Carpeaux | Para compreender Tolstói e outros, vol. 1

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PARA COMPREENDER

TOLSTÓI E OUTROS

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PARA COMPREENDER TOLSTÓI E OUTROS volume 1




Retrato de Dostoiévski Gravura de Ivan Lêbedev, 1943


literatura russa (i)

E escassa exportação de valores literários da Rússia soviética já chegou a falsear as perspectivas, ao ponto de se afirmar: “Temos tudo recebido de Paris, Londres e Florença, e nada de Moscou”. Nada, sim, menos Gógol, Tolstói, Dostoiévski, Tchekhov e alguns outros... Os novos não importam, aliás. Poderiam ser mais: Turguêniev não merece ser esquecido; Gontcharov é um clássico; ainda descobriremos o satírico Saltykov, o grande narrador folclórico Leskov, o dramaturgo Ostróvski; também ainda pertencem ao século XIX os começos de Górki. É a lista russa do século XIX que continua desempenhando papel de grande potência, já não digo literária, mas moral: literatura mais séria que o mundo já viu. A Rússia do século XIX ainda não tinha debates parlamentares nem imprensa livre nem sequer liberdade do púlpito. A literatura assumiu funções de parlamento, de jornal, de revista, de sermão. É uma literatura moral, social e, fatalmente, também política. O que menos entrava nas intenções dos escritores era o fator estético. E um polemista como o poeta Nekrassov chegou a dizer, por volta de 1880: “O papel em que embrulhei um pedaço de pão para dar a um faminto vale mais que o Fausto de Goethe”. Opinião que o velho Tolstói assinava. Só muito tarde chegaram a perceber que esse critério excluiria da literatura russa o maior poeta: Púchkin. Aquele poeta

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então, não pode estar certo. Perguntou-se, portanto: onde está a raiz do erro? Dizia-se que no famoso conto de Gógol, O Capote: história do pequeno funcionário pobre e humilhado cujo espectro se transforma em vingador das oprimidas reivindicações sociais; mas esse conto é o germe da literatura russa toda. Foi o próprio Dostoiévski, tão hostil a veleidades revolucionárias que o dizia. Então seria o próprio Gógol a origem do erro? Impossível, evidentemente. Gógol foi gênio. Mas não gênio do realismo, assim como se pensava. O grande satírico é um humorista de imaginação fantástica. Obras que, na superfície, são sátiras contra a realidade russa — Almas mortas, O inspetor geral — na verdade são sátiras monstruosas, de um precursor do surrealismo; e obras de um dos maiores poetas de estilo da literatura universal. Essa descoberta produziu outras: a do realismo, outra vez, no grande poeta Púchkin (cuja novela Eugênio Oneguin não é uma imitação de Byron, mas o primeiro grande romance russo); a do eminente poeta Tiútchev; a dos valores poéticos em Dostoiévski; a das fabulosas artes estilísticas daquele Leskov etc. Em suma: uma revisão dos valores da literatura russa. Mas por que os resultados dessa revisão ainda são tão pouco divulgados no mundo Ocidental? E a quem devemos o pouco conhecimento de um mundo fantasticamente novo e alucinante? Eis a primeira pergunta a que se pretende responder. Nada daquilo se encontra, com efeito, nas histórias da literatura russa divulgadas entre nós. As melhores, a do russo Mírski (em inglês)1, a do italiano Lo Gatto2, a do alemão Arthur Luther3, estão há muito inacessíveis, parece que esgotadas. A do russo Chostakóvski (em castelhano, também traduzida para o portu(1) D. S. Mirsky, The History of Russian Literature (ed. Francis James Whitfield, Evanston, Northwestern UP, 1999) [1a ed.: 2 vols., 1926-1927]. (2) Istoria della letteratura russa (4a ed. rev. e aum., Florença, Sansoni, 1950). (3) Geschichte der russischen Literatur (Leipzig, Bibliographisches Institut, 1924).


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guês)4 é um produto incrível, talvez graças às falhas de memória do autor octogenário. A do polonês Waliszewski5, escrita em francês (e também reeditada em Buenos Aires) pára em 1900; está cheia de má vontade, até de hostilidade; e representa fase antiquadíssima da crítica. A crítica! Pois a Rússia teve grandes críticos literários, desde os tempos de Bielínski. Mas nunca foram traduzidos para outra língua. Quem, por exemplo, se pretende informar sobre Dostoiévski, ignorando a língua russa, tem à disposição, principalmente, o livro bem documentado, mas seco, do americano Simmons6; o livro de Gide7, que revela mais coisa sobre Gide do que sobre Dostoiévski; e numerosos trabalhos inspirados pela incompetência mais pretenciosa. Mas nada sabemos das impressionantes interpretações de um Volynski8, dos trabalhos compreensivos de um Leonid Gróssman9. Interesse tanto maior nos inspira a tradução para o alemão dos três volumes da História da literatura russa, de Póspelov, Chablióvski e Zertcháninov.10 E, em parte, não ficamos decepcionados: três volumes, umas 1.440 páginas, oferecem fatalmente documentação riquíssima, muita coisa que ignorávamos, um mundo novo. (4) Pablo Shostakovsky, Historia de la literatura rusa (Buenos Aires, Losada, 1945). — Ed. brasileira: Paulo Chostakovsky, História da literatura russa (trad. do castelhano por Alvaro Bitencourt, São Paulo, Instituto Progresso, 1948). (5) Kazimierz Waliszewski, Littérature russe (Paris, Colin, 1900). (6) Ernst J. Simmons, Dostoevsky: The Making of a Novelist (Londres, Oxford UP, 1940). (7) André Gide, Dostoïevski: articles et causeries (Paris, Gallimard, 1923). (8) Akim Volynski, Tsarstvo Karamazovykh (São Petersburgo, Stasiulevitcha, 1901); Dostoiévski (2a ed., São Petersburgo, Obschestvenaia Polza, 1909). (9) Leonid Gróssman, Tvortchestvo Dostoievskogo (Odessa, Vseukrainskoie Gosudarstvenoi Izdatelstvo, 1921); Seminari po Dostoievskomu (Moscou, Gosudarstvenoi Izdatelstvo, 1923); Put Dostoievskogo (Leningrado, Brokgauz-Efron, 1924); Poetika Dostoievskogo (Moscou, Gosudarstvenaia Academia Nauk, 1925). (10) N. Pospelow, P. Schabliowski & A. Sertschnow, Geschichte der russischen Literatur (trad. Anna Magasanik, 3 vols., Berlim, Kultur, 1952-1954).


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Não tão novo como parece. Pois o conceito utilitarista da literatura, próprio dos autores comunistas, fê-los voltar à antiestética que só aprecia, nas obras, o realismo imediato. Também Gógol continua reduzido, outra vez, a espécie de jornalista satírico, atacando abusos da administração czarista. Tolstói e Górki são dignamente estudados: mas ao preço de tirar daquele os impulsos religiosos e, por outro lado, de silenciar a luta de Górki contra o primitivismo literário dos primeiros escritores soviéticos. Tchekhov, o grande triste da literatura russa aparece fantasiado de otimista esperançoso. Quer dizer, o realismo, que os autores pretendiam manter como conceito inspirador do seu trabalho, ficou prejudicado pelos preconceitos ideológicos. A maior vítima desse procedimento é Dostoiévski. Dedicaram-se, em geral, 35 até 50 páginas ao estudo de cada um dos grandes escritores. Tolstói e Górki foram beneficiados com mais de 80. Mas Dostoiévski tem de contentar-se com duas páginas e meia... A Crime e Castigo não se nega a classificação como obra-prima; mas todos os outros grandes romances são jogados fora como inspirados por misticismo louco e perversidade depravada — justamente assim também pensava em 1886 o marquis de Vogüé11, que não era, porém, russo e sim apenas um tímido pioneiro dos estudos russos no Ocidente. Mas a coincidência das opiniões desse bien-pensant com as de Póspelov, Chablióvski e Zertcháninov dá para pensar. Coincidência sobre a qual Pascal teria escrito uma bela “Carta da província”. Notamos que alguns importantes escritores soviéticos são, por motivos que ignoramos, omitidos: Bábel, Pilniak, Oliecha. De outros (Fédin, Leonov) só se citam as obras menos importantes. Quanto aos clássicos, é tratado de maneira ambígua aquele Leskov: muito elogio (inclusive uma citação de Górki); no entanto bastam apenas poucas linhas para estudá-lo. Em outro lugar se diz que “todos esses poetas” (dos anos de 1870) valem menos que o grande Tiútchev; mas é a única vez (11) M. de Vogüé, Le Roman russe (Paris, Plon, 1886).


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que seu nome ocorre na obra inteira. Tudo isto dá a impressão de leituras proibidas, de escritores importantes mas impróprios para a mocidade. Certas coisas que Póspelov, Chablióvski e Zertcháninov saberiam dizer, mas não querem dizer. Não querem, sobretudo, explicar a particularidade mais estranha dos seus três volumes. O primeiro chama-se: “Dos inícios até os anos de 1830”. O segundo: “Dos anos de 1830 até os anos de 1890”. O terceiro: “A literatura soviética”. É esquisito: entre 1900 e 1917 não houve literatura russa? Eis a nossa segunda pergunta. A primeira foi, como se lembram: a quem devemos a revisão dos valores da literatura russa? A resposta vale para as duas perguntas de uma vez: devemos essa revisão à evolução literária entre 1900 e 1917. Mas para explicar isto precisa-se de um segundo artigo.12

(12) A ser publicado no vol. 2 de Para compreender Tolstói e outros.


Retrato de PĂşchkin Xilogravura de L. S. KhijĂ­nski, 1935


“eugênio oneguin”

C ssim como existem aristotélicos natos e platônicos natos, assim há tolstoianos natos e dostoievskianos natos (confesso pertencer, com toda a admiração por Tolstói, ao segundo grupo). Isto na Europa ocidental e nas Américas. Também deve acontecer o mesmo na própria Rússia. Mas, quando se perguntar a um russo cultivado quem seria o maior nome da literatura do seu país, haverá a maior probabilidade dele não votar em Tolstói nem em Dostoiévski, mas responder: “Púchkin”. Essa resposta não é imediatamente compreensível para nós outros. Quase todos lemos os autores russos em traduções das quais a poesia é, com pouquíssimas exceções, excluída por ser praticamente intraduzível. Para nós, a literatura russa é uma literatura de grandes obras em prosa. Mas os russos veneram o poeta Púchkin como criador de sua língua literária e, tout court, de fundador de sua literatura, e isto com surpreendente unanimidade. Não se podem imaginar homens mais diferentes que Dostoiévski e Lênin; no entanto, o romancista exaltou Púchkin como “criador de obras imortais e insuperáveis” e essas mesmas “obras imortais e insuperáveis” eram a preferida leitura noturna do revolucionário. Antes de procurar um approach à maior das suas obras, devemos perguntar: “Quem foi Púchkin?” Não tenho a intenção de resumir-lhe a biografia, que, pelo caráter do poeta e pelas circunstâncias de sua vida, é das mais complexas. Serão sufi-

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; Griboiedov Radischev Púchkin Gógol Gontcharov Dostoiévski Saltykov-Schedrin Leskov Tolstói Mámin-Sibiriak Tchekhov “A escassa exportação de valores literários da Rússia já chegou a falsear as perspectivas, ao ponto de se afirmar: “Temos tudo recebido de Paris, Londres e Florença, e nada de Moscou”. Nada, sim, menos Gógol, Tolstói, Dostoiévski, Tchekhov e alguns outros. Poderiam ser mais: Turguêniev não merece ser esquecido; Gontcharov é um clássico. É a lista russa do século XIX que continua desempenhando papel de grande potência, já não digo literária, mas moral: literatura mais séria que o mundo já viu.” O. M. Carpeaux

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