OTTO MARIA CARPEAUX
A LITERATURA RUSSA ATRAVÉS DOS CONTOS
n Ensaio Crítico volume I De Púchkin a Tolstói
SUMÁRIO
Nota da edição.................................... vii Tabela de transliteração................... x Introdução...........................................13 I Púchkin e Gógol...............................21 Púchkin.................................................24 Gógol.....................................................30 II De Liérmontov a Dostoiévski.......41 Liérmontov...........................................43 Turguêniev............................................46 Pissemski..............................................51 Dostoiévki.............................................53 III Saltykov e Leskov.........................63 Grigoróvitch.........................................65 Saltykov-Schedrin...............................68 Leskov...................................................77 IV Tolstói e suas novelas..................85 Bibliografia.........................................107 Índice de nomes e assuntos..............115
NOTA DA EDIÇÃO Escrito em 1961-1962 pelo crítico e historiador Otto Maria Carpeaux (1900-1978), o longo ensaio aqui reunido sob o título de A Literatura Russa através dos Contos: ensaio crítico foi originalmente publicado na volumosa Antologia do Conto Russo (prefaciada pelo autor e co-organizada com Vera Newerowa), dividindo-se em partes contínuas pelos nove volumes da obra, perfazendo um total de 191 páginas. O estudo, que traz indícios de uma História esboçada, apresenta a grandeza e profundidade daquela Literatura, como o título escolhido indica, através dos seus melhores contos (aí inclusas novelas, conforme os critérios do crítico), gênero da maior importância entre os russos, talvez como em nenhuma literatura. Os dois volumes de Literatura Russa, sobretudo o primeiro, apresentam e examinam contos e novelas curtas de 28 escritores do século 19 até meados do século 20, traçando-lhes as influências nacionais e estrangeiras (como é o caso do “afrancesado” Turguêniev e do ucraniano “fantástico” Gógol), iluminando-lhes traços insuspeitados e apresentando, sobretudo, a totalidade de suas Obras “apenas a propósito de suas novelas curtas”: Dai-me um osso de um animal antediluviano, alude a Cuvier no capítulo de Dostoiévski, e reconstituirei o esqueleto inteiro. Para o primeiro volume de Literatura Russa, separamos quatro dos nove “prefácios” da Antologia, que compreendem os escritores Púchkin e Gógol (vol. 1); Liérmontov, Turguêniev, Pissemski e Dostoiévski (vol. 2); Grigoróvitch, Saltykov-Schedrin e Leskov (vol. 3); e Tolstói (vol. 4). O segundo volume, em preparo, conterá as demais partes, que compreendem Mámin-Sibiriak, Korolenko e Gárchin (vol. 5); Tchekhov (vol. 6); Górki (vol. 7); Kuprin, Andrêiev, Sologub e Verissáiev (vol. 8); e, do vol. 9, os “contemporâneos” Remizov, Artsybachev, Búnin, Ehrenburg, Aleksei Tolstói, Fedin, Bábel, Cholokhov e Paustóvski, excluído Lev Romanovitch Chêinin (1906-1967), apenas antologiado e não examinado por Carpeaux.
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a literatura russa através dos contos
No contexto da recente acusação de plágio imputada a O. M. Carpeaux, em 2016, que examinamos em ensaio de co-autoria com Wladimir Saldanha em volume à parte*, destacam-se as passagens dedicadas a Nikolai Leskov (cap. 3), que foram em parte tomadas por Carpeaux ao texto “Rússia Sacra” (1941), não havendo nelas porém quaisquer “reminiscências benjaminianas”, como afirma artigo publicado naquele ano, nos Cadernos Benjaminianos (Belo Horizonte). As relações de Carpeaux e Benjamin, assim entendemos após longa pesquisa, devem-se encarar da perspectiva da ascendência que um intelectual exerce sobre outro, de modo que, por um lado, a crítica literária brasileira de Carpeaux, iniciada em outubro de 1941, tem suas bases em concepções de Benjamin (cujo substrato, aliás, era comum a toda geração germânica do entreguerras, como os Hofmannsthal, Voegelin, Auerbach etc.) e que, por outro, ensaios e conceitos de Walter Benjamin são claramente tributários, mesmo sem citação da fonte, dos formalistas russos, sobretudo Bóris Eikhenbaum e Viktor Chklovski (que Benjamin conheceu pessoalmente em Moscou, em janeiro de 1927, e de quem revisou uma tradução francesa). O exame completo das relações é oferecido ao leitor no volume citado — e, devemos acrescentar, não chegaria a bom termo sem o trabalho do prof. Mauro Souza Ventura, que em De Karpfen a Carpeaux (Rio de J., Topbooks, 2002) já resolvera noventa porcento da questão do “plagiato”: o mais consistia em detalhes biográficos e respectivos reenquadramentos. Fora desse contexto, devem-se encarar os dois volumes como bons guias de Literatura Russa até meados do século 20, sob as perspectivas do “bom gosto”, do papel das obras na evolução da literatura russa e da sua legitimidade quanto ao seu conteúdo narrativo e existencial — volumes que também se prestam para atualizar pontualmente trechos da História da Literatura Ocidental, como aquele sobre Leonov (p. 79), em que o romancista russo permanece leskoviano na década de 1960, em vez de apenas no início de sua carreira, como narra a monumental História. Deixamos o cotejo para os interessados. (*) Em — Bóris Eikhenbaum & Otto Maria Carpeaux, Leskov e a prosa contemporânea e Rússia Sacra (Curitiba, Karpfen, 2020). Edição especial (fora de comércio).
nota da edição
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Na preparação do texto, buscamos as referências de O. M. Carpeaux e as anotamos em rodapé; conferimos ou revisamos os títulos de obras russas citadas (que transliteramos em rodapé, quando inéditas em português), especialmente aquelas sem tradução, como “A crônica de Pochekhonia” de Saltykov, no original de Carpeaux, por “Os velhos tempos de Pochekhônia” — ou ainda, aquelas já vertidas, como “O romeiro encantado”, de Leskov, por “O peregrino encantado”, conforme recente edição portuguesa. Conferiram-se, igualmente, nomes de autores e personagens, para os quais também nos utilizamos (em parte) de tabela de transliteração do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (USP), que recentemente teria substituído o incômodo Chtch (por exemplo, em “Chtchedrin-Saltykov”) pelo conveniente e “mais editorial” Sch (agora Schedrin-Saltykov). Afora isso, emendamos trechos em que Carpeaux brevemente se refere à Antologia, sem que se tenham alterado significativamente as passagens, e, últimos cuidados, um “Índice de nomes e assuntos” e a reprodução das bibliografias (revisadas e atualizadas) da História da Literatura Ocidental para nove dos dez escritores russos, excluído Dmítri Vassilievitch Grigoróvitch (1822-1899), de que O. M. Carpeaux não se ocupou na História. Agradecemos ao IDCH-FAED da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), na pessoa da Sra. Andreza Campos da Luz, e à Biblioteca Central da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) por digitalizar os prefácios da Antologia do Conto Russo, gentileza sem a qual o projeto se adiaria. Agradecemos, acima de tudo, aos benfeitores da campanha de financiamento coletivo do volume I — a quem dedicamos esta edição. O editor. Curitiba, fevereiro de 2020.
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a literatura russa através dos contos
TABELA DE TRANSLITERAÇÃO Alfabeto russo А Б В Г Д Е Ё Ж З И, Й, ИЙ К Л М Н О П Р С Т У Ф Х
Transliteração A B V G, Gu (antes de i e e) D E, Ié Io J Z I K L M N O P R S, ss (intervocálico) T U F Kh
nota da edição
Alfabeto russo Ц Ч Ш Щ Ъ ou Ь Ы, ЫИЙ Э Ю Я
Transliteração Ts Tch Ch Sch – Y É Iu Ia
E
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INTRODUÇÃO
O
conto, embora gênero antiquíssimo e de origem oriental, tem encontrado sua plena maturidade e seus maiores mestres nas modernas literaturas europeias (e euro-americanas). Basta lembrar nomes como os de Boccaccio, Verga e Pirandello; Cervantes, Pardo Bazán e Alas (Clarín); Mérimée, Flaubert e Maupassant; Kleist, Keller e Kafka; Kipling, Conrad e Maugham; Hawthorne, Henry James e Hemingway e tantos outros e o nosso Machado de Assis. No entanto, será difícil encontrar literatura na qual o conto desempenhe papel tão importante como na literatura russa. Um dos maiores escritores russos só escreveu contos: Tchekhov. O mesmo se pode afirmar com respeito a novelistas menos importantes e, no entanto, de alta categoria, como Gárchin, Korolenko e, em nosso tempo, Bábel. Alguns grandes romancistas russos são maiores no conto do que no próprio romance: é o caso de Leskov, e alguns críticos defendem a mesma tese com respeito a Górki e Búnin1. No resto, todos os romancistas russos também escreveram contos e, às vezes, dos melhores: Pissemski, Turguêniev, Saltykov, Mámin-Sibiriak, Tolstói, Dostoiévski, Sologub, Remizov, Leonov. Em que gênero seria Gógol maior: na comédia, no romance ou no conto? É impossível decidir-se, mas quanto à importância histórica, nenhuma das suas obras é superior ao conto O Capote. Enfim, grande novelista também é o primeiro grande poeta russo: Púchkin. É indubitável certa preferência dos russos pelo gênero “conto”. E essa preferência tem raízes no próprio solo russo, isto é, na mentalidade do povo e nas circunstâncias sociais de sua evolução. (1) Gleb Struve, ‘The art of Ivan Bunin’, Slavonic and East European Review, Londres, v. 11, n. 32, 1933, p. 424. Disponível em: https://www.jstor. org/stable/4202785.
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a literatura russa através dos contos
Todos os observadores, nacionais e estrangeiros, sempre focalizaram a profunda religiosidade do povo russo. Seu símbolo é mesmo a cúpula bizantina. Mas a paixão do radicalismo revolucionário russo do século XIX e as mais radicais modificações sociais do século XX têm demonstrado que a religiosidade russa só é um aspecto, entre outros, de uma qualidade mais geral: o interesse apaixonado pelo homem e pelo destino do homem. Os russos têm descoberto desconhecidas profundezas místicas na religião imutável de Bizâncio; e têm acrescentado uma dimensão quase religiosa ao marxismo. O russo sempre foi e é um homem torturado pela sua consciência. Mas essa consciência sempre encontrou as maiores dificuldades para manifestar-se. Durante todo o século XIX, a vida intelectual e a vida pública — enquanto esta última foi possível sob o jugo do tsarismo — estavam amordaçadas pela censura e as universidades fiscalizadas por inspetores militares. A própria Igreja russa não passava de um instrumento administrativo do governo. Foi um país sem tribunas, sem jornais livres, sem cátedras livres, até sem púlpitos. A única voz, o porta-voz mesmo do humanismo russo foi a literatura. Por isso, a grande literatura russa do século XIX tem caráter enciclopédico: é jornal, tribuna, cátedra e púlpito. É uma literatura especificamente política (no mais alto sentido dessa palavra), inspirada por impulsos filosóficos e religiosos. É a consciência moral da Rússia. E foi, durante muito tempo, a consciência moral do mundo. O humanismo especificamente russo e aquele enciclopedismo da literatura russa favoreceram a evolução de um gênero que, embora típico do século XIX, se desenvolveu na Rússia de maneira diferente: o romance, como panorama da vida humana. Os grandes romances russos, de Gógol, Gontcharov, Tolstói, Dostoiévski, têm fôlego épico. São algo como bíblias do comportamento humano, do nascimento até a morte e com a perspectiva para além da morte, seja para a vida no além, seja para o futuro das gerações vindouras. São enciclopédias políticas, religiosas e psicológicas. É por isso que o romance russo não obedece às regras abstraídas da arte de Stendhal, Balzac e Flaubert, zombando das leis de qualquer estética normativa e parecendo-se mais com uma floresta atravessada por um
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rio desenfreado do que com um jardim bem plantado e bem irrigado. Por isso, o grande romance russo, embora impressionando profundamente o público, parecia aos críticos ocidentais “irregular” e “sem arte”; mas voltarei a esse ponto. O homem e seu destino é o tema urgente do romance russo. Mas a psicólogos tão agudos, acostumados à auto-observação quase masoquista, e a críticos tão impiedosos, quase sádicos, da sociedade, não podia escapar o fato de que a vida nem sempre se dilata panoramicamente. Há as horas em que ela se concentra num ponto só. São as horas decisivas para o indivíduo e para a evolução histórica. Homens ávidos do encontro com Deus ou do encontro com a decisão revolucionária não podiam deixar de interessar-se profundamente por aqueles momentos fatais: de conversão ou de condenação da alma, de fracasso ou de vitória da vontade. O “enciclopedismo” moral, social, político e religioso dos autores russos não lhes esconde a perspectiva das horas em que se decide um destino. Sabiam concentrar-se. Escreveram contos. O conto russo é uma manifestação específica do moralismo literário russo. Falando dos maiores contistas russos, mencionei Gógol e Górki, Púchkin e Tolstói, Leskov e Tchekhov, sem preocupação alguma com tamanho das suas obras. A maior parte dos contos de Tchekhov só tem poucas páginas cada um: uma obra-prima como Tifo só enche oito páginas impressas. Mas A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói, talvez o maior conto da literatura russa, tem 86 páginas. Há quem considere como romance A filha do capitão, de Púchkin, e como novelas são etiquetados O Capote, de Gógol, e A enfermaria n.º 6, de Tchekhov. Qual é a diferença? O erudito professor Johannes Klein, catedrático da Universidade de Marburg, escreveu um livro inteiro para traçar bem nitidamente as diferenças entre conto, novela, récit, anedota, fabliau, lenda, esboço e short story.2 Poucos críticos têm aderido a essas distinções sutis. São exclusivistas e inúteis. Nossa Literatura russa preferiu ser compreensiva, incluindo todas as espécies de ficção em prosa que não são propriamente romances. E a comparação entre as obras incluídas, sejam curtas, sejam mais compridas, revela logo um elemento comum: (2) Geschichte der deutchen Novelle von Goethe bis zur Gegenwart (Wiesbaden, Steiner, 1954).
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a concentração quase dramática ou realmente dramática. O romance é dedicado a uma vida. O conto é dedicado a uma cena decisiva na vida, ficando o autor com liberdade para lembrar acontecimentos prévios ou posteriores, ou então, para excluí-los da narração. Essa definição ou quase-definição do conto não está de acordo com outras definições bastante difundidas em nossa época, que esquecem ou condenam os maiores mestres do gênero no passado, ficando atentas apenas a determinada tendência moderna, caracterizada pelo nome de Katherine Mansfield: é o “conto atmosférico” ou “conto sem enredo”.3 Não é este o lugar para polemizar contra essas teses que me parecem profundamente erradas. Limito-me a observar que, conforme a citada teoria, qualquer um pode escrever um conto; e quase já acontece isso. Mas o conto é, na verdade, um dos gêneros literários mais difíceis, que exige profundo insight na vida humana e considerável habilidade artesanal de técnica literária. Os contos dos grandes mestres russos satisfazem, evidentemente, a essas exigências. Têm significação humana e são obras de arte. Verificando isso, volto àquela opinião errada sobre o caráter “irregular” dos grandes romances russos. F. W. J. Hemmings, Th. Kampmann, G. Phelps, R. Cansinos Assens têm descrito a “recepção” que os romances russos encontraram na França, Alemanha, Inglaterra e Espanha.4 O público leu avidamente esses livros cheios de incenso bizantino, furor revolucionário, erotismo desenfreado, discussões apaixonadas. Leu-se Crime e castigo como se fosse romance policial. O ambiente russo parecia agradavelmente exótico, acrescentando-se o frisson dos horrores do regime tsarista e dos corajosos atentados dos revolucionários; mais outros leitores encontraram em Tolstói e Dostoiévski guias espirituais. Em suma: só se prestou atenção ao conteúdo. E só se podia prestar atenção ao conteúdo, porque as primeiras traduções (3) A este respeito, cf. O. M. Carpeaux, ‘Três contos e um equívoco’, Diário Carioca, Rio de Janeiro, 25 dez. 1964, suplemento “Letras & Artes”, pp. 3, 6. (4) F. W. J. Hemmings, The Russian Novel in France: 1884-1914 (Londres, Oxford UP, 1950); T. Kampmann, Dostojewski in Deutschland (Munique, Helios, 1931); G. Phelps, The Russian novel in English Fiction (Londres, Hutchinson, 1956).
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eram lamentáveis, truncadas, inexatas, feitas por pessoas mal pagas que nem sabiam bem o russo nem a língua materna. A crítica, acostumada a outros padrões literários, não negou a significação humana daquelas obras; mas também chegou a considerá-las “irregulares” e “sem arte”. Foi, evidentemente, um erro total. A ficção russa não é “irregular”; apenas obedece a outras “regras”, enquanto tal coisa existe. E os grandes escritores russos seriam grandes artistas em qualquer língua. Quase se diria: ao contrário, artistas maiores. Pois as qualidades características da língua russa permitem ao escritor o emprego de ritmos de prosa que não se encontram assim em outras línguas modernas, mas só no grego antigo. É, aliás, necessário observar que os próprios russos continuavam durante muito tempo surdos às superiores qualidades de arte dos seus prosadores; pois a função múltipla da literatura russa, como jornal, tribuna, cátedra e púlpito, também os acostumou a prestar atenção principalmente ao conteúdo e à tendência política ou filosófica das obras. Só em tempos recentes, críticos como os da escola chamada formalista — Chklovski, Eikhenbaum, Tomachévski, Jirmúnski, Roman Jakobson — demonstraram o caráter artístico da prosa russa, que, a esse respeito, não é essencialmente diferente da poesia russa. Sendo tudo isso assim, já não surpreende o fato de que o primeiro grande poeta russo também foi o primeiro grande contista russo: Púchkin.
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