o anjo lacrado
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ra por época do Ano-bom, na véspera da noite de São Basílio. Havia-se desencadeado a fúria dos elementos. Uma violentíssima nevasca de levantar a neve em torvelinhos, daquelas pelas quais são famosos os invernos nas estepes do Além-Volga, impelira uma grande quantidade de pessoas para o albergue isolado que se erguia, solitário, em meio à estepe lisa e imensa. Ali se encontravam, reunidos num só grupo, homens de condição, bem como negociantes e camponeses, russos, mordovianos e tchuvachos. Observar as categorias e a posição social numa pousada dessa espécie, tornava-se impossível: para onde quer que alguém se virasse, era o mesmo aperto por toda a parte. Uns estavam secando as roupas, outros aqueciam-se, outros mais procuravam um cantinho, por pequeno que fosse, onde se refugiarem. A isbá escura, baixa e repleta de gente estava abafadiça, e um vapor denso evolava-se da roupa molhada. Não se via um lugar livre em parte alguma: havia gente espalhada pelos catres, pela estufa, pelos bancos e até deitada no chão batido e sujo. O albergueiro, um mujique severo, não estava contente nem com os hóspedes nem com os lucros. Batendo com força o portão atrás do último trenó que conseguira entrada no pátio,
e no qual tinham chegado dois comerciantes, fechou-o a cadeado e, pendurando a chave debaixo dos ícones, disse com firmeza: — Bem, agora quem quiser que bata até com a cabeça no portão que não abro. Mal porém teve tempo de pronunciar isto e, tendo tirado o casaco amplo de pele de carneiro, fez um largo sinal da cruz à moda antiga e aprestava-se para subir à estufa quente, quando alguém bateu na vidraça com mão tímida. — Quem é? — interpelou o hospedeiro em voz alta, revelando descontentamento. — Nós — responderam surdamente por detrás da janela. — Bem, que mais querem? — Deixa entrar, pelo amor de Cristo, estamos moídos de cansaço... gelados. — E vocês são muitos? — Alguns, não muitos, dezoito ao todo, só dezoito — disse do lado de fora da janela um homem aparentemente regelado, gaguejante e batendo o queixo. — Não posso dar jeito para vocês entrarem; a casa está atopetada de gente. — Deixa só aquecer-nos um pouco! — Quem são vocês? — Cocheiros. — Com ou sem carga? — Com carga, meu caro, estamos levando peles. — Peles! Estão levando peles e ainda pedem pernoite numa casa! Que gente aparece na Rússia hoje em dia! Vão-se embora! — E que devem eles fazer? — perguntou um viajante que estava deitado no banco de cima, coberto com um sobretudo de pele de urso. — Deitar as peles por terra e cobrir-se com elas para dormir, isso é o que devem fazer — respondeu o dono do albergue e, após 4
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xingar mais uma vez os cocheiros a valer, permaneceu deitado, imóvel, sobre a estufa. O viajante metido debaixo do casaco de pele de urso censurava o proprietário pela crueldade, num tom de enérgico protesto, mas este não achou as suas observações dignas da mínima resposta. Em compensação, pelo dono do albergue respondeu de um canto afastado um homem baixote e ruivacento, de barba pontuda, em forma de cunha. — Meu caro senhor, não deve criticar o patrão — começou a falar — ele sabe isso pela prática e dá indicações acertadas: com as peles, não há perigo. — É? — replicou interrogativamente o viajante coberto pelo casaco de pele de urso. — Não há perigo nenhum, e para eles é melhor que não os deixou entrar. — Por que seria? — Porque tirarão disso uma experiência que lhes será útil e, no entretanto, se mais algum desamparado conseguir chegar até aqui, haverá um lugarzinho para ele. — E quem mais trará o diabo agora? — indagou o de casaco de pele. — Deves ouvir — replicou o proprietário —, em vez de vires com palavras ocas. Será que o capeta pode mandar alguém para cá, onde existe um santuário destes? Será que não vês que o ícone do Salvador e a imagem de Nossa Senhora estão aqui? — Isso é verdade — apoiou o homenzinho arruivado. — Cada homem salvo não é conduzido pelo espírito das trevas; é um anjo que o guia. — Bem, isso não vi, e como me sinto muito pouco à vontade aqui, não quero crer que o meu anjo da guarda me tenha trazido para cá — respondeu com loquacidade o de casaco de peles. O patrão limitou-se a cuspir, zangado, e o ruivo bondosamente O Anjo Lacrado
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continuou, dizendo que o caminho do anjo não era visível para qualquer um e que só um praticante verdadeiro podia obter noção disso. — O senhor fala como se tivesse tido uma prática própria dessa espécie — observou o do casaco. — Sim, tive-a. — Como foi: o senhor viu um anjo e ele o conduziu? — Sim, vi-o, e ele me guiou. — Que é isso? O senhor está brincando ou zombando de mim? — Deus me livre de brincar com uma coisa destas! — Então, que foi que o senhor viu exatamente: como lhe apareceu o anjo? — Isso, meu caro senhor, é uma história muito comprida. — Sabe que mais? Adormecer aqui é coisa inteiramente impossível, e o senhor faria muito bem contando-nos agora essa história. — Às ordens. — Então conte, por favor, que estamos para ouvi-lo. Mas, por que o senhor vai ficar aí ajoelhado? Suba aqui conosco; poderemos apertar-nos de qualquer modo e sentaremos juntos. — Não, fico-lhe agradecido pela bondade! Para que vou incomodá-los? Além disso, convém mais contar de joelhos a história que vou desenrolar diante dos senhores, porquanto se trata de um acontecimento que tem muito de sagrado e até mesmo de terrível. — Bem, como queira, mas conte mais depressa: como pôde ver um anjo e que foi que ele lhe fez? — Às ordens, estou iniciando. ... [fim da amostra]
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a pulga de aco ,
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uando o imperador Aleksandr Pávlovitch encerrou o Congresso de Viena, quis passar algum tempo viajando pela Europa, a fim de observar as maravilhas existentes em países diversos. Percorreu todas as terras e, devido ao seu caráter afetivo, sempre mantinha palestras muito íntimas com pessoas as mais diferentes, e todos lhe causavam espanto com algo, desejando fazê-lo inclinar-se para o lado deles. Acompanhava-o porém um cossaco do Don, Platov, que não gostava dessa inclinação e, sentindo saudades de sua propriedade, a cada passo procurava atrair o soberano de volta à pátria. Bastava Platov perceber que o soberano estava muito interessado por alguma coisa do estrangeiro e a comitiva toda se calar, que ele intervinha imediatamente, dizendo isso e aquilo, que na pátria havia coisas em nada inferiores, e assim mudava o rumo da conversa, com qualquer assunto. Os ingleses sabiam disso e excogitaram para a chegada do tsar várias astúcias, a fim de cativar-lhe a simpatia pelas coisas estrangeiras e desviá-lo dos russos, sendo que o conseguiam em muitas ocasiões, principalmente em grandes reuniões, onde Platov não podia exprimir-se com desembaraço em francês. Este, porém, pouco se importava com isso, pois era casado e considerava todas as conversas em francês como bagatelas
que nem mereciam ser imaginadas. Quando os ingleses, porém, começaram a convidar o soberano a visitar diferentes arsenais, fábricas de armas, de sabão, e serrarias, com o fito de demonstrar sua supremacia diante de nós em todas essas coisas e com isso gabar-se, Platov disse de si para si: — Agora basta. Ainda suportei até aqui, mas não aguento mais. Podendo ou não podendo falar, o fato é que não vou trair minha gente. Mal acabara de falar consigo mesmo, eis que o soberano lhe diz: — Pois é, amanhã iremos ver contigo o museu de armas deles. Ali existe tamanha perfeição da natureza que, quando vires, não mais porás em dúvida o fato de que nós, russos, com a nossa importância, nada valemos. Platov nada respondeu ao soberano; apenas enfiou o nariz adunco no casaco peludo, foi ao seu alojamento e mandou o bagageiro servir-lhe da frasqueira portátil um frasco de vodca caucasiana tipo kizliarka, enxugou um bom copo, rezou diante do porta-ícones de viagem, cobriu-se com o casaco e pôs-se a roncar tanto, que na casa inteira nenhum inglês pôde pregar olho. Pensava no provérbio: a manhã é mais sábia que a noite. II No dia seguinte, foi o soberano junto com Platov em visita aos museus. Não levou consigo ninguém mais dos russos, porque lhes propiciaram uma carruagem de apenas dois lugares. Chegam a um edifício enorme: a entrada é indescritível, corredores sem fim, salas após salas e, por fim, na principal delas, diversos bustos descomunais e no centro, sob um baldaquino, está Abolon Polvedérski. O soberano volta-se para Platov, a fim de ver se este está muito admirado e observa alguma coisa, mas ele anda de olhos postos no 8
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chão, como se nada enxergasse, limitando-se a enrolar as pontas do bigode. Os ingleses logo começaram a mostrar maravilhas várias e a explicar pormenorizadamente o que haviam adaptado para as circunstâncias da guerra: burímetros marítimos, mantas de camelão para a infantaria e impermeáveis alcatroados para a cavalaria. O soberano alegra-se com tudo isso, que lhe parece muito bom, mas Platov mantém-se no seu indiferentismo, demonstrando que para ele tais coisas nada significam. Diz o soberano: — Como é possível que denotes tanta insensibilidade? Será que não achas nada de assombroso por aqui? Ao que Platov responde: — Acho aqui unicamente uma coisa assombrosa: é que os meus bravos do Don guerreavam sem nada disso e expulsaram doze nações coligadas. Diz o soberano: — Isso é falta de juízo. Ao que Platov replica: — Não sei a que atribuí-lo, não ouso discutir e devo calar-me. Os ingleses, porém, ao verem que o soberano guardava um prolongado silêncio, conduziram-no imediatamente aonde estava Abolon Polvedérski e tiraram-lhe de uma das mãos uma carabina Mortimer e da outra uma pistola. — Eis aí como é a nossa produção — disseram ao apresentar a carabina. O soberano examinou a carabina Mortimer com toda a calma, pois tinha coisa semelhante em Tsárskoe Seló, mas depois lhe apresentaram a pistola e disseram: — Trata-se de uma pistola de feitio desconhecido e inimitável. Foi arrancada por um almirante nosso do cinto de um chefe de bandidos na Candelábria. A Pulga de Aço
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O soberano olhou a pistola e não se fartou de contemplá-la. Não podia reprimir as exclamações de entusiasmo. — Oh, oh, oh! Como pode ser assim... como se pode fazer um trabalho tão fino! — E dirigindo-se a Platov em russo, disse: — Se eu tivesse na Rússia um único mestre destes que fosse, ficaria muito contente com isso e sentiria orgulho; imediatamente faria desse mestre um nobre. Platov, porém, ao ouvir essas palavras, no mesmo instante enfiou a mão direita em suas bombachas e dali extraiu uma chave de fenda para fuzil. Disseram os ingleses: “Isso não se desmonta”; ele, porém, sem prestar atenção, toca a escarafunchar o fecho. Mexe que mexe, e eis que o fecho salta fora. Platov mostra ao soberano o gatilho, e ali, na própria curva, está gravada uma inscrição em russo: “Ivan Móskvin, na cidade de Tula”. Os ingleses, admirados, cutucam-se entre si: — Como é que fizemos um papel destes?! O soberano, porém, diz com ar triste a Platov: — Tenho agora muita pena deles, porque tu os confundiste. Vamos embora. Tomaram eles novamente assento na carruagem para dois e foram-se, sendo que o monarca ainda compareceu a um baile nesse dia, ao passo que Platov ingeriu mais um copázio de vodca kizliarka e dormiu o sono de um justo cossaco. Estava alegre em parte por ter confundido os ingleses e haver colocado o mestre de Tula em lugar de destaque, mas também estava desapontado: por que razão o soberano tinha pena dos ingleses numa ocasião dessas?! “Não posso compreender de maneira nenhuma por que o soberano se enfadou” — pensou Platov, e preocupado com isso levantou-se por duas vezes, benzeu-se e bebeu vodca até forçar-se a dormir a sono solto. 10
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Os ingleses igualmente nĂŁo conseguiram conciliar o sono, porquanto se sentiam atingidos. Enquanto o monarca se divertia no baile, arquitetavam para ele um assombro novo, de modo a dissipar toda a fantasia de Platov. III ... [fim da amostra]
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