hmmm... é complicado responder a isso, até porque nem todos os artistas, nem todas as bandas têm o mesmo sistema de trabalho. Mas em relação ao Pedro é um trabalho que demora muito tempo pela busca daquele som, ou daquele acorde ou ritmo para que tudo saia do seu agrado.
Às vezes chegamos a estar dias a trabalhar numa intro, ou numa bridge ou num refrão, até que esteja do agrado do Pedro, é muito exaustivo mas o produto final é muito recompensador. Muitos concertos no estrangeiro?
Tem havido alguns, estivemos há bem pouco tempo em Paris, há umas previsões para irmos para fora mas ainda estão por confirmar. Mas com este disco já passámos por Brasil, Espanha, Angola e, claro, Portugal, este ano andámos por todo o lado. Antes de subir ao palco, sente aquele nervoso miudinho como da primeira vez?
O nervoso está lá sempre, sim, ajuda a estarmos em alerta e não relaxar e pensar “oh... é mais um”, que penso que quando assim acontece, deixa de haver magia no palco. E isso sente-se no palco e passa para o público, e nem nós nos divertimos nem divertimos o público.
Por isso encaro sempre um concerto como se fosse o primeiro e horas antes já o concerto me está a passar pela cabeça...
Está sempre envolvido em vários projectos musicais... é difícil gerir o tempo para conseguir fazer tudo? Às vezes sim, é complicado, ou porque há datas coincidentes, ou às vezes marcar ensaios é uma dor de cabeça.
Trabalha com agenda a longo prazo... já teve que ir tocar alguma vez doente?
Sim, muitas vezes, com febre, constipado é normal isso acontecer, ou outras vezes quando estamos maldispostos, mas essas coisas nós temos de deixar nas escadas de acesso ao palco, e subir como se nada se passasse.
Acerca do cliché “Vida de músico”... é mesmo assim? Considera a vida de músico uma vida fácil? Não considero nada fácil. Aliás, a vida de músico é muito dificil, é uma verdade que às vezes temos muito tempo livre, mas entre perder dias a fio em estúdio, em ensaios, em preparação de um espectáculo diferente sem estar com a família é complicado. E claro que se temos muito tempo livre é sinal que estamos sem trabalho e aí surgem os problemas financeiros, ou seja é sempre preciso amealhar quando temos trabalho para os meses que não tocamos, e gerir a vida numa incerteza, acreditem, é muito complicado. Depois vem a parte emocional, quando temos
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muitos concertos tudo está bem, mas quando acaba uma turné depois vem a saudade do palco, do público, das viagens, enfim não considero nada fácil a vida de músico. Que tipo de música ouve?
Ouço de tudo, muito sinceramente, desde pop, rock, indie, clássica, jazz, electrónica, depende do estado de espírito, penso que todo o género musical tem os seus encantos. Onde se inspira?
Essencialmente, na música que ouço.
Gosta de ouvir a música que faz? Ou depois de um CD gravado parte para outro e arruma aquele na prateleira? Sim, gosto. Normalmente ouço durante algum tempo no início para ouvir a mistura final, mas depois dá-me mais gozo ouvir mais para a frente porque, como deve imaginar, cada música antes de sair, nós já a ouvimos centenas de vezes, e às vezes é melhor ouvir e saborear o disco um tempo depois de o termos gravado, com as orelhas mais frescas. O que faz nos tempos livres? (se é que os tem)
Dedico-me a estar com a família, e o único hobby que tenho são os carros telecomandados a combustão.
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Sei que este ano teve muitos concertos... com a crise mundial e uma agenda tão preenchida, como vê o estado do país? Vejo com muita preocupação. A nossa área, que é a cultura, num país em crise normalmente é a primeira coisa a “cortar” nas despesas, e este ano já sentimos um pouco isso, e penso que o próximo ano não será melhor. Só peço que para o ano, em relação a trabalho, pelo menos seja igual a este. Há algum músico de renome com quem gostasse de tocar? Sim, gostava de tocar com o Prince, não que musicalmente seja um músico que eu goste actualmente, mas admiro-o muito como executante. E gostaria de voltar a tocar com o Maceo e o Ricky Petterson porque para além de serem uns músicos brutais são umas pessoas excelentes. Um palco de sonho onde gostasse de tocar? Todos onde ainda não toquei... eh eh eh. Projectos para o futuro?
Continuar a trabalhar e estudar é essencial. Um projecto, sem data marcada, talvez um disco meu que está na cabeça. É mais só para que quando deixar este mundo e partir para o outro, deixe um registo meu cá :-) Muito obrigado e continuação de muito sucesso.
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COMPÕE-ME
PEDRO LOPES NASCEU EM 1975
NO PORTO, ONDE EFECTUOU OS SEUS
Discografia:
foto da autoria de Paulo Bico
ESTUDOS MUSICAIS.
1994 Pedro Abrunhosa & os Bandemónio Viagens 1995 Pedro Abrunhosa & os Bandemónio F
1995 Rui Veloso Lado Lunar Músico Convidado
TENDO-SE TORNADO PIANISTA E EXERCIDO ESTA ACTIVIDADE EM
DIVERSOS LOCAIS DE EXCELÊNCIA, NÃO DEIXOU NUNCA DE ACEDER
AOS PROJECTOS QUE LHE FORAM SENDO APRESENTADOS.
TENDO JÁ ABRAÇADO DIVERSAS
VERTENTES NA MÚSICA, FOI EM 2009 FUNDADOR DA 575 BAND, ONDE DESEMPENHA AS FUNÇÕES DE
“TECLADOS” E PRODUÇÃO MUSICAL.
1996 Djamal Abram Espaço Produção
1997 Pedro Abrunhosa & os Bandemónio Tempo
1997 Raul Marques e os Amigos da Salsa Porque eu quero estar contigo - Remix 1997 Blind Zero Red Coast Músico Convidado
1998 Diana Basto Amanhecer co-produção com Pedro Abrunhosa 1998 Blind Zero Ao vivo na Antena 3 Músico Convidado 1999 Pedro Abrunhosa & os Bandemónio Silêncio
2002 Pedro Abrunhosa & os Bandemónio Momento 2003 Pedro Abrunhosa & os Bandemónio Palco
2004 Pedro Abrunhosa & os Bandemónio DVD Intimidade co-Produção com Pedro Abrunhosa
2006 André Indiana Destilled and Bottled Músico Convidado 2007 Pedro Abrunhosa e os Bandemónio Luz 2009 Varuna Mundo Novo Músico Convidado
2010 Pedro Abrunhosa & Comité Caviar Longe 2011 Alberto Indio Sinceramente
Obras publicadas pela EditaMe:
FILMA-ME
ESTA SECÇÃO DESTINA-SE A OPINIÕES SOBRE FILMES, COM A ASSINATURA DO AUTOR ADRIÃO PEREIRA DA CUNHA, DANDO RESPOSTA A UMA SUGESTÃO DO MESMO, QUE PASSA A ASSUMI-LA DE FORMA REGULAR.
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FILMA-ME
Morte em Veneza é uma obra superior em todos os aspectos, de que não resisto a deixar-vos umas notas:
Recriar em termos plásticos o estilo de Thomas Mann era já de si uma ambição corajosa. Agora, transmitir toda a contenção interior de uma maneira de narrar, e sem alegorias nem recursos paralelos, isso então afigura-se que corresponderia ascender ao impossível, à queda inevitável. E o milagre é que Visconti conseguiu-o. Em pleno e magistralmente.
Rejeitando o diálogo, a não ser em breves situações-chave, servindo-se da Terceira e Quinta Sinfonias de Mahler e explorando sem o menor exibicionismo dramático a máscara de Dirk Bogarde, ele soube dar a marcha contida e subterrânea de uma personagem em processo de morte. Isto mantendo-se classicamente directo, linear na descrição e sem os efeitos que o cinema facilita a uma análise introspectiva. Filme e romance absorvem-se mutuamente, clarificam-se e de tal maneira que Morte em
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POR ADRIÃO PEREIRA DA CUNHA Veneza ( a partir de Mann/Visconti) assume uma nova dimensão de «leitura» com todos os sublinhados que o cinema lhe trouxe na mais rigorosa fidelidade do contexto.
Sabe-se, está farto de ser dito, que Gustav Aschenbach, o herói do livro, é o nome de código de Gustav Mahler, que o romancista tomou como modelo vivo mas encobriu encarnando-o na figura de um escritor. Visconti aqui tirou-lhe – baixou-lhe, quero dizer – a máscara, apresentando-o como um compositor famoso e desenvolvendo-o sob os acordes obsessivos de Mahler.
Desvio ou ensombramento da personagem de Mann, não é fácil detectar nestas e noutras liberdades e circunstâncias; antes um enriquecimento prodigioso – penso eu. E tudo porque, mantendo o seu traço familiar, Visconti impregnou-se tão profundamente do clima e do tema, estabeleceu com o livro uma tão sublime vivência que Morte em Veneza de Mann/Visconti resulta numa sinfonia acabada numa obra-prima ampliada nos símbolos que continha. Veneza, onde outro herói deste século (o protagonista de Across the River and Into the Trees, de Hemingway) foi igualmente procurar a morte, apareceu-nos como o porto da última explanação, o templo de magníficas colunatas,
cheio de visitantes eleitos, mas terrivelmente insinuados de símbolos da morte: o ferry-boat que, logo nas primeiras imagens percorre num fumegar carregado, agonizante, um litoral de palácios; a gôndola como esquife a deslizar nas águas do purgatório; o gondoleiro em perfil soturno, de mensageiro bíblico; e por cima de tudo o «sirocco», esse vento pesado como uma maldição lenta e irreprimível.
Depois vem o cenário de 1911 do Hotel des Bains. Nenhum eco da guerra que se avizinhava pela Europa. Aqui tudo é paz. Uma alta burguesia organizada em famílias, separada pelos idiomas mas unida pelo conforto, salões e praias, criados e respeitabilidade. A paz, à margem, pois: e entretanto na cidade ronda a cólera. A paisagem social é descrita no melhor estilo Visconti: atravessâmo-la como quem viaja por uma galeria viva e cuidada de bom gosto, quadro a quadro, pormenor a pormenor – e de repente, no limiar dos salões estivais, belo e iluminado de perfeição, emerge Dátzio. Aschenbach ficará irremediavelmente dominado por essa mensagem de Botticelli. Tem ali, no adolescente enviado de longe, o seu anjo da morte. O «rendez-vous» italiano do amor com a agonia repete-se desde os séculos do classicismo. É um movimento comum a diversas figuras de contestação sentimental. Ocorrem-me
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Shakespeare, Stendhal, Hemingway (uma vez mais) – para falar de estrangeiros que por qualquer razão a vislumbrar – a presença da teatralidade do Renascimento?, a corrupção dos principados?, o contraponto do clima artístico? – viram na Itália o palco ideal para o epílogo do debate entre a beleza e a morte. Estamos na pátria de Miguel Ângelo (a maravilha da carne emoldurada em ouro do Vaticano) e da boceta de veneno à cintura dos cavaleiros apaixonados, e daí talvez a razão por que Goethe escolheu igualmente a Itália para ponto de encontro de Fausto com o Diabo. E Goethe vem a propósito.
Como Adrian Leverskul, também Gustav Aschenbach, o personagem de Mann, realiza o balanço entre a arte e a vida – o mesmo é dizer que o duelo entre a perfeição e a morte. Dátzio ergue-se como a miragem final do belo que – dizem-nos Mann/Visconti – vem fatalmente elevada de corrupção. Sentem-se já os avisos da morte em que ele navega, triunfante, o «sirocco», a cidade a desertar, as primeiras chamas purificadoras despontando nas casas infestadas pela cólera. Os peregrinos do grande mundo entram em pânico e é a debandada de uma burguesia requintada para longe do Hotel des Bains. Aschenbach segue a princípio nessa onda de pavor mas a tentação domina-o. Arrasta-se,
destruído por inteiro, regressa à praia quase vazia onde Dátzio, na linha de água, fita o horizonte, o infinito – e é o apelo último, um sol no acaso. Assim recebe a morte o Artista segundo Thomas Mann/Luchino Visconti: voltado para um sonho de perfeição.
Deduz-se que esse ideal inatingível recusa os valores morais do homem: que está para lá deles e que os toma como limitações definitivas, por isso «corrupta» a perfeição. E ali temos Aschenbach agonizado numa cadeira de praia, estrangulado pela cólera e pelo «sirocco», mas estendendo ainda a mão para o apelo que é Dátzio em perfil inflexível no limiar de um mundo final. Ele sofreu as tentações da curiosidade solitária, a tortura da resignação ao pecado, o desespero, enfim, de se anular para segurar o anjo da morte. E agora repousa para sempre, a dois passos do horizonte perseguido, e quase feliz. Diante da obra-prima de Visconti e dos mil significados que ela envolve, é impossível refrear a paixão e afirmar, não como William Burguês que a literatura não faz mal ao cinema, mas que sim, que faz bem, um incomensurável bem, quando provoca um filme como este. Ou que o cinema, quando é cinema, só pode enobrecer a literatura.
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ADRIÃO PEREIRA DA CUNHA NASCEU EM 1960.
Ficha detalhada: Morte em Veneza com Dirk Bogarde, Mark Burns Título original Morte a Venezia Realizador
Luchino Visconti
Editora
Lusomundo / Warner
Actor (es) Áudio
Dirk Bogarde, Mark Burns
Extras
ECLÉTICA E UMA VIDA PROFISSIONAL QUE LHE PERMITIU CONHECER O
MUNDO E SUAS DIVERSAS CULTURAS.
FUNDAMENTALMENTE PERMITIU-LHE CONHECER O HOMEM NAS SUAS
DIVERSAS VERTENTES. PUBLICOU PELA EDITA·ME O LIVRO DE POESIA POEMAS SUADOS A NEGRO EM 2009 E YONAH OS ELEITOS EM 2011 SOB O PSEUDÓNIMO FREY KARL.
Inglês, Alemão, Espanhol Mono
Formato Vídeo Widescreen 2.40:1 anamórfico Legendas
POSSUI UMA FORMAÇÃO ACADÉMICA
Português, Inglês, Alemão, Espanhol, Francês, Italiano, Finlandês, Islandês, Sueco, Croata, Esloveno, Checo, Grego, Húngaro, Polaco, Turco Menus Interactivos Acesso directo às Cenas Documentário de bastidores: A Veneza de Visconti Galeria de Fotos A Tour of Venice Trailer de cinema
Formato DVD Duração
125 Minutos
Ano
1971
N.º de Discos 1
Obras publicadas pela EditaMe:
ATIVA-ME
ESTA NOVA SECÇÃO, DA RESPONSABILIDADE DA PROFª CLÁUDIA DIAS, SERÁ MAIS UMA DE CARÁCTER PERMANENTE. NELA IRÁ SER ABORDADA A ARTE DAS EXPRESSÕES CORPORAIS, NAS SUAS MÚLTIPLAS VERTENTES E FORMAS.
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ATIVA-ME
Sentir a dança como parte de nós é um processo contínuo e prolongado no tempo. Trata-se de uma metamorfose que se inicia na interiorização mental de uma intenção e culmina na automatização de gestos que permite alcançar um patamar de sensações físicas e espirituais inigualáveis. Anatómica e fisiologicamente, é um dar e cumprir ordens que nos faz sentir vivos, nos incrementa a autoestima, nos faz sentir o sangue fluir por cada veia, por cada artéria… E será por isso mesmo que buscamos esta ebulição de sentimentos? Para sentirmos que controlamos os músculos e as articulações, para conseguirmos olhar de frente para o espelho, para exercitarmos o corpo e a mente, a memória e a concentração? Ou será que esses são fins alcançados por inerência de uma busca incessante de colmatação de lacunas pessoais e sociais? Aos 30, 40 ou 50 anos, procuramos a dança social como quem procura um ginásio para emagrecer, como quem pretende conhecer gente nova, como quem quer encontrar a alma gémea perdida numa qualquer pista de dança ou como quem busca o contacto físico numa dança mais chegada? Que motivos escondemos? Saberemos identificá-los?
Desde a antiguidade que a dança testemunha um sem-número de mutações ao sabor da imagem desenhada pelos olhos de quem a vê e tem a capacidade de lhe mudar o rumo em função do seu próprio egocentrismo.
Já os povos ancestrais vislumbravam a vida como uma dança, desde o movimento das nuvens até às mudanças das estações, reflectindo a forma como cada povo conhecia o mundo e relacionava o corpo e as experiências com os ciclos de vida. No Antigo Egipto, as danças culminavam em
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Já no fim do século V a.C., estas danças começaram a fazer parte do cenário social e político da Antiga Grécia, embora muitas escolas de dança tenham encerrado, dado que a nobreza considerava a dança como uma atividade suspeita e perigosa.
POR CLÁUDIA DIAS
cerimónias que representavam a morte e a reencarnação dos deuses, tornando-se de tal forma complexas que só podiam ser executadas por profissionais altamente qualificados.
Enquanto isso, deuses como Baco regozijavam-se com grupos de mulheres à sua volta, que à noite se dirigiam para as montanhas, onde, sob o efeito do vinho, celebravam as suas orgias com danças que incluíam música e mitos que eram representados por atores e bailarinos ensaiados para o efeito.
Mais tarde, na Idade Média, as opiniões da Igreja, sendo ambivalentes, deram origem a duas observações distintas sobre a essência da dança. Para uns, ela era catalisadora da permissividade sexual, da lascívia e do êxtase. Para outros, e baseada noutra perspetiva de observação, houve uma tentativa de incorporar certas danças tribais, essencialmente Celtas, nos cultos cristãos, fazendo coincidir as danças com os ritos de fim de inverno, e a celebração da fertilidade com o início da primavera. Depois desta fase e, segundo a literatura, não obstante a dança tivesse sido uma arte proibida em muitos locais, ela continuava como parte dos ritos religiosos dos europeus, embora de uma forma camuflada. Isto é, com novos nomes e novos propósitos. Inclusive, em virtude da peste negra, e subjugada à proibição por parte da igreja, ela adquire o título de uma dança secreta: a dança da morte. Até mesmo a sua forma de expressão se
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ATIVA-ME
modificava em função dos seus desígnios. Nesta fase, e que se estende até aos séculos XIV e XV, a dança da morte era exibida aos saltos e gritos furiosos, como se de convulsões se tratasse, para que a doença lhes saísse do corpo.
Com o Renascimento, surge uma nova atitude perante o corpo, a arte e a dança. Nomeadamente, as cortes italiana e francesa criaram novos centros de desenvolvimento, graças a maestros da dança e da música. Nesta fase (séc. XVII), esta passa de suspeita e perigosa a sério objeto de estudo entre os inteletuais, recuperando-se, dos antigos gregos, os teatros, combinando estas duas formas de arte. Surgem as primeiras formas de Ballet, criadas com vestuários elaborados e uma estilizada dança de grupo. Um século mais tarde, surge a Primeira Academia Real de Dança, tendo esta sido convertida numa disciplina artística regrada e adaptada às mudanças políticas e estéticas da época. Brotam, agora, as primeiras danças sociais a par: o Menuet (dança de origem francesa que se traduz por passos curtos, executados em coreografias pré-definidas e onde existe pouco contacto físico entre o par) e a Valsa (dança realizada ao redor da pista onde os corpos dos dançarinos estão mais próximos e o homem segura o vestido da senhora para que esta não o pise).
Emergem, assim, espetáculos dinâmicos e com uma maior liberdade de expressão.
No século XIX, surge a era do Ballet Romântico, cujo culto da bailarina se desenvolve em torno da sua luta entre o mundo terreno e espiritual, dando origem a obras como “Quebra-Nozes”, “O lago dos Cisnes”, “Giselle”, etc.
Ao mesmo tempo que a dança se emancipa nuns locais, como forma erudita e burguesa de entretenimento, os europeus que colonizam terras africanas, asiáticas e da polinésia proíbem e perseguem as danças tribais, considerando-as sexuais e pouco dignas, sendo incompreendida a sua essência e cultura. Já no século XX, as artes, em geral, sofrem uma interrogação no que toca aos seus valores. Procura-se uma nova dinâmica, dando origem ao surgimento de um novo Ballet na Rússia, criado pelos mais brilhantes coreógrafos, compositores, artistas visuais e desenhadores. Paralelamente, aparecem as danças modernas como reação aos estilizados movimentos do Ballet.
Com a chegada do fim da I Guerra Mundial, tanto as danças africanas, como caribenhas assumem novas formas na Europa e América, por efeitos da migração destes povos, surgindo nos anos 20 uma mudança de atitude perante o corpo, com músicas de influência latina, africana e caribenha,
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inspirando a criação e proliferação dos salões de dança e de danças como a Rumba, o Samba, o Tango, o Cha-cha-cha e a salsa, entre outros. Já nos anos 50, uma maior tendência para as danças individuais propicia a adesão a estilos como o Rock, o Twist e mais tarde o Disco.
Após esta análise transversal do percurso da dança ao longo dos tempos, conseguimos deduzir que esta se pode vislumbrar como um ser vivo que revoluciona e é revolucionado em função das circunstâncias e assim são aqueles que a procuram pelos mais diversos motivos.
Porque dançamos é uma pergunta à qual apenas cada um de nós pode responder se encontrar uma resposta “palpável” para tal questão. Contudo, há explicações científicas que confirmam um conjunto de benefícios que a dança produz no indivíduo. Estudos relacionados com a dança e o movimento afirmam que os nossos passados Neandertais, em épocas menos prósperas, comunicavam e criavam laços de amizade através da dança e que, após a análise de DNA humano, se constatou que quem gosta de dançar demonstra uma maior capacidade comunicativa, além de possuir níveis superiores de serotonina (neurotransmissor relacionado com as alterações de humor e estado de
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depressão e ansiedade). Para além das questões fisiológicas, demonstraram, igualmente, no que toca à coordenação motora, que a questão rítmica não poderá ser descurada, no sentido em que, em termos evolutivos, aqueles que possuíam maior coordenação rítmica, possuíam maiores probabilidades de sobrevivência. Embora referissem que essa, atualmente, já não é uma questão pertinente, pela minha experiência de 30 anos associada ao desporto e frequente observação e análise dos comportamentos e comentários femininos, embora pense que não seja um facto consumado e comprovado cientificamente, as mulheres tendem (e há sempre exceções à regra!) a preferir, para relacionamentos amorosos, homens desportistas, e se souberem dançar, tanto melhor. Isto é, numa perspetiva menos platónica do assunto, podemos deduzir que, conquistar um homem ou uma mulher é a concretização de um ato de sobrevivência no que toca à seleção natural tão referenciada por Darwin na Teoria da evolução das espécies. Aquele que melhor se adapta ao ambiente e transmite a sua herança genética possui maiores probabilidades de sobrevivência. Que é como quem diz: “É sempre importante estarmos a par das tendências do mercado”! E a dança, não só, mas também, por ação dos meios de comunicação social, assumiu uma posição relevante na sociedade, sendo vista com olhos de ver e não com um olhar discriminatório presente
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ATIVA-ME
CLÁUDIA DIAS NASCEU NO PORTO,
EM 1978. PRATICOU, DESDE, OS 3 ATÉ AOS 18 ANOS, NATAÇÃO, GINÁSTICA ARTÍSTICA E ACROBÁTICA E BASQUETEBOL FEDERADO.
na sociedade durante anos.
E, muito provavelmente, essa busca dos motivos que justificam o crescimento atual da procura das escolas de dança, nomeadamente das danças a par, prende-se com o facto de a taxa de divórcios ter vindo a aumentar consideravelmente nos últimos anos, assim como o stress relacionado com as responsabilidades laborais e sociais, o que leva a uma busca incessante de momentos de descontração, de comunicação, estreitamento de laços de amizade e de integração social. E, presumivelmente, apenas uma reduzida percentagem de indivíduos pensará nos benefícios fisiológicos da dança como meio justificativo das suas escolhas, não obstante o facto de estes últimos estarem na base dos primeiros. Não me parece, assim, absurdo transmitir a opinião de que no contexto da nossa sociedade, por falta de tempo, ou excesso de opções, ao hierarquizarmos prioridades deveríamos contemplar atividades que nos permitissem alargar horizontes aos mais diversos níveis, e acima de tudo, que tenhamos a noção de que o corpo é a base da nossa essência e, por isso mesmo, quando o estimulamos anatómica e fisiologicamente, produzimos um sem-número de efeitos cujas repercussões se verificam aos mais diversos níveis que completam o ser humano, como a cognição, a motricidade, a inteligência, a interação social…
Na dança, encontramos tudo isso. E encontramos, talvez, um meio para que possamos aprender com o passado, viver com qualidade o presente e ambicionarmos um papel ativo, eficaz e consciente no futuro.
INGRESSOU NA FACULDADE DE CIÊNCIAS DO DESPORTO E DE ED. FÍSICA – UP,
ACRESCENTANDO, MAIS TARDE, UMA ESPECIALIZAÇÃO EM PREVENÇÃO E
REABILITAÇÃO CARDIOVASCULAR NA
FACULDADE DE CIÊNCIAS BIOMÉDICAS ABEL SALAZAR.
FUNDOU EM 2007 A ATUAL KINESIS ARTSTUDIO, SEDIADA EM LEÇA DO
BALIO, PAREDES MEIAS COM A MAIA, EXERCENDO OS CARGOS DE
SÓCIA-GERENTE E FORMADORA.
EMBORA LECIONAR EDUCAÇÃO FÍSICA, NO ENSINO SECUNDÁRIO, FAÇA PARTE DO SEU QUOTIDIANO, A DANÇA
OCUPA-LHE O TEMPO E A MENTE
EMPENHANDO-SE NA CONSTANTE
FORMAÇÃO, ORGANIZAÇÃO DE EVENTOS ARTÍSTICOS, ESCRITA DE ARTIGOS E LECIONAÇÃO DE AULAS,
ESSENCIALMENTE DE SALSA E OUTROS RITMOS AFRO-LATINOS, PARA UM
PÚBLICO DESDE OS 3 AOS 103 ANOS!
FOTOGRAFA-ME
ESTA É UMA ÁREA ONDE AS IMAGENS TÊM ORIGEM NAS LETRAS E VICE-VERSA. FOTOGRAFIAS PARA TEXTOS OU TEXTOS PARA FOTOGRAFIAS. UMA NOVA LEITURA PARA AS PALAVRAS.
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FOTOGRAFA-ME
Educação e civismo são atributos sociais, não classistas. Estes não vêm por créscimo. Desengane-se todo o supremo ser cujas benesses económicas ou sociais foram bafejadas pelo destino, herdadas ou não. Ou se possui ou não, foram apreendidas ou não. Cada vez há uma maior dissonância na educação ou falta dela, sempre com vista unicamente ao que proporciona maior satisfação pessoal. A nobreza alcança-se sem necessidade de bens monetários, implica a gentileza e a ausência de cinismo, o respeito pelos demais, pela honra própria e respeito obtido. Calcar os demais apenas gera futura solidão e desrespeito. Nobre será sempre aquele de sangue azul, sendo que a tentativa de comprar um brasão apenas serve para apodrecer quem compra, o que se compra e quem é comprado.
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POR TIAGO GONÇALVES
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FOTOGRAFA-ME
A festa instaura-se, enquanto lei universal, justamente fundada pela tradição, por gerações, festa cujo verdadeiro significado pagão ninguém sabe, oriunda dos primórdios humanos. Deprimente ou não, a verdade é que uma festa será sempre uma festa, merecerá sempre ser celebrada, com alegria e satisfação, por tudo o que de bom se consume, por toda a diversão que emana. Relembra-se a fé pessoal, como sempre deve ser relembrada, não sendo usada nunca para justificar o que quer que seja, nem mesmo um pai natal inventado por um refrigerante. Tudo existiu, os mitos têm sempre uma origem lógica, mas apenas os mitos são místicos, a verdade não, mas não é a verdade que move corações. A verdade apenas se deve saber e o mito apenas sonhar. Deixêmo-nos sonhar, sem esquecer que são sempre os sonhos que nos mostram como é enorme a vida. Em festa, por tradição ou não, com ou sem mística, festeje-se a vida e tudo aquilo por que estamos gratos.
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FOTOGRAFA-ME
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TIAGO GONÇALVES NASCEU A 3 DE
JUNHO DE 1986, NA CIDADE DO PORTO. CRESCEU NO PORTO, NUMA RUA
HISTÓRICA, QUE O AJUDARIA NA SUA
EDUCAÇÃO HUMILDE E SIMPLES, MAS SEMPRE DE HORIZONTES ABERTOS PARA OUTRAS REALIDADES.
LICENCIANDO-SE EM SOCIOLOGIA NA FACULDADE DE LETRAS DA
UNIVERSIDADE DO PORTO, O SEU
SENTIDO CRITICO E ANALÍTICO É SINONIMO DE UMA CONSTANTE
EVOLUÇÃO AO LONGO DE TODA A SUA VIDA, ATÉ AO PONTO DE CHEGADA. A INSTRUÇÃO ACADÉMICA SERIA O
COMPLEMENTO PARA A SUA PRÓPRIA APRENDIZAGEM, CURIOSIDADE E
CONSTANTE VONTADE DE CONHECER, APRENDER E PENSAR.
Declaro-me triste com a perda de valor da arte, a verdadeira arte, para mim, concebida com a alma, característica, única, sempre com a mesma cor ou formato, variando apenas a sua expressão com o seu sentimento. Declaro-me triste pela massificação do agradável enquanto melhor ou superior artisticamente, enquanto verdadeira obra de arte. Declaro-me triste por ver, em grande parte, a arte como o agradável, o monocórdico, o comum, o banal. A concretização de cada um, expressa através de irrepreensíveis técnicas produtivas, é invariavelmente menosprezada pelo público em geral, estando reservada apenas para uma ínfima porção de iluminados a sua verdadeira contemplação. Para os demais, apenas com muito custo a genialidade será admitida enquanto tal. Para os demais, o bom comum é temporariamente genial.
Obras publicadas pela EditaMe:
INVENTA-ME
O MUNDO DO FANTÁSTICO, NAS SUAS VÁRIAS VERTENTES, É DE UMA RIQUEZA EXTREMA, DANDO-NOS OPORTUNIDADE DE SONHAR E DE INVENTAR DE UMA FORMA ÍMPAR. ESTA SECÇÃO FOI CRIADA A PENSAR NOS MÚLTIPLOS AUTORES EXISTENTES E SEM VOZ DESTE TIPO DE OBRAS.
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INVENTA-ME CONTOS
Findo o banho matinal, tudo parecia envolto na normalidade de que sempre se reveste este momento diário. Puxei da toalha que repousava no respectivo toalheiro e coloquei-a sobre os ombros, secando-me de seguida. Foi então que, ao preparar-me para abandonar o espaço da banheira, assisti estupefacto à insólita separação do meu braço esquerdo do corpo a que sempre pertencera. Pelo menos desde que tenho noção do meu corpo como um todo, constituído por uma cabeça, tronco e alguns membros, dos quais o tal braço que agora se tornara autónomo. Não totalmente, pois não apresentava vida própria. Apenas se separara do corpo e ali repousava a meus pés como uma mera peça isolada. Sem reacção possível, fiquei a olhá-lo fixamente e a pensar que raio havia proporcionado semelhante coisa. Seria do champô? Mas para isso teria caído a cabeça e não um dos braços. Seria do gel de banho? Olhei para o rótulo e pude comprovar a quantidade exagerada de químicos que são adicionados ao que supostamente deveria ser apenas um líquido de limpeza com um certo e determinado aroma. Até poderia ser do gel de banho, mas já o usara tantas vezes... Por que raio é que só agora iria causar este efeito? E seria de
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POR MIGUEL SANTOS TEIXEIRA pensar que atrás deste membro outros se lhe seguiriam e começariam a cair que nem tordos? Tremi. Não muito, pois a trepidação poderia eventualmente acelerar este estranho processo de queda e isso eu não queria. Voltei a tremer e então descortinei que o fazia não tanto pela situação em si, mas pelo frio de estar ainda como viera ao mundo. Dirigi o braço que me restava na direcção da roupa e foi quando este também caiu a meus pés, tal e qual um fruto maduro cai do ramo onde cresceu. Era agora um homem desmembrado e a única imagem que me ocorreu foi a dos homens de acção que o meu filho frequentemente mutilava por puro gozo. Nessa altura percebi a falta que fazem os membros superiores. Os dois braços ali repousavam inertes, um dentro e outro fora da banheira, e aí sim, comecei a ficar nervoso. A situação começava a tomar contornos preocupantes e disso me apercebi ainda mais quando me lembrei de que estava sozinho em casa. Mesmo que quisesse ajuda, não haveria ninguém para me socorrer. Fiz uso dos dentes e depois de grandes malabarismos lá consegui vestir as calças. Mas tal e qual uma contaminação que se propaga rápida e de forma fulminante, depressa senti que perdera um outro
membro, desta vez uma das pernas. À medida que saltitava sobre a única perna de que agora era possuidor, a outra escorregava por dentro das calças para em breve ficar pelo caminho, juntando-se assim aos restantes membros que, como ela, me haviam deixado sem aviso prévio. O objectivo agora era o de conseguir alcançar o telefone e contactar a minha mulher para a avisar da situação. Uma vez fora da casa de banho, tentei chegar ao corredor mas sem sucesso. E isto porque o último dos meus membros – se exceptuarmos aquele outro que assim é tratado mas que não sei se entra para a contabilidade dos seus pares – se juntou à maioria silenciosa e resolveu igualmente deixar-me. Tê-los-ia eu tratado assim tão mal durante o tempo em que convivemos como um todo ao ponto de agora me abandonarem desta forma? Afinal de contas, eram carne da minha carne e sempre tentara dar-lhes apenas o melhor. Nem a minha mulher – que tratava bem pior do que a eles – me havia deixado. Com óbvias dificuldades, lá ia arrastando o que restava do meu corpo, neste caso a cabeça e o tronco, mas sentia que era um esforço escusado. Não havia como sair do sítio onde ficara sem a última perna e por muito que
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tentasse não iria muito mais longe. Eu que era uma pessoa completa, como muita gente gostava de frisar, via-me agora espalhado pela casa em vários pedaços. Que humilhação! Um homem que nunca necessitara da ajuda de ninguém, que sempre se safara sozinho, ver-se agora numa situação destas. E foi com este pensamento em mente que assisti à partida de um dos meus olhos da respectiva órbita que até então ocupara. Também ele esgotara o tempo de permanência junto do meu corpo. Rolou pelo chão de madeira de pinho flutuante e só viu o seu avanço travado pela pata do Jerónimo, o nosso gato de estimação. Julgando tratar-se de uma qualquer bola com que adora brincar, o estúpido do gato pôs-se a dar patadas no meu precioso olho e a correr atrás dele em insistentes ofensivas a que o pobre indefeso não conseguia pôr cobro. Não passou muito tempo até que uma nova bola se juntasse à brincadeira. Eram agora dois os olhos que sucumbiam aos maus tratos proporcionados por um gato que, a ver pelo entusiasmo com que deles fazia uso, aparentava estar muito entretido com aquelas recentes novidades. De orgulho ferido e já tonto de tanto ver a rodopiar – devido às voltas e reviravoltas que os meus ex-órgãos de visão sofriam nas patas daquele estúpido animal felpudo -, percebi e dei então valor à impotência
que por vezes se sente face a determinadas situações. Tivesse eu pelo menos um braço à mão e já aquele gato, que eu sempre detestara, tinha levado com um sapato em cheio no focinho. Mas não, tinha agora de sujeitar-me às suas parvoeiras, como que em paga por tudo o que eu lhe havia feito até então. Estava claramente a pagar pelos meus pecados. Disso não restavam dúvidas. Mas nisto, a porta da rua abriu-se e uma voz conhecida soou, chamando pelo monte de pêlo. Prevendo que algo de comestível poderia acompanhar aquele chamamento, lá foi ele ter com a empregada da limpeza, desistindo dos olhos que até então lhe haviam servido de distracção. Agora sim, ia sofrer a maior das humilhações: aparecer daquela forma perante a mulher-a-dias. Mal virou a esquina em direcção ao corredor onde se encontravam os dois terços de corpo que ainda me restavam – a cabeça e o respectivo tronco, onde esta se encontrava ainda agarrada – pisou um dos olhos que logo se esborrachou sob a sola do seu sapato, produzindo um som horrível só possível de reproduzir na presença... de um olho acabado de esborrachar. Assim que me viu naquela figura, esbugalhou os olhos, os dela, gritou, levou as mãos à boca e saiu em corrida em direcção ao meu escritório. Ouvia-a a remexer numa das gavetas da minha
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MIGUEL SANTOS TEIXEIRA, NATURAL DE CABINDA, ANGOLA, CONTA 45 ANOS, É
REDACTOR PUBLICITÁRIO DE PROFISSÃO E ESCRITOR/CRONISTA DE PAIXÃO. VIVE EM OEIRAS E TEM VÁTIOS LIVROS
PUBLICADOS POR DIVERSAS EDITORAS. PARA MAIS SOBRE A SUA ESCRITA,
escrivaninha e, tão depressa como se ausentara, regressou com um tubo de cola UHU nas mãos. Com uma mestria que até então lhe desconhecia, foi juntando as partes que se haviam libertado do meu corpo e colou-as, uma a uma, ao tronco onde pertenciam, com a preciosa ajuda da cola. Terminado o trabalho de reconstrução, colocou-me à janela para secar. Nem dez minutos passaram até me sentir como novo. Voltava a ser o homem completo que sempre fora. Ou quase. Pois no lugar do olho esborrachado, havia sido colocada uma esfera de vidro cuja falta pouco ou nada se iria notar no enorme lustre da sala. E tudo graças à Zarzuela, a nossa empregada mexicana. Em breve estávamos na cama a copular e a repetir os feitos que tantas vezes havíamos protagonizado durante as suas horas de expediente. Só mais tarde, depois de ela se ter ido embora, é que me apercebi da falta do outro membro, o tal que não sei se entra para a contabilidade dos que havia perdido e recuperado nesse mesmo dia. Não dei importância. Sabia que era obra da Zarzuela que, durante o tempo em que me ausentara num curto dormitar, mo havia tirado e levado consigo. Queria a exclusividade do mesmo, como tantas vezes mo pedira. Não me preocupei muito. Se era isso que ela queria, tudo bem. De qualquer das formas, também já não lhe dava uso em casa, por isso não havia grande mal em levá-lo com ela. Isto, claro está, desde que volte a trazê-lo de cada vez que venha fazer as limpezas. Pois que da cola, trato eu.
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POR NUNO DANTES Na periferia das tuas mãos, incessantes, repousam os mundos… Nos velhos contos paternais os ecos suaves relembravam a tua voz… …tónico para as noites de devassidão.
Os teus cabelos, cor de corvo funesto, revolvem o soalho da minha consciência…
Nunca mais te encontrei nas cadeiras de veludo que repousam nos solstícios Na tua periferia, agitados pelo semblante sempre imutável do carvão, os mundos atropelam-se. Com mãos redondas envolvo as assimetrias dos teus laços labirínticos, os nervos do teu pescoço de Cal. Não admito para mim o volume físico das tuas cores resguardo os olhos para os limites impostos das paredes e camas indispostas na memória. Assalto a carnificina das Tardes de Outono a passo lento observo a dor dos cios cíclicos como um balançar despótico. A circundar as tuas costas, ponto a ponto… …mesmo que me falte o enquadramento da memória, guardo incrito nos dedos o teu contorno paisagístico.
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NUNO ANDRÉ MARQUES NANTES,
NASCIDO NO PORTO A 7 DE SETEMBRO DE 1990, FREQUENTA ACTUALMENTE O ULTIMO ANO DA LICENCIATURA EM
LINGUAS E RELAÇOES INTERNACIONAIS NA FACULDADE DE LETRAS DA UNIVERSIDADE DO PORTO.
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CHEGADOS QUE ESTÃO AO FINAL DESTE QUARTO NÚMERO, AGRADECEMOS AS VOSSAS CONSIDERAÇÕES PARA QUE COM ELAS POSSAMOS CRESCER, EVOLUIR, PENSAR MAIOR E MELHOR. AGRADECEMOS O SEU ENVIO PARA revista-me@edita-me.pt. ESTA REVISTA É VOSSA E PARA TODOS! ABRAÇO,
CARLOS LOPES
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REVISTA-ME Nº4 ISSN 2182-2018 DIRECTOR/EDITOR CARLOS LOPES (EDITA-ME)
CAPA E PAGINAÇÃO MIGUEL MINISTRO (EDITA-ME)
REVISÃO DE TEXTOS PATRÍCIA FIGUEIREDO (EDITA-ME)
TEXTO DA CAPA “NÃO PENSE” DE MARIA SOFIA MAGALHÃES
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