Nova Perspectiva Sistêmica 26

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novembro 2006 ano XIV NĂşmero 26 ISSN 0104-7841 g

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COMITÊ EDITORIAL Helena Maffei Cruz (Instituto Familiae) - coordenação Carlos Eduardo Zuma (Instituto Noos) Rosana Rapizo (ITF-RJ) EDITORAS ANTERIORES Gladis Brun (1991/1996) Rosana Rapizo (1997/2005) PRODUÇÃO Instituto Noos PRODUTOR EXECUTIVO Carlos Eduardo Zuma JORNALISTA RESPONSÁVEL Maria Victória Ponte Poltronieri PROJETO GRÁFICO, CAPA E DIAGRAMAÇÃO Amanda Simões COMISSÃO EDITORIAL NACIONAL Azair Vicente/SP Carmem Lent/RJ Eloisa Vidal Rosas/RJ Jorge Bergallo/RJ Juliana Gontijo Aun/MG Marilene Grandesso/SP COMISSÃO EDITORIAL INTERNACIONAL Harlene Anderson/EUA Marcelo Pakman/EUA Sallyann Roth/EUA Saul Fuks/Argentina Tom Andersen/Noruega

ITF-RJ

Rua Conde de Afonso Celso, 123 Jardim Botânico • Rio de Janeiro-RJ Tel: (21) 2527-7817 www.itfrj.com.br itfrj@montreal.com.br

As opiniões emitidas nos artigos assinados são de responsabilidade exclusiva dos autores. NOVA PERSPECTIVA SISTÊMICA é uma publicação quadrimestral do Instituto de Terapia de Família-RJ, Instituto Noos e Instituto Familiae com distribuição dirigida. Registro: INPI 816634556

Instituto Noos Rua Martins Ferreira, 28 Botafogo • Rio de Janeiro-RJ Tel./Fax: (21) 2579-2357 www.noos.org.br comunicacao@noos.org.br

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sumário

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Editorial

Rosana Rapizo 9

Quem foi mesmo von Foerster? Who was von Foerster, anyway?

Gianfranco Cecchin, Pietro Barbetta, Dario Toffanetti 24

A escuta terapêutica na interlocução clínica: uma contribuição ao construcionismo social pelo viés do pragmatismo lingüístico therapeutic listening in clinical interlocution: a contribution to social constructionism from the linguistic pragmatism view

Neyde Bittencourt de Araujo, Naira Morgado 35

Ressonâncias da prática: a poética social em um grupo de atendimento a famílias em situação de violência Resonances from practice: social poetics in a group for families in a violence situation

Rosana Rapizo 47

A busca de recursos terapêuticos na clínica com famílias em situação de violência intrafamiliar e de gênero The search of therapeutic resources in the clinic with families in a situation of intrafamiliar and gender violence

Gizele Bakman, Luiz Fernando Monteiro Pinto Bravo, Maria Celina Matta, Vânia Izzo de Abreu 53

A pintura como uma forma de auto-expressão e comunicação em situações críticas: uma maneira de criar espaço para diálogos em crises familiares Painting of pictures as a way of expressing oneself and communicating in critical situations: a way of creating space for dialogue in family crisis

Eva Kjellberg, Tuula Wilén 65

A criatividade como postura em ações de transformação social Creativity as a principle in actions to generate social change

Cecília Cruz Villares 76

O terapeuta como produtor de conhecimentos: contribuições da perspectiva construcionista social Therapist as knowledge producer: social constructionist perspective contributions

Emerson F. Rasera, Carla Guanaes 87

Estante de livros

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Normas para publicação



editorial

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m dezembro de 1991, há 15 anos atrás era publicado o primeiro número de NPS. Naquele momento o Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro, com apenas quatro anos de existência, se lançava na aventura de publicar a primeira revista de terapia de família em língua portuguesa. Um desafio e tanto! Gladis Brun, primeira editora de NPS e eu, então assistente de edição, escrevemos no editorial: “Com este primeiro número de NOVA PERSPECTIVA SISTÊMICA pensamos abrir um espaço para todos aqueles que, de uma forma ou de outra, buscam informações que enriqueçam sua leitura no vasto campo que, aberto a partir da profunda ruptura epistemológica, representou o paradigma sistêmico”. Ao longo destes 15 anos de história estive presente, como editora assistente até o número 8 e, a partir daí, como editora responsável. Em todo este tempo tenho sido participante e testemunha de que esta missão inicial de NPS tem sido muito bem sucedida. Com mais de 100 artigos de autores nacionais e internacionais publicados, NPS tem sido um veículo de divulgação das idéias do paradigma sistêmico no campo da terapia de família e de práticas a ele associadas, assim como, mais recentemente, dos trabalhos de grupos e intervenções comunitárias que chegaram ao nosso campo, especialmente depois da aproximação da terapia de família dos aportes do construtivismo e construcionismo social. Autores consagrados e outros iniciando sua carreira, de vários pontos do país e de outros cantos do mundo, encontraram em NPS um fórum aberto para expor e discutir suas idéias. Um espaço que, seguramente, além de divulgar a produção nacional e possibilitar acesso a textos importantes de autores estrangeiros, refletiu nestes 15 anos o movimento das práticas sistêmicas no Brasil. Por isso é com muito orgulho que participei, participo e continuarei participando desta aventura. Porém, depois de 15 anos, como em nosso ciclo vital, muita coisa muda, se transforma. O Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro passou por transformações muito amplas, desde o modelo de administração, até a configuração da direção e, ponto importante, o seu curso de formação, por onde já passaram mais de 500 alunos. Uma das diretrizes desta mudança foi a busca de uma integração cada vez maior com as posturas e práticas construcionistas sociais. Um dos baluartes do construcionismo social é a colaboração como forma relacional. É a valorização da produção a partir de contextos de colaboração que favoreçam a ação conjunta. 5


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Foi neste espírito que o ITF-RJ formalizou o convite para uma parceria na publicação de NPS. A partir do número 26 são nossos parceiros neste empreendimento o Instituto Noos e o Instituto Familiae. O Noos, que já participa da publicação da revista há muitos anos, realizando a parte de produção, agora será parceiro em todo o processo da revista. O Instituto Noos vêm realizando, desde sua fundação, um trabalho pioneiro, de imensa dedicação à divulgação da visão sistêmica em suas diversas possibilidades de encarnação: terapia de família, trabalhos com grupos e terapia comunitária. Certamente sua extensa experiência nesta área será de imensa utilidade para NPS. Nosso outro parceiro será o Instituto Familiae, instituição também reconhecida em todo o país por sua seriedade na formação de novos terapeutas e por seus trabalhos inovadores na área social e da terapia de família. Já parceiros de ideais e pensamento, NPS torna-se a primeira parceria em um trabalho que certamente abrirá novos horizontes para as três instituições. São, então, três parceiros que se conhecem há muito tempo e que compartilham origens, já que de formas distintas o ITF participou da formação de muitas pessoas que hoje dirigem estas instituições. Selamos com esta parceria um desejo de transformarmos o afeto e a admiração, seguramente mútuos e de longa data, em um produto que possa refletir e promover uma linguagem comum, fruto de nossa colaboração. NPS passa a partir de agora a ampliar seus horizontes cada vez mais, incluindo temas ligados à pesquisa, à formação, à construção conceitual, às práticas sistêmicas para além da terapia de família, às contribuições do construcionismo social das mais diversas formas. Gostaria de agradecer a nossos colegas e amigos do Brasil e de fora que aceitaram nosso convite para fazer parte, alguns para continuar a fazer parte, de nossas comissões editoriais. A colaboração deles é essencial para que a revista cumpra seus objetivos. Neste número tão especial contamos com a colaboração de autores da maior importância para a visão sistêmica mundial. Abrimos o número com um delicioso artigo de ninguém menos que Gianfranco Cecchin. O artigo é uma homenagem em mão dupla a Gianfranco, que tem uma importância incomensurável para a terapia sistêmica da família e nos deixou tão precocemente e à NPS, por, a partir da generosidade de outro amigo e grande terapeuta italiano, Pietro Barbetta, poder publicar o último artigo escrito por Gianfranco Cecchin. Como se isso não bastasse, a artigo escrito a seis mãos junto com Pietro, e Dario Toffanetti, nos traz, com a irreverência que lhes é peculiar, a voz de outro gigante da epistemologia sistêmica, Heinz von Foerster. A leitura do artigo é uma viagem prazerosa, cheia de histórias, ao mundo da epistemologia, da terapia de família, da criatividade e do humor. Contudo, nesta viagem estaremos em contato com perguntas que nos inquietam profundamente como: afinal o que é a terapia? O que é a verdade? Quais as conseqüências das relações de poder? Imperdível, este artigo tem tudo para se tornar um clássico. Seguindo em frente, os autores italianos têm muito boa companhia. Neyde e Naira do Instituto Familiae apresentam uma contribuição importante que articula o construcionismo, a visão pragmática de linguagem, especialmente os “jogos


de linguagem” de Wittgenstein e a idéia de linguagem performativa de Austin com a clínica construcionista no contexto que as autoras denominam de Interlocução Clínica, outrora denominado supervisão. Atual e muito útil o artigo é, na voz das próprias autoras, “um mergulho” em águas que para muitos são assustadoras, mas que navegamos por lemes e velas muito seguros nas mãos das duas autoras. Seguimos com três contribuições da área clínica. A primeira um trabalho que utiliza a metodologia chamada por John Shotter de “poética social” para tornar visíveis alguns aspectos do trabalho clínico com famílias em situação de violência. Este artigo, escrito por mim, é fruto de um trabalho de quatro anos com duas equipes de terapeutas, ex-alunas do ITF-RJ. Ele traz a voz de terapeutas e clientes em um diálogo que tem por objetivo último gerar novas possibilidades de trabalho, novos caminhos para continuar. A segunda contribuição clínica é um trabalho dentro do mesmo tema e do mesmo espírito do primeiro. Escrito a partir da experiência de atendimento a famílias no Instituto Noos, este trabalho traz a incessante busca e atenção de uma equipe de profissionais diante de um trabalho que, muitas vezes aparenta aridez e desesperança, como o trabalho em situações de violência. O resultado é um trabalho que transmite a emoção do que é feito com a alma e não só com a técnica. O terceiro trabalho deste bloco vem de muito longe. Das terras geladas da Suécia nos chega um trabalho também aquecido pela emoção. Complementa os outros dois no sentido em que Eva e Tuula, duas terapeutas que fazem da arte técnica e da técnica pura arte, encontram um forma de acompanhar e estimular a expressão de pessoas e famílias que passaram por situações tão aterrorizantes, sejam elas quais forem, que têm a expressão contida pelo medo ou pela simples falta de palavras que possam expressar tais emoções e experiências. Através da pintura, as autoras criam um espaço expressivo e de diálogo para estas famílias. A experiência, certamente nos inspirará em nossas práticas nas situações inomináveis pelas quais temos acompanhado as famílias de nosso país. O artigo seguinte inicia uma idéia de NPS de divulgar ao público leitor experiências de desenvolvimentos sistêmicos na área social e comunitária. O trabalho de Cecília faz parte de um esforço global de lidar com o estigma e conseqüente exclusão dos portadores das assim chamadas esquizofrenias. Um trabalho que nos liga ideologicamente e na prática à vanguarda mundial de trabalho pela inclusão destas pessoas e de suas famílias abrindo possibilidades de diálogo e participação social. A partir da criatividade, do aproveitamento de redes e da confiança como diz a autora as pessoas podem “abrir-se para o novo”. Assim também acontecerá com o leitor, asseguro. Por fim, temos uma outra área que, a partir de agora, também será foco de nossa atenção. A divulgação da atividade de pesquisa, acadêmica ou não, feita em nosso país. Carla Guanaes e Emerson Resera, são dois jovens e atuantes pesquisadores na área do construcionismo social e da psicoterapia derivada deste olhar. De forma recursiva o artigo dos dois autores exorta os terapeutas/ pesquisadores a divulgarem seus trabalhos, a produzirem conhecimento e não perpetuarem a dicotomia entre o investigador acadêmico que divulga o conhecimento e o terapeuta que o consome e permanece oculto nas trincheiras da clínica, como se o saber derivado de sua prática não pudesse ou não tivesse o valor social que o pri-

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meiro. Carla e Emerson acreditam que é responsabilidade nossa que praticamos a terapia “compartilhar os conhecimentos produzidos a partir da clínica, bem como fomentar a troca e o diálogo na comunidade de terapia familiar”. Ótima conclusão para a série de artigos que NPS 26 traz ao leitor. Para finalizar este número tão instigante, temos duas resenhas de livros que, produções nacionais, vêm apenas iluminar a exortação do artigo anterior sobre a importância e a necessidade que o país tem da produção científica na área. Deixo mais comentários para Marilene Grandesso e Eloisa Vidal Rosas que generosamente colaboraram com seus comentários para este número. NPS pretende a partir de agora manter espaços para o diálogo com seus autores e leitores, pretende ampliar cada vez mais seu escopo mostrando para o Brasil todo as experiências que temos tido de transformação e tradução da visão sistêmica, construtivista e construcionista social em práticas. Como toda relação que se inicia, mesmo entre pessoas e instituições já conhecidas entre si e com muitos laços desde suas origens, ainda estamos em franco processo de criação e calibração destes espaços. Por isso, a partir dos próximos números espero que NPS traga ainda mais novidades. Avalio, após a leitura e com a perspectiva que alcancei ao escrever este editorial que este primeiro número da nova fase marcará a todos, leitores, autores, editores e colaboradores, por sua beleza e consistência. Esperamos que, a partir dos comentários e sugestões de todos, possamos cada vez mais tornar NPS uma revista que exemplifica a possibilidade de co-construir colaborativamente. Espero que produto e processo possam ser usufruídos por todos. Com este editorial me despeço também da função de estar à frente da edição da revista. A partir do próximo número teremos outras configurações em que minha participação continuará, porém mais acompanhada e agregando o brilho, a criatividade, o entusiasmo de um comitê editorial composto pelas três instituições e uma equipe cada vez mais afinada. Até breve, Rosana Rapizo


artigo

Quem foi mesmo von Foerster? Who was von Foerster, anyway?

Gianfranco Cecchin Pietro Barbetta Dario Toffanetti Centro Milanese di Terapia della Famiglia, Milão, Itália Tradução:

Olívia Gonçalves Junqueira

Resumo: Proposta: o que é terapia? Qual seria, hoje, a resposta de Heinz von Foerster? Os autores tentam revelar o mistério de uma resposta que surgiu numa conversa entre eles. Eles acham que Heinz von Foerster, como Gregory Bateson, foi um dos mais influentes filósofos da terapia. No artigo eles analisam algumas palavras-chave básicas – tais como máquina trivial, devir humano – e conceitos-chave – como “alargar o campo de possibilidades” – de modo a entender se há uma ordem ou propósito em fazer terapia. Desenho / metodologia / abordagem: o artigo faz um cotejamento entre epistemologia e terapia. A diferença é que, ao contrário de von Foerster, os autores são terapeutas. Assim, provavelmente o que eles disserem não será seguro. Mas geralmente os terapeutas, ao fazer terapia, não buscam por segurança. Eles tentam ser confiáveis, o que é um outro problema. Achados: provavelmente a terapia é um jogo de palavras. Se for assim, o jogo de linguagem da terapia é um trocadilho sem dono. Um mapa em terra estrangeira. Este pode ser considerado o principal achado que segue o pensamento de von Foerster. Conseqüências práticas: entretanto, este mapa estranho pode, às vezes, ajudar quem está perdido, dado que mapa e território jamais são a mesma coisa. Originalidade / valor: o valor original do artigo é, antes de tudo, que ele pode ser considerado o último ensaio escrito por Gianfranco Cecchin antes de sua morte. No fim da vida, Cecchin estava pensando sobre e sondando uma nova perspectiva para a terapia. Pietro Barbetta e Dario Toffanetti trabalhavam com ele na prática terapêutica e teoricamente na busca por novas referências para a terapia na era pós-moderna.

abstract: Purpose: what is therapy? Which would be today Heinz von Foerster’s answer? The authors try to unveil the mystery of an answer coming from a conversation among them. They think that Heinz von Foerster, like Gregory Bateson, was one of the most influential philosopher of therapy. In the paper they analyze some very basic key words – like trivial machine, human becoming – and key concepts – like “broaden the field of possible” – in order to understand if there is an order or a purpose in doing therapy. Design/methodology/approach: the paper is a confrontation between epistemology and therapy. The trick is that, unlike von Foerster, the authors are therapists. So probably their conversation will not be reliable. But usually therapists, in doing therapy, do not look for reliability. They try to be accountable, which is a different issue. Findings: probably therapy is a language game. If yes, the language game of therapy is a trick without a trickster. A map in a stranger land. That can be considered the main finding which follows from von Foerster’s thought. Practical implications: nevertheless, such a wrong map sometimes could help who is lost, provided that map and territory will never be the same thing. Originality/value: the original value of the paper is, first of all that it can be considered the last essay written by Gianfranco Cecchin before his death. In the very last period of his life Cecchin was considering and sounding new perspective for therapy. Pietro Barbetta and Dario Toffanetti were working with him in therapy and theoretically to find new frames for therapies in the post-modern era.

Palavras-chave: cibernética, ética

Key words: cybernetics, ethics.

A verdade é a invenção de um mentiroso

Todas as idéias científicas – por exemplo, a idéia de que sempre que há um diagnóstico há também uma síndrome e, logo, certos eventos associados 9


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à síndrome ocorrerão e, se administrados alguns medicamentos, outros eventos previsíveis ocorrerão também – são científicas em seus argumentos. Elas são uma tentativa miraculosa de fazer o mundo parecer ordenado. Nós geralmente pensamos desta maneira­, acreditando firmemente que estas idéias maravilhosas existem lá fora, no mundo real, independentemente de nós, as pessoas que as inventaram. De acordo com von Foerster, é importante não acreditar nisto. Se você acredita que estas idéias são a verdade, você é um mentiroso. Uma máquina trivial não é apenas uma máquina previsível, é também uma máquina que quer saber quais são as conseqüências de seus atos. Assim é o discurso científico. A ilusão da ciência está em sua tentativa de organizar a si mesma e ao mundo de um modo trivial, i.e., previsível. Ao fazê-lo, ela oferta a ilusão de que se pode ter controle (total) dos eventos da vida. Tal controle reafirmanos, por um lado, a (total) impotência epistemológica da ciência; por outro lado, comete-se o pecado capital de Hubris, o único que irrita profundamente os deuses Gregos. Em outras palavras, se alguém faz um movimento em um jogo que tem regras claras e fixas, sempre recebe a mesma resposta; se a resposta não é a mesma, deve haver algo errado com o jogo, pois ele dá a resposta errada. Von Foerster substitui esta idéia pelo conceito de devir humano (human becoming). Seres humanos estão sempre em um estado de vir-a-ser. Suas histórias estão sempre em aberto, sempre inacabadas. Neste tipo de movimento contínuo, a idéia de organizar a realidade que nos rodeia, de torná-la previsível,

de tentar usar o que aconteceu antes para saber o que acontecerá depois, começa a fazer sentido. O pensamento linear – e, portanto a idéia de que eu posso influenciar as coisas do mundo e o modo como outros seres humanos se comportam – também começa a fazer sentido. É isso que nós chamamos “verdade” no Ocidente. De acordo com von Foerster, este tipo de discurso não é verdadeiro porque afirma a previsibilidade dos eventos e, implicitamente, afirma ainda que se achou a fórmula de sua repetição (argumentando contra Popper?). Este discurso também afirma ter descoberto as leis inalteráveis da existência, o que significa que o mundo pode ser organizado como ele queira. Isto, diz von Foerster, é uma mentira. Ou melhor, uma ilusão. Talvez a melhor maneira de colocar isto seja: “A realidade é a invenção de um sonhador”. Mas esta seria, ainda, uma descrição muito banal. Alguém sofrendo de uma ilusão (do Latim in, sobre, e ludere, jogo / brincadeira) acata as regras do jogo, mas o jogo nunca é individual. Como ressaltou Wittgenstein1, ele é sempre social. O jogo de linguagem nunca é individual, é sempre social. Assim, poderíamos dizer que a realidade é a ilusão de um grupo social. E que é a ilusão de poder que mantém o jogo sob controle. Quando criança, von Foerster a­pre­sentava números de mágica que inventava com seu primo, e os dois jovens deleitavam-se em observar o espanto dos adultos diante de suas habilidades mágicas. É curioso vê-lo debaterse tão claramente com as crenças das crianças sobre o mundo dos adultos; por exemplo, a crença de que existe verdade. A afirmação “Verdade é a invenção de um mentiroso” vem daí.


Lemos sobre um experimento conduzido por sociólogos com um grupo de estudantes universitários. Eles anunciaram que um serviço de orientação acadêmica aos estudantes seria montado para ajudá-los a decidirem sobre provas e cursos. Eles então abriram uma sala com uma equipe treinada para responder questões de modo aleatório. Foi dito aos estudantes que eles poderiam fazer apenas perguntas que tivessem resposta “sim” ou “não”, e a pessoa que respondia – supostamente um orientador profissional – olhava para um painel com uma lâmpada vermelha e outra verde que se acendiam aleatoriamente. Quando acendia a luz verde, o “orientador” devia responder “sim”; se fosse a vermelha, ele ou ela devia responder “não”. Era absolutamente proibido escutar o que diziam de fato os estudantes. O experimento pareceu funcionar muito bem. Os estudantes faziam suas perguntas, o “orientador” respondia aleatoriamente “sim” ou “não”, os estudantes decidiam por si mesmos o que aquilo significava e faziam mais perguntas. Em poucas palavras, eles pareciam gostar daquele tipo de orientação. À primeira vista, isto parece uma conversa que, pelo menos no lado do “orientador”, elimina o significado, mas o que de fato ela indica é a influência do contexto no modo como questões são perguntadas e respondidas. Os estudantes encontraram significado nas respostas “sim” e “não”, enquanto o “orientador” deu a seres humanos respostas “sim” e “não”, de acordo com a cor da luz que se acendia, sem atribuir qualquer significado ao “sim” ou “não”. Mas os estudantes que buscaram este tipo de orientação atribuíram significado às respostas que receberam. Este experimento parece dizer-nos que a

ilusão de saber a direção em que vamos – mesmo quando, do ponto-devista de um observador externo, ela parece totalmente desviada – nos ajuda a decidir o que fazer. Uma outra história, ocorrida durante a I Guerra Mundial, conta sobre soldados austríacos que se perderam no planalto de Asiago durante uma tempestade de neve. Eles não sabiam o caminho de volta e a neve estava pesada, por isso qualquer movimento era perigoso. Então, um dos soldados fez surgir um mapa, dizendo “– Eu achei um mapa que nos tirará daqui, um mapa desta área, o planalto de Asiago”. Eles começaram a caminhar e acabaram por chegar ao lugar certo. O comandante perguntou como eles conseguiram achar o caminho e eles disseram que tinham um mapa. Mas era um mapa falso, um mapa dos Pirineus. Ele só funcionou porque os soldados acreditaram que era um mapa verdadeiro. Nós poderíamos ser românticos e chamar tudo isto de “confiança”. Mais cinicamente, poderíamos dizer “poder de sugestão”. Mas, em nosso trabalho como terapeutas da família, é melhor pensar romanticamente. Por outro lado, nós devemos sempre ter planos. De certo modo, como diz Foucault2, a ciência é uma busca pelo que é certo ou não, pelo que é verdadeiro. Nós devemos sempre ter um mapa, mesmo se ele não for – e ele nunca pode ser – o mapa certo. Isto se assemelha muito ao que diz Umberto Eco3,4 sobre a literatura – que ela diz respeito ao princípio da confiança, não ao princípio da verdade. Quando lemos um romance, confiamos que o autor nos diz a verdade, não no sentido de que deveríamos confiar nossas vidas a ele, mas no sentido de que acre-

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ditamos que estão nos dizendo a verdade. Nós entramos no modo de pensar do autor, na narrativa, na história, construindo um mundo possível ladoa-lado com o do romance. Nós construímos uma história, um texto virtual, lado-a-lado com o texto escrito. Como podemos nós, terapeutas profissionais, usar estas idéias em nosso trabalho? Bem, uma família vem a você, você fala e a partir das perguntas que você faz eles constroem um conjunto de possibilidades ou fantasias. Estes são mapas de territórios desconhecidos que são válidos enquanto as pessoas falarem sobre eles. O importante é falar sobre eles. Talvez esta seja uma definição de diálogo, algo que dura enquanto as pessoas falam sobre ele e então desaparece. Nesta perspectiva, a terapia é uma questão de contar histórias, histórias com reviravoltas e que duram tanto quanto as pessoas falarem sobre elas. A terapia é evanescente. Ora você vê, ora não. Se, como terapeuta, você se vê envolvido por um modelo que afirma ter alguma relação direta com a “verdade”, o modelo torna-se realidade e a realidade o paralisa. O modelo é útil somente até tornarse realidade. Qual é o propósito da terapia? Como isto se completa com o resultado da terapia? Se a terapia é uma conversa evanescente que dura tanto quanto a sessão, o que acontece depois da sessão? Devemos reconhecer que se a terapia vai bem, é porque as pessoas envolvidas constroem um mapa, um projeto que as faz sentirem-se bem. Muito freqüentemente, este projeto não pode ser descrito, no sentido de que as pessoas envolvidas nele não estão em condições de descrevê-lo.

Vejamos um caso pelo qual Gianfranco foi responsável. Depois de algumas sessões, ele relutava em perguntar ao casal, “– Como é que vocês estão se sentindo melhor?”, e então entendeu que era porque a pergunta pedia que eles explicassem o mapa deles. O marido não queria ter filhos e sua esposa era Polonesa. Gianfranco aludiu a uma série de fantasias no tema de que um homem não poderia ter filhos com uma mulher como ela, que veio da Polônia. O marido, que provavelmente se sentiu provocado, disse: “Que idéia é esta? O que a Polônia tem a ver com isto?” Entretanto, esta fantasia sobre biologia e raça pode ter tido algum efeito. De fato, muitas outras fantasias poderiam ter sido tecidas em torno da idéia de que ele não queria ter filhos com ela. Ao longo da sessão seguinte, os dois disseram que se sentiam um pouco melhor e o marido disse até que estava disposto a ter filhos com ela. Eles haviam esquecido completamente o que fora dito na sessão anterior. Eles sequer falaram sobre ela. Então, Gianfranco não mais se referiu ao porquê de o casal sentir-se melhor. Ele não quis insistir nas velhas fantasias biológicas porque percebeu que elas valeram apenas enquanto o casal falou sobre elas. Como na vida cotidiana, pessoas em terapia esquecem coisas. Se você perguntar a elas “Por que este ou aquele evento ocorreu?”, elas geralmente responderão “Eu não sei”. Os terapeutas sabem? Eles certamente têm suas idéias, falem delas abertamente ou não. Terapeutas jogam com suas próprias idéias e as de seus clientes sem acreditar que as suas próprias são mais ou menos válidas que as dos clientes. O objetivo deles é facilitar o discurso,


talvez de um tipo totalmente oposto ao discurso dominante da família5. Mais importante, eles parecem não estar preocupados com o efeito que suas idéias podem ter no resultado do discurso. Pietro lembra um caso em que parecia haver um segredo que não podia ser descoberto. Num primeiro momento, parecia não haver saída para o impasse. O pai era um médico que havia lido Family games, de Selvini Palazzoli6 – que é um livro básico na escola de Pietro – tantas vezes que o sabia de cor. Ele repetia que sua família estava envolvida num jogo psicótico e Pietro, que não lembrava detalhes do livro, fazia uma tempestade num copo d’água na situação. Em concordância com a equipe, ele decidiu não competir com o médico para saber quem conhecia melhor a literatura sobre terapia familiar e simplesmente manteve a conversa, não só com o médico, mas também com os outros membros da família que, assim como o próprio Pietro, não tinham familiaridade com as idéias de Selvini Palazzoli. Num dado momento, após seis ou sete sessões, os membros da família disseram que se sentiam melhor e falou-se sobre concluir a terapia, mas o pai disse: “– Eu quero outra sessão. Tudo agora está melhor, tudo está bem, mas eu quero outra sessão”. Nós perguntamos, “– Por que você quer outra sessão?”, e ele respondeu, “– Porque eu quero saber o que vocês disseram entre vocês atrás do espelho, que estratégias vocês usaram para nos fazer sentir melhor”. O problema é que ninguém na equipe sabia como responder à pergunta. Neste caso, o terapeuta era o mapa dos Pirineus. Você pode usar qualquer mapa para sair do buraco em que está.

O pai dizia: “– Eu me sinto melhor, eu vim aqui para ter conversas com você. Agora você deve me dizer o que inventou, o que você fez”. A opinião de Gianfranco é que ajudaria este tipo de pai ser convidado para ir atrás do espelho conversar com a equipe, de modo que ele percebesse que tudo o que os terapeutas tivessem a dizer podia ser totalmente sem sentido para ele. Mas há aqui um grande obstáculo. Como terapeutas, nós partimos da idéia construtivista de que os princípios que usamos devem ser totalmente não-autoritários sempre e, ainda assim, os resultados conseguidos na prática terapêutica estão colados à persona do terapeuta. Como é possível conciliar estas duas idéias? Por um lado, se o terapeuta é o mapa – qualquer tipo de mapa, e, portanto, algum tipo de ente mágico – e se é o cliente quem decide o significado das ações do terapeuta, quem é responsável pelo quê no que diz respeito aos resultados? Por outro lado, se escolhemos ser totalmente nãoautoritários, como podemos julgar os resultados? Será que os resultados com que estamos lidando aqui não estão mais intimamente ligados à força da personalidade do terapeuta do que à técnica? Em maior ou menor grau, todos nós usamos a técnica. Uma técnica é sempre uma técnica, não importa se é você, eu ou alguma outra pessoa quem a usa. Entretanto, o cliente aqui parece pensar que somos mágicos. Somos novamente lembrados de von Foerster quando criança, brincando de ser mágico com adultos. É interessante ver o quão claras as origens do pensamento dele ficam quando suas idéias são aplicadas à psicoterapia. Houve um tempo em que isso

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pareceria impossível para nós e, ainda assim, há muitos exemplos anteriores disto na prática da terapia de família. Por exemplo, Milton Erickson era um “mágico” – ele nunca repassava suas técnicas diretamente, a não ser aquelas relacionadas à sugestão hipnótica – e a “mágica” dele era parte integrante do seu modo de fazer psicoterapia. No caso descrito anteriormente, o pai provavelmente não queria acreditar que não havia nenhuma “mágica” envolvida. Ele precisava de mágica para dar sentido ao resultado. Nós pensamos ser importante que os terapeutas também não acreditem nisto.

O poder enfraquece quem pensa tê-lo

O perigo de todas as relações humanas é que elas podem cair na armadilha de tornarem-se relações de poder. E ainda assim, pessoas vêm a nós e dão-nos, se não poder, algum poder. Quando isto acontece, fazemos todo o nosso possível para demolir o poder, manter algum equilíbrio, e evitar entrar no jogo de poder. Gianfranco escreveu em diversas oportunidades sobre “poder e significado”. Ele diz que metáforas de poder, guerra e estratégia foram freqüentemente utilizadas na prática de terapia familiar. Agora ele propõe uma abordagem segundo a qual as pessoas não necessariamente entram em relações através do poder. Sua nova idéia é de que os seres humanos entram em relações para dar significado a suas vidas. Como isto nos liberta do poder? Como esta imagem é diferente? Talvez seja diferente porque o significado que dá à vida é muito mais complexo que o poder.

A noção de que tudo está organizado em torno do poder é apenas um dos muitos significados que podem ser dados à vida. Todo este debate emerge agora da famosa diferença de opinião entre Bateson e Haley. Haley disse que os seres humanos juntamse por razões de poder, e Bateson respondeu, “– Eu não acredito na metáfora do poder porque é uma metáfora que corrompe”. Entretanto, é preciso reconhecer que Haley tem sido um terapeuta muito mais bem-sucedido. Bateson não influenciou muitos terapeutas, com exceção da escola de Milão, e muitos estudantes que vêm a Milão aprender a fazer terapia vão embora com alguma noção de poder na cabeça. Poder é uma idéia poderosa. É preciso reconhecer isto. A hegemonia do poder é, antes e acima de tudo, cultural. Você quer ser terapeuta porque quer ajudar pessoas. Se você puder achar uma fórmula que impeça pessoas de se comportarem de uma certa maneira - por exemplo, auto-destrutivamente – e ajudá-las a agir de modo mais positivo, então você foi bem-sucedido. Esta é a missão de todos os terapeutas, mas ela parece preocupante como a descrição de “verdade” que nós demos acima. Watzlawick diz que terapeutas intervêm nas vidas das pessoas para alcançar um resultado. Às vezes esta intervenção é bem-sucedida e este sucesso convence as pessoas de que o método utilizado em seu caso particular foi o certo, o verdadeiro. Mas nós achamos que esta idéia encobre uma forma de autoritarismo não-ecológico. Gostando-se ou não, o conceito sistêmico de Bateson diz que a força de um sistema está no próprio sistema e, assim, ensina-nos que o poder corrompe. Não é preciso necessariamen-


te concordar com esta idéia – ela é, como diria von Foerster, apenas uma das muitas maneiras de explicar o que se observa – mas ela é o conceito de Bateson. Não há receitas para todas as ocasiões. Se você acha que a idéia de poder está sempre errada, você transforma a concepção sistêmica em uma espécie de sermão moral. E, de fato, a moralidade que os terapeutas usam é muito superficial. Para nós, ouvir uma pessoa dizer “– Eu me sinto bem” é melhor que uma pessoa dizer “– Eu me sinto mal” e, neste sentido, nós achamos que a metáfora do poder aumenta a possibilidade das coisas irem mal. Dizemos “mal” para evitar falar sobre “corrupção”. Entretanto, nem mesmo o próprio Bateson era perfeito. Ele trazia um certo traço puritano, um toque dos britânicos. Havia algo de moralista nele. Mas, talvez, o que Bateson quis dizer foi que se você usa a metáfora do poder, é mais provável que se associe à metáfora da corrupção. Voltando ao debate com Haley, um dos problemas de Bateson era que a maior parte das pessoas, que faziam pesquisa com ele naquela época, tinha esta idéia de poder. Hoje podemos dizer, parafraseando um famoso político italiano, que o poder te exaure, mas só se você enxergar as coisas exclusivamente em termos de poder. Por outro lado, o poder não é uma atitude individual, é um produto social genuíno. Alguém se aproxima e te dá poder. A tentação de usar o poder em seu próprio benefício é bastante forte também na prática da terapia. Assim, quando alguém nos dá poder, fazemos o máximo para derrubar este poder. Nós não queremos nos exaurir, nós não queremos ser corrompidos. Isto é um tipo de exercício para evitar o esgotamento. Agora, vejamos de

que outras maneiras podemos ler uma relação que terapeutas obcecados com o poder vêm exclusivamente em termos de poder. Um pai diz a sua filha: “– Pergunte à mamãe onde ela estava ontem à noite”. Ele não pergunta diretamente. À primeira vista, isto parece “corrupção de menor” e nós podemos pensar que a corrupção é endêmica naquela família específica porque seus membros estão usando uns os outros: “Eu quero algo da mamãe, então estou pedindo a você que vá e pergunte a ela”. Se aceitarmos o imperativo categórico kantiano de que devemos ver o outro como um fim e nunca como um meio, poderemos apenas condenar este tipo de corrupção familiar. Ainda assim, nós também devemos perguntar se é realmente possível aplicar o imperativo kantiano à vida cotidiana. Voltemos a este pai de outra maneira. Vejamo-no, desta vez, como um pai que tem tido problemas para falar com sua esposa e, por isso, precisa da ajuda da filha. Esta é uma interpretação diferente: o episódio é o mesmo, mas tem um significado bastante diverso. Por que ele deveria ser visto necessariamente como corrupção? Por outro lado, podemos juntar as duas histórias, se estivermos preparados a aceitar que “corrupção” não é necessariamente uma palavra feia. Se o fizermos, teremos um pai com problemas para falar com sua esposa que é forçado a corromper a filha para seguir em frente. Mas terapia é este movimento pendular entre significados. Ao invés de usar a palavra “corrupção”, podemos dizer que o pai tem que pedir ajuda à filha. Ao fazê-lo, criamos um contexto em que o pai começa a mudar a direção da conversa com sua filha: “– Olha, estou com problemas com sua mãe, eu simplesmente não consigo falar

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com ela. Você pode me ajudar? Você falaria com ela? Eu não posso, eu me sinto esquisito”. E a filha pode sempre dizer: “– O assunto é seu. Você deveria resolver seus problemas com a sua mulher sozinho. Talvez você devesse tentar terapia”. Se a filha dele responde assim, não há mais nenhuma questão de corrupção.

O imperativo de von Foerster

Von Foertser7, como Kant, propõe um imperativo ético – “Aja sempre de modo a aumentar o número de escolhas possíveis” –, mas seu imperativo tem a vantagem prática de que, ao descrever o mesmo fenômeno de maneiras diferentes, você cria palavras possíveis, i. e., o significado é construído de maneiras variadas, resultando na famosa polifonia de que fala Bakhtin8. Logo, eu posso descrever o fenômeno do pai que diz a sua filha “– Vá e pergunte à mamãe onde ela foi na noite passada”, como um caso de corrupção, como um triângulo perverso, como um pai pedindo ajuda a sua filha, como uma brincadeira ou de muitas outras maneiras. Pensando racionalmente, alguém inventa diferentes hipóteses. Nos EUA a situação deve ser vista mais como um triângulo perverso, porque há ali muita influência de Haley, enquanto em Viena, onde Freud tem muita influência, ela deve ser vista mais como edípica. Culturas diferentes encontrarão maneiras diferentes de descrever a situação. Em algumas ela pode ser descrita como patológica e, portanto, ser evitada; em outras ela pode ser vista como um mecanismo de ajuda mútua e solidariedade. Isto significa aceitar o

imperativo de von Foerster do aumento do número de opções, i.é, é isto que eu vejo, mas o que isto pode significar em circunstâncias, situações ou culturas diferentes? Nós três uma vez propusemos “Cons­trutivismo / construcionismo e moralidade” como tema de uma conferência porque tínhamos a impressão de que a moralidade está sempre à espreita, sem ser vista, na porta dos fundos da terapia porque os terapeutas ficam envergonhados de colocá-la à mostra. Nós nos apavoramos com a possibilidade de sermos considerados moralistas, mas não é este pavor ele mesmo uma posição moral? Nós somos até mesmo relutantes em discutir a moralidade. Damos muitas voltas em torno do assunto: clínica e teoricamente, estamos sempre intrigados com isto. Isto se deve à idéia, agora corrente, de que nós devemos evitar aconselhar as pessoas, i.e., evitar lições de moral. Nosso preconceito está em que nós insistimos que as pessoas devem pensar por elas mesmas. Entrementes, damos a elas muitas opções, algumas delas “morais”, outras não. Voltemos ao nosso exemplo do pai “corruptor” e consideremos perguntas circulares, como “– Você acha que seria prejudicial à sua filha se ela perguntasse algo assim à mãe dela?”, que poderia ser também uma questão moralista; ou “– Você acha que a sua filha está feliz por você ter pedido a ela que perguntasse à mãe dela? Você acha que isso faz ela sentir-se mais importante?”, que de certa forma é edípica; ou “– Você acha que a menina sentese mais importante porque você deu a ela esta tarefa?”. As opções que damos podem também soar imorais. Por exemplo, podemos dizer que, no fundo, este pai ama sua filha e diz todas


estas coisas para estar perto dela. Ou que ele não liga para o que a mãe faz: pode ser que seja só um modo de falar com a filha, persuadí-la a contar-lhe os segredos dela; ou (já que ele é muito tímido) que ele simplesmente não sabe como falar com sua filha, então ele fala sobre a mãe dela, já que a filha gosta muito dela. Em poucas palavras, a idéia é desenvolver a imaginação em várias direções (sejam elas morais, imorais ou amorais), para estimular a narração imaginativa com o fim último de gerar algum tipo de ressonância entre as próprias pessoas e tudo aquilo que nós falamos. Uma ressonância que diga: “Esta é a escolha certa. A que é verdadeira hoje, esta semana, no período que o cliente está vivendo neste momento”. “Verdadeiro hoje” significa evanescente. Significa que funcionou como diálogo quando o pai falava com sua filha, com a mãe, com o terapeuta e com o mundo externo. Funcionou na­ quele momento, por um momento. O terapeuta construiu um novo saber e o significado deste novo saber está relacionado com a possibilidade de controlar a realidade. Este é o saber-poder de Foucault. De acordo com MacIntyre9, o imperativo kantiano “Trate cada um como um fim, não como um meio” é totalmente impraticável porque é impossível entrar em relações nãomanipulativas com outros seres humanos. De fato, pode-se concluir que a idéia de Kant deu origem a um tipo de rigidez moral que tem sido característica de algumas formas modernas de totalitarismo. À luz do pensamento pós-moderno, o resultado da filosofia de Kant parece certamente desconcer-

tante, mas, daqui, para onde vamos? Bem, se é verdade que não há como evitarmos manipular outros seres humanos, pelo menos a outra pessoa deve ser colocada na posição de saber e aceitar isto. Se eu trato uma outra pessoa como meio, sem pedir permissão a ela ou a ele, minha ação é imoral. Mas talvez minha ação seja igualmente imoral se eu tratar ela ou ele como um fim, sem antes pedir permissão. Isto traz à lembrança a história do escoteiro que força uma velha senhora a atravessar a rua com ele porque ele sabe que tem que fazer uma boa ação por dia. Há aqui um abuso dos bons sentimentos e do bem moral, muito distinto do abuso mais clássico, que vem dos maus sentimentos. É só que o abuso dos bons sentimentos é mais desconcertante; nós nem sempre o reconhecemos pelo que é ou sabemos com lidar com ele. Uma esposa pode dizer: “Este marido é bom porque ele me é útil. Ele ganha dinheiro e me dá filhos, e eu quero ser útil para ele também. Eu quero ser bastante carinhosa e fazer tudo para ele, mas ele também é útil para mim. Há vantagens em tê-lo como marido”. E o marido dela pode dizer: “Esta mulher é útil para mim também, porque ela é uma boa mãe. Eu me beneficio dela porque ela toma conta de mim em casa e ela é, também, uma mulher bonita”. Os dois conscientemente dizem, “Eu estou usando a outra pessoa, mas de um modo positivo. Nós nos manipulamos, mas de um modo positivo”. Como terapeutas, podemos criticar isto, mas o nosso ponto-devista seria externo, autoritário. De um ponto-de-vista interno, se os dois sentem que é uma troca mútua, a atitude deles é correta. Apenas quando não há reciprocidade isto se torna um

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problema, uma forma de abuso. Nós podemos até ficar escandalizados com o que eles dizem. Entretanto, nossa opinião é a de que uma fonte de loucura é a idéia louca de que nós devemos sempre tratar cada um como um fim e não como um meio. MacIntyre9 afirma mesmo que o empresário e o terapeuta são duas figuras morais chave dos tempos modernos porque encontraram uma saída para este dilema moral. Como diria Hannah Arendt, a deles é uma vita activa.

Então, o que é um terapeuta?

Se um terapeuta pergunta “Qual é a utilidade da sua esposa / do seu marido para você?”, as pessoas ficam surpresas porque estão habituadas a pensar que um homem e uma mulher casam-se por amor. Mas se dizemos, “Esqueça o que você faz por amor, diga-me qual é a utilidade dela / dele para você”, é interessante vê-los perceber que, no fundo, eles consideram seus parceiros meios. Com “ele é útil para ela e ela é útil para ele” temos um equilíbrio de utilidades, mas se um dos dois casou com o outro por amor, a utilidade pode acabar sendo unilateral. Em geral – de fato, quase sempre – é isto que acontece com as mulheres. No grego antigo, a palavra “serviço” tem a mesma raiz de “terapia”. De acordo com Foucault, na alta Antiguidade, “terapia” significava “serviço” de três maneiras diferentes: um servo que serve o amo, uma pessoa que ajuda outra pessoa e serviço no sentido médico. Na idade moderna, a “terapia” é vista como estando a serviço de um sistema que precisa ser desbloqueado, um sistema paralisado em uma forma de psicose ou loucura. Um sistema que

o terapeuta tenta desbloquear através do diálogo. Logo, o terapeuta está a serviço de um sistema que parece ter parado de evoluir, i.e., não está mais dentro da vida. A idéia de von Foerster de ordem que vem do ruído relaciona-se com a pergunta sobre como os sistemas evoluem. Se o sistema terapêutico é coevolutivo, segue-se que o ruído de que é construída a ordem expressa-se em forma de diálogo. Porém, muitos tipos de ordem podem ser construídos e o que é eventualmente construído nunca pode ser previsto ou anteriormente calculado. O diálogo não diz antecipadamente qual é a solução. Então, digamos que sistemas, e seres humanos com eles, estão em constante evolução. Como disse Shotter10, eles estão no meio do caminho entre a ordem e o caos, mas assim que param de evoluir tornam-se rigidamente organizados. Em contraste, um sistema em evolução opera em diferentes níveis de ordem, passando constantemente de um para outro enquanto mudam. Ele nunca está paralisado em uma ordem fixa, então está sempre em um estado de vir-a-ser. Von Foerster disse que sistemas humanos não-saudáveis são sistemas bloqueados e a idéia de bloqueio está enraizada em toda a linguagem que usa o verbo “ser”. Para descrever uma pessoa nós dizemos ser humano, não devir humano. Nossos jogos de linguagem bloqueiam o sistema porque nossa visão “essencialista” das coisas tira uma fotografia e a fotografia bloqueia o sistema, congela-o como está. A imagem de um filme é muito mais útil. Como uma série de fotografias, o filme exemplifica perfeitamente nossa idéia do que são os sistemas. De quando em quando o filme é interrompido


e é o momento em que vemos famílias bloqueadas, emperradas (stuck). A palavra em inglês “stick” tem muitos significados. Como verbo, podemos usá-la em expressões como “sistema paralisado / emperrado”(stuck system) e “manter-se no caminho” (stick to the path), que são metáforas de rigidez. De modo semelhante, os antigos Romanos11 insistiam que os camponeses deviam atentar ao sulco (lira) enquanto aravam (stick to the furrow when they ploughed). Não fazêlo ressultava em de-lirium, um desvio de um caminho predeterminado. Isto também pode ser descrito em termos teatrais. Um roteiro é dividido em atos. Durante a encenação, um ato segue o outro até que a peça termine. Quando terapeutas vêm uma família, eles a vêm num certo momento da encenação, digamos no Segundo Ato. O problema é que quando a família vai à terapia, seus membros estão paralisados, por exemplo, no Segundo Ato. Eles vão ao palco e repetem o Primeiro Ato, sempre da mesma maneira ou talvez pior do que antes. Casais sempre repetem as mesmas coisas, o roteiro é sempre o mesmo. Eles precisam de alguém de fora que possa dar a eles opções e, portanto, aumentar o número de possibilidades – alguém que possa injetar um pouco de delírio na vida deles. Esta é a noção do terapeuta como co-autor, alguém que trabalha com o casal ou a família para reescrever o roteiro para o futuro. Por outro lado, cada sistema humano escreve a própria história, ela não é encenada por outros. Um terapeuta não é alguém que dá ordens a famílias sobre o tipo de roteiro que devem ter. O objetivo é facilitar a criação de possibilidades de que fala von Foerster e isto é feito atra-

vés de perguntas. Perguntas circulares, auto-reflexivas, que fortalecem e estimulam a imaginação. Na nossa opinião, a arte que aprendemos consiste, primeiro, em evitar, tanto quanto possível, usar o verbo “ser” no presente do indicativo – não só “ele é esquizofrênico”, “ele é um abusador”, “ela é anoréxica”, mas também “você é burro”, “você é maldoso”. Segundo, consiste em evitar o uso de conceitos causais, lineares, ao contrário do que ocorre na maioria das conversas no Ocidente, que são sobre quem causou o que, quem fez o filho “esquizofrênico”, a filha “anoréxica” ou “lésbica”, etc.

O ser e o devir

Como conciliar o determinismo estrutural com a ampliação da gama de possibilidades? Pensamos que o verbo “ser” é a “causa” de todo pensamento causal. Em hebraico, o presente do indicativo do verbo “ser” não é usado na terceira pessoa do singular. Trata-se do que Aristóteles denominou “o primeiro motor imóvel”. O conceito de causação – com todas as suas derivações – é atribuído a algo não-humano, algo poderoso demais para ser imputado aos seres humanos. Para os povos da Antigüidade, apenas deuses podiam ser “causas”: os seres humanos haviam sido simplesmente lançados ao mundo e, de certa forma, tinham um destino a cumprir. Em contraposição a essa concepção, nossos conceitos modernos de educação e criação foram moldados pela crença de que o comportamento e o caráter humanos podem ser modificados, tornados “bons” – e qualquer um que se recuse a ser modificado por sua educação torna-se “mau”.

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Os antigos sabiam melhor do que nós, modernos, que aqui operam duas idéias: a idéia de fluxo temporal – erroneamente atribuída a Heráclito – que significa que tudo está em constante mudança, e a idéia do ser estático, segundo a qual cada existência é única, como afirmado por Parmênides. Nós, modernos, encontramos dificuldade em utilizar esses termos porque parecem opostos, e opostos têm de ser conciliados. Von Foerster afirma que deveríamos ver coisas diferentes de pontos de vista distintos, e que a diferença não necessariamente tem de ser conciliada. Nós, modernos, nem mesmo necessitamos do verbo “ser”. Já não cremos na existência de um criador. Ao contrário, acreditamos que a idéia de criador serve apenas como uma espécie de conforto espiritual. A idéia de um deus onipotente é certamente reconfortante, mas ainda assim nós, modernos, pensamos ser possível viver sem ela. Separar o verbo “ser” da noção do “primeiro motor imóvel” suscita a ilusão de que podemos tornar-nos semelhantes a deus. Quando a palavra “é” é proferida, tudo pára, tornamo-nos onipotentes, porque “é” é a verdade. Na modernidade, sabemos onde se localiza a verdade: no ser, e não no devir. De volta ao imperativo categórico de Kant, podemos colocar a questão: o que é ele, se não uma tentativa de estabelecer ontologicamente uma certa verdade através do raciocínio? Tratar os outros como fins, e não como meios, não é sempre uma tentativa de estabelecer uma verdade moral? Mas as morais verdadeiras não são morais absolutas? Morais que são verdadeiras, a despeito do fato de que vivemos nossas vidas relativamente, em relação com os outros?

Se aceitarmos o fato de que os terapeutas têm o direito de serem curiosos, seria mais útil colocar questões di­ferentes, como as seguintes: g

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Quem são as pessoas que interagem com este ser humano? Quantas são elas (mãe, pai, chefe, filha)? Quem o escuta? Quem o vê? Quem pode ouvi-lo, valorizar o que faz? O que ele faz significa algo para esse outro ser humano? Como ele utiliza o diálogo humano? Como ele usa e se deixa ser usado pelos outros?

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Pensamos que a última questão seja libertária, porque às vezes as pessoas perdem a paciência e dizem: “Todos me usam!”. As pessoas freqüentemente sofrem porque se sentem usadas, sem nunca perceber que também usam as outras pessoas. Isso é uma falta de conhecimento: consideram-se vítimas de todos, ao passo que não raro são elas que abusam dos outros. Essa situação poderia ser substituída por um contrato saudável de exploração recíproca. Talvez estejamos sendo um pouco cínicos, mas não é libertário pensar que as famílias e os sistemas humanos em geral evoluem através do uso que seus membros fazem uns dos outros? Analisando a questão desse ponto de vista, vemos que os avós são honrados porque são sábios e dão conselhos, porque têm dinheiro, ou então porque são úteis aos netos e aos pais, e assim por diante, para três gerações. Este é um exemplo de duas pessoas, ou de um grupo de pessoas, que usam umas às outras reciprocamente. Se


con­­cordarmos com Wittgenstein1 que o significado é estabelecido no uso, o fazer uso uns dos outros não seria um exemplo de construção social de significado compartilhado? Não é precisamente assim que as pessoas começam a interagir? Quando usam umas às outras, as pessoas interagem, e quando interagem, os grupos humanos evoluem, isto é, transformam-se, porque não podem evitar essa mudança em alguns aspectos. Assim, algo que não existia antes dessa interação ocorrer vai sendo construído a cada momento. Essa é a mediação entre o conflito e o diálogo. O conflito e o diálogo isolados não dão conta de tudo: ambos são necessários. Tomemos um exemplo cultural: as pessoas estão sempre falando em integração, por exemplo, a conciliação do conflito entre negros e brancos nos Estados Unidos. No entanto, a interação entre negros e brancos produziu novas formas culturais como o jazz, que integra a música negra e a branca. A música clássica européia e a música africana produziram algo que não é nem uma coisa nem outra, mas é diferente. Os negros e os brancos usaram uns aos outros, mas no caso do jazz a exploração foi produtiva, fértil, ou seja, produziu algo que consideramos esteticamente agradável e apreciamos ouvir. Do ponto de vista dos terapeutas, pensamos que o uso que uma pessoa faz de outra pode ser descrito de uma forma positiva e útil. É claro que as histórias nem sempre se desenvolvem dessa forma – se esse fosse o caso, não haveria necessidade de terapia. Também nos perguntamos até que ponto a posição do terapeuta está relacionada à velha idéia da neutralidade. O terapeuta construtivista tem de tentar não adotar uma posição, a despeito de quão difícil isso possa ser

às vezes, pois adotar uma posição significaria não mais tentar conectar as formas como uma pessoa usa a outra e vice-versa. Pelo contrário, haveria desconexão. A posição neutra não deve ser rejeitada; talvez deva mesmo ser radicalizada: não se deve jamais tomar partido, nunca se deve dizer que alguém está sendo usado demais, por exemplo. Ao invés disso, deve-se concentrar o interesse na observação de como alguém está sendo usado e quais as conseqüências desse uso, de modo a compreender porque algumas pessoas gostam de ser usadas de uma certa forma, ao passo que outras preferem ser usadas de outra. O ponto é que, de uma forma ou de outra, alguém está na posição de usar outra pessoa. Pensamos que o exemplo da mãe e seu filho recém-nascido condensa o que estamos tentando dizer. Segundo nosso ponto de vista, trata-se de um tipo de uso recíproco fantástico. A criança nasce e começa a berrar, como se dissesse: “– Você precisa me alimentar, mamãe, você está aqui para me servir”. A mãe alimenta o recémnascido e ele se acalma. À primeira vista, parece que é a criança quem está dando as ordens, mas a mãe também está usando a criança para gratificar seu próprio senso de poder. “Eu sou a mãe que gera. Além de ter produzido essa criança, também produzo o leite que a alimenta. Sou incrivelmente poderosa”. Quando outros lhe dirigem a palavra, ela não lhes dá a mínima e manda-os embora porque foi ela quem criou esse uso recíproco. O infanticídio até pode ser praticado. Nesses casos, o poder da mãe parece não mais funcionar. Ao contrário, ela se sente impotente, incapaz de colocar esse incrível mecanismo de reciprocidade em movimento.

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Muitos terapeutas acreditam que é a mãe quem age de forma inequívoca sobre a criança – a idéia é fundamental para a teoria do apego, por exemplo. No entanto, Benjamin12 observou mães sofrendo de depressão pós-parto em interação com seus bebês e concluiu que um mecanismo de reciprocidade importante estava em funcionamento entre ambos. Algumas vezes, embora a mãe não estivesse olhando para o bebê, ele reagia positivamente a ela e, por sua vez, suscitava uma reação secundária positiva da parte da mãe. Não acreditamos que mães possam simplesmente abandonar seus bebês. Pensamos que há mães que, em um momento específico, abandonem seus bebês. Mas podem vir a perceber que interagir com seus bebês é vantajoso para elas porque isso estimula seu senso de poder. Ao não conseguir perceber a realidade do seu poder, a mãe constrói uma realidade de impotência. Embora tenha alimentado seu bebê, trocado suas fraldas, etc., ela pensa ser inútil como mãe, a tal ponto que abandona seu bebê num cesto de lixo ou chega a matá-lo. Essa história poderia ser contada de outra forma. Por exemplo, um homem estuprou essa mãe e ela engravidou. Ela tem o bebê. Então, seu pai, sua mãe e sua irmã olham para ela de soslaio e murmuram: “– Você é mãe solteira. Arruinou sua vida. Ficou com um homem que não dá a mínima para você, que tem medo de ser pai, que foi embora e a abandonou”. Isso a leva a acreditar sinceramente que nunca quis o bebê, e que provavelmente deveria matá-lo porque não consegue usá-lo para demonstrar seu poder. Pelo contrário, o bebê é a prova de seu infortúnio: “– Não posso usá-lo, então vou matá-lo”.

Mas por que ela pensa que não pode usá-lo? Talvez porque foi criado um contexto no qual ela não dispõe dessa autoridade, no qual não foi autorizada. Um contexto cuja idéia dominante é o fim, e não o meio – “Por que não fui autorizada? Por que acredito que não fui autorizada? O que existe por trás dessa idéia?”. Respostas possíveis a essas questões poderiam ser “Você é uma pecadora porque fez sexo antes do casamento” ou “Você não vale nada porque se deixou ser estuprada”. Nesse caso, a mãe poderá concluir que como o bebê – um bebê nascido de um estupro – é tanto um fim quando um resultado do abuso, ele decididamente não pode ser um fim e deveria ser morto. O bebê não é um fim, mas o meio pelo qual sua reputação foi arruinada, pelo qual se tornou uma mãe solteira, pelo qual passou a odiar o mundo. “– Já que este bebê não pode ser um fim, vou eliminá-lo”. Há outras situações, outras circunstâncias, nas quais uma mãe pode pensar em abandonar seu bebê como forma de salvá-lo, mas são situações extremas. E mesmo assim, se for bemsucedida, uma vez mais demonstra seu poder. Quando foram deportadas para campos de concentração, algumas mulheres jogaram seus bebês pequenos para fora dos trens porque sabiam que se os levassem para Auschwitz eles certamente morreriam. Ao jogá-los para fora, diziam: “Ele poderá morrer, mas talvez alguém o encontre, leve-o consigo e crie-o”. Dessa forma, abandonar o bebê fez sentido porque foi uma reação de esperança e desespero simultaneamente. Embora não houvesse alternativa, ainda havia uma: a esperança de salvar a vida do bebê.


Referências

WITTGENSTEIN, L. Philosophical investigations. Oxford: Blackwell, 1953. 2 FOUCAULT, M. L’ordre du discourse. Paris: Gallimard, 1971. 3 ECO, U. Semiotica e filosofia del linguaggio. Torino: Einaudi, 1984. 4 ECO, U. Six walks in the fictional woods. Cambridge: Harvard University, 1994. 5 FOUCAULT, M. Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966. 6 SELVINI, P.M.; CIRILLO, S.; SELVINI, M.; SORRENTINO, A.M. I giochi psicotici nella famiglia. Milano: Raffaello Cortina, 1998. 7 FOERSTER, H. von. Observing systems. Seaside: Intersystems, 1982. 8 BAKHTIN, M. The dialogic imagi1

nation. Austin: University of Texas, 1981. 9 MACINTYRE, A. After virtue: a study in moral theory. Notre Dame: University of Notre Dame, 1984. 10 SHOTTER, J. Real presences: the creative power of dialogicallystruc­tured, living expression. Final draft for KCC 123 Conference, Canterbury, July, 2002. 11 PAKMAN, M. Poetica e micorpolitica nelle pratiche di salute mentale: i margini invisibili. In: BARBETTA, P.; BENINI, P.; NACLERIO, R. (Ed.). Diagnosi della diagnosi: ricerca critico-interpretativa e categorie diagnostiche. Milano: Guerini, 2003. 12 BENJAMIN, L. S. Interpersonal diag­ nosis and treatment of personality disorders. New York: Guildford, 2002.

Este é provavelmente o último artigo escrito por Gianfranco Cecchin antes de morrer. Nós temos orgulho de termos sido amigos e colegas dele. Ele nos inspirou em nossa profissão e, o que é mais importante, em nossas vidas. Foi uma grande honra trabalhar com Gianfranco durante todos estes anos. Esperamos um dia encontrá-lo no nada e confirmar que estamos “ainda loucos, depois de todos estes anos”. (P.B.& D.T.)

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artigo

A escuta terapêutica na interlocução clínica: uma contribuição ao construcionismo social pelo viés do pragmatismo lingüístico Therapeutic listening in clinical interlocution: a contribution to social constructionism from the linguistic pragmatism view

Neyde Bittencourt de Araújo

Psicóloga clínica, Terapeuta de família e casal, Docente e supervisora do Instituto Familiae, São Paulo, SP neydearaujo@uol.com.br

Naira Morgado Socióloga, Terapeuta de família e casal, Docente e supervisora do Instituto Familiae, São Paulo, SP nairamorgado@uol.com.br

Resumo: Esse artigo é uma contribuição à clinica singular do Construcionismo Social. Nosso foco será a interlocução clínica, numa releitura do conceito de linguagem, sob o viés do Pragmatismo Lingüístico, introduzindo as noções de “efeito performativo da linguagem” (Austin) e “jogos de linguagem” (Wittgenstein) como instrumentos ampliadores e facilitadores para a escuta do terapeuta. Acreditamos na utilidade desta contribuição, por proporcionar a possibilidade de discriminar e nomear a qualidade da relação que envolve o terapeuta e seu paciente. Que lugar ocupamos na relação com o paciente quando aceitamos ou recusamos um convite a um determinado jogo de linguagem?

Abstract: This paper is a contribution to the peculiar clinic of the Social Constructionism. Our focus will be the clinic interlocution, in a re-reading of the language concept, under the view of the Linguistic Pragmatism, introducing the notions of the performative effects of language (Austin) and the language games (Wittgenstein) as an amplifier and a facilitative tool for the therapist listening. We believe this contribution will be very useful because it will provide the possibility of distinguishing and naming the quality of the relationship that involves the therapist and his/her patient. Which is the place we are occupying in the relationship with the patient; when do we accept or reject the invitation for a specific language game?

Palavras-chave: pragmatismo lingüístico, jogos de linguagem, atos-de-fala, subjetividade, interlocução clínica.

Key words: linguistic pragmatism, language games, speech acts, subjectivity, clinic interlocution.

O contexto das nossas indagações O presente artigo é o resultado das nossas inquietações e indagações como docentes do curso de Formação de Terapeutas de Família e de Casal do Instituto FAMILIAE e, acreditamos, uma possível contribuição à clínica singular do Construcionismo Social. Nossas questões primeiras eram como encontrar um vocabulário dentro do Construcionismo Social que dialogasse com as diferentes crenças trazidas por nossos alunos relativos às idéias de psiquismo e que, ao mesmo tempo, introduzisse questões que achávamos vitais e facilitadoras do processo terapêutico. Partimos do que tínhamos, que eram nossas idéias organizadoras e os vocabulários que formatavam nosso percurso teórico–clínico: 24


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A linguagem como constitutiva; A idéia de múltiplos selves e não de um único e essencial núcleo que disses­­se “na verdade o que somos” e o que “é, essencialmente, um indivíduo”; O self não como posse do indivíduo, mas sim uma construção relacional, e não na mente de cada um, mas sim na relação que se estabelece numa conversação; A conversação como locus da construção desses múltiplos selves.

Esse conjunto de idéias apontava para a importância da polivocalidade e das múltiplas visões sobre o mundo e sobre nós mesmos; para um cenário no qual o lugar do terapeuta não se definia como o do especialista, uma vez que as metáforas usadas giravam em torno de: “arquiteto de diálogos” e “artesão de contextos”. A ênfase no processo terapêutico se deslocava dos padrões de relação para as diferentes descrições e para a criação e a ampliação dos significados. Falávamos aqui como terapeutas sistêmicas que entendiam sistemas humanos como sistemas lingüísticos. Tínhamos isso e era muito. O uso desses conceitos organizava nossa escuta. Havia, entretanto, outras perguntas. O que seria, afinal, essa subjetividade construída por múltiplos selves? Como isso se daria na relação? Como a linguagem constitutiva construía mundos? Como operava? Como seríamos afetados pelos discursos do outro e, ao mesmo tempo, como faríamos parte deles? O que perguntar? Como perguntar? De que lugar perguntar? Essas inquietações nos levaram a uma “arqueologia” do conceito de linguagem no pensamento construcionista social. A teorização acerca da linguagem e sua articulação com

a clínica, sobretudo em autores como H. Goolishian, K. Gergen e B. Pearce, apoiavam-se na concepção de linguagem vinda do Pragmatismo Lingüístico* e do segundo Wittgenstein.** Tínhamos pela frente um longo mergulho nos pragmatistas e o fizemos. E, ao fazê-lo, percebemos o quanto isto poderia contribuir para deslindar os mecanismos de operação dessa linguagem constitutiva, isto é, seus efeitos na escuta terapêutica. Tratava-se de reconhecer e nomear, na conversação terapêutica, que formas de vida ou jogos de linguagem a família e/ou o casal vivem e, para quais jogos de linguagem o terapeuta é sempre convidado: se deveríamos aceitá-los ou recusá-los e como nossa escuta seria afetada por eles. Tratava-se também de reconhecer como, quando e para quê aceitar ou recusar esses convites. O que propomos neste artigo, portanto, é uma articulação entre os conceitos de jogos de linguagem (Wittgenstein), e do efeito performativo da linguagem (Austin), com a clínica do Construcionismo Social, no contexto da Interlocução Clínica, denominação que preferimos para os encontros usualmente nomeados como Supervisão3. Nossa preocupação é, enfim, entender o enlace entre o efeito performativo do discurso do cliente e a rede lingüística, consciente e inconsciente, de crenças e desejos (Rorty), que é o terapeuta.

O contexto teórico de nossos interlocutores

A concepção do construcionismo social da linguagem como constitutiva e criadora de mundos faz parte de um contexto muito mais amplo, fruto da

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* As teorias pragmáticas da linguagem têm um extenso e longo percurso na história da filosofia americana. Aqui seguiremos a tradição iniciada por Wittgenstein e Austin e desenvolvida pelos filósofos contemporâneos Donald Davdson e Richard Rorty. O pragmatismo lingüístico afirma que a linguagem é um conjunto de habilidades naturais formadas por sons e marcas articulados com sentido, intenção e força performativa (...) Com a linguagem somos capazes de criar ou inventar coisas e eventos novos e imprevisíveis, inclusive de reinventar-nos. Ver Costa, 19951. ** Referimo-nos aqui à obra Investigações Filosóficas. Ludwig Wittgenstein (18891951) é considerado um dos fundadores da Filosofia Analítica. O pensamento de Wittgenstein é, em geral, dividido em duas fases: a primeira corresponde ao Tractatus Logico-Philosophicus, única obra que publicou em vida e que se insere na tradição da análise lógica da linguagem, inaugurada por Frege e Russel e desenvolvida pelo Círculo de Viena. A segunda fase, conhecida como a do “segundo Wittgenstein”, cuja obra mais importante é Investigações Filosóficas (1954), referência decisiva no movimento filosófico conhecido como “Virada Lingüística”. Fazem parte desta fase as Observações Filosóficas, Os Cadernos Azul e Marrom (1933-1935), Conferências e Discussões sobre Estética, Psicologia e Crença Religiosa (livro constituído por uma série de notas reunidas por alguns de seus amigos a partir de conversas ocasionais e conversas de aula). Ver Pensadores2.

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* Para essa discussão ver, entre outros, Rorty4, Ghiraldelli5, e Iñiguez6. ** Não temos a pretensão de abordar a complexidade dessas noções. Limitar-nos-emos a destacar alguns aspectos que, para os propósitos deste artigo, nos pareceram os mais úteis. Para uma discussão mais aprofundada ver: Rorty7e8, Ghiraldelli 5,9,10, Costa1,11, Bezerra12.

chamada “Virada Lingüística” que demarca a divisão entre a filosofia moderna e a contemporânea, designando o predomínio da linguagem sobre o pensamento como um dos objetos da investigação filosófica. Segundo Rorty4: “virada lingüística pode ser entendida como o ponto de vista segundo o qual os problemas filosóficos podem ser resolvidos (ou dissolvidos) reformando, ou melhor, compreendendo a linguagem que usamos no presente” (p.50). Não pretendemos, aqui, olhar esta questão de uma forma mais profunda, com todas as implicações que ela trouxe para o pensamento contempo­ râneo*. Para nossos propósitos importa apenas reafirmar que, com esse movimento, abandona-se a idéia do mental como janela para o mundo e a do sujeito da consciência como aquele capaz de produzir a representação verdadeira do real. Mergulha-se no mundo das descrições, das crenças compartilhadas por comunidades lingüísticas específicas, na multiplicidade dos vocabulários e na idéia da linguagem, não mais como a representação do mundo, mas como criadora de mundos possibilitando, portanto, descrever e redescrever a nós mesmos. A modificação operada sobre o pensamento ocidental pela “virada lin­güística” proposta por Wittgenstein trouxe implicações substanciais, entre as quais destacamos: o interesse crescente pelo estudo da linguagem o abandono da orientação epistemológica como ponto de partida das teorias do conhecimento e da ação. a reconsideração dos problemas da verdade (do objeto) e da identidade do sujeito. A verdade passa a estar sujeita a condições variáveis de g

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realização, dependente dos “jogos de linguagem” realizados. a não redução do sujeito a identidades previamente estabelecidas, mas sim à crença de que suas identidades são construídas na relação dialógica e discursiva.

Enfim, poderíamos dizer que o giro lingüístico dissolveu a idéia do sujeito como uno, transparente, racional, caminhando para uma idéia de subjetividade sempre e só sob descrição e, portanto, culturalmente demarcada. Destacaremos, neste artigo, a articulação do nosso material clínico com os seguintes conceitos da tradição pragmatista**: 1. Os jogos de linguagem, de Wittgenstein. 2. O efeito performativo da linguagem – atos-de-fala, de Austin. 3. O conceito de subjetividade, de Rorty.

Os jogos de linguagem de Wittgenstein e os atos-de-fala de Austin

A linguagem, como afirma Wittgenstein, é uma habilidade natural, aprimorada através da própria evolução humana, na qual o homem utiliza marcas e sons articulados com significado, na forma de palavras e sentenças. Instado, o homem reage lingüisticamente. É uma habilidade que se diversifica para atender a diferentes e ilimitados usos e demandas. O conceito básico sobre o qual se apóia a teoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein, é o de que, ao utilizar a linguagem, o ser humano está desempenhado jogos de palavras.


As palavras são entendidas como ferramentas que, em diferentes situa­ ções, executam diferentes funções. Em razão disso, elas não podem ser consideradas como produtos da mente individual do falante e, muito menos, como uma representação da realidade. Essas palavras, como afirma o autor2, só podem ser entendidas dentro do seu contexto de atividades, uma vez que é dentro desse contexto que o uso da linguagem se desenvolve. Isto significa dizer que não apenas as palavras, mas também as circunstâncias nas quais elas ocorrem, constituem os “jogos de linguagem” ou “formas de vida”. O termo “jogo de linguagem” deve aqui salientar que o falar da linguagem é uma parte de uma atividade ou de uma forma de vida. Imagine a multiplicidade dos jogos de linguagem por meio destes exemplos e outros: comandar, e agir segundo comandos – Descrever um objeto conforme a aparência ou conforme medidas – Produzir um objeto segundo uma descrição (desenho) – Relatar um acontecimento – Conjeturar sobre o acontecimento – Expor uma hipótese e prová-la – Apresentar os resultados de um experimento por meio de tabelas e diagramas – Inventar uma história; ler – Representar teatro – Cantar uma cantiga de roda – Resolver enigmas – Fazer uma anedota; contar – Resolver um exemplo de cálculo aplicado – Traduzir de uma língua para outra – Pedir, agradecer, maldizer, saudar, orar. (p. 35 e 36)

Portanto, para Wittgenstein2 não existe a essência do que seja a linguagem, somente infinitos jogos de linguagem, cada um com regras e objetivos próprios. A expressão jogos

de linguagem advém das semelhanças que existem entre os jogos e a linguagem, ou seja, não existem elementos comuns nas suas variadas expressões. Assim, ficariam essas práticas sociais isoladas umas das outras? A noção de “semelhança de família” responde: Não posso caracterizar melhor essas semelhanças do que com a expressão “semelhanças de família”; pois assim se envolvem e se cruzam as diferentes semelhanças que existem entre os membros de uma família: estatura, traços fisionômicos, cor dos olhos, o andar, o temperamento etc., etc. – E digo: os “jogos” formam uma família. (p. 52 )

Na obra Investigações Filosóficas, o autor propõe que o que dará sentido a um enunciado não será sua vinculação a um referente, mas sim seu uso na linguagem, sua função e seu propósito. Não se pergunta mais: “O que é?” e sim, “Como se usa?”. Portanto, os diferentes usos de uma palavra estão diretamente ligados aos jogos de linguagem e não existem de forma abstrata. O que marca, em última instância, a distinção de usos da linguagem são os distintos contextos em que se desenvolvem. Não se pode, assim, falar em uso sem vinculá-lo às regras específicas de um determinado jogo de linguagem, uma vez que é aí que se forma o significado. A idéia de forma de vida e contexto como elementos fundamentais da linguagem e da significação servem para assinalar bem o caráter pragmático da segunda teoria da linguagem de Wittgenstein. Seguir uma regra, falar uma língua e viver de uma determinada forma estão necessariamente intrincados.13

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* John L. Austin (19111950) lecionou durante toda a vida em Oxford e se tornou um dos principais representantes da Filosofia Analítica. Sua obra mais conhecida é How to do things with words (Como fazer coisas com as palavras)14. ** Richard Rorty (1931) filósofo, discípulo dos primeiros pragmatistas americanos como John Dewey, William James e Charles Peirce. Nasceu em N.Y., USA, professor da Universidade de Stanford.

Austin*, um dos mais significativos filósofos da Escola de Oxford, elaborou a teoria dos atos-de-fala. Segundo essa escola, a linguagem não é apenas um instrumento de representação do mundo, mas sim, um instrumento para “fazer coisas”. Afirma que a linguagem não se limita a “fazer pensamento”, ela também “produz realidades”. Isto é, o efeito performativo da linguagem é inerente a essa concepção. Apoiado nesta crença do “fazer”, Austin postula que os enunciados são, “atos-de-fala”, uma vez que criam um estado de coisas que não existiria fora do contexto da enunciação. Para ele, a ação de falar, por si própria, não representaria nem informaria nada, assim como não poderia ser posta no lugar de nada. Ela é, estritamente, o próprio atode-fala. A linguagem, portanto, seria o conjunto dos atos-de-fala ou, reproduzindo a expressão do próprio autor, a linguagem seria o conjunto “daquilo que fazemos quando falamos”. Austin defende sua crença de que a análise da linguagem tem que ser feita a partir do contexto em que os enunciados são produzidos. Dentro de sua teoria, busca-se conhecer em qual efeito o agente de um determinado proferimento está interessado, ou aspira obter em seu ouvinte. E, a partir daí, analisar não se o enunciado é verdadeiro ou não, e sim, se ele é eficaz ou ineficaz, isto é, suas condições de sucesso. Portanto, para Austin, a linguagem é compreendida como produtora de efeitos e não como meio de transporte de sentido; como um complexo que envolve elementos do contexto, convenções de uso e intenções dos falantes, realizando-se não como uma teoria do significado, mas como uma teoria da ação.

A concepção da linguagem como efeito e como ação e não como representação, liderada por Austin, parece ter se estendido à concepção representacionista do conhecimento, assim como a seus critérios de “verdade”. Isto produziu uma verdadeira revitalização do pragmatismo, gerando uma filosofia neopragmática, adotada por filósofos da importância de Richard Rorty **.

O conceito de subjetividade de Richard Rorty

Segundo Rorty, apud Costa11, “sujeito” é uma rede linguística de crenças e desejos e, portanto, não se refere a nada fixo ou idêntico a si mesmo, não possui uma materialidade que possa ser pesada, medida ou comparada. Nesta concepção, o “eu “seria tão somente um ser de linguagem, um conjunto de crenças sobre si mesmo, um conjunto de definições, de interpretações, de imagens, de versões criadas por ele próprio e pelos outros sobre o quê, supostamente, seria sua natureza. “...‘não pergunte o que realmente sou’; ‘qual meu verdadeiro eu’;‘o que de essencial existe em mim’. Pergunte ‘como posso redescrever-me, de maneira a viver uma vida melhor ou mais bela’.” (p. 21) Apesar disso, Freire Costa1 adverte, não se pode, simplesmente, extinguir o sujeito, uma vez que continuamos a utilizar a palavra, com toda a gama de significados implicadas em sua utilização. O que é possível é uma “redescrição” e uma “reinvenção” do que é o sujeito, a partir de escolhas éticas e morais. Encarar o sujeito como causa interior das apreciações e das descrições de suas próprias ações lingüísticas seria encará-lo como o “sujeito


moral”, capaz de optar entre alternativas conflitantes, discernir entre o certo e o errado, o bem e o mal ou, ainda, escolher agir de acordo com seu próprio sistema de crenças. Por outro lado, para que se possa descrever o sujeito, é necessário que se utilize um vocabulário psicológico, intencional ou mental, uma vez que será preciso que se fale em crenças, em medos, em expectativas, em desejos, em ideais, em amor, em ódio, em escrúpulos, em ousadia, em todos esses sentimentos que, por sua vez, só são experimentados e constituídos através da linguagem, através da interação, da cultura e da história. Portanto, o que se afirma como o conteúdo do psiquismo dependerá estritamente do vocabulário que for utilizado. (p.52)

Como afirma Freire Costa , aceitar a concepção de Rorty é o mesmo que aceitar que qualquer idéia que tenhamos de nós mesmos só pode ser linguisticamente construída. É aceitar também que toda linguagem é uma expressão do tempo e da forma de vida a que pertence e, ao mesmo tempo, traz em si a marca de ambos. Esclarecendo a noção de subjetividade como “rede lingüística de crenças e desejos” seguimos com Davidson15, em sua compreensão dos termos que compõem a rede. Para ele o desejo é a intencionalidade da ação. As crenças são os passos intermediários em direção à finalidade visada, ou seja, o desejo. E, “crenças são regras para a ação e, aquelas crenças que funcionam como causas, mas não como razões, chamamos de causas inconscientes”.* Nas palavras de Rorty16: 11

Ele (Davidson) identifica (não explicitamente, mas se a leitura que faço dele

está correta, tacitamente) ‘ser uma pessoa’ com ‘ser um conjunto coerente e plausível de crenças e desejos’. Então ele destaca que a força de dizer que o ser humano às vezes se comporta irracionalmente está em que às vezes exibe um comportamento que não pode ser explicado por referência a um único conjunto de crenças e desejos. Finalmente ele conclui que a razão de ser da ‘divisão’ do self entre consciente e inconsciente é a de que esse último pode ser visto como um conjunto alternativo, inconsistente com o conjunto familiar que nós identificamos com a consciência, ainda que suficientemente coerente internamente (à rede) para contar como uma pessoa. (p.197)

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O contexto da interlocução clínica

A proposta de articulação desses conceitos com o trabalho de Interlocução Clínica foi desenvolvida durante o curso Formação continuada**, ministrado por nós, no Setor de Terapia de Família e Casal do Instituto FAMILIAE. Aprendemos com Wittgenstein que estamos, todo o tempo, imersos em jogos de linguagem e que não podemos não estar. O que acreditamos é que, ao reconhecer e nomear os jogos que jogamos e como os jogamos, criamos uma ferramenta clínica que amplia a escuta terapêutica. Assim, o jogo de linguagem que propusemos aos alunos/terapeutas foi: Ouça e identifique que afetos são produzidos em você pelo discurso do outro. A partir daí, identifique e nomeie a quê se sente convidado; como cada um aceita ou recusa os convites a determinados jogos de linguagem; como cada um, neste contexto,

* Alertamos o leitor que esta discussão é bastante ampla e complexa. Adotamos aqui um uso descritivo da noção de inconsciente a partir de uma redescrição pragmática do conceito freudiano e da leitura de Davidson feita por Richard Rorty e que, não caberia estender aqui, frente aos propósitos deste artigo. ** Agradecemos a generosidade de nossos alunos do Curso de Formação Continuada, turma 2005/2006, por autorizar a utilização deste material neste artigo.

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vai “jogando o jogo” e como o terapeuta é afetado pelos convites feitos na sessão.

Iniciamos com um aluno/terapeuta trazendo uma descrição de um caso, ou parte de um caso, com uma questão, que funciona como disparador da interlocução clínica que se faz a partir do jogo proposto, ou seja, como cada um dos presentes é afetado pelo relato do colega. Contexto: o atendimento foi realizado em uma instituição assistencial de uma comunidade religiosa. A família era composta por mãe e por quatro filhos de dois relacionamentos anteriores. A mais velha, 15 anos, não participou do processo por estar fora do país em um programa da mesma instituição. O atendimento foi feito semanalmente com mãe e filhos. A situação descrita como problema era a relação da mãe com o único filho homem, de 13 anos – era agressivo e a confrontava em todas as situações; a menina de 12 anos, segundo relato, “segurava toda a estrutura” e a menina menor passava o dia inteiro na escola, em um programa oferecido pela mesma instituição.

* Apresentamos trechos editados de alguns relatos feitos a partir da transcrição da gravação, em vídeo, da aula.

Aluna/Terapeuta*A: Eu vou trazer, a partir da última sessão, que foi o fim da terapia e foi muito difícil para mim. Eu sempre a achei (a mãe) com pouca disponibilidade no processo, então eu sempre senti que ela estava fazendo terapia para prestar contas, porque amanhã a instituição poderia falar: “eu vou cortar seus benefícios”. A história dela mobiliza uma coisa de você querer dar tudo e mais um pouco, porque é esse o lugar que ela vem ocupando. É o mundo que deve a ela. E ela sempre falava que odiava pedir, porque ela não pedia: “olha vocês precisam me dar”. Com os filhos, se não tinha quem buscasse, ela

falava: “se vira, meu! Se vira!”. Então e eu tive que cuidar de mim, porque teve horas que eu não consegui cuidar de não falar: “Como, se vira? Quando você fala isso você quer o quê? O que você espera?”. Ela falava: “olha, por mim ele não iria, não tinha como ir, então foi, agora se vira para voltar”. O que eu estou querendo colocar, que era muito difícil para mim, porque era uma mãe...era uma madrasta com os filhos...A relação com o segundo filho é que era vista como problema. Então, naquele momento, o pedido dela era mandar o filho embora, que o filho fosse morar com o pai.... Ah! e ela falava coisas do tipo: “olha o pessoal vai me dar cesta básica, eles acham que tenho que estar esperando receber cesta básica, eu já falei, quer dar cesta básica vai e põe lá e deixa na minha casa, eu não vou ficar esperando e não vou buscar cesta básica, você quer dar, dá, não quer dar, não dá. Se não quer dar, não dá. Se quer dar é do meu jeito”. As coisas melhoraram com o filho, ele se tornou menos enfrentador e menos agressivo e aí ela falou isso de terminar a terapia e falou que ajudou. Ah! Me incomodou demais! Aí ela falou: “quero parar a terapia e eu preciso ir rápido porque o ônibus que eu pego é muito cheio e depois é super complicado”... Quer dizer: “estou dizendo que estou terminando a terapia e por favor, seja rápida para eu ir embora”. E aquilo para mim foi forte. Uma hora eu não agüentei e falei para ela...Falei que eu a via falando uma coisa, mas que eu não sentia isso, eu não sentia que a terapia ajudou, eu falei da questão de terminar rápido, que eu não senti um cuidado comigo, com as crianças, com a relação, e coloquei isso... A gente não chegou muito a..., assim, não chegou numa coisa:


“a terapia acabou porque eu estou atendida. A terapia acabou porque o dinheiro acabou e porque não dá.” Eu falei que achava que toda vez que alguém a convidava para estar junto, ela saía fora. Falei isso também.

Profs.: E o que nesse trecho que você trouxe te fez identificar esse convite do julgamento? O que na tua fala te fez reconhecer o julgamento? Tem alguma parte do que você falou? É uma sensação do todo? Como é?

Profs. (a todos os alunos): Ao escutar o relato da colega, pergunte-se: Que efeitos essa escuta produz em mim? Como o hoje, o aqui e o agora fazem parte desses efeitos? Como nomeio o que impacta a minha escuta: uma palavra, o conteúdo, a forma, uma descontinuidade no discurso? O que eu suponho que o outro quer de mim? Como nomeio esse convite? Como eu faço parte disso? Aceito ou não?

Aluna/terapeuta A: Porque eu falei, na última sessão, o que ela causa em mim quando sai assim da relação. E, julguei-a como madrasta e não como mãe e, para mim, é difícil acolher madrasta, era isso que me incomodava. Eu achava que tinha que jogar o jogo do acolhimento e joguei o jogo do julgamento.

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Após esse caminho: Identifico algo diferente na minha escuta ou na maneira como entendo o convite? Como eu sigo na conversa a partir daí? g

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Profs.: Respondam por escrito e, no relato, permaneçam fiéis a essa primeira descrição. Percorrer este processo, através de perguntas, permite discriminar que lugar ocupamos frente o discurso do outro e quando aceitamos ou recusamos um convite a um determinado jogo de linguagem, a uma determinada forma de vida. Aluna/terapeuta A: Por que escolhi esse trecho e não outro? Eu saí muito mal com a questão do não acolhimento. Eu senti que eu aceitei o convite de julgar muito a mãe.

Profs. Ao escolher esse recorte e a maneira como o relatou que convites você supõe que fez aqui e agora? Aluna/terapeuta A: Aqui foi forte... Eu me vi depois que eu falei... Quando eu olhei essa resposta me vi muito identificada com a mãe, muito. Assim: “olha, vocês podem julgar, mas eu quero que vocês entendam que não teve outro jeito, fiz merda, mas não tinha outro jeito”. Então me vi muito identificada com ela, porque ela também é assim: “o que você quer que eu faça?” Fui pensando na pergunta e pensei: “ah! Olha, como eu falo...” Aí falei: “meu, meu, não é isso, eu estava me justificando para vocês porque eu fiz isso”. E isso é muito a mãe, de justificar o contexto: “não tenho grana, eu vivo numa merda, não tem jeito”. A identificação dos afetos e a nomeação dos jogos permitem ao terapeuta, portanto, saber como ele faz parte do discurso do cliente, de que lugar ele fala e de quem fala. Nesse sentido, como diz Rorty7 (p. 23): “A verdade é feita e não descoberta”.

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Aluna terapeuta B: Bom, a palavra que me chamou atenção e que ficou na minha cabeça foi madrasta. E a descrição da colega traz a madrasta o tempo inteiro. E eu fiquei pensando algumas coisas, eu acho que tem pessoas que chegam para a gente, no consultório, pelo avesso. E são casos muito difíceis porque são pessoas que se colocam pelo seu pior ângulo. Frustram porque a gente investe, investe e não desmonta esse jogo. E quando veio essa palavra madrasta, é uma coisa que eu faço comigo, eu me pergunto, aonde é que está a mãe? Porque se vem a madrasta para a terapia eu suponho que tem que ter a mãe. Profs.: Como você nomearia esse jogo que a mãe propõe? Que nome você daria para esse jogo, da maneira que você escuta esse convite que ela faz? Aluna/terapeuta B: Eu acho que o convite que ela faz é o convite da não mudança: “não me mude, não tem jeito”. Há! Isto me desafia, no processo de terapia isto me desafia. Não é possível que não tenha jeito. Profs.: Mas quando você diz assim: a gente investe, investe, que jogo você acha que é esse, que você viu a colega jogando e que talvez você jogasse? Aluna/terapeuta B: Eu acho que fica uma coisa polarizada, porque ela (a cliente) fica como madrasta e a gente fica como mãe, né? E a gente fica paralisada nesse papel de mãe. Eu me senti assim, com vontade de tomar conta de tudo, de mudá-la para proteger as crianças que estão ali, eu me senti assim. Profs.: E, ao aceitar esse convite, de mostrar o direito, estou usando as

tuas palavras, de quem é o direito e de quem é o avesso? Como você percebe o teu avesso? A tua madrasta? Aluna/Terapeuta B: Duríssimo... Porque eu tenho que virar madrasta. A gente ser boazinha, acolhedora, compreensiva, mãe, é um lugar mais confortável...O lugar de madrasta tem preguinho que espeta a gente, mas acho que é a única saída aqui. Para o terapeuta, poder incluir outras formas de estar no mundo, ou seja, construir um mundo delimitado pelos vocabulários utilizados nas descrições, no caso, ir para o mundo constituído nas “descrições de madrasta”, e recusar o convite para “cuidar maternalmente” pode, nesse contexto, ser mais útil para ele e para a família. Quando pensamos no poder performativo da linguagem, temos que considerá-lo, então, como a possibilidade de alterar estados anteriores do sujeito, permitindo ou favorecendo a possibilidade de alterar a rede lingüística de crenças e desejos que é o sujeito, levando-o a se redescrever. Aluna/Terapeuta C: Eu fui levada a pensar assim no trabalho voluntário e como é delicado esse trabalho voluntário do que andei escutando, essa mãe não reconhece e não qualifica isso que ela recebe e aí eu acho, eu fiquei pensando também, quando a gente entra nesse lugar voluntário onde a gente não cobra, as pessoas são infinitamente mais pobres, aspas, do que nós. O que a gente espera dessas pessoas? A gente espera que elas falem o tempo inteiro: “Muito obrigado! Que bárbaro! Que lindo! Vou buscar sim! Ai que ótimo que você me deu...”. Mas o que ela estaria precisando exatamente? Com isso, que efeitos a gente também cau-


sa no outro com a nossa oferta? Sabe, quando a gente oferece as coisas dessa forma, sem o compromisso do outro, a gente oferece e dá de uma forma até maravilhosa, mas tão generosa..., que efeito a gente provoca no outro? Profs.: E a partir de todas as conexões, como você continuaria? Como você nomearia isso? Aluna/Terapeuta C: Eu acho que eu nomearia esse jogo, é um pouco exagerado, mas foi o que me ocorreu, o “círculo vicioso do voluntariado”, mas acho que seria um jogo um pouco unilateral, acaba sendo um pouco unilateral. Mas não sinto que é porque a mãe é muito madrasta ou porque a colega dá demais. Eu sinto que é um pouco provocado por uma forma de jogar, um contexto ali que está dado.

O importante aqui é salientar que nomear o jogo é definir o contexto e o contexto é definido pelas regras do jogo de linguagem. Qual é o jogo da terapia num contexto privado e qual o jogo da terapia num contexto de voluntariado? Primeiro tem a questão do contexto amplo: uma “mãe” que é a comunidade religiosa, o “colo” da comunidade religiosa. Tem um “colo” já posto, já feito. Em que lugar eu entro? Como é entrar num jogo onde se faz parte de uma “cesta básica” que não fomos nós (parceiros do jogo) que construímos? Onde eu entro nesta “cesta básica” que já existe: discrimino, nomeio e confirmo esse jogo com os parceiros? Ou, jogo o jogo da terapia no contexto privado e, portanto, jogo outro jogo. Assim, o sem sentido, ou mesmo a incompreensão, não decorre de mudar as regras do jogo, mas de aplicar as regras de um jogo em outro. Marza-

gão17 convida-nos a pensar que as interlocuções, num jogo de linguagem, se constroem a partir de três momentos: o primeiro, quando alguém fala; o segundo, quando alguém responde correspondendo ao convite para um determinado jogo de linguagem; finalmente, o terceiro proferimento que atesta que houve um acordo entre os interlocutores que têm conhecimento, que se comunicam e que sabem qual é o jogo no qual estão envolvidos.

Considerações finais

Este é o contexto do pragmatismo: a construção do sentido se dá a partir da maneira como cada um é afetado pelo discurso do outro, isto é, do efeito performativo da linguagem que constrói mundos variados: o da “madrasta”, o do “acolhimento”, o do “julgamento”, o dos “preguinhos”, o do “direito/avesso”, o do “círculo vicioso do assistencialismo”, o “do não tem jeito”, o “do foi o que deu” ou o “da cesta básica”. Como cada ato-de-fala, configura uma forma de estar no mundo, uma forma de estar terapeuta. Assim, entender como faço parte de cada jogo de linguagem promove uma ampliação na escuta, permite ao terapeuta aceitar ou recusar convites a determinados jogos de linguagem. Como vimos pelos excertos clínicos mostrados, essa é uma condição que se coloca a posteriori demarcando, portanto, a necessidade e a importância da interlocução clínica como uma ferramenta que permite a articulação dessa teoria com esse percurso de perguntas. Sugerimos, então, que estar em jogos de linguagem é poder admitir que você será afetado pelo discurso do outro também de uma maneira que talvez

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não saiba. Acreditar que somos uma rede lingüística de crenças e desejos é acreditar que como rede, às vezes sabemos as causas que nos movem, ou seja “causas que são razões” e, às vezes, não. Não acreditamos na existência de uma verdade sobre o cliente ou em descrições que privilegiem a fidelidade a crenças apriorísticas. Como Rorty, pautadas pela ética do pragmatismo, buscamos a co-construção da melhor descrição em cada jogo de linguagem para redescrever tanto o vivido quanto os critérios de satisfação no processo terapêutico. Finalizando este artigo, propomos aos leitores a mesma pergunta que fazemos em nosso curso: a partir do que leu e pensou e, da maneira como você foi afetado por esse texto, como você seguiria essa conversa conosco? Que convites aceita ou recusa? Aguardamos...

Referências

COSTA, J. F. A face e o verso. São Paulo: Escuta, 1995. 2 WITTGENSTEIN, L. In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999. 3 CRUZ, H.; MOREIRA, E.; PEREIRA, N.; RIGHETTI, R. Supervisão como interlocução clínica. In: Associação Brasileira de Terapia Familiar – ABRATEF – V Encontro de Formadores. Supervisão: coerência e critérios. Rio de Janeiro: 2002. 4 RORTY, R. El giro lingüístico. Barcelona: Paidós, 1990. 5 GHIRALDELLI Jr., P. Neopragmatismo, Escola de Frankfurt e marxis1

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artigo

Ressonâncias da prática: a poética social em um grupo de atendimento a famílias em situação de violência* Resonances from practice: social poetics in a group for families in a violence situation

Rosana Rapizo

Diretora do Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro

Resumo: O presente artigo pretende apontar os pontos principais da experiência de atendimento a famílias em situação de violência, enfatizando as alternativas que foram criadas para o trabalho com tais famílias dentro de uma instituição (o Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro). O trabalho consta de uma reflexão eminentemente prática com a participação dos terapeutas e famílias envolvidos nos atendimentos. Para guiar esta reflexão a autora utilizou a metodologia chamada por John Shotter de “poética social”.

ABSTRACT: This article intends to point out the main aspects of the experience of therapy with families that deal with violence, emphasizing the alternatives that were created for the work in an institution (Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro). The paper brings an eminently practical reflection with the participation of therapists and families involved in the clinic. To guide this reflection the author used the methodology called by John Shotter “social poetics”.

Palavras-chave: construcionismo social, poética social, violência intrafamiliar, terapia de família.

Key words: social constructionism, social poetics, intrafamiliar violence, family therapy.

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* Uma versão deste trabalho foi apresentada no VII Congresso Brasileiro de Terapia Familiar, São Paulo, 2006. ** Gostaria de agradecer especialmente à amiga Carla Guanaes pela precisa e carinhosa revisão teórica e metodológica deste artigo.

o iniciar, gostaria de agradecer às famílias que participaram deste trabalho, às minhas colegas e participantes das duas equipes que coordeno, que acolheram este projeto com entusiasmo e que me alimentaram com seus depoimentos, conversas e críticas **. O atendimento clínico a famílias em situação de violência coloca desafios particulares às equipes e terapeutas. Depois de quatro anos coordenando grupos de atendimento a estas famílias, o presente artigo pretende apontar os pontos principais desta experiência, enfatizando as alternativas que foram criadas na clínica com tais famílias dentro de uma instituição (o Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro). O trabalho consta de uma reflexão eminentemente prática com a participação dos terapeutas e famílias envolvidas nos atendimentos. Pretendo adotar uma metodologia mais próxima dos métodos práticos de investigação, definidos por Shotter e Katz1, inspirados em Wittgenstein. O que é especial nestes métodos é que eles não trabalham a partir de conceitos abstratos. Eles trabalham focalizando em eventos que ocorrem nas situações que nos rodeiam, das quais participamos ou nas quais estamos envolvidos. Segundo Shotter e Katz1 é uma forma relacional-responsiva de entendimento, que não 35


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* Alguns autores foram particularmente importantes como Marcelo Pakman e Maria Cristina Ravazzola.

tem a ver com o que algo “é”, mas com um entendimento prático da mudança, das conexões momento a momento e das relações entre tais eventos e seu meio conforme eles se desdobram. Para isto precisamos nos afastar de abordagens mais baseadas na teoria tradicional e mover-nos para aquelas mais enraizadas nas práticas das pessoas. Não é uma questão de obter uma explicação, ou de descobrir padrões ocultos nas coisas, mas de como, a partir do que nos toca na experiência, poder refletir e construir novos caminhos. A pergunta é menos: como posso explicar o que acontece? E mais: como, a partir daqui, continuar coordenando nossas ações? Meu interesse neste trabalho, portanto, é mais em atrair a atenção para tais pontos do fluxo da conversação que possam trazer novidades, ao invés de explicar o que aconteceu ou conceituar sobre as famílias ou o trabalho com as famílias em situação de violência. Busquei um entendimento baseado em nosso lidar prático com nossas circunstâncias. Vou contar um pouco de nossa história: há quatro anos iniciei, com algumas alunas, dois grupos de atendimento a famílias em situação de violência. Havia uma demanda crescente na clínica social e eu havia trabalhado durante algum tempo em um projeto no Instituto Noos que atendia em grupos homens e mulheres em situação de violência. Havia também participado de algumas intervenções comunitárias para a prevenção de violência e ministrado alguns workshops. Pensava em utilizar estas experiências para a clínica de famílias. Iniciamos o trabalho com o estudo de textos* e algumas importantes conversas sobre nossas relações com as situações de violência: histórias,

experiências, preconceitos, medos etc. Estas histórias e conversas nos foram construindo como equipe e criando terrenos comuns de significados sobre os quais podíamos trabalhar. Começamos a atender as famílias que chegavam à clínica social do Instituto no formato que adotamos habitualmente, ou seja: duas terapeutas trabalham diretamente com a família, o restante da equipe juntamente com o supervisor, acompanham a sessão através de circuito de TV e participam da equipe reflexiva. Segundo as componentes de um dos grupos, em trabalho apresentado na Jornada da ATF-RJ em 20052: [Nesse sentido], as nossas próprias reflexões, nossas possibilidade de falar “em voz alta” sobre nossos preconceitos e limitações nos fizeram pensar que já estávamos prontas para os atendimentos. Além disso, criando um ambiente propício para que cada uma de nós se sentisse acolhida com nossos sentimentos e limitações, acreditávamos que poderíamos oferecer este mesmo ambiente para as famílias.

Começamos a atender e já nos surpreendemos. A experiência clínica e a bibliografia criaram em nós a expectativa de atender casais com violência, especialmente com componentes de gênero. Mas, começamos a receber situações muito diversas: filhos batendo em mães e pais, mães em filhos, violência entre irmãos. Atualmente já passaram pelos dois grupos aproximadamente 30 famílias com as mais diversas temáticas em relação à violência. O que se mantém, independente das situações, é nossa visão de que a violência não é um episódio fortuito na vida familiar ou mesmo uma soma de


episódios, mas um processo complexo de formas de estar em relação que uma família desenvolve, coerente com a cultura em que vivemos e na qual, de diversas maneiras, está incluída a família. Fazem parte dos ingredientes que culminam em episódios violentos muitas formas de relação que não necessariamente estariam descritas, se isoladas, como violentas, como certas formas de falar e de dúvidas a respeito de limites entre eu e o outro. Voltando então à metodologia deste trabalho: minha idéia é tentar captar a singularidade e a novidade dos momentos conforme eles se desdobram diante de nossos olhos. O objetivo é a possibilidade de construir novas relações entre nós.Tornando visíveis e disponíveis os recursos e fazendo novas conexões, projetamos novas formas de vida. Shotter e Katz1 chamam esta metodologia de poética social. Citando Wittgenstein: “olhando para aquilo que está bem diante de nossos olhos” e não vemos, passa no fluxo. A poética social, como metodologia de pesquisa, nos dá um conhecimento sobre nossos caminhos dentro de nossas práticas e nos torna capaz de ver as sutilezas e detalhes e, possivelmente, novos caminhos à frente que geralmente estão obscurecidos por regras e princípios de boa organização. Nos preocupamos com o que nos toca e o que podemos fazer para usar o que nos toca como recurso, ferramenta para seguir adiante. A idéia é uma avaliação apreciativa e uma elaboração de nossas práticas. Inspirada na metodologia de investigação de Wittgenstein, a poética social trabalha: Capturando, interrompendo, desestabilizando ou deconstruindo o fluxo espontâneo, não consciente da atividade e dando destaque a distinções

que nossas formas de linguagem facilmente passam por cima. Se pudermos propor às pessoas que prestem atenção ao fato de que podem imaginar, elas podem ver outras possibilidades para as circunstâncias, podem olhar de forma diferente. Selecionando imagens, metáforas, analogias etc. que também sugerem novas formas de falar que, não só nos orientam para distinções e relações não notadas, mas também sugerem novas conexões e relações com o restante de nossos procedimentos. Usando a comparação com outras formas possíveis de falar e conversar, chama a atenção para os fatos da linguagem através de similaridades e diferenças. Tendo em mente que nenhum destes métodos leva a um relato fixo e final do que algo realmente significa. A partir destas idéias e inspirada no trabalho de Arlene Katz e Shotter3, elaborei algumas perguntas que foram feitas a mim mesma, às componentes das duas equipes e a algumas famílias às quais ainda tínhamos acesso. Todas as famílias estavam em atendimento há mais de um ano. Para a equipe: O que no processo do nosso trabalho (atendimento, conversas sobre casos, conversas informais, estudo, supervisão) tocou, teve um impacto especial sobre você? Como você usa ou pode usar isso em sua vida profissional ou pessoal?

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Para as famílias: O que no processo do atendimento tocou você de uma forma especial? Bom ou ruim. Destaque um ou dois momentos. Como isso se desdobrou em sua g

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vida depois? Como você usou, se acha que usou, o que viveu neste momento em sua vida depois? Algumas famílias e terapeutas responderam por escrito e as perguntas também resultaram em conversas que nos ajudaram a avaliar e prosseguir em nossa prática. A partir da análise das respostas construí categorias que, acho, podem tornar mais claros para aqueles que não participaram direto do processo, os pontos mais relevantes ou mais freqüentes dos depoimentos. É importante notar que a construção de categorias é um processo de atribuição de significados no qual o pesquisador se envolve. As categorias não revelam significados ocultos nas respostas, revelam a forma pela qual o pesquisador selecionou as respostas. O que fez sentido para ele, o que chamou sua atenção. Desta forma a construção de categorias que fiz tem mais a ver com como as respostas que me chegaram, abriram para mim linhas de pensamento e novas conexões. Darei em cada categoria algum(ns) exemplo(s) das respostas às perguntas. Para as equipes e para mim os momentos escolhidos tinham a ver em sua maioria com as surpresas e dificuldades com que tínhamos que lidar e que nos impulsionavam para direções diferentes das quais tínhamos imaginado. Estes destaques tornaram-se (a partir de meus destaques também) fundamentais em termos de abertura para novos rumos de ação. Os trechos entre aspas são citações literais de depoimentos. A organização das respostas procurou gerar algumas contribuições específicas para os terapeutas que atuam nesta área: 1) contribuições referentes

à construção do contexto terapêutico; 2) preparação do terapeuta e do seu lugar de escuta e reflexão; 3) à centralidade do trabalho em equipe; e, por fim, 4) à compreensão da relação de ajuda, a partir do diálogo com os sentidos produzidos pelos clientes. A seguir relaciono as categorias criadas a partir das respostas da equipe:

A organização da consulta Ensaiando maneiras de estabelecer o vínculo com cada família: em uma das primeiras famílias que atendemos, em um dos grupos, não conseguíamos realizar o contrato que, habitualmente, é feito na instituição. A cada vez, algo diferente acontecia que nos impedia de fazê-lo. Os diálogos entre mim e a terapeuta de campo de uma das primeiras famílias que atendemos sobre isto nos fizeram aprender, enquanto equipe, logo no início do trabalho, o valor da flexibilidade e outros caminhos para criar e manter o vínculo com as famílias. Esta idéia nos acompanha até hoje. Qual a melhor maneira de estabelecermos um vínculo com esta família, de ajudarmos para que ela venha às consultas? Algumas das regras que funcionam bem com as famílias em geral na nossa clínica social, como o estabelecimento de um contrato na primeira consulta, não funcionam para as famílias que vêm ao nosso grupo. Organização conjunta de cada encontro com flexibilidade em relação aos formatos: em vários momentos fomos levados a repensar a organização das consultas para as famílias. Por muitos motivos distintos, as famílias que vivem em situação de violência nos


desafiavam a criar novas formas de organizar conjuntamente os atendimentos. Fatores como pessoas da família que não podem (ou não querem) estar todas juntas, não conseguem cumprir nossas metas em termos de horários, freqüência ou duração das consultas, situações de risco etc. demandavam uma organização diferente da equipe, levando em conta que não somos e não pretendemos ser um serviço de urgência, mas precisávamos aprender a acompanhar estas famílias sendo suficientemente diferentes para fazer diferença e, ao mesmo tempo, não ser diferente demais como para não poder ajudar. Em nossas conversas fomos aprendendo a desenvolver novos métodos de nos relacionarmos com as famílias, desde antes de chegarem à consulta. Procuramos falar com todos os membros da família por telefone antes da consulta e saber quais as configurações de encontro são possíveis para cada um. Procuramos organizar um primeiro encontro em que cada membro da família se sinta responsável e participando da organização. Atenção diferenciada a questões de organização temporal e espacial da consulta: em outro trabalho que escrevi sobre o tema4, já apontava nossa observação de que as famílias em situação de violência vivem um contexto em que é freqüente a desorganização temporal e espacial. O aprendizado de lidar com estas diferenças foi apontado por vários membros da equipe como importante e as nossas tentativas de desenvolver recursos para, pelo menos inicialmente, não cairmos na tentação de apenas encaixar as famílias em nossas regras, mas de poder acompanhar o que para nós aparecia como “desorganização”. Em nossa experiência esta

forma de participar da família vai se diluindo ao mesmo tempo em que o vínculo vai aumentando. E, volta a se manifestar quando há turbulências. Um método muito simples que usamos com freqüência é ligar para as famílias para confirmar as consultas. Percebemos que muitas vezes a família esquecia, não se organizava. Algumas vezes logo depois de uma crise em casa, a consulta era esquecida. Ao invés de considerarmos isto uma não adesão ao atendimento, procuramos com as famílias entender tais movimentos e nos posicionarmos de forma a ajudá-las. Entrevistas de esclarecimento: inspiradas em um texto sobre equipe reflexiva com famílias em instituição5 criamos uma espécie de triagem interna para podermos atender à demanda. É o que chamamos “entrevistas de esclarecimento”. Estas entrevistas têm por objetivo delinear melhor o lugar da violência na família e a necessidade de que ela permaneça em um atendimento por uma equipe ou possa ser atendida por uma dupla da equipe ou uma mini-equipe em outro espaço e horário. Estas entrevistas também vieram amenizar alguns problemas de encaminhamento destas famílias. Nem sempre em uma primeira abordagem na Sala de Espera, se pode ter uma idéia de qual é o papel da violência no sistema familiar. As famílias que apresentam um episódio único e fortuito de violência procuram atendimento pelo susto que um tipo de interação tão diferente de seu padrão aconteça. A dinâmica de atendimento desta família é bastante diferente da dinâmica do atendimento de uma família em que a violência faz parte dos padrões de comunicação em várias apresenta-

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ções. Foi instituída a partir de nossas trocas com a equipe que primeiro recebe as famílias (Sala de Espera) um novo item na ficha: as famílias fazem de próprio punho uma marcação na ficha afirmando se existe situação de violência na família. Desta forma a situação pode ser vista com maior cuidado pela equipe que recebe a família na instituição, assim como pode ser mais bem encaminhada para nós. O mesmo formulário passou a ser usado para o uso de drogas e atendimentos psiquiátricos, temas que, muitas vezes em uma primeira entrevista, não são fáceis de serem abordados pela família. Todas as interações entre a nossa equipe, a Sala de Espera e a equipe de litígio, foram momentos marcantes e que nos ajudaram muito a construir nossa prática cotidiana.

Como transformar dificuldades em recursos clínicos Exercício em relação a nossos preconceitos: um trabalho que mereceu destaque foi nosso constante exercício em relação aos nossos preconceitos. Por exemplo, quando uma das integrantes da equipe reflexiva ficou muito incomodada com uma família em que há mais de dez anos só a mãe trabalhava e o pai não e as terapeutas de campo não abordavam a questão como um problema, dado que a família não o fazia. Reflexões sobre o quanto o terapeuta “estranha” e o quanto ele “acolhe” foram muito importantes sobre esta questão. Outro momento importante foi a surpresa, citada por mais de uma integrante da equipe, quando, durante uma reflexão da equipe, o pai da família que estava sendo atendido sozinho abre sua agenda e começa a

escrever. A idéia que teve a terapeuta que relatou este fato como importante foi de que ele estava desprezando a reflexão. Segundo Tom Andersen6 esta é uma possibilidade, dado que a escuta à equipe reflexiva é um convite, mas na hora foi bastante incômodo pensar que isto estava acontecendo. Após a reflexão, o pai disse que não gostaria de falar nada naquela hora e contou que anotara as reflexões para poder pensar em casa. Isso nos surpreendeu por considerarmos que ele estava em uma posição defensiva em relação ao atendimento. A partir daí, suas anotações passaram a fazer parte da nossa reflexão e a surpresa nos levou a muita conversa. Conexão com o autor da violência: outras situações apontadas por várias pessoas da equipe como importantes tinham a ver com a conexão com o autor da violência. Sabíamos teoricamente que sem isso não poderíamos atender. Muitas discussões da equipe se focalizavam na possibilidade de realizar esta conexão, de questões éticas sobre como fazer isto e não ser conivente com os atos da pessoa etc. E também de como trabalhar com o medo que podemos sentir em relação a esta pessoa e ao que podemos provocar nela. Aparece também aqui a importância o trabalho com o medo, e a equipe como respaldo para este trabalho. Aprendendo formas de falar: muitos comentários têm a ver com a forma de falar. Por exemplo: “Uma das diferenças que fez diferença foi perceber as diferentes narrativas e como cada um vê e sente a ‘sua’ verdade como única e como poder ouvir o outro para refletir sobre novas formas de relacionamen-


to. Outra coisa foi sobre a forma de falar. Em especial sobre a violência foi perceber que não há vítima ou algoz. Está sendo útil na minha vida em especial ao ‘escolher’ como e o que falar, ou calar; o que ajuda na construção do relacionamento”. Transformando a emoção em ferramenta: outro aspecto apontado pela equipe foi o aprendizado de conter a emoção e transformá-la em ferramenta. Estas ferramentas incluem a paciência para ouvir, a escolha do que e quando falar e quando calar. Em outra situação uma terapeuta no campo com a família em uma sessão com aquele mesmo pai da equipe reflexiva, construindo uma possibilidade de comunicação entre ele e a filha que vinham em sessões alternadas, propõe que a mensagem que iria ser enviada para a filha fosse feita por escrito, mais por medo de não ser fiel às palavras do pai, o que era para ela muito importante. Do receio desta terapeuta criou-se um momento muito emocionante quando da leitura do bilhete para a filha esta se emociona, especialmente com o fato expresso por ela de poder ver o pai, que ela não via há um ano, naquelas palavras. O que parecia medo foi uma ferramenta importante para a cliente e o resultado serviu para a validação da criatividade da terapeuta. O marcante vem, muitas vezes, de situações difíceis, que geram sentimentos de impotência e que o tempo e o distanciamento que a reflexão permite traz o aprendizado. Uma das integrantes do grupo conta uma situação em que após um atendimento muito difícil, de uma família que já estava quase terminando a terapia fala com ela em um momento a sós

na saída da sessão e conta uma situação de risco pela qual estava passando que envolvia uso de drogas e comportamentos muito destrutivos com ela mesma. Alguns trechos de seu depoimento: “Foi muito difícil, pois não tínhamos, como equipe, a dimensão de seu comprometimento... A seqüência de eventos que se seguiram desde a identificação desta situação como uma situação de risco foram todas muito desafiadoras, para mim pessoalmente que me vi chamada a ‘salvá-la’ e, tenho certeza, para a equipe como um todo... Embora ao longo de todo este atendimento muitas sejam as dúvidas sobre os passos que tomamos, sobre como nos conduzimos... percebo hoje, muito cuidado de minha parte com a identificação do nível de comprometimento de cada cliente... Parece incrível, mas o que mais me chocou foi não ter podido prever aquele momento... Os movimentos que se seguiram foram, na minha opinião, bastante atabalhoados e gerariam hoje, como geraram, muitas discussões, correções de rumo, mas acho que [aprendi sobre] a tendência a não deixar que a diluição da responsabilidade (às vezes irresistível no atendimento de equipe) tome conta do grupo e nos distancie do compromisso de cuidado ao qual nos dispusemos”.

A equipe Como espaço de elaboração e diluição de sentimentos: importância especial foi dada à equipe nas reflexões das terapeutas. Algumas pessoas se referiram à presença da equipe em momentos difíceis, outras à presença da equipe como ajuda para pensar e sair de situações onde se sentiam impotentes

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ou assustadas. Como espaço de elaboração e diluição de sentimentos e situações complicadas. Um momento especial foi quando uma equipe recebeu em nome de uma das terapeutas uma intimação para depor em um processo sem termos sido avisadas com antecedência pela família e contrariamente ao que havia mesmo sido conversado com ela. Segue a fala de uma das terapeutas de campo em nome de quem estava a intimação: “Este evento será fonte de aprendizado por muito tempo para mim. Fala de um outro tipo de ética que é comum em situações de violência. O equilíbrio entre acolher e respeitar e cuidar da família por um lado e de nos cuidarmos por um outro, parece-me uma chave importante, uma fonte de enorme aprendizado pessoal e profissional. Penso que o grande desafio é poder cuidar efetivamente destas famílias dentro de nossos limites e possibilidades. Não fantasiar sobre os clientes nem sobre nossos ‘poderes’. Manter o coração aberto e os pés no chão. Afetividade com firmeza e clareza. Nesta situação o trabalho da equipe em conjunto foi fundamental para todas, desde conversas sobre nossas possibilidades e dificuldades de darmos limites a nossos filhos até como ajudar-nos umas às outras em situações tão inesperadas”. Como apoio e respaldo em situações difíceis ou na elaboração de estratégias e intervenções: em outra situação em que a família trazia dilemas que mobilizavam muito a equipe: “Acho que a equipe terapêutica nestas situações dilemáticas é essencial. Não acredito que conseguiríamos manter o discernimento sem o apoio de uma equipe. Falar destas situações dilemáticas e poder perceber ecos nos outros (seja

como terapeutas, seja como clientes) representa uma fonte inigualável de saúde. Podemos até fazer intervenções excelentes como terapeutas, mas tenho acreditado que o mais importante é o outro perceber que a sua dor (e, muitas vezes a impossibilidade de uma solução ideal para a situação) faz sentido e encontra ressonância em outras pessoas”. Uma das integrantes da equipe também elegeu o processo terapêutico em que houve a intimação judicial à revelia da equipe e questiona o quanto cuidamos da equipe e o quanto cuidamos da família. Pergunta-se sobre as conseqüências éticas de nossos atos: “Podemos falar em limites, transgressão, mas acredito que a equipe precisa falar sobre o que mobilizou cada um naquele momento. Fico pensando que é um tema que deveríamos falar mais, refletir mais, trazer para o grupo o que cada um pensa e sente sobre situações como estas que provavelmente vão ocorrer novamente em nossa prática. Foi um momento novo que vivemos. Gostaria que, se fossemos viver algo parecido, que nossos pensamentos e sentimentos estivessem mais sintônicos”. Em uma família o pai, após anos de atos violentos, encontrava-se agora imobilizado por doença degenerativa. Para a família, porém a violência continuava de várias formas da parte dele, mesmo doente, e da parte de outros membros da família com ele. Em resposta às perguntas, uma das terapeutas de campo conta: “Foi muito forte o momento em que um dos filhos, em uma sessão, cerrava os punhos (e seus sentimentos) e lutava para deter o controle da sua raiva. Ele tinha diante dele um pai doente e dentro do coração uma enxurrada de sentimentos fortes, agressivos com os quais tinha


que lidar. Senti a responsabilidade de estar presente na vida daquela família, de poder compreender e acolher aqueles filhos e seus conflitos de afeto. A equipe foi fundamental para o trabalho. Ter minhas observações e intervenções respaldadas ou questionadas com maturidade e respeito me deixaram num caminho de conforto para o trabalho terapêutico”. Como espaço de construção de vínculos e possibilidade de ação conjunta: a importância da equipe aparece no que eu chamo agora de espaço de criação de nossos vínculos e de possibilidade de ação conjunta. Em outro depoimento de uma integrante da equipe que entrou no grupo no momento em que estávamos discutindo e tentando dar conta da intimação e das emoções que ela trazia ao grupo. “A primeira sensação foi de ‘estrangeiridade’ e de constrangimento. Me senti como um estrangeiro que adentra a intimidade de uma família que tem atitudes muito fortes e muito passionais. Minha atitude neste momento foi de me familiarizar com a nova língua. O segundo momento foi de frustração e irritação com o grupo. Como o atendimento de uma família ocupa tanto espaço que não sobra mais tempo para nada?” Depois ela fala da passagem para a curiosidade e das perguntas que levantou dentro deste novo momento: “Um certo tempo já é passado desde o momento em que entrei no grupo e ainda não respondi, objetivamente, minhas perguntas. Aliás, estão sendo pensadas e organizadas agora. E agora, nem sei se é importante ter respostas. Internamente sinto-me cada vez mais próxima de todas as colegas deste grupo. Sinto-me mais à vontade. Agora também penso que eu gostaria

de saber como este ‘novo’ que entra no grupo toca aos demais... O que eu levo para a vida é a sensação de estar construindo cada vez maior abertura para o novo que chega, para o deixar fluir. Me fez um bem enorme poder expressar meus sentimentos sobre esta experiência de ‘estrangeiridades’ em um grupo de atendimento já formado. Me faz pensar que se não servir em nada para o trabalho para o Congresso, para mim já cumpriu sua função.” Em situação semelhante estava outra integrante do grupo, também recém-chegada: “Quando cheguei ao grupo o caso já estava bem adiantado, já havia uma intimação judicial. A partir daí, percebi que este foi o tema dominante nos encontros, tomando quase todos os espaços... Já passada a audiência, o tema continuou a ser dominante, o que às vezes me deixava intrigada. Isto me leva a ressaltar dois aspectos: o da importância do fortalecimento que a equipe propicia durante aquela situação e também, a importância de nos informarmos sobre estes desdobramentos legais que podem ocorrer em terapias com famílias em situação de violência”. Como espaço de cuidado mútuo: várias de nós ficaram especialmente tocadas por momentos da equipe de conversas informais, solidariedade, e rotinas prazerosas que foram se estabelecendo, especialmente em uma das equipes que inclui bolos e jujubas trazidas por uma das integrantes. Muitas vezes compartilhamos temas pessoais, questões de nossas vidas que nos eram relembradas pelas famílias e esta possibilidade nos ajudava muito a nos sentirmos confiantes no olhar que a equipe teria sobre cada uma. Como aprendizado, para mim como coordenadora, está

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a atenção em equilibrar o processo do grupo e os resultados esperados e, como ações aparentemente distantes do resultado, são parte integrante das possibilidades de alcançá-lo. Acredito que estas trocas, valorizadas pela equipe, tornam presentes a cada dia novas conexões e novas possibilidades de ação conjunta. Para nós, tais momentos de “informalidade”, além de nos permitirem a construção destas possibilidades ligadas à confiança e à ação conjunta, fazem parte integrante do cuidado conosco que havia aprendido da necessidade e experimentado em trabalhos anteriores com violência e só confirmo a cada momento de trabalho com as equipes. Para nós o cuidado com cada uma e com a nossa relação é muito importante para o prosseguimento do trabalho. Para isso uma variável importante é o tempo. Procuramos resistir à tentação de burocratizar o trabalho, de atender o tempo todo com a ilusão de que ajudamos mais atendendo a mais famílias sem ter tempo para estes cuidados e para as leituras e discussões. Nem sempre é possível, mas trabalhar dentro de um marco em que o tempo para diluição e elaboração da carga que vem junto com o trabalho com violência é uma diretriz importante para as duas equipes. Muitas vezes o trabalho nos desanima, não nos sentimos potentes o tempo todo e para acreditarmos no processo, quando os resultados que esperávamos nos parecem distantes, o que nos ajuda a saber como seguir é o cultivo de um espaço de ação conjunta e de alimento de nossos vínculos. As famílias também, nos trouxeram momentos importantes para estabelecer novas conexões. Como para as respostas das terapeutas, criei categorias a partir das respostas.

Novas conexões entre membros da família

Um irmão destaca da terapia um momento em que a irmã chorou muito. Diz ele: “Isto me entristeceu muito... vê-la chorar. Mas depois pude perceber que a partir daí ela começou a se abrir mais e a ser mais ajudada. Hoje é ela quem mais ajuda a minha mãe”. A irmã então conta: “Não tem um momento marcante, mas sim o fato do grupo, aos poucos e com paciência, ir me fazendo encarar com mais naturalidade o nosso dia a dia. Eu era muito alheia a tudo o que acontecia com meu pai e, agora, participo mais de todo o processo. Pude até ajudar minha mãe a achar uma clínica e ajudar no dia que ele foi para lá. Vou visitá-lo e consigo conversar com ele naturalmente. Nas outras internações nunca ia visitá-lo. Conversar, então, era muito difícil”. Para outra mãe, em outra família, especial foi o momento em que a equipe conversou sobre viver sua vida e pensar nela, fazer coisas que gosta. Isto gerou nela uma mudança em sua relação com seus filhos. Para os filhos, no início da adolescência, esta conversa também foi especial porque, depois disto, eles se soltaram, puderam escolher mais, se sentiram mais independentes. A mãe de uma família traz um momento especial de novas conexões: “Em um encontro recente, acho que há um mês e meio atrás, eu estava falando de João e, ao olhar para ele, percebi que tinha ultrapassado um limite, falado de algo que ele gostaria de manter reservado. Foi importante observar isto. Acho que eu sempre falo mais e isto tem conseqüências, como ser ‘porta-voz’ da família e acabar atrapalhando a expressão deles ou ultrapassando seus limites”.


Contexto favorável para a conversa sobre temas delicados

A mãe de uma família: “Termos iniciado a discussão sobre drogas e diminuição de riscos foi importante”. Ou então: “um momento muito marcante foi quando estivemos com a equipe logo após a morte da avó paterna e começamos a fazer a árvore genealógica. Estávamos muito emocionados e foi bom falar nela, lembrar coisas, falar sobre a saudade, a dor da perda”. Processo da terapia como um todo mais do que intervenções específicas

A mãe de uma família relata: “Teve dias que saía de nosso encontro com uma única palavra ‘martelando’. Por exemplo: limite. Ou então algo que sempre fiz e que teria que mudar para o bem da família. Por exemplo: deixava os filhos sem informações sobre o pai”. Esta mãe faz um relato, com várias frases e expressões que ‘martelavam’ após a sessão, cada uma com as transformações em ações, em novidades para sua forma de estar em relação. Nesta mesma família um depoimento surpreendente foi o da avó materna que nunca havia estado nas sessões, mas foi incluída pela família nos depoimentos. “Fico aguardando o dia da terapia para ver o que elas vão falar, as idéias que vão dar para vocês poderem viver melhor. Muitas vezes, o que elas falam já falei para vocês, mas como elas argumentam mais, as idéias são logo aceitas”. Considerações finais

Enquanto ia lendo e juntando tantos

depoimentos, foi se dando o resultado de todo o trabalho. Com a colaboração de todos, conversações sobre temas importantes de nossa prática foram inauguradas e retomadas, ocorrendo ao longo do processo de pedir, fazer, recolher e categorizar os depoimentos, desdobramentos e novidades em nosso dia a dia. Retomando temas que aparentemente já estavam adormecidos ou acomodados em seus lugares pudemos reativar nossos recursos e criar novos. Pudemos realizar conversas de futuro e elaborações sobre o passado cheias de novidades e conexões. Fui me dando conta de quantas coisas acontecem além de nossa possibilidade de ver no momento e de como é importante a possibilidade de chamar a atenção para isto que é, ao mesmo tempo, invisível e está diante de nossos olhos. O mais interessante é criar esta distância reflexiva e a possibilidade de conversar sem a marca da crítica ou da culpa, mas da abertura que a dificuldade, do que até podemos considerar que nunca “faríamos igual de novo”, pode ser levado sem peso e com a marca da aprendizagem. Reaprendi lendo e ouvindo as terapeutas e a equipe sobre a potência de todos. A poética social foi utilizada neste trabalho como uma metodologia de pesquisa. Como tal pretende ser mais prospectiva do que retrospectiva, no sentido em que na ação de elaboração dele, com a colaboração de todos, criamos ferramentas mais do que explicações. A situação interativa, o momento, dava origem a novas possibilidades de conversação e conexão. Estas ferramentas ao longo do tempo e as reflexões encorajadas em diferentes momentos do processo tornaram-se parte de como “continuar” para todos os envolvidos. O papel do diálogo em, primeiro, criar

Ressonâncias da prática Rosana Rapizo

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e, depois, em elaborar mais um “espaço de recursos” comum entre todos os envolvidos é crucial. O processo que foi ocorrendo nos grupos foi mais importante do que as “descobertas” que os depoimentos pudessem trazer. Desenvolvemos uma série de “lugares comuns” que servem como marcos de orientação, indicando lugares para ir. O campo compartilhado da criatividade onde todos estavam engajados emerge da atividade colaborativa entre eles. O processo do trabalho nos engajou em uma ampliação ou, pelo menos, em uma intenção de ampliação deste “terreno comum”. Como já dissemos antes, o centro organizador da ação conjunta está na situação, no momento interativo em que a ação tem lugar. O entendimento do que ocorre inicia-se de forma vaga e pode ser desenvolvido e negociado com outros nas circunstâncias de seu uso2. O objetivo não é desenvolver uma teoria explicativa ou preditiva, mas ao recolher e organizar as informações começamos a produzir uma teoria prática, cujo relato pode ser usado como ferramenta para aqueles envolvidos na situação. Isto permite que possam notar as diferenças em suas atividades e consigam novas oportunidades para coordenar suas atividades uns com os outros. Afinal, tudo o que um indivíduo faz é parte de um “nós”. Em nossas equipes pude testemunhar este efeito enquanto construíamos o trabalho. Efetivamente, este trabalho com a poética social tem um alcance muito maior do que este artigo que é só pequena parte do processo disparado pelas perguntas. Ao final do trabalho percebi que este processo foi o meu momento mais marcante no traba-

lho com os grupos. E ele é útil para a minha vida para não esquecer que há sempre, parafraseando Goolishian7, palavras ainda não ditas que, ao serem ditas, podem transformar nossas vidas.

Referências

SHOTTER, J.; KATZ, A. Articulating a practice from within the practice itself: establishing formative dialogues by the use of a ‘social poetics’, 1996. 2 BRASIL, C. et al. Onde estávamos, como estamos, para onde pretendemos ir: em busca de um formato terapêutico para o atendimento de famílias em situação de violência. Trabalho apresentado na Jornada da ATF-RJ, 2003. 3 KATZ, A.; SHOTTER, J. Resonances from within the practice: social poetics in a mentorship program. In: Concepts and transformations 1(2/3), pp. 239-247, 1996. 4 RAPIZO, R. Uma visão sistêmica da violência. Trabalho apresentado na Jornada da ATF-RJ, 2003. 5 LAX, W. The reflecting team in the initial consultation. In: Andersen, T. (Org.) The reflecting teams: dialogues about dialogues. New York: Norton, 1991. 6 ANDERSEN, T. Processos reflexivos. Rio de Janeiro: Noos / ITF-RJ, 1998. 7 GOOLISHIAN, H. apud ANDERSON, H, SWIN, S. Learning as collaborative conversation counting the student’s and teacher’s expertise. Human Systems: The Journal of Systemic Consultation and Managment, 4, pp.45-160. 1


artigo

A busca de recursos terapêuticos na clínica com famílias em situação de violência intrafamiliar e de gênero* The search of therapeutic resources in the clinic with families in a situation of intrafamiliar and gender violence

Gizele Bakman

Psicóloga, Terapeuta de família, Instituto Noos, Rio de Janeiro,RJ.

Luiz Fernando Monteiro Pinto Bravo

Psicólogo, Terapeuta de família, Instituto Noos, Rio de Janeiro,RJ.

Maria Celina Matta

Médica, Terapeuta de família, Instituto Noos, Rio de Janeiro,RJ.

Vânia Izzo de Abreu

Psicóloga, Terapeuta de família, Instituto Noos, Rio de Janeiro,RJ.

* Uma versão deste artigo foi apresentada no VII Congresso Brasileiro de Terapia Familiar, promovido pela ABRATEF em São Paulo, em julho de 2006

Resumo: O presente trabalho baseia-se na experiência dos atendimentos a famílias e casais que vivem situações de violência em suas relações, que integram o Programa de Prevenção à Violência Intrafamiliar e de Gênero do Instituto Noos. Cinco terapeutas compõem a equipe. As famílias são derivadas de diferentes fontes, sendo os atendimentos quinzenais e gratuitos. O recurso da equipe reflexiva integra a metodologia do trabalho. Entendemos a violência como um processo de interação entre uma ou mais pessoas e, conforme dispõe o relatório da OMS (2002) sobre a complexidade desse fenômeno, existem muitos fatores que levam uma pessoa a cometer violência. Entre eles os individuais, os relacionais, os comunitários e os sociais. No desenvolvimento do trabalho, levantamos o que passamos a chamar de ‘temas-recursos’ na clínica com famílias em situação de violência e que, quando abordados e transformados em pontos de reflexão, tornam-se poderosos recursos no decorrer da terapia. São eles: 1- a violência como processo; 2- a busca das potencialidades; 3- foco nos subsistemas; 4- a história transgeracional e 5- os modelos educacionais. Para cada tema-recurso são sugeridas perguntas norteadoras que auxiliam a conversação e a reflexão. Conclusão: não é um trabalho de convencimento e nem de correção de déficits, mas de busca constante das potencialidades das famílias, junto com elas.

ABSTRACT: The present work is based on the experience in the assistance of families and couples that live in situations of violence in their relationships and integrates the Program of Prevention of Intrafamiliar and Gender Violence of the Noos Institute. Five therapists compose the team. The families come from different sources, and the assistance is biweekly and free of charge. The resource of the reflecting team integrates the methodology of the work. We understand the violence as a process of interaction between one or more people and, as claimed in the report of the OMS (2002) on the complexity of this phenomenon, there are many factors that leads a person to act violently; among them, individual ones, relational ones, communitarian and the social ones. In the development of the work, we raised what we started to call “subject-resources” in the clinic with families in violence situation and that, when approached and transformed into reflection points, become powerful resources during therapy. They are: 1- the violence as process; 2- the search of the potentialities; 3- focus in the subsystems; 4- the transgenerational history and 5- the educational models. For each subject-resource guiding questions are suggested to facilitate conversation and reflection. Conclusion: it is not a work of persuasion or of correction of deficits, but of constant search of the potentialities of the families, together with them.

Palavras-chave: violência, violência intrafamiliar, gênero, patriarcado, recursos clínicos, prevenção da violência, potencialidades da família, complexidade da violência.

Key words: violence, intrafamiliar violence­, gender, patriarchate, clinical resources, prevention of violence, potentialities of family, complexity of violence.

Apresentação

As reflexões e experiências contidas neste trabalho são fruto da clínica social do Instituto Noos, ONG situada no Rio de Janeiro e que desde 1994 vem 47


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realizando diversas práticas sistêmicas. Este serviço atende famílias e casais em situação de violência em suas relações e integra o Programa de prevenção à violência intrafamiliar e de gênero desta instituição. Neste serviço atendemos todas as situações de violência intrafamiliar, mas as reflexões que vamos apresentar focalizaram-se nos casos onde ao menos duas gerações estavam envolvidas nas situações de violência e participando do atendimento. A equipe é composta por cinco terapeutas de família, sendo quatro psicólogos e uma médica*. Os casos que recebemos são encaminhados por diversas fontes: conselhos tutelares, serviços de saúde em geral, serviços da prefeitura, além de muitos casos de procura espontânea a partir do site do Noos ou de entrevistas dadas sobre o tema na mídia. Os atendimentos acontecem quinzenalmente, são gratuitos e utilizamos a equipe reflexiva, com espelho “virtual”, visto que não dispomos de espelho unidirecional na sala.

Introdução

* Equipe composta pelos autores e por Carlos Eduardo Zuma

Acreditamos que existem muitos fatores que levam uma pessoa a cometer violência contra um ente querido, seja sua esposa, marido, namorada, namorado, irmão, irmã, filho, filha, mãe, pai ou avós. O relatório da OMS1 de 2002 já aponta essa complexidade. Existem fatores individuais, como por exemplo, um histórico de violência na família de origem; relacionais, como instabilidade no casamento; comunitários, como uma rede social precária, isolamento, e ainda fatores sociais, como valores patriarcais, machistas, muito arraigados. Sabemos

que nenhum desses fatores sozinhos é capaz de desencadear a violência dentro de casa, porém quando mais de um deles está presente constrói-se um contexto propício e vulnerável. Nossa forma de entender a violência é a de que ela não é só um ato que acontece entre duas pessoas. Ela é um processo de interação que vai permitindo que este ato aconteça. Portanto, nada deve justificar a violência, não adianta identificar culpados, mas sim que cada um possa se responsabilizar por sua parcela no processo. Como diz Pakman2: “Violência é toda ação que desconsidera a legitimidade da diferença e que tenta impor ao outro uma realidade”. Pretendemos apontar temas fundamentais que, quando abordados e transformados em pontos de reflexão, tornam-se poderosos recursos no decorrer da terapia. Constituem a linha norteadora para atendimentos com estas famílias. Nós os chamaremos de temas-recursos. E para cada um desses temas, iremos apontar perguntas norteadoras, conforme consta na tabela ao final do texto (p.51). A partir da contextualização de violência, acima descrita, o nosso primeiro tema-recurso é: 1. A violência como processo: significa escutar sua amplitude dentro da família: como ela acontece, sua freqüência, suas sutilezas, os movimentos, as implicações de cada um, salientando a violência como um processo onde cada membro envolvido contribui, de alguma forma, para os acontecimentos e para sua manutenção.

Como nos alerta Ravazolla3: “se perguntamos a quem maltratou - e é uma pergunta quase automática - por que o fez? Estamos já pressupondo (e então,


aceitando) que existe algum argumento que explique uma ação. Cada vez que explicamos, estamos justificando e dando lugar para que esta ação possa se repetir” (p. 22). Preferimos, então, perguntar: Como ocorre? O que ocorre? Quem são os envolvidos? Quais os temas disparadores? Por acreditarmos que entender o funcionamento da violência é fundamental para nós e para a família, nos atemos, de forma minuciosa, nos relatos das situações conflituosas. Trabalhamos no sentido de que cada um possa se confrontar com a situação e refletir sobre sua participação. E isto não é nada fácil! Vivemos num contexto cultural adversarial, de certo e errado, onde somos, muitas vezes, especialistas em apontar os erros dos demais. Sentimo-nos violentados e vítimas do mal dos outros. No processo terapêutico, procuramos contribuir para ampliar essa visão, possibilitando que cada qual avalie sua implicação no contexto que trouxe todos à terapia. É um caminho sofrido, de tentativas, erros, culpas, acusações, mas também um caminho de possibilidades de mudanças, retratações e reflexões. Estes são os primeiros passos para uma tomada de consciência e o compromisso com novas e positivas atitudes entre os membros da família. Da mesma forma que focamos no “problema”, procuramos também as potencialidades, o que há de positivo nesta família, e este se torna o segundo tema-recurso: 2. A busca das potencialidades: que são os recursos existentes nas famílias, as áreas preservadas que ficam, em geral, em segundo plano na fala dos familia-

res. Há habilidades pessoais e grupais que precisam ser valorizadas, as situações que foram bem resolvidas e não são citadas, as alianças positivas entre os membros e com a rede. É preciso buscar o que há de bom na família para que haja o desejo e a motivação de permanecerem juntos, num ambiente mais acolhedor e saudável. Estas são algumas das perguntas possíveis para focalizar esses pontos: Como é a família nos momentos de lazer e satisfação? Que outras dificuldades conseguiram superar? O terceiro tema-recurso é: 3. Foco nos subsistemas existentes dentro da família: São trabalhados através de recortes terapêuticos, isto é, a participação dos familiares envolvidos em vários formatos de atendimento: todos os membros da família, só o casal parental, só os filhos, os filhos com um dos pais e outras pessoas significativas da rede familiar.

A importância de trabalhar os subsistemas tem a ver com o fato de termos­ percebido que essas famílias, além das questões específicas de violência, têm outras dificuldades: falta de limites, dificuldade dos pais em estabelecer parceria, ausência de diálogos, falta de construção de acordos de convivência, hostilidade e rivalidade acentuada entre os irmãos e frágil divisão hierárquica em relação a decisões e temas de conversas. Há vários assuntos que dizem respeito somente a cada um, conforme sua posição no sistema familiar. Desta forma, muitas vezes, é preciso auxiliar a criar “paredes” onde faltam, demoli-las onde atrapalham, e/ou limpar os canais de comunicação entre elas. Estes são

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problemas comuns a outras famílias, porém nem todas utilizam a violência! Com os pais, especificamente, temos percebido muitos pontos que precisam ser explorados, como por exemplo: ajudá-los a identificar como podem trabalhar em parceria; o que podem fazer quando surgem discordâncias, como lidar com os conflitos sempre presentes numa vida de relacionamentos. Percebemos que são nestes pontos de divergências entre os pais que os filhos, em geral, conseguem introduzir-se num espaço inadequado, acirrando as diferenças existentes entre os pais, convidando-os a ficar de lados opostos, como se houvesse uma batalha ou uma vitória a ser alcançada. Batalha esta que, na maioria das vezes, estende-se às relações entre os irmãos.

te se este for do sexo masculino. Não percebem como esta fórmula coíbe os afetos e afasta as pessoas, cria um ambiente hostil, pouco colaborador e de distanciamento afetivo.

4. A história transgeracional: Sabemos pelas pesquisas da área que os autores/ autoras de violência sofreram ou foram testemunhas de violência em sua infância. Torna-se, então, fundamental tocar nesse passado, extraindo o que há de positivo e avaliando os seus pontos negativos que podem estar sendo trazidos para a relação com os filhos, sem que os pais se dêem conta disto.

É recorrente os pais trazerem a percepção das atitudes inadequadas dos filhos como atos estigmatizados de mau comportamento. Mas quando compreendidos dentro do sistema eles adquirem outra face. Pode ser uma forma de manifestar a sua falta de espaço, a pouca compreensão, o afeto que parou de receber de seus pais, a luta por um lugar entre os irmãos, um reconhecimento pelo pai, um posicionamento diante da briga do casal parental. Quando há brigas entre os filhos é possível que os pais legitimem, sem perceber, esta forma de tratamento entre os irmãos, incentivem a violência como forma de relacionamento. Por exemplo, quando desde pequena, a criança recebe palmadas como forma de educar, concomitantemente, passa-se a mensagem de que bater é uma maneira de dar limites ao outro. Aos poucos se cria uma cultura na qual a violência é uma forma possível, costumeira e aceitável de resolver os conflitos!

Estas são algumas das perguntas que podem nos auxiliar no trabalho com este tema: Quais conexões trazem com sua família de origem? Que feridas trazem para a relação como os filhos? Quais os padrões de relacionamento apreendidos por cada um? 5. Os modelos educacionais: Muitos­ pais (homens e mulheres) foram educados numa cultura patriarcal, machista, que inclui castigos físicos e acreditam que esta é a única forma de educar um filho, principalmen-

Como ressalta Zuma4: Os valores atribuídos ao patriarcado quando encarnados no cotidiano das relações familiares contribuem para a adoção da violência, pois geram uma hierarquização na posição ocupada socialmente por cada pessoa. Coloca-se cada um sobre um eixo em cujos pólos estão, de um lado, características de maior valor social e, de outro, as de menor importância, ou, de um lado, os detentores de direitos ou privilégios e, de outro, os desprovidos de direitos.


Tema Recurso 1. A violência como processo

2. A busca das potencialidades

3. O foco nos subsistemas

4. A história transgeracional

Conceituação Escutar sua amplitude dentro da família: como ela acontece, a freqüência, suas sutilezas, os movimentos, as implicações de cada um. Os recursos existentes na família, as áreas preservadas, as habilidades pessoais e grupais, as situações bem resolvidas.

Participação dos membros de diversas formas em função dos temas a serem abordados.

Pesquisar a história de cada membro da família.

Perguntas Norteadoras g

Como ocorre?

g

O que ocorre?

g

Quem são os envolvidos?

g

Quais os temas disparadores?

g

Quais as conseqüências?

g

Como cada um se sente implicado?

g

Qual é a minha contribuição nesse processo?

g

Como é a família nos momentos de lazer e satisfação?

g

Que outras dificuldades conseguiram superar?

g

Quem é bom em que?

g

O que fazem juntos?

g

O que gostariam de fazer juntos?

g

Quais são os planos futuros?

g

Como é a relação entre os irmãos?

g

Quem toma quais decisões?

g

Como são impostos os limites e por que?

g

Quais são os assuntos pertencentes somente aos pais?

g

Como é a parceria entre os pais?

g

Quais conexões fazem com sua família de origem?

g

Que feridas trazem para a relação com os filhos?

g

g

5. Os modelos educacionais

O modelo educacional, valores e crenças do casal parental.

Quais os padrões de relacionamento aprendidos por cada um? Quais os modelos de resolução de conflitos herdados da família de origem?

g

Como foram as suas próprias relações com seus pais?

g

Qual o modelo educacional que pai/mãe tem?

g

Há congruência entre eles?

g

g

As ações estão realmente em concordância com aquilo que pregam e acreditam? Qual a coerência que há nesta família entre o que se diz e o que se faz?

Conclusão

O trabalho com este tema é árido e difícil, mas, aos poucos, surgem os primeiros sinais significativos de mudanças que ocorrem no sistema familiar. São mudanças de atitude entre os membros da família, o comprometimento e empenho no atendimento,

melhor organização do pensamento e da fala, a melhora da vida cotidiana e uma nova compreensão, ampliada, sobre o problema da violência. As famílias trazem novos temas, os semblantes se tornam mais leves, surge o humor. As pessoas se tornam menos reativas e mais reflexivas, confiando mais em si e apostando no trabalho terapêutico.

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É importante ressaltar que o que fazemos não é um trabalho de convencimento. É através do apoio, das reflexões, das perguntas, do estar disponível nos momentos bons e dolorosos que se torna possível construir uma convivência mais harmoniosa. Acreditamos que no trabalho terapêutico, como nos diz Schnitman5: “Não se trata de corrigir um déficit, mas de restaurar a possibilidade das pessoas reconhecerem o novo, situálas na posição de co-autoras de sua própria vida em contexto, favorecer sua ação competente ante os dilemas e a incerteza, em uma nova apropriação existencial”.

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Referências

KRUG. E. G. et al. (Ed.) Relatório mundial sobre violência e saúde.

1

Genebra: Organização Mundial de Saúde, 2002. PAKMAN, M. Terapia familiar em contextos de pobreza, violência, dissonância ética. Nova Perspectiva Sistêmica, n. 4, out. 1993. RAVAZOLLA, M. C. Violencia familiar: actualización de recorridos teóricos u técnicos desde la terapia sistémico – relacional y perspectivas que incluyen estudios de género. Sistemas Familiares, n. 21, 2005. ZUMA, C. E. Em busca de uma rede comunitária para a prevenção da violência na família. Trabalho apresentado no III Congresso Brasileiro de Terapia Comunitária, Fortaleza, setembro de 2005. SCHNITMAN, D., CZERTOK, M.E.G. Enfoque generativo no trabalho com crianças. In Cruz, H. M. Papai, mamãe, você... e eu? São Paulo: Casa do psicólogo, 2000.


artigo

A pintura como uma forma de auto-expressão e comunicação em situações críticas: uma maneira de criar espaço para diálogos em crises familiares* Painting of pictures as a way of expressing oneself and communicating in critical situations: a way of creating space for dialogue in family crisis.

Eva Kjellberg BUP, Gällivare, Sweden eva.kjellberg@nll.se

Tuula Wilén BUP, Gällivare, Sweden e-mail tuula.vilen@nll.se

Tradução:

Ruth Hall Lenz Cesar Revisão:

Rose R. Nahas

Resumo: Este artigo apresenta uma forma de estar junto com famílias, quando as conversas habituais, através das palavras, apresentamse bastante rudes e até mesmo perigosas para serem utilizadas, ou mesmo quando não existem palavras para expressar experiências caóticas, como frequentemente ocorre quando membros da família estão tomados por sentimentos fortes, tais como raiva, medo, tristeza ou vergonha. O trabalho associa dois importantes campos da prática clínica: o conversar através de processos reflexivos dentro de uma abordagem sistêmica construcionista e a pintura, para facilitar o encontro com “pinturas internas” em arte-terapia.

ABSTRACT: This article will present a way of being together with families when the ordinary talks with words seem too blunt or even dangerous to engage in. Or simply when there are no words to express chaotic experiences, as is often the case when the family members are caught in strong feelings as anger, fear, sadness or shame. The work combines two main fields of clinical practice: talking in reflective processes in a systemic-constructionistic framework and painting and meeting with “inner pictures” in art-therapy.

Palavras-chave: processos reflexivos, conversações, pinturas internas.

Key words: reflective process, conversations, inner pictures.

Prática diária

* Este artigo é uma versão abreviada e elaborada de um texto com o mesmo título, publicado no Journal of Family Systems, GB, 2005.

BUP Gällivare–Kiruna é uma clínica ambulatorial psiquiátrica para crianças e adolescentes, situada no extremo norte da Suécia, bem acima do círculo ártico. Trata-se de uma região extensa, constituída principalmente de áreas selvagens com locais de calores subárticos, pântanos e cadeias montanhosas. Ao todo, 60.000 pessoas habitam predominantemente as quatro comunidades construídas em torno de minas de ferro, as quais são responsáveis por grande parte da produção econômica de todo o país. Outras ramificações industriais são a manutenção de áreas florestais e a produção de energia elétrica, proveniente de imensas quedas d´água, que foram controladas. O povo lapão é conhecido por suas criações de renas semi-selvagens desde os mais remotos tempos. Portanto, o sustento ainda depende, em grande parte, do trabalho manual pesado e é intimamente ligado a pré-requisitos fornecidos e variáveis de acordo com as forças inerentes da natureza. Mais recentemente, a tecnologia substituiu grande parte da mão de obra, que se tornou supérflua, 53


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a taxa de desemprego cresceu e a região apresenta índices relativamente altos de desajustes psicossociais. São três, os idiomas falados na região: sueco, lapão e finlandês. Mais ao sul, os lapões são conhecidos como indivíduos calados, confiáveis e diretos. Outra descrição de uma forma comum de interação é a seguinte: “Nos arredores de Gällivare, as histórias são contadas de uma maneira peculiar: o vocabulário é riquíssimo, e a história caracterizada por altos e baixos, imprevisibilidade e longas digressões envolvidas numa magnitude de detalhes. A narração em si é altamente valorizada, tanto quanto o próprio enredo da história”. No momento fazem parte de nossa equipe: três psicólogos, quatro assistentes sociais e um psiquiatra, sendo que essa equipe é responsável por todo trabalho psiquiátrico nessa determinada região. Isto significa que tratamos de problemas psiquiátricos comuns de crianças e adolescentes, tais como transtornos alimentares, estados depressivos e suicidas, transtornos comportamentais, distúrbios autistas, abuso infantil e outros. Somos a única equipe profissional na região e cuidamos tanto das crianças como dos adolescentes, além de prestar um serviço de apoio aos pais. Além disso, nossa equipe tem outras incumbências, como dar apoio a autoridades legais e cortes judiciais da região, bem como aos colegas nos sistemas médicos e de cuidados com a saúde, com avaliações e colaboração. As próprias características de distância e baixa densidade populacional da área tornaram natural a tentativa de utilizarmos as teorias e práticas sistêmicas, para podermos oferecer ajuda. Desde o início dos anos 90, fazemos parte de uma grande rede de profissionais na região

de Barent, centralizada em Tromsö, na Noruega, e conduzida pelo professor de psiquiatria social Tom Andersen. Ele é conhecido por ter “criado” e desenvolvido a teoria e prática dos “processos reflexivos”1. Dentro da equipe, temos integrado com sucesso a prática das conversas reflexivas como uma atitude básica em nossas reuniões e conversas com as famílias e suas redes. Isto significa que enfatizamos bastante os aspectos relacionais em nossas tarefas psiquiátricas2. Não importa qual o problema comportamental e a intervenção necessária, seja ela médica, psicológica ou social, esta é sempre efetuada dentro de um contexto que associa o conhecimento e desejos de todos aqueles relacionados à situação problemática, o que chamamos de “sistema criado pelo problema”3. Somos igualmente responsáveis pela criação de um formato que torna possível, para cada indivíduo naquele “sistema”, expressar-se e ouvir o que os outros têm a dizer. Isto possibilita a compreensão de si próprio e dos outros de uma maneira diferente, viabilizando novas formas de “estar e agir”. É claro que as conversas reflexivas dependem das palavras faladas. No entanto, de acordo com a forma como são expressas, elas também são sensíveis aos sentimentos e ritmo inerente dos participantes. Durante o mesmo período, os anos 90, interessei-me, especializei-me e passei a integrar a arte-terapia na prática diária da clínica. Janet Svensson4 é uma das mais conhecidas arte-terapeutas na Suécia, cujo trabalho baseiase na teoria e prática do psicanalista suíço C. G. Jung. Svensson mostroume o mundo das “pinturas internas” e proporcionou-me uma compreensão mais abrangente do significado


das pinturas; tanto na sua realização, como na maneira de vê-las. Há muitas similaridades entre as conversas reflexivas criadas por Andersen e a terapia da pintura criada por Svensson. Isto é especialmente verdadeiro no que diz respeito à forma do que é expresso, dito ou pintado. Em ambas tradições clínicas, o indivíduo que verbaliza ou pinta, tem direito absoluto à interpretação de sua própria expressão, tanto a verbalizada quanto a pintada, e é, portanto, fortemente respeitado como sendo o único conhecedor de sua própria vida. Nenhuma outra pessoa pode saber o que a pintura contém, expressa, significa ou simboliza, assim como nenhuma pessoa de fora pode definir em palavras o significado das diferentes experiências ou expressões para o indivíduo que narra uma história. A única coisa que se pode dizer é o que a pintura ou a história narrada contém ou significa para aquele indivíduo que vê ou ouve. O compartilhar de impressões com o narrador ou pintor torna o encontro e o diálogo possíveis.

Processos reflexivos

Conversas com processos reflexivos significam, resumindo, que se organiza a conversa de uma forma que possibilita a todos os participantes alternar entre conversas “internas” e “externas”. Isto é feito para que todos tenham a oportunidade tanto de falar livremente, sem interrupções, como também de ouvir os outros e a si mesmo. É muito importante, nessas conversas, que o terapeuta crie um espaço para todos os presentes, acompanhe e dê apoio à maneira singular de cada um expressar-se,

cada um a sua vez - e não perturbe esses processos. Os outros escutam. Muitas vezes, alguns membros da equipe formam uma equipe de escuta e reflexão, para que mais perspectivas possam ser introduzidas ao diálogo. A equipe permanece sentada na sala, prestando atenção nas conversas e, quando solicitada, oferece suas reflexões a respeito do que ouviram, de que forma foram afetados pelo que ouviram e quais associações lhes ocorreram. Essa atenção voltada àquilo que é realmente dito e os comentários dos ouvintes sobre o que ouviram, gera uma forte concentração no momento presente - que é o diálogo em si. Isto contribui para que o narrador encontre seu próprio caminho para uma nova compreensão ancorada em sua própria experiência. Não é somente a compreensão intelectual - resultante do desenvolvimento do pensamento - que propicia a solução de problemas. É a conversa em si que traz à tona o desenvolvimento do pensamento. O trabalho sistêmico com processos reflexivos permite que todos os participantes na conversa tenham acesso a seus próprios pensamentos e às perspectivas dos outros. As contribuições reflexivas viabilizam um retrato mais detalhado de toda a situação e, portanto, um aprofundamento e desenvolvimento da experiência e do pensamento para todos os participantes. Os princípios básicos e a estrutura teórica para o trabalho com processos reflexivos são descritos mais detalhadamente no livro A equipe reflexiva: diálogos e diálogos sobre os diálogos de Tom Andersen1. Muitas outras formas de aplicação na prática clínica, podem ser encontradas em A equipe reflexiva em ação5. Tanto em arte-terapia como na terapia da pintura, o momento presente não é

A pintura como uma forma de auto-expressão e comunicação em situações críticas Eva Kjellberg, Tuula Wilén

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expresso através das palavras faladas e sim através de pinturas. É somente uma outra forma de expressar o mesmo.

Terapia da pintura

A arte-terapia nos Estados Unidos enfatiza marcantemente o lado artístico do ato de pintar. Não é só a expressão da pintura, nem somente o processo que importam, mas também o resultado da pintura ou escultura em si, como um produto para o indivíduo orgulhar-se por ter criado. Edith Kramer6 é uma das pioneiras nesse campo, e, apesar de seus 80 e tantos anos, ainda continua a dar palestras. Na Escandinávia, grande parte dos “arte terapeutas” enfatizam o processo da pintura e a conversa concomitante. Por esta razão, em nossos países esta prática é chamada de terapia da pintura ou do pintar, ao invés de arte-terapia, termo talvez um pouco mais pretensioso.

O método Alma

Janet Svensson desenvolveu sua própria maneira para a expressão e o encontro com as chamadas “pinturas internas”. Sua técnica inclui uma metodologia para um formato estruturado onde há possibilidades para a livre expressão na pintura e na análise daquele processo: o método Alma4. Na verdade, o enquadre estruturado é um pré-requisito essencial para a livre expressão. Adotando o sistema da terapeuta austríaca Bettina Egger, Svensson trouxe para a Escandinávia, a prática que permite aos pacientes pintar de pé, com os papéis presos à parede. Mais adiante, ela desenvolveu essa técnica, passando a utilizar papéis de tamanho maior, para

que os pacientes escolhessem eles mesmos, tanto o formato como o tamanho de papel a ser utilizado para sua pintura. A intenção é de assegurar plena liberdade de movimentos corporais dos participantes enquanto pintam. Os movimentos corporais fazem parte da constituição da pintura e o ato de pintar, em si, gera movimentos que são sentidos no corpo. A sala para a pintura é limitada quanto a outros estímulos. As paredes, revestidas de quadros de fibra, permite que os papéis sejam nelas fixados. No centro da sala coloca-se uma mesa com potes de têmpera líquida, contendo todas as tonalidades do espectro de cores. As tintas são solúveis, se misturam com facilidade e secam rapidamente. Sobre a mesa colocam-se também pincéis de diferentes formas e tamanhos, giz pastel, pastel a óleo, giz de cêra e esponjas. Isso é tudo. O material limitado e as cores fornecidas promovem uma possibilidade comum para os participantes expressarem seus processos individuais - pinturas internas. Algumas vezes, a estrutura é reforçada através da especificação de um determinado tema para a pintura. Mais frequentemente os participantes são levados livremente a pintar, são convidados e incentivados a seguir seus próprios impulsos em relação à escolha de material, cores, ou, a acompanhar um determinado movimento sentido no corpo. g

g

Esteja no movimento e transfira-o através das mãos para o papel! Escolha cores que atraiam os seus olhos, que os façam sentir bem e, de alguma forma, importantes!

Ao término da pintura, conversa-se sobre ela, o que é efetuado também de


uma forma estruturada. É o que chamamos de análise do processo. O formato de conversar sobre as pinturas ou encontrar-se com elas, com os clientes, assemelha-se bastante à prática das conversas reflexivas. Quando a pintura é feita num contexto grupal, pergunta-se a um/uma participante se deseja ouvir comentários sobre sua pintura, dos participantes que também estiveram, ao mesmo tempo, pintando suas próprias pinturas. Caso o pintor assim desejar, os outros participantes são incentivados a penetrar na pintura e “apropriar-se dela”. Em seguida, são convidados a compartilhar suas reflexões a respeito: Como se sentem ao estar lá? O que realmente vêem? Existe alguma associação a ser compartilhada? É muito importante que nenhum desses sentimentos ou pensamentos sejam atribuídos àquele que pintou, sendo estritamente contribuições para o/a pintor/a levar em consideração, se assim o desejar. Seguir essas diretrizes é assegurar que o pintor possa manter sua pintura intacta. As pinturas lá estão para que os participantes façam contato, dialoguem e reajam a elas. Jamais devem ser interpretadas por alguém além do próprio pintor. Em seu trabalho, Janet Svensson constantemente relembra aos participantes que: “As pinturas são nosso solo sagrado! São sutis e contém muito mais do que vemos ou somos capazes de nomear. Algumas vezes é suficiente que uma pintura seja pintada e vista. Pode ser muito difícil falar a respeito. Portanto, seja sensível... não julgue... não avalie. Ao entrarmos em contato com a pintura, nós estamos onde o paciente (pintor) está. É lá, e somente lá, que podemos entrar em contato e seguir em frente”.

Pintura com famílias

Durante o tempo em que aprendi e me exercitei no trabalho com pinturas, lutei para encontrar uma forma, através da qual, esse conhecimento pudesse ser integrado à minha prática diária com famílias, nas mais diversas circunstâncias críticas. Progressivamente, sentia a necessidade de tentar introduzir as experiências do “trabalho com pinturas” em meu trabalho diário. O que eu havia aprendido e exercitado era, no entanto, eminentemente um trabalho individual mesmo ocorrendo em um contexto grupal. Meu dia a dia consistia em encontros com crianças e adolescentes, juntamente com seus responsáveis mais próximos, encontrando e conversando sempre com as crianças e adolescentes em seus contextos naturais. Eu não queria mudar isto! Então, como encontrar uma forma possível? No entanto, durante todo o tempo, senti que os elementos comuns nas duas formas de trabalho eram a chave para fazer ambos-e. A meu ver são duas as áreas comuns: Primeiro: A criação de um enquadre estruturado para conversa ou pintura possibilita aos diferentes participantes expressarem com segurança, livremente e da sua própria maneira, aquilo que é importante para eles mesmos. Expressar, encontrar com, olhar ou ouvir a própria pintura concreta, seja relatada através de palavras ou pintada, aumenta a compreensão da própria situação. Segundo: A posição reflexiva em relação àquilo que é expresso pelo outro. Encontrar-se com a descrição de outra pessoa sobre si próprio, seja ela feita através de palavras ou da pintu-

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ra, onde a própria expressão é central e eventuais interpretações ou explicações pertencem estritamente àquele que pintou ou falou. Outras pessoas podem, mesmo não compreendendo o conteúdo, perceber emoções e sentimentos e até observar as variações nas expressões do outro, e dar este retorno como uma reflexão de sua própria experiência no encontro. Eu simplesmente precisava tentar introduzir a pintura como parte dos encontros e conversas usuais das quais participava diariamente.

Hoje quero que você pinte ao invés de falar!

Na prática clínica algumas vezes atendo famílias que, pelas razões mais diversas, envolvem-se em situações-crise difíceis, quando sentimentos muito fortes tais como medo, angústia ou tristeza, diminuíram sua possibilidade de um diálogo mais sutil. Esta inabilidade relativa, temporária, freqüentemente gera impasses, escaladas nas crises e desentendimentos. Quando isto ocorre todos tendem a tomar posições unilaterais e utilizar modelos simplificados de compreensão. Ocupam-se com seus próprios desentendimentos, restando muito pouco espaço para ouvir, ou mesmo enxergar uns aos outros. Pode ser também que as experiências do dia a dia sejam tão graves que realmente não há palavras disponíveis para descrevê-las. Também pode ser que a linguagem falada seja percebida como perigosa ou potencialmente danosa de forma que o silêncio é visto como a melhor forma para sobreviver. Às vezes as palavras podem ser mais destrutivas do que úteis.

Todas essas circunstâncias contêm, de várias maneiras, o medo de falar ou dialogar. Esse medo pode ser sentido constantemente na sala como um clima de grande tensão e uma expectativa comum de que algo aconteça para evitar uma explosão antecipada. Qualquer coisa é bem-vinda para evitar uma conversa. Esse foi o caso quando, pela primeira vez, ousei sugerir para uma família que pintassem conjuntamente. Uma jovem adolescente veio com seus pais para saberem se havia uma forma de ajudá-los a se reencontrar novamente. A menina estava decidida a sair de sua casa onde não se sentia amada ou querida a ponto de, em protesto, não trocar nenhuma palavra nem tomar parte da vida familiar há muitos meses. Ela também esvaziou seu quarto e solicitou, junto às autoridades sociais, que encontrassem uma família substituta para ela. Todos os esforços para promover um diálogo foram infrutíferos; rapidamente entraram num processo amargo de acusações mútuas, acompanhado de explosões de lágrimas e desabafos raivosos. Senti-me terrivelmente frustrada, sem saber o que fazer e, para minha surpresa, ouvi-me dizendo algo como: “Por favor, isto não está nos levando a lugar algum e eu não sei mais o que dizer; será que poderíamos tentar pintar ao invés de falar? Pode até ser que não dê certo também, mas acredito que, pelo menos, resta ainda uma possibilidade de chegarmos a algum lugar. Por outro lado, tenho certeza de que é uma forma mais agradável para estarmos juntos”. E todos disseram sim!! A menina imediatamente começou a fazer um lindo desenho enorme, onde esboçou sua situação de vida usando várias expressões simbó-


licas, incluindo uma tempestade com trovões e relâmpagos, provocando um incêndio furioso. Cautelosamente ela pintou uma fruta grande e delicada envolvida e circundada por uma nuvem negra. Depois se empenhou para pintar dois leões dançando. A mãe e o pai fizeram, ambos ao mesmo tempo, três pinturas, uma após a outra, pelas quais pareciam estar bastante intrigados. Nesse meio tempo conversavam sobre amenidades. De repente, o pai olhou para o desenho da filha e disse: “Agora eu percebi que ela não está nos deixando!” A menina virou-se para ele, balançou a cabeça, murmurou algo inaudível e voltou-se para sua pintura novamente. Ela pintou por mais de uma hora. Mais tarde, sentamo-nos juntos e conversamos sobre as pinturas. A menina fez vários comentários e observações sobre as pinturas dos pais o que deu início a animadas discussões com perguntas e pequenas provocações e até mesmo alguns sorrisos. Portanto, o gelo foi quebrado e eles conseguiram conversar novamente. Acredito que talvez tenha sido eu quem mais se surpreendeu. Portanto, quando tenho esta sensação de desconforto travado que é tão difícil lidar, passei a dizer: “Parece que está sendo muito difícil conversar. Algumas vezes é... eu sei disso... Será que poderíamos tentar uma outra maneira de estarmos juntos? Fazer algo juntos... Poderíamos tentar pintar!... talvez seja mais fácil expressar algo dessa forma... tentar um encontro de uma outra forma que não através das palavras... talvez seja uma maneira para sentirmos um pouco melhor. Tenho uma porção de tintas aqui das mais variadas cores que trazem uma sensação gostosa ao usá-las. Olhem só!

Assim, num momento freqüentemente inesperado, ofereço uma alternativa para sair de uma situação estressante e dolorosa. Quando a situação está crítica, normalmente todos a quem tenho oferecido essa outra forma dizem: “Sim, porque não?” A situação é considerada crítica quando há muita dor e frustração e, ao mesmo tempo, as tentativas direcionadas para uma conversa não contribuem para que os participantes sintam-se melhor. O que ocorre depois, quase invariavelmente, é que algum membro da família, freqüentemente o pai, diz: “Mas eu não sei pintar! Não pego um pincel na mão há mais de vinte anos pelo menos!” Muitos adolescentes dizem: “Eu não sei pintar, sempre fica horrível. Nunca fica da forma que deveria!”. Então imediatamente falo algo como: “Essas coisas não têm a menor importância! A intenção dessa pintura não é atingir um objetivo. É tão e unicamente pintar sobre o papel aquilo que lhes ocorre espontaneamente. Procure uma cor que você gostaria de usar, segure um pincel na mão. É o ato de pintar em si que importa e não aonde incidentalmente a pintura os levará. Vou lhes mostrar”. A seguir, tiro o material do armário caso não esteja na sala. Rolos grandes de papel branco ou marrom claro, têmpera líquido em muitas nuances, tons brilhantes solúveis em água que facilmente se misturam, portanto fáceis de pintar e de controlar o grau de “flutuação” da tinta no papel. As tintas secam rapidamente, permitindo a pintura de novas camadas por cima da primeira num curto espaço de tempo. Ofereço tambem pincéis de tamanhos e formatos variados e esponjas. As paredes são revestidas do chão ao teto com cortiça

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ou algum outro material que permita prender o papel. Eu ajudo os membros da família, cada um a sua vez, cortar um pedaço de papel do tamanho que desejam para fazer sua pintura e, invariavelmente, quando pergunto, já sabem exatamente o tamanho e formato de papel de sua pintura. Escolhem o lugar na sala que gostariam de ficar e eu os ajudo a pregar o papel na parede na altura que escolherem. Todos recebem um balde com água morna e uma esponja para umedecer o papel antes de pintar. Isto é feito para proporcionar uma sensação de conforto nas mãos e também para fazer o pintor entrar em contato corporal direto com o papel. Todos recebem um recipiente vazio no qual colocam as cores e misturas que escolheram. Nesse ponto, tudo está a caminho. Depois de alguns minutos, normalmente todos os presentes já se encontram completamente concentrados em suas próprias criações artísticas. Por vezes olham para a pintura dos outros e fazem algum comentário breve. Alguns iniciam uma conversa sobre a escolha de suas cores, dos pincéis ou quaisquer outros objetos concretos. Gradualmente todos ficam absortos em suas próprias atividades até que “sintam que a pintura está completa”. Esta atividade dura cerca de 45 minutos. Enquanto os participantes pintam, eu permaneço “passivamente atenta”. Fico no fundo da sala, às vezes desenhando com giz de cêra ou caminhando pela sala, verificando se há tinta suficiente. Aos mais novos pergunto se precisam de ajuda para trocar a água dos baldes para que esta permaneça limpa. Eventualmente troco algumas palavras com um ou outro enquanto estão pintando, mas sempre atenta

para não incomodar os outros. Durante o tempo que estão pintando, os participantes muitas vezes começam a conversar entre si, formando uma conexão gentil e bem humorada enquanto a tensão abaixa e diferentes associações e memórias emergem. O clima rapidamente muda concomitantemente com a introdução desse “movimento”. Fico atenta caso alguém pareça “travado” e posso, nesse caso, dar um apoio para uma continuação do processo, cuidadosamente perguntando o que está acontecendo nesse espaço vazio de sua pintura. Também observo quando uma pintura parece estar acabada e pergunto ao pintor se ele(a) também sente-se “pronto”. Caso haja alguma hesitação pergunto se ele(a) fará uma nova pintura. Se esse for o caso, juntos cortamos e prendemos um novo papel na parede. Algumas vezes ainda é necessário mais uma pintura para que a pessoa sinta que está “pronta”. Quando todos terminam, sentamos juntos para olhar as pinturas, uma de cada vez. Isto é feito da forma estruturada reflexiva descrita acima, enfatizando o cuidado com a integridade dos pintores no “encontro” com suas pinturas. Muitas vezes as crianças menores falam sobre as pinturas como se fossem reais: “Olhem! Aquela é a nossa casa da praia e eu estou vendo a minha mãe com nosso cachorro barulhento e eles estão brigando como sempre!” O que é perfeitamente natural. Podem tambem ficar entediadas e sentir que não agüentam mais e querer sair para brincar lá fora, o que também é perfeitamente normal. O mais importante em relação aos menores parece ser que eles entram numa pintura livre e que os maiores podem dizer algo a respeito


de suas pinturas, o que mostra que eles tentaram levar a sério aquilo que sentem e vêem na pintura. Por exemplo: “Eu vejo um menino triste naquela floresta grande e escura. Parece muito solitário estar lá. Parece que ele está olhando para alguma coisa ao longe... o que será que tem lá? Uma casa? Ele está segurando alguma coisa brilhante em sua mão, será uma lanterna? Parece que tem uma picada, uma trilha, um cachorro pulando... será que ele está caçando um sapo? Aquele verde ali no canto parece mesmo um sapo velho para mim”. Já com as crianças mais velhas e os adultos, é indicado persistir para que façam um movimento reflexivo em relação à pintura dos outros. Normalmente eles captam rapidamente a idéia e passam a fazer comentários jocosos em relação às expressões dos outros. No entanto, muitas vezes realmente olham intensamente, contemplando o conteúdo que observam. Quando eu faço um comentário, tomo muito cuidado para falar sobre tudo que vejo e compartilhar os sentimentos que a pintura desperta. Faço isso para mostrar ao pintor que ele(a) é reconhecido(a) e respeitado(a) em suas expressões mais diversas e complexas e também para evitar a tentação de focar minha atenção somente naquilo que eu acredito ser mais importante para evidenciar na pintura. É também importante identificar partes da pintura que possam conduzir a um passo seguinte por conter possibilidades para uma nova pintura. Podem ser partes que “aparentam estar” inacabadas ou que nos levam a imaginar o que estaria acontecendo fora do papel, símbolos de uma nova vida tais como uma vegetação suave ou uma criança.

Durante a pintura em conjunto e após, ao conversar sobre a pintura, podem surgir de repente novos tópicos dando início a longas discussões. Os temas problemáticos nesse momento são geralmente lidados de uma forma mais tranqüila e casual, juntamente com outros temas na vida familiar. Portanto, o fato de participar do processo da pintura espontânea, ficando em pé livremente para que todos os movimentos corporais possam tomar parte na pintura, aparentemente “solta as amarras da língua”. Normalmente, ao deixar a clínica, os participantes saem juntos fazendo eventuais comentários de uma forma bem humorada, ao contrário da tensão e silêncio presentes no início do encontro. Muitas vezes basta fazer uma sessão de pintura. Outras vezes eles querem pintar mais e alguns até voltam muitas vezes durante o ano até que possam sentir-se “prontos”. A pintura é utilizada como uma maneira de estar junto quando, temporariamente a conversa usual através das palavras não é viável. Portanto, encontros com famílias podem englobar um tempo para a pintura e outro para a conversa. Isto vai depender inteiramente da situação do momento e dos desejos dos membros da família. Nada disso é planejado ou estruturado de antemão. As crianças gostam de ficar com os pais, fazendo as mesmas coisas e compartilhando das mesmas experiências. Normalmente são mais confiantes e dominam com destreza esta forma de estar, melhor que seus pais. Assim, os papéis são invertidos temporariamente. No início os pais geralmente buscam a ajuda e o apoio das crianças. Este fato contribui de uma maneira marcante para um outro tipo de respeito entre eles que não havia

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antes. Parece que os adultos ao experimentar a complexidade e vulnerabilidade em suas próprias expressões, tendem a ser mais compreensivos e cuidadosos em relação às expressões de suas crianças e estas, por sua vez, tornam-se mais interessadas naquilo que os pais falam. Portanto há um aumento nos interesses mútuos e no respeito pela integridade. O processo em si tende a oferecer aos participantes alívio para sua dor e desorientação e ainda fornecer uma compreensão mais detalhada deles mesmos e dos outros. Parece também afetar a forte e profunda necessidade de estar com os outros de uma maneira que faz o individuo compreender mais sobre sí próprio. A pessoa torna-se menos solitária e menos temerosa.

DESCRICÃO DE UM TRABALHO COM PINTURAS

Alguns terapeutas da BUP trabalharam com esta família num momento extremamente difícil em suas vidas Mãe, pai e dois meninos de seis e treze anos respectivamente, vieram da Iugoslávia fugindo da guerra civil e pediram asilo em nosso país. Contataram-nos na BUP e, após algumas conversas usuais oferecemos um trabalho através das pinturas. Soubemos que o filho menor havia sido vítima de um ataque em sua residência na ausência de seu pai e do irmão mais velho. Homens mascarados entraram na casa, agarraram-no e o levaram para um quarto. Enquanto isso, a mãe foi estuprada em outro quarto pelos homens. Escolhemos descrever aqui o processo de pintura do menino de seis anos. Os pais faziam suas próprias pinturas

concomitantemente. O menino escolheu o tamanho do papel cuidadosamente. Em seguida colocou tinta preta em seu pincel e começou a pintar um homem mascarado segurando uma criança. O homem segurava uma espingarda na outra mão apontada para a criança. Um outro homem mascarado estava de pé ao lado. Essa mesma pintura foi repetida exatamente da mesma forma em várias outras ocasiões. Tanto os pais como nós, comentamos sobre sua pintura de uma forma concreta e descritiva e também analisamos as pinturas dos pais da mesma forma. O menino começa a freqüentar a escola na Suécia. Depois disso um edifício é acrescentado no fundo do desenho com o menino e os homens mascarados. O menino fala que a pintura descreve a si próprio, os homens mascarados e acrescenta que o prédio é a sua escola. O pai foi internado em nosso hospital para uma cirurgia relacionada a um ferimento de guerra. O menino pinta a mesma cena que inclui ele próprio, os homens mascarados e acrescenta uma cama com uma pessoa deitada. A pessoa na cama é o seu pai. O pai volta para a casa, a mãe é internada na ala psiquiátrica de adultos e o pai juntamente com os dois meninos voltam à BUP. Desta vez o menino pinta uma cena interna. Ao fundo pinta uma estante de livros. No quarto faz uma cama com uma pessoa deitada em cima. O menino pinta uma cruz bem espessa por cima da cama com a pessoa deitada. Os homens mascarados estão ao lado. Eles ainda estão com as espingardas, mas não estão mais segurando a criança. O garoto descreve que a pessoa na cama é sua mãe e acrescenta que não quer que ela fique no hospital; ela precisa


voltar para casa. O quarto é a sua casa, diz ele. Havia uma estante de livros na casa que morávamos em nosso país. A mãe recebe alta. O menino continua a freqüentar a escola. A próxima imagem, pintada em preto, começa como sempre com os homens mascarados. A escola é acrescentada com crianças à volta. Uma figura destaca-se por ser maior que as outras e é descrita pelo menino como sendo sua professora. A família recebe um visto de permanência no país. Os desenhos do menino continuam sendo pintados com preto. Os homens mascarados apareceram primeiro durante a criação da pintura. A escola vai se tornando cada vez maior que os homens mascarados. Da mesma forma, as crianças em volta da escola tornam-se maiores, ganhando mais detalhes: recebem olhos e bocas sorridentes. A maior figura na pintura é a professora. Ela tornou-se maior que os homens mascarados e é colocada no centro da pintura. Ele indica que a pessoa ao lado da professora é ele mesmo. A professora está sorrindo com o menino de um lado e os homens mascarados do outro. Por último, o menino pinta duas linhas separando os homens mascarados do pátio da escola onde estão as crianças e a professora. Ele nos conta que as linhas são uma estrada. Os homens mascarados estão completamente sozinhos, separados por duas poderosas linhas pretas. O menino de seis anos não conseguiu descrever através de palavras nada a respeito do evento quando os homens mascarados ameaçaram-no e estupraram sua mãe. Ele contou-nos através de suas pinturas ao usar a tinta preta. As pinturas do menino mostrounos e à seus pais como suas memórias

traumáticas foram perdendo o domínio e, como outras experiências receberam um lugar mais importante. Esse processo foi muito claro e confortante para todos nós. Pudemos acompanhar o progresso e percebemos que o menino sentia-se cada vez melhor. Ele recebeu ajuda de muitos contatos positivos em seu dia a dia e, nossa contribuição, foi proporcionar um ambiente seguro juntamente com sua família para que ele pudesse expressar a si próprio utilizando a tinta preta. Os pais, que faziam suas pinturas ao mesmo tempo que o menino, ficaram confiantes e felizes quando viram que as pinturas do filho mostravam os homens mascarados diminuindo em tamanho, que finalmente libertara-se de suas presas e como outras figuras se tornaram mais importantes em sua vida.

Reflexões finais Hoje em dia todos os membros da equipe de nossa clínica, são treinados nesta tradição das pinturas com famílias em situações criticas. Portanto passou a ser parte integrante de nosso trabalho diário, muito eficiente e muito apreciado pelas famílias, assim como pelos terapeutas.

Referências

ANDERSEN, T. The reflecting team: dialogues and dialogues about the dialogues. New York: Norton, 1991. 2 KJELLBERG, E (Org.). Man kan inte så noga veta… Stockholm: Mareld, 2001. 3 ANDERSON, H. Conversation, language and possibilities. New York: 1

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Basic Books, 1995. SVENSSON, J. Alma method. Personal communication. In course of publication, 2002. 5 FRIEDMANN, S (Ed.). The reflecting 4

team in action. New York: Guilford, 1995. 6 KRAMER, E. Art as therapy with children. New York: Schocken Books, 1971.


artigo

A criatividade como postura em ações de transformação social* Creativity as a principle in actions to generate social change

Cecília Cruz Villares Terapeuta Ocupacional e de Família, Membro da Equipe do Programa de Esquizofrenia – Universidade Federal de São Paulo, Coordenadora do Projeto S.O.eSq. cvillares@terra.com.br

* Esse artigo baseia-se numa apresentação em mesa redonda: Esquizofrenia: da apatia a processos criativos, durante a XVI Semana de Arte da Escola Politécnica - SAPO - em novembro de 2004, organizada pelo Grêmio Politécnico para alunos da Universidade de São Paulo. Agradeço ao José Alberto Orsi, colaborador do S.O.eSq., idealizador da SAPO e coordenador da mesa redonda, pelo convite e pelo título que me inspirou a pensar e descrever o Projeto S.O.eSQ. pela lente da criatividade.

Resumo: O Projeto S.O.eSq. – Serviço de Orientação à Esquizofrenia - faz parte do Programa para a Redução do Estigma na Esquizofrenia, uma iniciativa da Associação Mundial de Psiquiatria (WPA, sigla em inglês) lançada em 1996 e desenvolvida hoje em mais de 20 países de quatro continentes para criar estratégias informativas, educacionais e políticas para a redução do estigma e da discriminação devidos à esquizofrenia. Nas ações desenvolvidas no Brasil desde 2001, elegemos uma abordagem centrada no diálogo e em ações onde os protagonistas são profissionais, portadores e familiares. O objetivo deste texto é apresentar o Projeto S.O.eSq. pela vertente da criatividade como postura e elemento gerador de transformações para a concretização de nossos objetivos e estratégias. Buscando respeitar a complexidade da esquizofrenia enquanto doença e vivência, descrevemos algumas ações do projeto olhando para os processos nos quais as pessoas envolvidas buscaram, por exemplo, “abrir-se para o novo”, o trabalho em rede gerando conexões, e um jogo entre trabalho e brincadeira num contexto de confiança, tornando-se agentes de mudança social.

ABSTRACT: The World Psychiatric Association (WPA) initiated in 1996 a program to fight stigma and discrimination because of schizophrenia, currently undertaken by 20 countries around the world. The Brazilian site of the program, named “Projeto S.O.eSq” (S.O.S. Esquizofrenia) launched in 2001 an action plan that elected dialogue as the main approach to develop strategies and actions in a collective enterprise that seeks creative ways to generate solutions to broaden the discourse on schizophrenia and consequently the position and social capital of the people with schizophrenia in their communities. This article presents our achievements through the lenses of the creative processes like openness, networking to generate connections, divergence before convergence, and trust, work and play, and from the perspective of shared authority that enabled the participants to become protagonists in the process of social change sought by the project.

Palavras-chave: esquizofrenia, criatividade, complexidade, transformação social

Key words: schizophrenia, creativity, complexity, social change.

Introdução Esquizofrenia: da apatia a processos criativos

No meio acadêmico e na clínica, a esquizofrenia é usualmente entendida como uma condição grave e incapacitante e o foco dos textos e práticas mira principalmente as perdas cognitivas e afetivas, o distanciamento e o isolamento social de seus portadores em decorrência dos sintomas, da cronicidade da doença e de tratamentos que não contribuem para viabilizar caminhos de inclusão social. Ao mesmo tempo, o discurso social predominante sobre a esquizofrenia ainda vincula essa condição à violência, à loucura, perda 65


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da razão, descontrole, e todos esses atributos são textos poderosos que enquadram os portadores na categoria de doentes crônicos, sujeitos sem posse de sua história, sem autonomia, sem autoridade e sem outra voz senão aquela de “esquizofrênico”. São, ambos discursos, eficientes geradores e mantenedores de práticas de exclusão, aprisionando essas pessoas num lugar marginal, seja no universo dos serviços psiquiátricos, em quartinhos fechados em casa, ou na condição de “loucos de rua”. A solidão gerada pela impossibilidade do diálogo e a confusão diante da dificuldade de articular e falar sobre a experiência psicótica, muitas vezes acaba por levar essas pessoas a um estado de retraimento defensivo que é freqüentemente potencializado pela ação sedativa dos medicamentos antipsicóticos. Acercando-nos da experiência de quem tem a doença, percebemos que o percurso de negociação pessoal com o processo de receber um diagnóstico, reconhecer-se doente, aceitar o tratamento e conviver com barreiras diárias e dificuldades tão grandes, freqüentemente produz mais desânimo e desesperança do que otimismo e boas perspectivas para o futuro. Nesse percurso, tornar-se apático, desinteressado e sem desejos pode ser a única alternativa que o portador do diagnóstico encontra para se defender do sofrimento diante da experiência de desencaixe com mundo. E mais uma vez, esta forma de enfrentamento ao gerar retraimento social, o mantém solitário e aos olhos dos outros não o qualifica como alguém que está lutando para se recuperar e fazer parte de alguma rede social além daquelas ligadas à doença. Não é difícil concluir que a apatia seja uma estratégia de sobrevivência,

uma tentativa de acomodar, por um lado, as vivências resultantes da experiência solitária, e freqüentemente incompreensível, daquilo que nomeamos e descrevemos como sintomas psicóticos, mas que do ponto-de-vista dos portadores é basicamente a experiência de viver uma outra realidade ou de percebê-la de forma diferente das pessoas à sua volta. Perpetua-se, dessa maneira, um círculo vicioso de apatia, desmoralização, desesperança e marginalização ou exclusão social. Estigma, na experiência destas pessoas, é vergonha de ser diferente dos outros “normais” e necessidade de ocultar a doença; é também se sentir um ser humano inferior. Esta é a marca associada à esquizofrenia que aprisiona os portadores do diagnóstico à doença e, por extensão ou associação, envolve seus familiares na mesma teia de sofrimento. Temos, então, um cenário que é composto por falta de informação geral sobre a esquizofrenia e um discurso forte, muito negativo, mas socialmente validado sobre a doença que segue contribuindo para perpetuar, em todos os níveis de relações sociais, os mitos que afetam negativamente o tratamento e as oportunidades de integração social destas pessoas. Diante desse cenário, e com a intenção de criar um projeto para combater o estigma da esquizofrenia, promovemos em 2001 uma série de diálogos entre pacientes, familiares e profissionais do PROESQ – Programa de Esquizofrenia da Universidade Federal de São Paulo, com a proposta de que os participantes conversassem sobre as experiências de preconceito e discriminação e as idéias de cada um sobre o que fazer para mudar tal realidade. Este foi o movimento inicial que acolheu um grupo de pessoas


potencialmente interessadas em um projeto de ações, ou que ao menos ficaram curiosas, provocadas ou desafiadas diante de uma idéia que teve algo de “novo” para cada um naquele determinado momento. Desde então, cerca de 12 colaboradores fixos e dezenas de colaboradores eventuais vêm construindo coletivamente um projeto de ações que denominamos Projeto S.O.eSq*. O objetivo deste texto é apresentar o Projeto S.O.eSq. pela vertente da criatividade como postura e elemento gerador de transformações para a concretização de nossos objetivos e estratégias. Sabemos que o texto é sempre um recurso pobre diante da riqueza de emoções, gestos, falas e ações que constituem uma dada experiência. No entanto, é também uma forma de diálogo, pode ser um convite à reflexão e gerar questões para nortear outras ações dentro de nosso projeto ou a partir de interlocuções com idéias e iniciativas semelhantes. Pensamos também que projetos que almejam mudança social necessitam serem divulgados à comunidade, portanto escrever sobre o projeto é um compromisso e uma responsabilidade que assumimos ao coordenar o Projeto S.O.eSq.

Contexto de desenvolvimento do Projeto S.O.eSq.**

O S.O.eSq. faz parte do Programa para a Redução do Estigma na Esquizofrenia, uma iniciativa da Associação Mundial de Psiquiatria (WPA, sigla em inglês) desenvolvido hoje em mais de 20 países de quatro continentes. O programa visa criar estratégias informativas, educacionais e políticas para a redução do estigma e da dis-

criminação devidos à esquizofrenia. O alcance do programa e os objetivos específicos das atuações desenvolvidas em cada país são distintos em função das diferentes realidades locais, mas o objetivo final e a estrutura são únicos. O programa da WPA, denominado Open the doors (abra as portas) é constituído através de ações colaborativas envolvendo profissionais de saúde, organizações não governamentais (ONGs), representantes de portadores e familiares, líderes comunitários, formadores de opinião, representantes de governo e outros voluntários1. Durante a fase inicial de nosso projeto, os diálogos foram apontando que a experiência de estar e conversar numa roda de um jeito diferente, independente da categoria pré-estabelecida de paciente, profissional ou familiar facilitava escutar e entender a experiência e o lugar do outro. Este foi um fato criativo, pois gerou idéias e ações que fundaram o S.O.eSq. enquanto um projeto coletivo. Como resultado desses diálogos iniciais, promovemos o I Encontro conversando sobre a esquizofrenia, idealizado e organizado a partir de perguntas levantadas durante as rodadas de conversas. As questões foram enviadas a alguns profissionais como uma maneira de convidá-los a falar sobre o tema; além disso, um portador e um familiar integraram a mesa de palestrantes e também falaram de sua experiência de conviver com a doença. Assim, o primeiro evento educativo organizado pelo S.O.eSQ. propôs o diálogo como eixo central das ações do projeto, dinâmica que se reproduziu em todos os outros grupos de ação criados desde então. O que estava em jogo, desde os diálogos iniciais do projeto, ainda que não nomeado inicialmente, era buscar

A criatividade como postura em ações de transformação social Cecília Cruz Villares

* O Projeto S.O.eSq.

– Serviço de Orientação à Esquizofrenia – inicialmente se constituiu como um Projeto de Ações vinculado ao Programa Anti-Estigma da WPA e apoiado pela Associação Brasileira de Psiquiatria. Com o decorrer das ações, percebeu-se a necessidade da criação de uma associação de âmbito nacional que representasse os portadores de esquizofrenia e seus familiares e pudesse ajudar a fomentar uma rede para articular as associações de familiares e portadores/ usuários, e os projetos de capacitação e geração de renda existentes em todo país. Assim nasceu em 2002 a ABRE – Associação de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia - entidade sem fins lucrativos juridicamente constituída. A partir de 2005 o S.O.eSq. foi integrado à ABRE como seu braço operacional para investir na constituição de instrumentos para melhorar a qualidade de vida dos portadores de esquizofrenia e seus familiares que sejam embasados não só em evidências científicas, mas também em valores humanos universais, ainda negados a muitos portadores de esquizofrenia no nosso país.

** Informações sobre a

missão, as estratégias e as ações do Projeto S.O.eSq. e do programa Open the doors podem ser obtidas nos sites: www.soesq.org.br e www. openthedoors.com

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mudar a postura diante da doença em todos os seus aspectos: vivência pessoal ou profissional, conhecimento, sofrimento e preconceito. Na prática seguida da reflexão, fomos aos poucos articulando os processos que hoje descrevemos como componentes da criatividade como uma atitude para gerar ações de transformação social. Não pretendemos aqui discorrer teoricamente sobre o amplo tema da criatividade, mas apenas utilizar conceitos comumente utilizados para descrever a postura e os processos criativos e utilizá-los nesse texto, como eixo de articulação das práticas e mudanças geradas no projeto. É pouco comum encontrarmos descrições de abordagens construcionistas com ênfase em processos criativos. Ao buscarmos sustentação conceitual para o nosso trabalho, encontramos na literatura e derivamos idéias e perspectivas principalmente dos autores Schnitman e Fuks2 e Rasera e Japur3, por aproximação com as propostas informadas pelo construcionismo defendidas por estes para a prática psicoterápica. Nessa perspectiva, a criatividade pode ser descrita como a possibilidade de idéias novas serem geradas e implementadas dentro de um determinado enquadre relacional e mediadas pelo processo dialógico. Nesse sentido, a criatividade é componente de processos nos quais as pessoas envolvidas buscam, por exemplo, “abrir-se para o novo”, o trabalho em rede gerando conexões e um jogo entre trabalho e brincadeira num contexto de confiança e respeito. Alguns aspectos presentes nesses processos são o exercício do pensamento divergente e o uso de múltiplos estímulos na busca da mudança de um determinado padrão.

Além disso, ao abandonarmos a crença objetivista de uma ciência neutra, a nossa compreensão de criatividade inclui necessariamente adotar uma postura ética de respeito e compromisso com a cidadania, de buscar a cooperação em lugar da competição e de engajamento num projeto de construção conjunta de soluções. Para ilustrar tal processo, apresentaremos aspectos da missão, dos objetivos e das ações do S.O.eSq. enquanto processos criativos para promover uma mudança de padrão no discurso e nas práticas sobre a esquizofrenia.

Abrir-se para...

Não teríamos saído do papel não fosse a disposição das pessoas que inicialmente se envolveram no projeto de dialogar sobre suas experiências de convivência com a doença, as estratégias para superar dificuldades, aceitar a doença, procurar alternativas e de enfrentar o preconceito da doença. Igualmente, pouco teríamos alcançado sem a abertura dos participantes para aderir a um projeto ainda não definido, participar do delineamento e da construção desse conjunto de ações potenciais. Nada estava pronto, não havia um manual, não havia garantias. As pessoas que embarcaram nesse projeto se propuseram a “construir o barco e ao mesmo tempo navegá-lo” – em outras palavras, abriram-se para o novo.

Trabalho em rede através da composição de uma estratégia de colaboração

A composição de uma estratégia de


colaboração para gerar e alimentar conexões em rede está presente em todas as ações do projeto desde a sua concepção. O S.O.eSq. já nasceu como um projeto em rede de colaboração, dentro do Programa da WPA (Associação Mundial de Psiquiatria). Para trazer o projeto para o Brasil, contamos com a colaboração da ABP - Associação Brasileira de Psiquiatria, que é filiada a WPA. Essa articulação foi imprescindível para a formalização do projeto, uma vez que a ABP acolheu, validou e incentivou nossas ações, inicialmente cedendo uma sala em sua sede em São Paulo e posteriormente facilitando a divulgação das ações em eventos científicos por ela organizados. Desde 2004, por exemplo, somos responsáveis pela coordenação do Fórum de Transtorno Mental e Estigma durante o Congresso Brasileiro de Psiquiatria. O PROESQ - Programa de Esquizofrenia da UNIFESP é também um parceiro institucional importante para o S.O.eSq. A vinculação à universidade abriu portas para a elaboração de projetos de pesquisa e para o contato com os profissionais que estão produzindo ciência nessa área. Dezenas de colegas profissionais têm colaborado apresentando em encontros, aulas e outros projetos educacionais e informativos vinculados ao S.O.eSq. Além disso, o apoio da universidade abriu caminho para a aceitação de nossas propostas no meio acadêmico – e em conseqüência para a sociedade de maneira geral, pois uma vez que nosso discurso e nossas ações tenham sido validados nesse círculo, falamos mais facilmente desde um lugar de autoridade para formadores de opinião em outros contextos. A parceria com o PROESQ tem nos possibilitado também divulgar o projeto na mídia e em dezenas de eventos

científicos nacionais e internacionais. Acreditamos que cada oportunidade de falar para a imprensa ou participar de um evento científico é também uma chance de levarmos a nossa mensagem e contribuir para mudar algo na maneira como as pessoas vêem ou entendem a esquizofrenia. E sabemos que através destas ações conseguimos ajudar algumas pessoas a buscar uma rede de atenção e apoio e também encontrar potenciais multiplicadores do projeto. Além da universidade, temos buscado parceiros e colaboradores dentre associações de Familiares, ONGs que trabalham com projetos de inclusão social, equipes de serviços de atendimento da rede de saúde mental, a indústria farmacêutica e outros. O Instituto Familiae, em São Paulo, tem sido um parceiro importante para a consolidação do S.O.eSq. através de um projeto para capacitar lideranças entre familiares e portadores em ações de apoio e defesa de direitos junto à ABRE – Associação de Familiares, Amigos e Portadores de Esquizofrenia, criada pelo projeto para dar sustentação jurídica e continuidade às suas ações.

A construção de uma rede de colaboradores

Um outro nível de colaboração, concomitante e sobreposto às redes formais institucionais é a construção de uma grande rede informal de colaboradores voluntários do projeto. Desde agosto de 2001, quando começamos a “desenhar” as ações do S.O.eSq. formamos grupos mistos com a participação de portadores, familiares e profissionais, não apenas da área de saúde. A idéia

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que norteou esta maneira de trabalhar era constituir uma teia complexa de colaboradores com múltiplas perspectivas sobre a questão, visando a multiplicação e a manutenção da complexidade como postura. Além disso, todas as ações do S.O.eSq. têm sido pensadas e implementadas visando algum público alvo específico, pois sabemos que a efetividade de uma mensagem está em grande parte associada à maneira como é endereçada à sua audiência. Em qualquer comunicação, o que se diz e que linguagem se usa depende de um “a quem” e “para quê” falamos. Por exemplo, quando elegemos os educadores ou os jornalistas como público alvo de nossas intervenções, temos de saber falar para e com estes grupos. E para tanto, é útil buscar ter representantes destes grupos em nossa rede de colaboradores. Os portadores e os familiares têm ocupado um lugar muito especial na construção de estratégias de informação e nas atividades educativas. Em todas as etapas da formulação das ações eles têm estado presentes e contribuído para responder as seguintes questões: Quem participa? De que jeito? Todos podem falar? Como selecionamos as idéias e colocamos em prática aquelas que nos parecem mais viáveis? Vale tudo? Porque não? O que faz com que uma idéia seja boa e outra não? Quem trabalha com quem? Quem coordena? O que falamos, de que maneira, para quem? Para quê e para quem servirão estas ações? Onde queremos chegar, o que queremos mudar? O trabalho em rede, gerando conexões, amplifica o potencial criativo de um projeto. No S.O.eSq. desenvolvemos diversas estratégias para gerar conectividade, dentre elas o nosso website (www.soesq.org) como um mul-

tiplicador das ações locais e o contato com outros grupos, movimentos e associações que atuam no mesmo campo de ação, para buscar a composição de estratégias conjuntas, a formulação de uma agenda comum e aprender com a experiência dos outros grupos. Isso nos remete, outra vez, à postura de inclusão de múltiplas perspectivas, de respeito às diferenças, de construção e validação de autoridade e de saberes específicos e distintos e leva a um outro ponto característico do processo criativo presente em nosso projeto: Confiança, trabalho e brincadeira

A confiança como componente da criatividade nas ações do S.O.eSq. tem também dois sentidos principais: um primeiro sentido é o da experiência, ou proficiência, numa área de conhecimento, como ingrediente necessário a um processo criativo, porque não partimos do nada, no sentido que toda idéia criativa nasce em um campo de domínio de conhecimento. Em nosso projeto, isso diz respeito a acolher o conhecimento singular de cada colaborador em seu domínio de experiências. É, por exemplo, ouvir o profissional especialista - psiquiatra, mas também o portador/ paciente e o familiar, que são especialistas em suas experiências cotidianas de encontrar soluções para conviver com a doença da melhor maneira possível. Acreditamos e trabalhamos a partir desta confluência de domínios de conhecimento para construir uma estratégia compartilhada de ações. Um outro sentido de confiança como ingrediente necessário para o


processo criativo é o da construção de um ambiente favorável e seguro, que possibilite a inclusão e a participação efetiva de todos. Tal proposta é uma construção cotidiana, uma postura de cuidado e de respeito que temos procurado cultivar em nosso projeto. Para tanto, é preciso sempre estar atento e aberto a críticas e sugestões, não achar que somos melhores do que os outros, nem que sabemos mais. Buscamos ser consistentes e coerentes com nossos propósitos e trabalhar o preconceito e a intolerância que todos possuímos em algum nível, em relação a algo. Aprendemos juntos que para olhar para além do rótulo é preciso desafiar nossos próprios limites, num exercício permanente de transigência e diálogo que aceita o outro como possibilidade. Nas primeiras reuniões do grupo alguns pacientes perguntavam, algo em tom de desafio, se eles com suas histórias de não motivação, de não fazer, não concluir, não conseguir, poderiam efetivamente colaborar no projeto. Afinal, ter esquizofrenia ou saber-se esquizofrênico raramente é uma vivência associada a ter sucesso na vida; é comum que essas pessoas se vejam como fracassadas em muitos domínios de relações. No entanto, à medida que juntos caminhamos construindo ações, os primeiros resultados do projeto mostram que é possível mudar essas histórias de fracasso e impossibilidade. Esse resultado tem a ver, pelo menos em parte, com a construção de um laço de confiança e de aliar a disposição de trabalhar com prazer. Certa vez, em uma reunião naquele período em que discutíamos como começar a implementar as primeiras ações, um integrante comparou a nossa proposta nesse projeto a “um trabalho de formiguinha”, sentindo-se mui-

to pequeno diante das dificuldades e barreiras a serem vencidas. Lembramos, então, que formigas trabalham juntas e que um formigueiro é uma organização social fantástica. Mas alguém fez uma ressalva: “- É, só que as formigas trabalham o tempo todo, sem descanso nem festa...”. Decidimos, então, que em nosso formigueiro construiríamos também um salão de baile para as nossas festas! A alegria, o prazer e a paixão são temperos necessários ao processo de criação. Sem divertimento, não há criatividade. Por isso, sempre procuramos fazer com que nossos encontros e ações sejam também espaços e eventos sociais e não esquecemos que celebrar (um aniversário, a amizade, a vida, uma conquista) é essencial para estimular o trabalho e manter a mente aberta. A criatividade é alimentada pela alegria e pela motivação de fazermos algo com prazer. Um ambiente em que se pode brincar, fantasiar e jogar favorece o surgimento de idéias criativas, acolhe o novo, abre caminhos. E, definitivamente, combate à apatia!

Divergência antes da convergência

Teóricos da criatividade afirmam que o pensamento pode ser dividido em dois tipos: o convergente, em direção a uma única resposta correta, e o divergente, que resulta na capacidade de gerar respostas alternativas. O pensamento convergente privilegia a aquisição, a retenção e o julgamento. O pensamento divergente privilegia a busca de alternativas e opiniões, possibilita pegar carona nas idéias de outros, explorar caminhos inusitados, adia o julgamento e estimula a busca de soluções criativas.

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No S.O.eSq. temos procurado colocar em prática esse tipo de pensamento em todas as etapas de criação de alguma ação. Para ilustrar, descrevemos o processo de criação do nome do projeto e do nosso logotipo. No início do projeto, criamos um grupo a que chamamos de “Grupo de estratégias de informação e comunicação” cuja primeira tarefa era a de pensar em um nome para o projeto brasileiro. Esse grupo, composto principalmente por portadores e alguns profissionais, passou a se reunir semanalmente para conversar sobre o significado do projeto para cada um e sobre como transportar tudo isso sinteticamente para um “nome”. Ao mesmo tempo, vários integrantes foram trazendo propostas, até que uma delas foi acolhida pelo grupo por sua originalidade. O autor da proposta - S.O.eSq – um estudante universitário, paciente do PROESQ, trabalhou com seu pai, publicitário e também colaborador do projeto, diversas idéias até chegar à imagem que o grupo todo concordou traduzir melhor a nossa proposta. Nesse percurso, refletimos sobre as diversas imagens geradas para cada um a partir da expressão S.O.S.: surgiram as palavras resgatar, ajudar, socorro, solidariedade, tirando do isolamento, pedido de ajuda, esperança, entre outras. Ponderamos os aspectos bons, ou positivos, destas imagens e palavras, e os negativos. Concluímos que uma frase chamando à ação, junto ao nome S.O.eSq., compensaria o possível significado, sentido como passivo e negativo pelo grupo, de “esperar na praia pelo resgate e contar com a sorte para ser salvo...”. Para criar esta frase, alternamos rodadas de “chuva de idéias” (brainstorm) com discussões sobre os significados de “abram as portas”, ou

“abrindo portas” (traduções possíveis para Open the doors, título do programa internacional da WPA) e chegamos, através de um processo de votação de algumas propostas, à frase: “Abra sua mente, abra suas portas” como mensagem principal do projeto. Esse mesmo processo de pensar divergente também estimula uma outra postura característica do processo criativo - encontrar alternativas para a linearidade, por exemplo, andando de lado, em zig-zag ou navegando em círculos nas conversas. A idéia de que temos que andar sempre para frente em linha reta é um pesado legado do discurso científico ocidental moderno, que freqüentemente nos impõe um julgamento e tolhe outros caminhos possíveis. Porém, quando nos encontramos amparados por um grupo que acolhe a “conversa sem um propósito definido”, as “idéias malucas” de um dos membros, as derivações e tangenciamentos, tudo isso pode no final resultar em ações criativas. Por essa razão, no S.O.eSq todos os assuntos em uma roda de conversa são bem-vindos e potencialmente interessantes. Se o grupo valida, seguimos conversando. Às vezes nos perdemos e nos desorganizamos temporariamente em relação a alguma tarefa definida, mas isso também contribui para o surgimento de idéias novas que podem se tornar ações interessantes. O Boletim do S.O.eSQ. e, mais recentemente, o Informativo ABRE–S.O.eSq. (disponíveis em versão eletrônica no website do projeto), são exemplos de como produzimos materiais criativos a partir desse caminho, pois reúnem não só textos informativos sobre a esquizofrenia, mas também poesia, humor e arte produzidos pelos colaboradores. Tal multiplicidade de


linguagens e percursos nos permite abordar mais um aspecto da postura criativa no S.O.eSq.:

acesso dos colaboradores a informação, outros projetos e soluções. Projetos culturais: A Oficina de Criação Literária, por exemplo, foi um projeto que reuniu regularmente 10 portadores durante um ano em que foram produzidos muitos textos que serão reunidos num livro que esperamos brevemente lançar, além de terem sido postados no website do projeto e publicados nos Boletins. Além disso, procuramos incentivar os nossos colaboradores a buscar atividades artísticas e culturais na comunidade, bem como cursos de capacitação em alguma área específica. O convite ao diálogo com pessoas de diferentes áreas e formação: antropologia, psiquiatria, direito, jornalismo, comunicações, literatura, artes plásticas. Esses diálogos fertilizam o projeto com olhares diversos, contribuem para aumentar a rede e ampliam as perspectivas de todos os envolvidos sobre temas correlacionados ao projeto.

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Buscar múltiplos estímulos

De maneira geral, as pessoas que são potencialmente criativas interessamse por muitos assuntos em vários campos do conhecimento e são receptivas aos estímulos novos, complexos e ambíguos que estão ao seu redor; possuem a capacidade de captar estímulos simultâneos sem a intenção, inicialmente, de ordená-los ou organizá-los; costumam trabalhar em vários projetos inter-relacionados ao mesmo tempo. Essas pessoas são flexíveis para aproveitar oportunidades inesperadas, mas aos olhos de outros freqüentemente parecem introvertidas, contemplativas, às vezes um pouco anti-sociais ou até iconoclastas, dados os caminhos não-convencionais que costumam adotar em seu raciocínio ou ação. Muitos portadores de esquizofrenia se reconhecem nessas descrições, entretanto não se consideram pessoas criativas, uma vez que dificilmente conseguem concretizar suas idéias e planos ao longo da vida. Por esse motivo, no S.O.eSq. procuramos estimular a produção criativa dos portadores colaboradores, acolhendo talentos e buscando viabilizar projetos para que o potencial se concretize em ações. E dentre as estratégias para fertilizar ações criativas, destacamos: A composição de uma biblioteca e de uma videoteca com títulos sobre esquizofrenia, estigma, projetos de inclusão social e outros afins, além do acesso à Internet, facilitando o

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Buscando mudar um padrão: A complexidade como pano-de-fundo

A esquizofrenia é uma doença complexa do ponto-de-vista genético, sintomatológico e vivencial. Simplificar a esquizofrenia é reduzi-la a uma compreensão rasa, que resulta insatisfatória e freqüentemente inútil, porque não abre caminhos para a elaboração de estratégias integradas de compreensão nem gera práticas criativas. Segundo Morin4,5, a complexidade existe em qualquer circunstância onde se produza um emaranhado de ações, retroações e interações. Onde

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há dificuldade e incerteza, existe complexidade. Se a aceitamos, podemos desenvolver estratégias que a levem em conta, e não programas que pretendam simplificá-la. Nesse sentido, propõe Morin, o pensamento complexo não é o pensamento completo. No pensamento complexo há sempre lugar para o desconhecido e, portanto, para o erro, para o novo e para o improviso. O S.O.eSq. propõe a complexidade como pano-de-fundo para a compreensão da esquizofrenia e para o desenho de ações que busquem reduzir o estigma da doença. Isso funciona como um guia para que nos mantenhamos atentos a cada vez que alguma situação geradora de angústia e dúvida nos convida à simplificação. Muitas vezes é difícil manter a porta aberta para a o desconhecido e para o imprevisto e aceitar que não sabemos, mas essa postura pode também trazer como recompensa a curiosidade e a criatividade para gerar recursos no desenho de novos cenários a cada nova etapa do processo. Nesse sentido, o projeto visa desenvolver ações e criar textos que contribuam para um discurso sobre a esquizofrenia menos aprisionante e negativo. Isso está presente nas mensagens, no boletim, na maneira de organizar as atividades educacionais, no website do projeto, enfim, em todos os níveis de atuação dos grupos de ação. Os portadores envolvidos no projeto vêm gradativamente desempenhando ações em que se colocam como protagonistas de um discurso que privilegie a complexidade da esquizofrenia, pela diversidade e singularidade das vivências e soluções encontradas por eles para transpor problemas decorrentes da convivên-

cia com o transtorno. Tal participação vem sendo cuidadosamente construída através de um processo que implica em transformação pessoal, pois ao nos constituirmos como agentes de mudança social estamos promovendo em primeiro lugar uma mudança na maneira como nos vemos no mundo. E embora não tenhamos nos constituído como um projeto terapêutico, reconhecemos e acolhemos tal efeito, na medida em que isso possibilita às pessoas envolvidas, sobretudo os portadores, irem resgatando e reconstruindo uma idéia de si mesmos que transcenda a imagem fixa, estagnada e ancorada na identidade de “doentes” ou “incapazes” e dessa forma, a apatia, como sentimento ou postura, dá lugar ao engajamento, à responsabilidade, ao compromisso, ao horizonte, à esperança, ao novo, ao inédito. Penso que o que estamos fazendo no S.O.eSq. é começar a, juntos, desenhar e criar contextos que podem efetivamente contribuir para a expansão de territórios de afeto, conhecimento e ação. Para concluir, tomo emprestadas as palavras de Schnitman e Fuks2 arriscando afirmar que esta prática social pode oferecer às pessoas que dela participam, uma “oportunidade de envolver-se ativamente na construção e desenho de sua própria realidade existencial” (p. 386). Portanto, considere-se envolvido nessa construção se este texto sobre o projeto tiver contribuído para que você termine a leitura com algumas idéias novas a respeito da esquizofrenia e se puder enxergar que as pessoas que têm esquizofrenia também têm desejos, aspirações, talentos e saberes. Teremos, juntos, compartilhado de um momento criativo e, quem sabe, transformador.


Referências

SARTORIUS, N, SCHULZE, H. Reducing the stigma of mental illness. United Kingdom: Cambridge University, 2005. 2 SCHNITMAN, D. F.; FUKS, S. I. Metaforas del cambio: terapia y proceso. In: D. F. SCHNITMAN (Org.). Nuevos paradigmas cultura y subjetividad. Buenos Aires: Paidós, 1994. 3 RASERA, E. F.; JAPUR, M. Desafios da 1

aproximação do construcionismo social ao campo da psicoterapia. Estudos de Psicologia, 9(3), 431-439, 2004. 4 MORIN, E. Epistemologia de la complexidad. In: D. F. SCHNITMAN (Org.). Nuevos paradigmas cultura y subjetividad. Buenos Aires: Paidós, 1994. 5 MORIN. E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.

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artigo

O terapeuta como produtor de conhecimentos: contribuições da perspectiva construcionista social Therapist as knowledge producer: social constructionist perspective contributions

Emerson F. Rasera

Psicólogo, mestre e doutor em Psicologia, Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto, SP. emersonrasera@uol.com.br

Carla Guanaes

Psicóloga, mestre e doutora em Psicologia, Centro Universitário Barão de Mauá, Ribeirão Preto, SP. carla_guanaes@yahoo.com

Resumo: A formação de um terapeuta é um processo contínuo, desenvolvido através de estudos teóricos, ampla prática clínica, supervisão e a comunicação das aprendizagens realizadas. Contudo, na sociedade brasileira, este último aspecto tem sido negligenciado, mantendo o terapeuta na posição de um consumidor de conhecimentos e relegando a segundo plano o aspecto criativo e reflexivo de sua prática. Visando estimular os terapeutas a assumirem sua responsabilidade de partilhar seus conhecimentos produzidos a partir da clínica, bem como fomentar a troca e o diálogo na comunidade da terapia familiar, este artigo tem como objetivo geral promover uma reflexão sobre o processo de produção do conhecimento científico a partir de uma perspectiva construcionista social.

ABSTRACT: To become a therapist is a continuous process developed through on theoretical studies, broad clinical practice, supervision and communication of the knowledge developed in practice. However, in brazilian society, this last feature has been neglected, keeping the therapist in the position of a simple knowledge consumer and leaving to a second plan the creative and reflexive feature of his/her practice. Aiming to stimulate therapists to assume their responsibility on sharing the knowledge produced in their clinical practice, as well as to promote the dialogue between them, the objective of this article is to reflect on the construction of scientific knowledge based on a social constructionist approach.

Palavras-chave: construcionismo social, prática clínica, metodologia de relato de caso clínico.

Key words: social constructionism, clinical practice, case study methodology.

Introdução

Ao longo da história das psicoterapias, a prática clínica tem se constituído como um importante contexto de geração de conhecimentos, sustentando e legitimando determinadas técnicas de intervenção e modos de atuação profissional. Contudo, o conhecimento advindo das práticas psicoterápicas cotidianas nem sempre é comunicado de modo a garantir sua legitimidade como conhecimento válido e confiável, o que se deve, entre outras coisas, ao desconhecimento dos terapeutas acerca do debate contemporâneo sobre como se dá a construção do conhecimento científico, incluindo seus modos de produção, estrutura e retórica. Esse artigo tem como objetivo geral promover uma reflexão sobre o processo de produção do conhecimento científico a partir de uma perspectiva construcionista social, visando estimular os terapeutas a comunicarem suas práticas clínicas de modo a garantir visibilidade e legitimidade ao conhe76


cimento produzido nesse contexto. Fundamentados numa epistemologia construcionista social em ciência, buscamos, nesse artigo: a) promover um diálogo entre o pensamento moderno e a proposta construcionista social, visando refletir sobre suas diferenças e implicações na concepção de ciência e prática de pesquisa; b) discutir as noções de método, objetividade e rigor que orientam a ciência moderna, redimensionando estas mesmas noções a partir de uma perspectiva construcionista social; c) refletir sobre a ciência enquanto empreendimento retórico, ressaltando o caráter construído do conhecimento científico e o papel do pesquisador na construção da realidade; d) oferecer dicas práticas para a construção de um relato de caso, envolvendo a identificação de casos clínicos a serem estudados, a formulação de uma questão, aspectos a serem explorados e a reflexão sobre aspectos éticos.

Construcionismo social e pesquisa: um novo olhar sobre a ciência

O discurso construcionista social surge, no contexto das ciências humanas, como uma alternativa às formas empiricistas de se conceber a ciência e os processos de produção de conhecimento. Baseado em concepções críticas às noções de objetividade, verdade e racionalidade, ele rompe com preceitos das teorias modernas, abrindo possibilidades para novas reflexões no campo científico e para perspectivas normalmente descritas como pósmodernas1,2. Coerentemente com as propostas pós-modernas, o referencial construcionista social caracteriza-se pela

ênfase dada aos processos pelos quais as pessoas descrevem e explicam a si mesmas ou ao mundo em que vivem, entendendo que estas explicações resultam da interação entre as pessoas3. Nesta perspectiva, entende-se que os significados são construídos discursivamente entre as pessoas, através dos processos de troca dialógica. Segundo Shotter4, comum a todas as versões construcionistas sociais é a assunção central de que não é a dinâmica de uma mente individual ou das características localizadas em um mundo externo que deve constituir nosso objeto de investigação, mas sim o contínuo fluxo da atividade comunicativa humana, uma vez que são os processos lingüísticos situados nos relacionamentos humanos que possibilitam a produção de conhecimento sobre nós mesmos e sobre o mundo em que vivemos. É de dentro deste contexto dinâmico e relacional que o que é falado ganha significado. Portanto, ao invés de focalizar o modo como os indivíduos chegam a conhecer os objetos ou a realidade, a proposta construcionista social busca compreender como as pessoas desenvolvem e sustentam determinadas formas de descrição nas conversas das quais participam, e como elas dão, a partir destes modos específicos de fala, sentido ao mundo em que vivem. É importante ressaltar que a aproximação entre construcionismo social e pesquisa é indicativa de um posicionamento epistemológico particular. Tal como sugerem Spink e Menegon5, é o lugar do pesquisador no debate entre realismo e construcionismo social que define sua postura epistemológica. As perspectivas ditas pós-modernas (entre as quais, se situa o discur-

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so construcionista social) geralmente privilegiam o estudo da linguagem e da interação entre as pessoas na compreensão dos processos de construção do significado. Diferenciam-se, assim, das propostas modernas, que afirmam a natureza essencial das coisas e buscam revelar, por procedimentos de observação controlada e cuidadosa, a estrutura básica ou a essência dos objetos investigados, a fim de tirar conclusões e estabelecer princípios. Ao contrário, as propostas pós-modernas buscam examinar como o processo de interação proporciona oportunidades para que surjam definições particulares e, como diz McNamee6, “(...) como contextos interativos específicos oferecem oportunidades para discursos totalmente diferentes” (p. 229). Também situando essa mudança epistemológica, Pearce7 ressalta a passagem de uma postura objetivista para uma abordagem construcionista social. Para este autor, enquanto o paradigma moderno sustenta-se sob a idéia da linguagem enquanto representação do mundo, a perspectiva construcionista, num paradigma pós-moderno, aponta para o papel da linguagem na construção do mundo, assim enfatizando seu papel formativo e construtivo. Ibañez8 discute tais diferenças epistemológicas enfatizando quatro aspectos que considera como “mitos” da modernidade e que funcionam como críticas ao discurso construcionista social: a) o mito do conhecimento como representação correta da realidade; b) o mito do objeto como elemento constitutivo do mundo; c) o mito da realidade como entidade independente de nós; e d) o mito da verdade como critério decisório. Em contraposição a estas noções, ele sintetiza a epistemo-

logia construcionista social a partir das seguintes assunções: a) a realidade não dita os modos pelos quais deve ser descrita, pois é uma construção social. As descrições sobre a realidade estão pautadas por normas e convenções, que as sustentam e legitimam como versões possíveis do mundo; b) o objeto não existe de modo independente do conhecimento construído a seu respeito. O que consideramos como objetos naturais são objetivações que resultam de um conjunto de práticas e de um jogo de convenções sociais; c) a possibilidade de neutralidade do pesquisador na produção do conhecimento é uma ficção. Rompendo com a dicotomia sujeito-objeto, o construcionismo afirma o caráter construído do sujeito, do objeto e do conhecimento. A realidade é sempre vista como “realidade para nós”, considerando as possibilidades sociais e normativas que orientam a construção dos sentidos; e d) a verdade não tem um caráter absoluto e transcendente; como construção, ela é sempre relativa a circunstâncias e contextos sóciohistóricos particulares; Em termos práticos, assumir tais proposições nos leva à redefinição de ciência, de seus objetivos e métodos. É o que nos favorece a descrição de Shotter4 que, explicitando a distinção entre os fundamentos de uma epistemologia realista e construcionista social em ciência, nos diz sinteticamente daquilo que essa última nega-se a fazer: propiciar representações acuradas de uma realidade subjacente; conceber o conhecimento como um sistema estático de formas e estruturas; as-


sumir que os processos psicológicos consistem em processos cognitivos já existentes nos indivíduos; conceber a linguagem como um código pré-estruturado ligando eventos interiores a eventos exteriores na vida social; separar a fala do contexto conversacional; e propiciar a noção de uma visão única e verdadeira, ou clamar por uma voz privilegiada na explicação dos processos humanos. No contexto brasileiro, essa discussão tem sido bem apresentada por Spink9, que desenvolve propostas teórico-metodológicas alternativas às perspectivas tradicionais em pesquisa qualitativa. Como apontam Spink e Menegon5, em uma perspectiva construcionista social, as descrições de “realidade” são vistas como construções sócio-históricas, estando entrelaçadas às práticas discursivas em que são construídas. Isso leva à ressignificação da relação sujeito-objeto, rompendo com o dualismo que tradicionalmente atravessa essa questão. Sujeito e objeto são construídos num jogo dialógico e dialético. Na relação com o objeto de seu estudo, o pesquisador o constrói e é construído por ele de determinados modos. Essa visão leva à redefinição do próprio entendimento de ciência, vista tradicionalmente como um conjunto particular de métodos objetivos e técnicas de apreensão da “realidade” ou “verdade”. Numa perspectiva construcionista social, entende-se que, por meio de seus métodos de investigação, a própria ciência produz descrições do mundo, versões possíveis da realidade que se propõe a investigar. Portanto, a ciência é também entendida como uma prática discursiva, regulada por processos sociais e por convenções

normativas que orientam sua construção de sentidos sobre o mundo. A ciência, assim como outros gêneros de linguagem, também obedece a determinadas regras lingüísticas e à certa organização retórica, que lhe garantem legitimidade enquanto conhecimento verdadeiro e confiável. Partindo dessas noções, Spink e Lima10 redimensionam os critérios tradi­cionais das pesquisas realistas, tais como objetividade e rigor. Como o construcionismo questiona a noção do conhecimento como representação do real, assumindo a importância da interpretação e o papel ativo do pesquisador na produção do conhecimento científico, o rigor, tradicionalmente associado às noções de replicabilidade, generalidade e fidedignidade, passa a ser visto como a “possibilidade de explicitar os passos de análise e da interpretação de modo a propiciar o diá­logo” (p.102), e a objetividade passa a ser descrita como um processo intersubjetivo. Além destas noções, Spink e Menegon5 apontam três características importantes das pesquisas qualitativas de cunho construcionista: a) a indexicabilidade – que se refere a situacionalidade da produção de sentido (o sentido muda de acordo com as variações no contexto); b) a inconclusividade – que se refere à complexidade dos fenômenos sociais e à impossibilidade de se controlar todas as variáveis que interferem em sua produção; e c) a reflexividade – que se refere à aceitação da interpretação e a explicitação dos efeitos da presença do pesquisador nos resultados da pesquisa. Aqui, a “subjetividade” do pesquisador é considerada, constituindo um recurso fundamental no processo de produção de conhecimento.

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No Quadro 1, sintetizamos algumas distinções entre as epistemologias realistas e construcionistas sociais e implicações para a prática científica. Essas reflexões da epistemologia construcionista social sobre a prática de pesquisa traduzem o momento de reconfiguração que as ciências humanas e sociais têm vivenciado nos últimos anos, a partir da proposição de outras possibilidades de construção de conhecimento e de abordagens metodológicas alternativas.

Quadro 1: Distinções entre as epistemologias realista e construcionista social Epistemologia/ Distinções

Realismo

Construcionismo social

Definição de ciência

Modo de apreensão do real

Prática discursiva

Objetivo da pesquisa científica

Investigação da essência ou estrutura básica dos fenômenos investigados, a fim de estabelecer conclusões e princípios explicativos

Investigação dos processos de construção do significado, visando construir relações e definições particulares

Métodos de coleta e análise de dados

Procedimentos Explicitação dos métodos de de observação controlada e rigorosa. coleta e análise, e dos passos Critérios de validade de interpretação tomados pelo e fidedignidade pesquisador.

Linguagem

Como representação do mundo

Como construtora do mundo

Relação sujeito-objeto

Separação sujeito-objeto

Reflexividade: intersubjetividade na produção de sentidos

Neutralidade do pesquisador Contexto

Limitar a influência do contexto. Controle de variáveis visando a replicabilidade e generalização dos resultados.

Indexicabilidade e inconclusividade. Ênfase no caráter situado do conhecimento construído.

Produzindo conhecimentos na prática clínica

O cotidiano da prática terapêutica é fonte de inúmeras aprendizagens que, muitas vezes, não são partilhadas na comunidade acadêmica e profissional. A perspectiva construcionista sobre a produção do conhecimento, tal como apresentamos anteriormente, busca promover a criação de novas inteligibilidades e a incorporação democrática de diferentes vozes no processo de produção de conhecimento. Nesse artigo, defendemos que o terapeuta deve ser uma dessas novas vozes e que sua vivência possa ser valorizada em seus próprios termos, por meio da divulgação de relatos clínicos que preservem a complexidade do fenômeno estudado e facilitem sua utilização por outros terapeutas. Os casos clínicos consistem uma forma privilegiada e tradicional de diálogo sobre o conhecimento produzido na clínica. Buscando traduzir as discussões teórico-metodológicas apresentadas em apontamentos sobre a prática de redação de um artigo de um caso clínico numa perspectiva construcionista social, oferecemos, a seguir, um conjunto de passos que poderão ser úteis para aqueles terapeutas interessados nesta empreitada, porém pouco acostumados a ela. Passo 1 – Seleção do caso a ser estudado. Um passo inicial importante na redação de um estudo de caso é a identificação do caso clínico que pode proporcionar um bom relato. Refletindo sobre os casos por ele atendidos, o terapeuta pode se fazer algumas questões úteis neste processo de seleção: trata-se de um caso típi-


co ou é um caso “fora do padrão”? O que ele tem de marcante que merece uma atenção maior? Quais foram as aprendizagens do terapeuta desse caso? O que os outros terapeutas podem aprender com este relato? Como o terapeuta imagina uma história a ser contada sobre este caso? Quais seriam seus momentos mais importantes? Ela teria um evento central promotor de mudança significativa? Como a história terminaria? A retomada das anotações sobre o caso e a seleção de trechos marcantes das mesmas facilitarão este processo e auxiliarão na redação do relato propriamente dito. Passo 2 – Revisão da literatura sobre o assunto. A releitura de textos conhecidos ajuda no processo de reflexão sobre o caso, bem como facilitam a busca por novas referências bibliográficas que busquem responder às indagações que surgem neste processo. A tarefa de revisão é otimizada quando são feitos breves resumos dos textos e selecionados aqueles trechos mais significativos que poderão vir a ser utilizados na redação de um artigo. Esse material pode ser organizado em fichas, contendo as referências completas, a paginação das citações literais relevantes, comentários gerais e reflexões do autor/terapeuta. Durante a realização dos passos 1 e 2, a narrativa a ser desenvolvida no relato do caso vai se tornando mais clara. Passo 3 – A escolha da revista - A escolha da revista na qual se pretende publicar o trabalho é uma parte do processo de diálogo com os autores/ leitores desejados. Nesta co-construção dialógica, o texto do autor deve se adaptar às exigências apresentadas

pela revista. As instruções aos autores indicam o formato (número de páginas, margens, tamanho da letra, etc.) de artigo aceito por ela. A conversa promovida pelo relato de caso deve estar delimitada pelas condições impostas pela revista. Passo 4 – O início da redação do artigo: a apresentação da literatura. Considerando os motivos que levaram à escolha do caso selecionado, e o objetivo do artigo, este se inicia com a apresentação dos outros autores com quem se quer dialogar. Nas palavras de Shotter11, na redação de um texto são explicitadas as conexões que se constroem no diálogo com os “amigos textuais” - os autores de preferência, que auxiliam a dar forma ou sentido às idéias, impressões e explicações de observações da prática cotidiana. Assim, no que comumente se entende como a introdução de um artigo, há uma breve apresentação da opinião desses autores sobre o que se quer discutir, bem como algumas reflexões iniciais. Usualmente, há algumas citações de tais autores. Estas seguem as normas oficiais de redação*. O ato de iniciar a escrita de um artigo estimula um diálogo interno e esse, por sua vez, facilita aquele. À medida que se escreve o que se pretende, novas reflexões podem surgir e enriquecer a análise inicial. Estas reflexões permeiam todo o processo de redação de um artigo. É neste sentido que um texto é sempre um diálogo escrito entre o autor e outros autores ou leitores. Dessa forma, a redação do texto antecipa as necessidades e curiosidades dos leitores, bem como responde às principais críticas que eles apontariam.

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* As normas para redação das citações e referências bibliográficas podem ser encontradas em www.ip.usp. br/biblioteca/pdf/

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Passo 5 – Apresentação do objetivo do artigo. O autor deve descrever a motivação pessoal para a redação deste caso, explicitando o tema principal a ser discutido no artigo. Aquelas reflexões do passo 1 devem agora ser explicitadas para o leitor. Ele deve entender com clareza qual o objetivo do autor ao redigir este relato, qual a sua questão norteadora. Em especial, deve se tentar responder a seguinte questão: o foco está na peculiaridade da história do cliente, em alguma forma de intervenção proposta pelo terapeuta, ou em alguma solução inventada na relação entre ambos? Usualmente, o objetivo de um caso clínico se refere a tentativas de explicitação de intervenções do terapeuta que auxiliaram na construção discursiva da mudança; a análise de sentidos de problema e self construídos no contexto clínico, etc. É importante observar que o objetivo do artigo é diferente do objetivo do atendimento clínico. O objetivo do atendimento e as queixas que o motivaram devem ser apresentados depois. Passo 6 - Situar brevemente o contexto, os participantes e a duração do atendimento. O relato deve conter uma descrição sobre o local do atendimento (especialmente, se o atendimento foi realizado em alguma instituição), bem como os clientes – em termos de idade aproximada, sexo, lugar na família (quando for atendimento em terapia familiar) e motivos para a busca de atendimento. Esta descrição deve proporcionar ao leitor uma imagem de quem são os clientes, contudo, não deverá permitir que os participantes sejam identificados. Por vezes, serão necessárias algumas omissões ou substituições de informações de identifica-

ção, visando preservar o anonimato dos clientes. Uma descrição do terapeuta também se faz necessária. Além da descrição do contexto e dos participantes, deve ser feita uma apresentação sucinta do modelo de atendimento que inspira as ações do terapeuta e características gerais do atendimento deste caso (número de sessões, duração, sessões conjuntas e/ou de partes da família, etc.). Passo 7 - Apresentação do desenvolvimento do caso. Durante a realização do passo 1, foi possível imaginar uma narrativa sobre o caso selecionado. Esta narrativa deve ser apresentada, buscando apontar todos aqueles aspectos necessários para alcançar o objetivo proposto anteriormente (ver passo 5). A apresentação do desenvolvimento pode conter pequenos trechos das anotações sobre o caso e algumas falas significativas aí existentes, sejam do terapeuta ou dos clientes (ver passo 1). A seleção destes trechos deve sempre respeitar o objetivo do relato, consistindo uma forma de ilustrar o ponto de vista e a reflexão desejada pelo autor. Passo 8 - Explicitação dos conceitos teóricos que auxiliaram na compreensão do caso. A narrativa sobre o caso deve vir acompanhada das análises do autor. Estas podem aparecer durante a própria apresentação do desenvolvimento do caso, ou vir logo após a mesma. Estas análises consistem nos questionamentos que o terapeuta/autor teve durante seu atendimento do caso, bem como depois, ao refletir sobre o mesmo. Estes questionamentos devem promover um diálogo com as explicações apresentadas pela literatura, ou seja, as interpretações


e os conceitos teóricos que apontam um entendimento sobre a situação e os eventos ocorridos. Da mesma forma, o terapeuta/autor pode resgatar suas experiências clínicas anteriores, enriquecendo o diálogo entre a teoria e a prática relatada. O grau de reflexividade é um dos aspectos mais significativos da qualidade de um relato de caso. Passo 9 - Justificativa da utilização dos conceitos teóricos selecionados. A explicitação dos conceitos utilizados (passo 8) deve sempre ser muito bem justificada. Assim, a utilização de um conceito deve trazer uma breve descrição do mesmo e o autor deve se reassegurar de sua correta utilização. Este procedimento auxilia tanto a melhor compreensão do argumento do autor, como o questionamento do próprio conceito, promovendo uma expansão dos horizontes de entendimento sobre o mesmo. Passo 10 – Indicação das implicações teóricas e práticas das reflexões apresentadas. Tendo concluído a descrição analítica do caso, é útil apontar as implicações deste relato para a prática clínica, ou seja, as formas pelas quais o relato apresentado pode modificar a prática de outros terapeutas, convidando a novos entendimentos e posturas em relação ao tema trabalhado no artigo. Quando possível, a indicação dos desafios teóricos trazidos pelo relato e a necessidade, ou mesmo proposição, de uma redescrição das contribuições teóricas apresentadas durante a introdução do artigo (ver passo 4), pode valorizar o artigo. Passo 11 – Redação das referências bibliográficas e do resumo do artigo. A

redação das referências e do resumo deve seguir as orientações oferecidas pela revista na qual o relato será publicado. No Brasil, nas revistas da área psicológica, freqüentemente são utilizadas as normas da ABNT ou da APA para citação e referência. Elas podem ser encontradas na própria seção de “orientação/instrução aos autores” das revistas, bem como em livros12, ou sites (ver nota anterior). Passo 12 – Revisão do artigo. Após a conclusão da redação do relato de caso, pode ser muito útil que outros terapeutas próximos do autor leiam o relato, buscando oferecer sugestões de mudança que possam aprimorar o mesmo, solucionando problemas de clareza e precisão do argumento exposto. Finalmente, o artigo deve ser revisto pelo próprio autor, buscando identificar qualquer erro presente, seja gramatical, ortográfico, de digitação ou outros. Passo 13 – Cuidados éticos na redação de um relato de caso. Durante todo o texto, o anonimato e o respeito à imagem dos clientes devem ser buscados. Contudo, estes cuidados não são suficientes para se sustentar uma “ética dialógica”, tal como proposta pelos autores construcionistas13. O terapeuta deve também pensar nas implicações de publicação deste relato para os clientes. Como os clientes se sentirão ao lerem o relato? Qual o impacto que isto pode ter em suas relações? Qual o equilíbrio entre o ganho da comunidade de terapeutas ao ler este relato e o possível risco vivido pelos clientes após a sua publicação? Depois de serem tomados estes cuidados, o terapeuta deve pedir o consentimento

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para publicação, por escrito, dos participantes do caso relatado. Apesar das polêmicas discussões atuais sobre as normas éticas de pesquisa envolvendo seres humanos no campo das ciências humanas e sociais, a orientação formal da atual Comissão Nacional de Ética em Pesquisa14 é de que o artigo seja submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) mais próximo, para aprovação e posterior encaminhamento para publicação*.

Considerações finais

Neste artigo buscamos apresentar algumas contribuições construcionistas para a transformação das práticas de produção de conhecimento. Comprometidos com esta empreitada, não nos restringimos a descrever as discussões epistemológicas próprias para aqueles já habituados com o fazer científico, mas oferecemos algumas orientações práticas para aqueles que nem sempre estão incluídos neste contexto. Esta dupla tarefa presente no artigo é uma tentativa de democratização da construção do conhecimento, visando a produção de novas inteligibilidades sobre o fazer terapêutico a partir das falas e dos olhares dos terapeutas e seus clientes. Trata-se de um convite que esperamos seja aceito por vários terapeutas.

Referências

GUANAES, C. A construção da mudança em terapia de grupo: um enfoque construcionista social. São Paulo: Vetor, 2006. 2 RASERA, E. F.; JAPUR, M. Os senti1

* Consulte a lista de CEPs registrados no endereço http://conselho.saude.gov. br/comissao/eticapesq.htm

dos da construção social: o convite construcionista para a Psicologia. Paidéia: cadernos de psicologia e educação, v.15, p. 21-29, 2005. 3 GERGEN, K.J. Realities and relationships: soundings in social construction. Cambridge: Harvard University, 1997. 4 SHOTTER, J. Conversational realities: constructing life through language. London: Sage, 2000. 5 SPINK, M. J. P.; MENEGON, V. M. A pesquisa como prática discursiva: superando os horrores metodológicos. In: Spink, M. J. (Org.) Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999. 6 MCNAMEE, S. A reconstrução da identidade: a construção comum da crise. In: S. Mcnamee, S.; Gergen, K. J. (Orgs.) A terapia como construção social. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. 7 PEARCE, W. B. Novos modelos e metáforas comunicacionais: a passagem da teoria à prática, do objetivismo ao construcionismo social. In: Schnitman, D. F. (Org.) Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. 8 IBAÑEZ, T. Como se puede no ser construccionista hoy en dia? In: IBAÑEZ, T. Psicologia social construccionista. México: Universidad de Guadalajara, 2001. 9 SPINK, M. J. P. (Org.) Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999. 10 SPINK, M. J. P.; LIMA, L. Rigor e visibilidade: a explicitação dos passos


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de interpretação. In: Spink, M. J. (Org.) Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: aproximações teóricas e metodológicas. São Paulo: Cortez, 1999. SHOTTER, J. Cultural politics of everyday life. Toronto: University of Toronto, 1993.

AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSO-

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CIATION. Manual de estilo da APA.

Porto Alegre: Artmed, 2006. 13 SPINK, M. J. P. A Ética na pesquisa social: da perspectiva prescritiva à interanimação dialógica. Psico, v. 31, p. 7-22, 2000. 14 HOSSNE, W. S. O CONEP responde. Cadernos de Ética em Pesquisa, v. 13, p. 6-10, 2004.

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estante de livros

Prezad@ leitor@: Estamos de volta, cara e disposição renovadas. Tentando manter uma coerência com a idéia da parceria que se inaugura neste número, foi feito um convite ao qual Marilene Grandesso prontamente atendeu, colaborando com comentários sobre o livro A psicologia na comunidade: uma proposta de intervenção, de Carmen Leontina Ojeda More e Rosa Maria Stefanini Macedo, com a precisão e a elegância de sempre. Estendo aqui o convite para uma participação mais ampla nesta seção. Você pode mandar sugestões de livros que leu e mesmo uma resenha para ser publicada. E será sempre um prazer receber suas mensagens! Eloisa Vidal Rosas

A psicologia na comunidade: uma proposta de intervenção Carmen Leontina Ojeda Moré, Rosa Maria Stefanini MACEDO São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. 210pp.

Marilene Grandesso NUFAC – Núcleo de Família e Comunidade da PUC-SP INTERFACI – Instituto de Terapia de Família, Casal e Indivíduo

“O que mesmo faz um psicólogo?” (fragmentos de um diário de campo) Esta pergunta de uma moradora da comunidade, foi uma das instigadoras companheiras de percurso, uma espécie de estrela-guia, iluminando o caminho de Carmen Moré, psicóloga responsável pela implantação de um Serviço de Psicologia numa Unidade de saúde comunitária da cidade de Florianópolis. Partindo de valores não usuais em uma clínica tradicional, o livro é a biografia de um projeto, unindo a experiência de vários anos de prática clínica de Carmen Moré e o diálogo produtivo com Rosa Macedo. O resultado é uma ressignificação da prática clínica, organizada em torno de metáforas de possibilidades, como uma forma esperançosa de promover contextos generativos de saúde individual, familiar e comunitária. Criatividade, coerência epistemológica e rigor metodológico, juntam-se na organização de uma prática clínica em espaços públicos não usuais, que vai onde o povo está, compreendendo os seres humanos em contexto e promovendo uma ampliação da Psicologia Clínica, para além dos espaços convencionais. Como um caminho que se constrói ao caminhar, o modelo de intervenção descrito pelas autoras tem como contexto as histórias de vida de uma comunidade tecidas numa infinidade de situações e vivências. Uma escuta acolhedora para cada frase sobre sentimentos, angústias, medos e desafios de pessoas comuns vivendo seus dilemas e dramas, criou o ponto de partida e a referência para a construção de uma relação de ajuda totalmente inserida nos contextos 87


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de vida de cada pessoa que passou pelo projeto. O relato comovente e estético dessa proposta de intervenção é um testemunho vivo de que se pode desenvolver um trabalho científico simultâneo à realização de uma prática numa realidade complexa, diversificada e imprevisível, entrelaçando um fazer e um refletir sobre a ação. O trabalho representa uma proposta inovadora de atenção à saúde, em que histórias coletivas de uma comunidade podem ser escritas a partir da singularidade das histórias de cada pessoa que busca ajuda para suas condições de sofrimento. Mostra-se capaz de superar a fragmentação de especialidades que, lamentavelmente, seleciona e exclui demandas que não se encaixam no seu território. No modelo de intervenção proposto, a leitura da realidade e organização da experiência foram norteadas por quatro etapas principais, cada uma com seus aspectos diferenciais em torno de focos temáticos derivados das informações disponíveis junto aos que buscavam pelos serviços de psicologia da Unidade de Saúde, de suas famílias e de sua rede pessoal e social. Em cada etapa um conjunto de atividades configurava unidades de significação capazes de acolher o sofrimento humano a partir de qualquer fonte de problemas – desemprego, falta de condições dignas de moradia e de saúde, distintos contextos de conflitos, enfim, conforme os dizeres das autoras, problemas do ser humano na sua vida de relação. Portanto, a concepção de problemas a serem tratados transcendeu os tradicionais conceitos de saúde e doença, para incluir toda e qualquer situação organizada pelo sofrimento que construísse significados de dor, desesperança e desamparo para os envolvidos na situação. A riqueza do modelo, além da sua abrangência, manifesta-se também no diálogo produtivo que estabeleceu com diversos domínios. A reflexão em torno dos problemas sociais e comunitários permitiu, além de definir os sistemas organizados pelos distintos problemas, construir um contexto de protagonismo em que as pessoas que buscavam pelo serviço pudessem tornar-se autoras de suas próprias histórias, numa participação ativa e informada. Abandonando relação complementar presente nos sistemas tradicionais de atendimento à saúde, a relação simétrica organizou um contexto em que cada profissional da equipe podia reconhecer, respeitar e aprender com as histórias de cada pessoa. Atuando como “catalizadores de experiências”, os profissionais da saúde do projeto organizavam sua ação de modo a ampliar a compreensão de todos que participavam da relação de ajuda, de modo que pudessem conhecer os caminhos envolvidos na busca de saídas existenciais para seus problemas. Cuidadoso e consistente, o trabalho de Carmen More e Rosa Macedo vem enriquecer as possibilidades terapêuticas definidas como relações horizontais nas quais a aliança entre pessoas que buscam por ajuda e profissionais da saúde em geral, “conversam no plural” e desenvolvem uma ação conjunta de responsabilidade compartilhada. Considero A psicologia na comunidade: um projeto de intervenção, o retrato de uma experiência que testemunha a possibilidade de promover, através do diálogo, novas linguagens e novos significados na construção de histórias de esperança, cidadania e dignidade para pessoas, famílias e comunidades.


construção da mudança em terapia de grupo

Estante de livros

Carla GUANAES São Paulo: Vetor, 2006. 287pp.

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uando a nossa revista nasceu, há 16 anos, a maioria dos títulos desta seção se referia a livros de autores estrangeiros, dada a escassez de publicações nacionais. Hoje o panorama mudou e felizmente contamos com uma representatividade de autores brasileiros que divulgam suas – ótimas! – idéias. Isso se deve em parte ao surgimento e multiplicação dos cursos de pós-graduação, que têm como exigência a publicação de artigos e a necessidade da elaboração de monografias, dissertações e teses, assim como ao crescimento da área da Terapia de Família e afins nos últimos anos. Uma grata surpresa no cenário nacional é o livro da Carla Guanaes, cujo percurso acadêmico, revelado na apresentação e prefácio, de Sheila McNamee e Marisa Japur respectivamente, aponta para uma seleção de mestres e orientadores que são referência indiscutível no contexto do pós-modernismo e do construcionismo social. Segundo Lois Shawver, “o pós-modernismo é a nova filosofia dos céticos. Os pós-modernos são as pessoas que começaram a duvidar dos autores que parecem ter todas as respostas, os autores que parecem ter tudo embrulhadinho com uma história completa de como as coisas são e como deveriam ser”. Carla escreve com facilidade e rigor, é notável a sua intimidade com o pensamento construcionista, não como repetição, mas a partir de uma avaliação crítica que a conduz a interrogações e audácias. Como observadora privilegiada de uma trama de narrativas encenadas no contexto de uma terapia de grupo torna-se simultaneamente narradora e autora de um texto que compartilha conosco, leitor que também se transforma, recursivamente, em um autor de seu próprio texto. Fala de gente, de um grupo de pessoas que sofre e procura saídas para sua dor e suas atribulações, suas dúvidas a respeito do mundo, dos outros e de si próprios. Fala de gente, definidos aqui como “clientes”, “terapeuta” e “pesquisadora”, buscando a construção e atribuição de um sentido comum ao vivido por eles. Somos convidados a conhecer uma parte das vidas de Marta, Roberta, Ana, Irene, Valter, Marilia, João, Rosilene, Marli, Estela, Leila, Pedro e Carla, suas estórias e convicções. Segundo a autora, “este estudo foi desenvolvido tendo como referência a versão responsivo-teórica de construcionismo proposta por Shotter que, como descrito anteriormente, tem como principais características a ênfase dada aos processos locais de construção de sentido, a proposta de uma investigação focalizada sobre o fluxo conversacional (momentos de uso dinâmico, corporificado, e responsivo da linguagem) e o foco na dinâmica do momento interativo.”. Shotter recorta dois estilos possíveis para o relato acadêmico: o profissional, supostamente ‘objetivo’, ‘realista’, e ‘formal’, a apresentação de teorias e fatos que

Eloisa Vidal Rosas Instituto de Terapia de Família-RJ

“Nossos problemas são solucionados não por surgir uma nova informação, mas organizando o que sempre soubemos”. Wittgenstein

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as pesquisas revelam e o conversacional, um estilo mais ‘informal’ que tradicionalmente se considera em tensão com o primeiro. Ambos envolvem a adoção de conjuntos de compromissos éticos e metodológicos diferentes, não só em relação a quem o texto está dirigido como também em relação ao suposto sujeito da pesquisa. O que ele chama de estilo dialógico-prospectivo-relacional implica em um envolvimento que se traduz em retratos de momentos vivos, de acontecimentos compartilhados dialogicamente, que nos movem, que nos tocam, que nos importam e que podem mudar nossas vidas. Foi nesta postura “desde dentro” que a autora construiu sua pesquisa. Incorporando a ‘poética social’ como prática relacional onde, segundo ela, “a pesquisa emerge como um processo vivo de construção e reconstrução de sentidos de mundo, que tem por objetivo a criação de estratégias retóricas que permitam a abertura a novas possibilidades de compreensão dos eventos investigados”. Esta postura propõe uma justaposição não usual e não naturalizada das palavras, o que nos move em direção a uma reorientação compartilhada, uma nova maneira de orquestrar nossos sentidos e sensações. Nossas atividades estruturadas dialogicamente acontecem numa terceira dimensão de atividade que não está, segundo Shotter, sob controle, individualmente, nem inteiramente fora de nosso controle. Uma conexão, uma vez estabelecida, conduz a caminhos que são criados para além do que é conhecido, a novas compreensões dos outros e mesmo da nossa estrangeirice, através dos eventos compartilhados. Compreensão essa que não é o reconhecimento da mesma coisa, mas a sensação de uma adequação a um processo dinâmico. Só como participante dos acontecimentos podemos entrar nas vidas e participar de uma maneira diferente da nossa própria. Só assim podemos construir um mundo comum a todos, onde a função de cada participante pode ser compreendida; mais que isso, o sentido comum é construído com a participação de todos, numa ação conjunta que leva à produção de novos sentidos. O movimento recursivo sugerido por Carla se repete na leitura do texto, que propõe uma avaliação que fornece uma maneira de olhar, não uma maneira de pensar. O leitor tem a chance de se posicionar de uma maneira diferente, e também de tomar posições éticas diferentes. Ainda segundo Shotter, podemos ser tocados e surpreendidos pela qualidade mágica da fala, que “conjura” mundos novos e novas formas de ser na existência. Faço um convite a você, leitor@, a se deixar tocar, a mergulhar na rica experiência generosamente compartilhada por todos os atores desse evento, a se fazer novas perguntas e tentativas, a não só buscar uma nova interpretação para uma velha situação, mas também a mudar o jeito de ver as coisas.


NORMAS PARA PUBLICAÇÃO DE ARTIGOS

Os artigos destinados à publicação devem obedecer aos seguintes requisitos:

1. O texto deve ter o máximo de 15 páginas, com espaçamento simples, em fonte Times New Roman, 12. 2. As ilustrações contidas nos artigos (quando for o caso) não devem exceder ¼ do espaço do texto. As figuras, imagens e tabelas deverão ser enviadas em formato .JPG ou .TIF, em alta resolução (maior ou igual a 300 dpi). 3. Os artigos devem incluir título (em português e em inglês), nome(s) do(s) autor(es), qualificação do(s) mesmo(s), nome da instituição a que está(ão) vinculado(s), cidade e país. 4. Os artigos devem conter um resumo de até dez linhas e a indicação de palavras-chave (ambos em português e em inglês). 5. As referências bibliográficas devem seguir as normas da ABNT, serem numeradas conforme seu aparecimento no texto e, no final do artigo, ordenadas indicando autor, título em negrito, local de publicação, editora e data de publicação. Em caso de citação no corpo do artigo, as páginas citadas devem constar ao final da citação. 6. Após a publicação, o artigo passa a ser propriedade da revista. A reprodução em outro veículo deverá conter referência ao nome e ao número da revista. 7. A revista aceita a divulgação do artigo em outra publicação, desde que informada previamente. Tudo que implique ação legal é de responsabilidade exclusiva do autor. 8. O artigo não deve infringir nenhuma norma ética, sobretudo a de proteger a identidade de pacientes mencionados em relatos clínicos. 9. A aprovação de artigos é subordinada à apreciação de dois membros do Comitê Editorial.


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