coordenação curatorial lisette lagnado curadores adjuntos andré pitol e yudi rafael
2 VOL. 10 / N. 49 JAN/FEV/MAR 2021
Exposição reflete sobre os ideários de modernidade e independência do país, buscando projetos inclusivos e diversos. Com cinco territórios dialógicos, apresenta a vocação de reunir forças sociais em ambientes acolhedores para suas comunidades.
até 02 de abril de 2023
Visitação Terça a sábado das 10h às 21h domingo e feriados das 10h às 18h Área de Convivência Grátis
Sesc Pompeia
Rua Clélia, 93 - São Paulo tel. +55 11 3871.7700 /sescpompeia sescsp.org.br
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PORTFÓLIO SIRON FRANCO
Quando o protesto e a manifestação em defesa do meio ambiente são convertidos em um projeto estético-político de envergadura
FLORESTA INVERTIDA
A partir de viagens ao CentroOeste, o curador Marcio Harum relata a diversidade do cenário institucional da arte contemporânea
PANORAMA DO CERRADO
Curadoria editorial mostra a amplitude do segundo maior bioma da América Latina refletida nos trabalhos de 25 artistas
LITERATURA ANCESTRALIDADE E AUTONOMIA
Débora Arruda encerra curadoria de Julie Dorrico sobre a literatura indígena no ano do centenário da Semana de 22
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REPORTAGEM
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TERRITÓRIOS
FOTO: ESCOLHE A BANDEIRA E RENUNCIA (2018), DE HELÔ SANVOY 76 E 60 #FLORESTAPROTESTA LAURA LIMA E HELÔ SANVOY elaboram cartazes para projeto de gráfica ativista da seLecT + EXPANDIDA CERRADO EM MOVIMENTO Curadoria concebida para o site da seLecT reúne filmes de artistas que exploram os imaginários do bioma 8 14 22 24 26 90 98 Editorial Da Hora Livros Acervos Itaú Cultural Mundo Codificado Crítica Em Construção SEÇÕES 62 COLECIONISMO SÉRGIO
Artistas do Centro-Oeste em uma das maiores coleções de arte contemporânea de Brasília 82
traz criadores indígenas para contextualizar acervo fotográfico
CARVALHO
ENTREVISTA DEMARCAR A TELA Exposição sobre Xingu
ARTE E POLÍTICA: MANIFESTO
4 - #PODER
Poder é ler o Cerrado a partir de seus artistas e atores políticos, é ver na monumentalidade do vazio de Brasília as brechas que o amplo céu do Planalto oferece para pensar outras formas, mais sustentáveis, de poder;
Poder é o exercício da cidadania e da liberdade de expressão, sem confundir diálogo com discurso de ódio, sabendo distinguir opinião emitida com responsabilidade de disseminação de mentiras;
Poder é o engajamento de toda a cadeia produtiva das artes em denunciar o escárnio e o sadismo de um governo que chega ao fim, graças ao empenho deste e de inúmeros outros grupos sociais comprometidos com o Estado Democrático de Direito;
Poder é o empoderamento das vozes silenciadas;
Poder é a resistência do Cerrado aos ataques do agro e da pecuária predatórios que arrasam o segundo maior bioma da América do Sul;
Poder é a retomada pelos povos indígenas do CentroOeste das ancestralidades que lhes possibilitam reafirmar sua identidade e sua soberania;
Poder é a descentralização e capilaridade das ações artísticas e de espaços culturais alternativos no Distrito Federal, em Goiás e Mato Grosso;
Poder é propagar por meio da arte notícias de crimes ambientais e humanitários, reinventando e agregando sentidos à arte pública;
Poder é a última das quatro edições da seLecT dedicadas à Arte e Política, em 2022, que buscaram responder uma série de questões que confluem em uma: qual é o papel de uma revista de arte no contexto da crise política, humanitária e ambiental de hoje?
Paula Alzugaray Diretora de Redação
EDITORIAL
VOL. 11 / N. 56 DEZ/JAN/FEV 2022/2023 8
Reunindo 25 artistas e coletivos de múltiplas linguagens que trazem vivências e experiências em territórios sociais, culturais, políticos e geográficos distintos, a nova exposição do Itaú Cultural apresenta um panorama atual da arte e da cultura produzidas no Brasil. abertura 17 de novembro de 2022 saiba mais em itaucultural.org.br
VISITAÇÃO
até 5 de março de 2023 terça a sábado 11h às 20h domingos e feriados 11h às 19h
ENTRADA GRATUITA
ITAÚ CULTURAL Avenida Paulista, 149, São Paulo, SP, próximo à estação Brigadeiro do metrô
COLABORADORES
EDITORA RESPONSÁVEL: PAULA ALZUGARAY
DIRETORA DE REDAÇÃO: PAULA ALZUGARAY
REDATORA-CHEFE: JULIANA MONACHESI
DIREÇÃO DE ARTE: NINA LINS
REPORTAGEM: LUANA ROSIELLO E ELOISA ALMEIDA ASSISTENTE DE ARTE: ARIFROST
PROJETO GRÁFICO ORIGINAL: RICARDO VAN STEEN E CÁSSIO LEITÃO
SECRETÁRIA FINANCEIRA
ESTÁGIÁRIA FINANCEIRA
COPY-DESK E REVISÃO CONTATO PUBLICIDADE ATENDIMENTO AO ASSINANTE
Aldones Nino, Camila Lanhoso Martins, Daniela Maura Ribeiro, Débora Arruda, Helô Sanvoy, Laura Lima, Marcio Harum, Marcio Doctors, Mateus Nunes, Vicente de Mello
Cristina Dias Yara Céu Hassan Ayoub faleconosco@select.art.br
ACROBÁTICA EDITORA LTDA. Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661.7320
Pelo e-mail assinaturas.select@gmail.com ou (11) 3618.4566. De 2ª a 6ª feira das 09h00 às 20h30 OUTRAS CAPITAIS: 4002.7334
DEMAIS LOCALIDADES: 0800-888 2111 (EXCETO LIGAÇÕES DE CELULARES)
WWW.SELECT.ART.BR
SELECT (ISSN 2675-8296) é uma publicação da ACROBÁTICA EDITORA LTDA., Rua Angatuba, 54 - São Paulo - SP, CEP: 01247-000, Tel.: (11) 3661.7320 / Nossa Redação está situada na Travessa Dona Paula 112, CEP 01239-050, São Paulo, SP
EXPEDIENTE 10 APOIO
VOL. 11 / N. 56 DEZ/JAN/FEV 2022/2023
CULTURAL:
17 NOVEMBRO 2022 A 19 MARÇO 2023 CURADORIA PAULO MIYADA E PRISCYLA GOMES TERÇA A DOMINGO DE 11H ÀS 20H INSTITUTO TOMIE OHTAKE Ministério do Turismo, Secretaria Especial da Cultura, Bradesco e Instituto Tomie Ohtake convidam para a exposição VERIFIQUE A CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA
LAURA LIMA
Artista visual, nasceu em Minas Gerais e vive no Rio de Janeiro.
Desde os anos 1990, discute em suas obras a matéria do vivo. Em 2003, fundou a galeria A Gentil Carioca, juntamente com Ernesto Neto e Marcio Botner.
#FLORESTAPROTESTA 76
ALDONES NINO
Curador-Adjunto de Collegium (Arévalo, Espanha) e Assessor de pesquisa e curadoria do Instituto Inclusartiz. Doutorando em Historia y Arte pela Escuela Internacional de Posgrado de la Universidad de Granada e em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da UFRJ.
COLECIONISMO 62
DANIELA MAURA RIBEIRO
Doutora em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e pós-doutoranda no Instituto de Artes da Unesp. Integra o Grupo de Pesquisa Arte Construtiva Brasileira e Poéticas da Visualidade, na mesma instituição.
CRÍTICA 92
MATEUS NUNES
Doutor em História da Arte pela Universidade de Lisboa, com período na USP, onde é professor convidado. Arquiteto e urbanista pela UFPA, em Belém, pesquisador integrado do Instituto de História da Arte da Universidade de Lisboa e professor do Masp.
TERRITÓRIOS 30
HELÔ SANVOY
Mestrando pela Escola de Comunicações e Arte (ECA/USP) e licenciado em Artes Visuais pela Faculdade de Artes Visuais (FAV/UFG). É membro do coletivo de performance Grupo EmpreZa desde 2011.
#FLORESTA PROTESTA 60
CAMILA LANHOSO
MARTINS
Jornalista, integra o comitê dos jovens empreendedores da Unesco (Organizações das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura).
CRÍTICA 96
VICENTE DE MELLO
Fotógrafo e curador independente. Formado em Comunicação Social pela Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, e especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil, na PUC-RJ.
COLECIONISMO 62
MARCIO HARUM
Curador de artes visuais do Centro Cultural São Paulo entre 2012 e 2016 e, junto à equipe do JA.CA, coordenou o programa CCBB Educativo, entre 2018 e 2020. Participou da comissão de seleção do 1º Salão Nacional de Arte Contemporânea de Goiás, MAC–Goiânia, 2022.
REPORTAGEM 68
DÉBORA ARRUDA
Poeta e artista visual indígena brasileira. Graduada em Letras, pela UFS, e mestranda em Antropologia Social, pela mesma universidade, através da Antropologia da Performance, sua pesquisa incita provocações para enxergar e criar mundos além da lente colonial.
LITERATURA 78
12 COLABORADORES
Visite a coleção de arte africana do MON!
Colecionar é partilhar
Em 2021 a Coleção Ivani e Jorge Yunes doou ao Museu Oscar Niemeyer - MON (Curitiba, PR) 1.700 obras de arte africana, confirmando sua missão de democratizar o acesso à arte e à cultura.
Maior museu da América Latina, o MON consolida-se como referência para as artes africana, asiática e latinoamericana, tornando-se cada vez mais plural.
Venha conhecer a exposição “África, Expressões Artísticas de um Continente”, disponível também em catálogo.
Foto: André Nacli
NOVA YORK
PARDO É PAPEL: THE GLORIOUS VICTORY AND NEW POWER, DE MAXWELL ALEXANDRE
Até 8/1/23, The Shed, 545 W 30th St | theshed.org
A exposição conta com obras da série Pardo É Papel, que tem como motivo principal a autoestima do negro, tratando de liberdade, marra, ostentação, vitória, bonança e empoderamento; e da série Novo Poder, feita para explorar a presença da comunidade preta dentro dos templos consagrados para contemplação de arte: galerias, museus e feiras. Entendendo a arte contemporânea como um território de elite que concentra um grande capital financeiro e intelectual, a série busca chamar atenção da comunidade preta para esses espaços que legitimam narrativas na história. A série trabalha apenas com três signos básicos, sendo eles o preto (personagens), o branco (“cubo branco” ou espaço expositivo) e o pardo (arte).
FOTO: THIAGO BARROS / CORTESIA DO ARTISTA E DA GENTIL CARIOCA
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BRUMADINHO
QUILOMBO: VIDA, PROBLEMAS E ASPIRAÇÕES DO NEGRO
Até 16/7/23, Instituto Inhotim, Rua B, 20 Fazenda Inhotim | inhotim.org.br A exposição, resultado da parceria entre o Inhotim e o Ipeafro, parte conceitualmente do jornal Quilombo, publicado por Abdias Nascimento e editado pelo Teatro Experimental do Negro, que contou com dez edições entre 1948 e 1950, propondo um resgate dos conceitos da publicação. A mostra, em cartaz na Galeria Lago, traz obras de mais de 30 artistas, entre eles: Panmela Castro, Rosana Paulino, Pedro Neves, Desali, Kika Carvalho, Erica Malunguinho, Arjan Martins e Zéh Palito. Já na Galeria Fonte, obras de Jonathas de Andrade e da dupla Bárbara Wagner e Benjamin de Burca discutem a relação entre a prática teatral, formação artística e cidadã e ativismo social. Intitulada O Mundo É o Teatro do Homem, discute o legado do Teatro Experimental do Negro (TEN), grupo fundado por Abdias Nascimento em 1944 e que se notabilizou por pautar o protagonismo negro e a denúncia do racismo nas suas ações.
SÃO PAULO EN VÍAS DE DESARROLLO [EM DESENVOLVIMENTO], DE SANDRA GAMARRA
Até 14/1/23, Galeria Leme, Avenida Valdemar Ferreira, 130 | galerialeme.com
A individual da artista peruana traz obras inéditas ao Brasil. Em seu conjunto de trabalhos, Gamarra apresenta uma perspectiva crítica à permanência de relações e imaginários coloniais na atualidade. As três séries que compõem a mostra exploram as diferentes concepções de mundo que coexistem nas Américas. Na série En Vías de Desarrollo [Em Desenvolvimento], que dá título à exposição, dez releituras de obras de Albert Eckhout, entre retratos e naturezas-mortas, são pintadas com óxido de ferro, conferindo tons terrosos à composição, e alguns detalhes, como os pés e as mãos das figuras humanas, são feitos com tinta a óleo, sugerindo se tratarem de obras inacabadas. As pinturas do holândes foram consideradas durante muito tempo documentos oficiais, uma representação fiel da realidade brasileira. É esse caráter documental que Gamarra tensiona em suas releituras. Ao aplicar diferentes tratamentos à pintura, a artista retira a veracidade que outrora fora concedida a estas imagens e as coloca em questão, denunciando o desenvolvimento e o progresso como narrativas, construções sociais que, ao serem apresentadas como sinônimos da verdade, escondem concepções de mundo.
SÃO PAULO RETIRAR O SOL DAS CABEÇAS, UMA REZA DAS IMAGENS, DE GÊ VIANA
Até 15/12, Galeria Superfície, Rua Oscar Freire, 240 | galeriasuperficie.com.br
A primeira individual da artista maranhense direciona os ensinamentos afro-indígenas de cura, limpeza e reza para tudo aquilo que foi desgastado, forjado e empobrecido. Com curadoria e texto de Thayná Trindade, a mostra organiza-se em cinco núcleos de obras conhecidas e inéditas, como a série Atualizações de Rugendas (2022), fazendo um recorte panorâmico dos imaginários construídos por Viana sobre diferentes suportes – madeira, ráfia, papel, tecidos e lambe-lambe – e seus princípios artísticos que coletivizam histórias para além dos traumas e apagamentos, permitindo anseios de afeto e felicidade de si e dos seus.
Gê Viana tem como mote poético a expurgação das violências estético-simbólicas de imagens históricas, construídas nas tramas da colonização brasileira. Revelar essas imagens a partir da própria experiência torna-se ponto de partida no entendimento de si mesma, enquanto fruto das raízes que constituem suas ascendências indígenas e africanas fincadas no território do Maranhão.
16 FOTOS: LUIZ ALVES/ DIVULGAÇÃO
RIO DE JANEIRO NO VERBO DO SILÊNCIO A SÍNTESE DO GRITO, DE WALTER FIRMO
Até 27/3/23, Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro (CCBB RJ), Rua Primeiro de Março, 66 | ccbb.com.br/rio-de-janeiro
A mostra traça um panorama dos mais de 70 anos de trajetória do consagrado fotógrafo carioca. Com curadoria de Sergio Burgi e Janaina Damaceno, 266 fotografias, produzidas desde 1950 até 2021, que retratam e exaltam a população e a cultura negra de diversas regiões do país, registrando ritos, festas populares [Carnaval RJ (1985)] e religiosas, além de cenas cotidianas, ocupam todas as salas do segundo andar do CCBB RJ. O conjunto destaca a poética do artista, associada à experimentação e à criação de imagens muitas vezes encenadas e dirigidas. Entrada gratuita.
SALVADOR MUSEU DE ARTE POPULAR
Mostra permanente, Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-Bahia), Avenida Lafayete Coutinho, s/n | www.mam.ba.gov.br
Formada por cerca de mil peças de arte popular nordestina coletadas desde o fim da década de 1950 e início dos anos 1960, a Coleção de Arte Popular Lina Bo Bardi ocupa o MAM-Bahia com carrancas da proa de barcaças do Rio São Francisco, ex-votos, imaginária, esculturas em cerâmica representando animais e figuras humanas, fifós/candeeiros, panelas, potes de barro, brinquedos, utensílios domésticos e objetos de uso diário criados a partir de materiais recicláveis. A mostra reafirma o complexo educacional-museológico da proposta inicial de Lina Bo Bardi para a instituição, dirigida pela arquiteta entre 1959 e 1964.
FOTOS: DIVULGAÇÃO FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA / CORTESIA E-FLUX FOTOS: DOMICIANO DIAS / DIVULGAÇÃO; FOTO DIEGO ROCHA / ACERVO UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO; DIVULGAÇÃO; E CORTESIA DO ARTISTA (BILL LUNDBERG)
SÃO PAULO
MODERNAS! SÃO PAULO VISTA POR ELAS
Até 5/3/23, Museu Judaico de São Paulo, Rua Martinho Prado, 128 | museujudaicosp.org.br
Com curadoria de Ilana Feldman e Priscyla Gomes, a mostra no Museu Judaico de São Paulo reúne cerca de 81 imagens da cidade registradas entre 1940 e 1990 por sete mulheres que fugiam da perseguição nazista na Europa. Alice Brill, Claudia Andujar, Gertrudes Altschul, Hildegard Rosenthal, Lily Sverner, Madalena Schwartz e Stefania Bril encontraram na fotografia uma forma de se relacionar com o território em que desembarcaram, e seus olhares sobre a cidade trazem na bagagem diferentes repertórios e influências vanguardistas.
BRASÍLIA ARTE POR ACASO, DE FRANCISCO GALENO
Até 14/1/23, Referência Galeria de Arte
Com obras inéditas produzidas ao longo de dez anos e que tratam do diálogo entre ancestralidades e linguagens contemporâneas, a exposição reúne pinturas sobre madeira e objetos escultóricos em madeira e ferro. Na mostra, Francisco Galeno minimiza as formas e as imagens e amplia os campos de cor. Objetos, pintura e cor são elementos integrantes de sua linguagem poética, que ao longo dos últimos anos vem adquirindo novos elementos. “É um trabalho intimista que evoca suas tradições e seus ancestrais: artesãos, bordadeiras, vaqueiros, a terra”, comenta Onice Moraes, galerista que acompanha o trabalho do artista. Aquilo que já era uma marca registrada da obra de Galeno adquiriu novos contornos com o aprofundamento nas questões de linguagem. ”Os objetos produzidos pelos vários artesãos da região onde mora ganham cada vez mais destaque, como forma de o artista dar voz às suas ancestralidades e espaço para que o pensamento e o trabalho coletivo que constroem uma obra ocupem seu devido lugar na história da arte”, finaliza.
RIO DE JANEIRO AGNALDO MANUEL DOS SANTOS – A CONQUISTA DA MODERNIDADE
Até 26/2/23, Museu de Arte do Rio, Praça Mauá, 5 | museudeartedorio.org.br
A mostra reúne mais de 70 esculturas em madeira do artista baiano em torno do esforço para subverter o lugar ao qual se pretendeu delimitar um artista que levava muito a sério o seu ofício. “Até hoje, a sua produção vem sendo vinculada a uma conexão profunda com a África, sobretudo através do inconsciente e do atavismo”, escreve Juliana Bevilacqua, curadora da mostra. ”Agnaldo seria, dessa forma, um produto das ressonâncias africanas na diáspora, não importando o quão marcante foi a sua circulação no meio artístico e os contatos com outros artistas para a sua formação, nem os estudos e as múltiplas referências com as quais lidou ao longo da sua trajetória para realizar suas obras. Ele se formou no ateliê mais importante da Bahia na década de 1950, fez escolhas conscientes, subvertendo o lugar em que o colocavam”, finaliza. A mostra, com organização da Almeida & Dale Galeria de Arte, reúne obras de museus e coleções privadas que resgatam seus múltiplos interesses nas formas, temas e referências, explorados em esculturas nos seguintes eixos: Esculpindo uma Trajetória, O Universo das Carrancas, Sobre Gente e Afeto, A África de Agnaldo e Entre Santos e Ex-votos.
III CICLO EXPOSITIVO DA CASA 2022 AMÁLGAMA DO TEMPO FLÁVIA RIBEIRO JOSÉ SPANIOL TIAGO MESTRE HOSHIGAKI MARIANA SERRI DOMINGO LEANDRO MUNIZ DIREÇÃO ARTÍSTICA CLAUDIO CRETTI 15 DE OUTUBRO DE 2022 A 29 DE JANEIRO DE 2023 VISITAÇÃO QUARTA A DOMINGO DAS 11H ÀS 18H FOTO FERNANDO PEREIRA LEGENDA DA IMAGEM DOMINGO, LEANDRO MUNIZ AV. FONSECA RODRIGUES,1300 ALTO DE PINHEIROS SÃO PAULO | SP ACESSE NOSSAS REDES CASADECULTURADOPARQUE CCPARQUE.COM
RIO DE JANEIRO GUSTAVO SPERIDIÃO – MANIFESTAÇÃO
CONTRA A VIAGEM NO TEMPO
Até 12/2/23, Centro Cultural da Justiça Federal, Avenida Rio Branco, 241 | www10.trf2.jus.br/ccjf
Com curadoria de Evandro Salles, cerca de 150 obras, entre pinturas, desenhos, colagens, fotografias, filmes, objetos e faixa-poema, produzidos entre 2006 e 2022, no Rio de Janeiro, em São Paulo e Paris, debatem questões políticas, existenciais, filosóficas e em defesa da liberdade de expressão. Desde 2016, o artista carioca não realiza uma exposição institucional em sua cidade natal. “É uma mostra antológica, que revela um artista denso e profícuo, que se inscreve fortemente nas raízes construtivas da arte”, afirma Salles. Cerca de 50 pinturas de grandes dimensões, com tamanhos que chegam a 6 metros de comprimento, ocupam os espaços do CCJF, ao lado de mais de 80 desenhos de menor formato e pequenos objetos em gesso.
BELO HORIZONTE BOTAR FÉ
Até 5/2/23, Museu de Artes e Ofícios, Praça Rui Barbosa, 600, Viaduto das Artes, Avenida Olinto Meireles, 45 | pbh.gov.br/bolsapampulha
A mostra resultado da 8ª edição do Bolsa Pampulha apresenta obras dos artistas participantes, que refletem sobre territórios, deslocamentos e identidades. Durante seis meses, o programa do Museu de Arte da Pampulha (MAP) recebeu 16 artistas e coletivos, como Froiid, Dalila Coelho, Ing Lee, entre outros, com atuação nas áreas de artes visuais, design, arquitetura e arte-educação, sob a curadoria de Amanda Carneiro e Raphael Fonseca, e orientação dos artistas visuais Brígida Campbell, Marcel Diogo, Laura Belém e do cineasta Gabriel Martins. Os bolsistas desenvolveram e aprofundaram seus trabalhos e pesquisas artísticas, resultando em cerca de cem obras, trabalhos de criação, experimentação e imersão.
SÃO PAULO ANTIMATÉRIA, DE GUTO LACAZ
Até 22/2/23, Galeria Raquel Arnaud, Rua Fidalga, 125 | raquelarnaud.com
A Galeria Raquel Arnaud apresenta obras inéditas do artista paulistano, cuja produção explora as possibilidades tecnológicas da arte com humor e ironia. A mostra propõe uma ocupação radical em que a obra [4 Quadrados Cinéticos (2017)] possa dialogar com as formas arquitetônicas da galeria. Dispostos de modo alinhado, sete múltiplos e projeções de quatro vídeos de performances criam um eixo, causando um efeito coletivo e individual entre as obras. Esse jogo caracteriza a abordagem do universo de Lacaz, que pesquisa os materiais em situações inusitadas, com olhar lúdico e recursos de caráter tecnológico e provocador. A exposição também marca o lançamento de um documentário sobre a vida e a obra do artista.
VOL. 11 / N. 56 DEZ/JAN/FEV 2022/2023
FOTOS: EVERTON BALLARDIN E IGNEZ CAPOVILLA
C M Y CM MY CY CMY K
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DISPOSITIVO DE RACIALIDADE
Sueli Carneiro, Zahar, 432 págs., R$ 69,90
Quase duas décadas após ter sido defendida, a tese de doutorado da filósofa, escritora e ativista antirracismo é publicada na forma de livro. Nele, a autora aplica os conceitos de dispositivo e de biopoder de Michel Foucault ao domínio das relações raciais, forjando o que chama de dispositivo de racialidade – que produz uma dualidade entre positivo e negativo, tendo na cor da pele o fator de identificação do normal, representado pela brancura. Especulando com Foucault e amparada na teoria do contrato racial do afro-jamaicano Charles Mills, ela demonstra como esse dispositivo se constitui em um contrato que não é firmado entre todos, e sim entre brancos, e funda-se na cumplicidade em relação à subordinação social e na eliminação de pessoas negras.
O NEGRO VISTO POR ELE MESMO –ENSAIOS, ENTREVISTAS E PROSA
Org. Alex Ratts, Ubu Editora, 256 págs., R$ 69,90
DIGO E TENHO DITO
Anna Maria Maiolino, Ubu Editora, 112 págs, R$ 59,90
Neste livro, a artista brasileira reúne um corpo inédito de textos em prosa e poemas, que acompanha e tensiona sua produção visual. Maiolino narra memórias ambivalentes da família imigrante; o pertencimento ou não às várias terras que habitou, o mais íntimo da relação com amigos e amores de longa data, a pura existência, a feminilidade constitutiva de sua visão e experiência de mundo, a passagem indelével do tempo. Em sua escrita, aparece a materialidade de sua obra plástica. Nela podem ser lidas também as marcas que a psicanálise lhe deixou. O traçado do desejo e a busca da linguagem não se esgotam nem na imagem, nem na palavra, mas insistem em se fazer presentes, no caso de Maiolino, como criação artística. Textos de Paulo Miyada e Paloma Durante.
FUTURO ANCESTRAL
Ailton Krenak, Companhia das Letras, 128 págs., R$ 34,90
Nesta nova coleção de textos, produzidos entre 2020 e 2021, o líder indígena, ambientalista e filósofo provoca o leitor com a radicalidade de seu pensamento insurgente, que desvia o senso comum e invoca o maravilhamento. Diz ele: “Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugere que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui”.
A coletânea reúne textos críticos, entrevistas e a prosa poética de Beatriz Nascimento, ativista negra que marcou o universo artístico-cultural da diáspora africana e a história do movimento negro no cenário nacional. Neles, Nascimento tece reflexões em torno de uma imagem prismática não só da experiência íntima das pessoas negras na universidade e na cena cultural brasileira, mas também das representações midiáticas e historiográficas que lhes são devolvidas dia após dia por uma sociedade racista e em negação quanto ao próprio racismo. A edição, que inclui vários textos inéditos, também conta com prefácio de Alex Ratts, posfácio de Muniz Sodré, orelha de Renata Martins, texto de Bethania Nascimento Freitas Gomes e imagem da capa de Abdias Nascimento.
VOL. 11 / N. 56 DEZ/JAN/FEV 2022/2023
EM OBRAS: HISTÓRIA DO VAZIO EM BELO HORIZONTE
Carlos M. Teixeira, Romano Guerra Editora, 384 págs., R$ 100
Em reedição, a obra, lançada originalmente em 1999, dá continuidade ao registro da capital mineira em uma avaliação crítica das atuais utopias urbanas. O volume reúne dezenas de fotografias tiradas pelo arquiteto Carlos M. Teixeira na década de 1990 – além de imagens de arquivos da BH de outras épocas. O livro também apresenta cinco projetos concebidos por Teixeira na década de 1990 como soluções para vazios. Um deles versa sobre a Serra do Curral, que ilustra a capa do livro. 604
OS QUINZE HEITORZINHOS E OUTRAS HISTÓRIAS
Helcio Barros, Ases da Literatura, 184 págs., R$ 39,90
O primeiro livro do artista visual e escritor carioca reúne 12 contos que celebram uma literatura cinematográfica, conferindo visualidade a narrativas sobre um Brasil entre ruínas e reconstrução, impregnado pelo realismo fantástico. Seus personagens podem variar de um habitante do Morro da Providência, a primeira favela do Rio de Janeiro, filho de mãe ex-escravizada e pai ex-combatente da Guerra de Canudos, até o comprovadamente menor besouro do mundo, do tamanho de um grão de gergelim. Em sua produção artística, Barros tem como suporte principal a pintura e o desenho.
SIDNEY AMARAL: MANIFESTO DE COGNIÇÃO Y MEMÓRIA
Org. Igi Lola Ayedun, Edição Almeida & Dale Galeria de Arte, 288 págs.
O livro-catálogo, desenvolvido a partir da mostra Sidney Amaral: Um Espelho na História, relata o desenvolvimento da produção do artista paulistano a partir de suas inquietações sobre a sensação de deslocamento e pertencimento. O projeto reúne uma multiplicidade de vozes e perspectivas em torno de sua vasta produção, apresentando uma série de ensaios inéditos, sendo a primeira publicação dessa natureza acerca da obra e vida do artista.
BCUBICO
Org. Edson Barrus e Yann Beauvais, (.txt texto de cinema), 604 págs., distribuição gratuita; versão digital disponível para download em bcubico.com Reavivar e celebrar a trajetória de um espaço dedicado às imagens em movimento é o propósito do livro-arquivo trilíngue, que reúne experiências e artistas do espaço homônimo ativo no Recife entre 2011 e 2015. A publicação tem por objetivo atestar a importância de uma experiência inédita no campo da exibição e compartilhamento de formas de arte contemporânea, questionando uma história comum dos espaços expositivos e reunindo textos de Ana Lira, Anthony McCall, Edson Barrus, eRikm, Jean-Michel Bouhours, Keith Sanborn, Malcom Le Grice, Matthias Müller, Nathalie Magnan, Peggy Ahwesh, Recombo, Ricardo Ruiz, Thomas Köner, yann beauvais, Ж e outros criadores do campo cultural.
COM O CORAÇÃO SAINDO PELA BOCA
Jonathas Andrade, Org. Jacopo Crivelli Visconti, Silvana Editoriale, 136 págs., R$ 100
A publicação tem como tema a instalação homônima realizada por Jonathas Andrade para o Pavilhão do Brasil na 59ª Bienal de Veneza. Com textos de Jacopo Crivelli Visconti, Clarissa Diniz e da jornalista Teté Martinho, apresenta um percurso pela instalação e informações sobre o processo de criação de algumas de suas obras, assim como um breve panorama cronológico da produção do artista.
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CLIMA SECO, TERRENO FÉRTIL
Artistas e projetos do Itaú Cultural apresentam vigor cultural do Cerrado
VERBETES
DIVINO SOBRAL
Artista visual, crítico e curador independente. Divino Sobral de Sousa (Goiânia, GO, 1966) inicia sua trajetória artística de forma autodidata, no teatro e no desenho. De atuação com relevância nacional e internacional, transita hoje em diferentes mídias. Seu processo de criação plástico se entrelaça ao processo de pesquisa teórica e curatorial, em projetos que reúnem elementos que vão da sua memória afetiva a mitologias e à história. (...) Prioriza a produção da Região Centro-Oeste do Brasil, tanto contemporânea quanto moderna, em resposta ao regionalismo imposto pelo circuito RJ-SP de arte. Com destaque para Zona de Perigo, também vencedora em 2016 da 5a edição do prêmio CNI Sesi Senai Marcantonio Vilaça para as Artes Plásticas. Inspirada no Baixo-centro de Goiânia, região marginalizada na cidade, a exposição traça comentários sobre a violência de regiões metropolitanas no Brasil contemporâneo e os processos de origem.
HELENA MEIRELLES
Compositora, cantora e violeira, aprende a tocar viola com seu tio Leôncio e ainda adolescente foge de casa para tocar o instrumento – considerada pelos familiares uma atividade masculina. Durante 30 anos, perde o contato com a família e, nesse período, continua a tocar viola, principalmente polcas, chamamés, fandangos e outros ritmos mato-grossenses, e a participar de festas e bailes em locais do interior de Mato Grosso do Sul, na região do Pantanal. (...) Helena Meirelles expressa em sua obra a atmosfera sonora de seu cotidiano, o som dos pássaros, dos animais e da natureza, a exemplo das composições Xote Bem-te-vi (1996) e O Passo do Tico-Tico (1996). Sua identidade musical é construída com a música sertaneja, os ritmos folclóricos de MS e influências da música paraguaia. Em seus quatro CDs, grava cerca de 35 músicas de sua autoria, todas com solos de viola e repertório musical pantaneiro.
ACERVOS ITAÚ CULTURAL
VOL. 11 / N. 56 DEZ/JAN/FEV 2022/2023 24
NOVOS NOMES DA FOTOGRAFIA
BENCHOUCHAN
Estimulada à observação do cotidiano e à prática fotográfica desde criança por sua mãe, hoje Rebeca Benchouchan está radicada na Chapada dos Veadeiros, em Goiás, e possui prática em diferentes suportes e equipamentos fotográficos. Em 2016, volta-se por completo para a fotografia analógica, que resulta em grande produção em filme de 35 mm. O estudo de simbologias trazidas de sonhos, intuições e memórias mobiliza seu olhar, além de valores e crenças pessoais ligados diretamente às questões sociais e ambientais. Com destaque para o projeto NOZ, primeira publicação em fotolivro da artista, protagonizada pela paisagem do Cerrado.
SONS DO CERRADO – RUMOS MÚSICA (2008)
Selecionado em 2008 para o Programa Rumos Música, o grupo de pesquisa da Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) é formado por sete musicistas e investiga a riqueza dos gêneros populares tocados e cantados do maior bioma do Brasil. O grupo surge a partir da pesquisa de campo de uma das integrantes sobre a Folia de Reis, que, através da reunião de depoimentos e fotografias, mobilizou a investigação de ritmos mantidos pela tradição oral. O repertório reúne desde canções de domínio popular, como Beija-Flor/Corujinha, a músicas brasileiras reconhecidas nacional e internacionalmente, como Caicó – Cantiga, de Heitor Villa-Lobos, Teca Calazans e Milton Nascimento. Hoje, o grupo tem 13 coletâneas que reúnem ampla diversidade de tradições cantadas e musicadas, com gravações nas vozes de seus protagonistas.
ITAÚ CULTURAL PLAY – AS HIPERMULHERES
(2011)
Um dos filmes de produção indígena mais premiados e conhecidos no Brasil, é um importante registro de um ritual feminino ancestral, considerado o maior da região do Alto Xingu. Numa comunidade dos indígenas Kuikuro, em Mato Grosso, as mulheres reúnem-se para realizar o Jamurikumalu, em resposta ao pedido de uma anciã da comunidade, já doente. Com produção do Vídeo nas Aldeias e direção de Takumã Kuikuro, Carlos Fausto e Leonardo Sette, o filme está disponível gratuitamente na plataforma Itaú Cultural Play e integra a mostra Xingu: Contatos, também curada por Takumã Kuikuro e Guilherme Freitas, em cartaz no Instituto Moreira Salles em São Paulo até abril de 2023.
PROJETOS
CREDITOS: MÁRIO LUIZ THOMPON, REBECA BENCHOUCHAN, SECULT E DIVULGAÇÃO FOTOS: CORTESIA
DOS ARTISTAS
BRASILEIRA – REBECA
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POR UM FIO
NÚMEROS ALERTAM PARA O RITMO ASSUSTADOR DE DESMATAMENTO NO CERRADO, COM 137 ESPÉCIES DE ANIMAIS AMEAÇADAS DE EXTINÇÃO
AO LONGO DO ÚLTIMO ANO, 13.853 QUILÔMETROS QUADRADOS FORAM DESMATADOS EM TODO O BRASIL, O EQUIVALENTE A QUASE DUAS VEZES A REGIÃO METROPOLITANA DE SÃO PAULO. Desse total, 31,2%, ou seja, quase um terço, ocorreu no Cerrado. O Cerrado, segundo maior bioma da América do Sul, estendese por cerca de 2 milhões de quilômetros quadrados, o equivalente a 23% do território nacional, abrangendo 11 estados brasileiros e o Distrito Federal. Além da rica biodiversidade –considerada a savana mais preciosa do mundo, com mais de 12 mil espécies de plantas nativas já catalogadas, cerca de 200 espécies de mamíferos, 864 espécies de aves, 1.200 espécies de peixes, 180 espécies de répteis e mais de 150 espécies de
TEXTO LUANA ROSIELLO IMAGEM ARIFROST
anfíbios –, o Cerrado também abriga 8 das 12 principais bacias hidrográficas do Brasil, com destaque para a Amazônica/ Tocantins, São Francisco e Prata.
Entre 1988 e 2021, o Cerrado perdeu 29 milhões de hectares de vegetação nativa (20,9%), equivalentes a, aproximadamente, todo território da Nova Zelândia. O bioma tem, hoje, somente 56% da sua área coberta por vegetação nativa. Desde 2010, quando é decretado pelo governo federal o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado (PPCerrado), a devastação diminuiu, atingindo o índice de 33% menos desmatamento em 2018 (em relação ao índice de 2010), porém, em 2020 e 2021, a sua destruição retornou com força.
34 SELECT ARTE E POLÍTICA
CODIFICADO
MUNDO
26 VOL. 11 / N. 56 DEZ/JAN/FEV 2022/2023
AGRO
NÃO É POP
A agropecuária é o principal vetor de pressão para o desma tamento do bioma, que ocorre, principalmente, no segundo trimestre de cada ano. Um total de 98% da área desmatada no Cerrado em 2021 foi destinado à pecuária. 357,72 quilômetros quadrados foram derrubados dentro de unidades de conservação, sendo a maioria (99%) em Áreas de Proteção Ambiental, com desmatamento também em Unidades de Proteção Integral – essas tiveram 4,43 quilômetros quadrados desmatados. Em terras indígenas no bioma, o desmatamento subiu 79%, totalizando 34,29 quilômetros quadrados.
FAUNA AMEAÇADA
A rica diversidade do bioma corre risco de extinção, com 137 espécies de animais ameaçadas. Dentre elas, estão a onça-pintada, a catita, o tamanduá-bandeira, o tatu-canastra, o veado-campeiro, o lobo-guará, a águia-cinzenta, o gato-maracajá, o gato-do-mato-pequeno e o cachorro-do-mato-vinagre.
FONTES
http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/dashboard/deforestation/biomes/cerrado/increments https://mapbiomas.org / https://s3.amazonaws.com/alerta.mapbiomas.org/rad2021/RAD2021_Completo_FINAL_Rev1.pdf http://cerrado.obt.inpe.br/
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ALERTAS AMBIENTAIS
Em 2021, foram identificados, validados e refinados 69.796 alertas ambientais em todo o território nacional. Total do desmatamento: 16.557 quilômetros quadrados. Seguido da Amazônia (977 mil hectares desmatados) e da Caatinga (190 mil hectares), o Cerrado aparece com 9,9% dos alertas (30,2% da área) e 500 mil hectares. Amazônia e Cerrado, juntos, representaram 89,2% da área desmatada detectada. Quando é somada a Caatinga, os três biomas responderam por 96,2% das perdas.
CURVAS DA DEVASTAÇÃO
28 SELECT ARTE E POLÍTICA
28 BIODIVERSIDADE DO CERRADO VOL. 11 / N. 56 DEZ/JAN/FEV 2022/2023
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PANORAMA DO CERRADO
TERRITÓRIOS VOL. 11 / N. 56 DEZ/JAN/FEV 2022/2023
PANORAMA CERRADO
DA AMPLITUDE E DIVERSIDADE TERRITORIAL DO CERRADO SELECIONAMOS ALGUNS ASPECTOS RELATIVOS À FLORA E À VEGETAÇÃO DO BIOMA. Chamados de fitofisionomias, seus nomes são usados nesse panorama como paralelo plástico e poético das obras apresentadas. Esses intercursos se aproximam pela heterogeneidade que há nos tantos cerrados possíveis, da natureza à reflexão das mãos que os habitam. Reforçamos, portanto, a diferença dxs artistxs e das criações – na contramão dos limites estabelecidos pela institucionalidade da arte que repele o que está fora do eixo Rio-São Paulo, conduzindo ao regionalismo uniforme e ao ressecamento dos solos das ideias.
Os textos a seguir são um convite para quem se põe a observar os céus, caminhar pelos territórios, conhecer os seres e as histórias do Cerrado, em aproximações por livre associação, como quem chega em um lugar pela primeira vez. O roteiro desta viagem começa pelas extensões de terra e céu azul dos Campos Limpos; em seguida, encontraremos a serrapilheira que cobre o chão da Mata Seca; agora, em uma temperatura mais amena e úmida, chegamos às Veredas, que buscam água dos rios das Florestas de Galeria e, por fim, os Campos Sujos, que, apesar de pouco férteis, não perdem a sua potência territorial.
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JULIANA MONACHESI, LUANA ROSIELLO, ELOISA ALMEIDA E MATEUS NUNES
CERRADO
MARIANA CRIOULA (2022), DALTON PAULA
Dalton Paula é conhecido pela trilogia de obras em que investiga o Atlântico Negro, iniciada com Rota do Tabaco (2016), instalação que integrou a 32ª Bienal de São Paulo – desenvolvida em trabalhos sobre a Rota do Ouro (2019) e finalizada com o site specific Rota do Algodão (2022), em cartaz até 30/1/2023 no projeto Octógono da Pinacoteca de São Paulo. Mas o artista vem se dedicando com regularidade a retratar personalidades negras em uma proposta de revisão da historiografia oficial do Brasil. Nascido em Brasília, ele vive e trabalha em Goiânia, onde desenvolve um processo de pesquisa nas comunidades quilombolas da região, utilizando, por exemplo, fotografias contemporâneas de pessoas do quilombo Alto Santana, em Goiás, como base para a criação de alguns de seus novos retratos. “Ao articular essas várias camadas interpretativas
ao processo de construção da imagem, os retratos criados por Dalton Paula conferem dignidade a homens e mulheres negras que foram objetificados, estereotipados e dominados por uma tradição visual, ora da fotografia, ora da pintura, orientada pelo padrão branco”, afirma Glaucea Britto, curadora assistente do Masp, por ocasião da mostra Retratos Brasileiros, realizada de julho a outubro de 2022 no museu. Nas pinturas mais recentes, como Mariana Crioula (2022), o artista utiliza o recurso de deixar espaços sem preenchimento de tinta, sublinhando que se trata de uma história em reconstrução. Nessas telas, Paula aplica folhas de ouro de 22 quilates para exaltar a ritualística dos penteados nas tradições afro-brasileiras e como símbolo de nobreza, aludindo ao fato conhecido de que algumas dessas personalidades eram reis e rainhas no continente africano, quando foram sequestradas e escravizadas no Brasil. (JM)
VOL. 11 / N. 53 MAR/ABR/MAI 2022
32 DEZ/JAN/FEV 2022/2023
CERRADO
ESTE TERRITÓRIO PERTENCE À CEILÂNDIA (2022), GU
DA CEI
O que é, o que é? Uma placa de trânsito, fixada em um lote de 800 metros quadrados próximo à prefeitura de Goiânia, que sinaliza: Este Território Pertence à Ceilândia. Gu da Cei, artista visual, produtor cultural e curador da Galeria Risofloras, na Ceilândia, região metropolitana de Brasília, transmite uma mensagem que, à primeira leitura, parece corriqueira, mas, quando analisada a fundo, esclarece processos de ocupação de territórios e problematiza questões do direito à moradia nas periferias do DF. Trata-se de uma intervenção urbana como reposicionamento histórico.
A ação, apresentada no Salão Nacional de Arte Contemporânea de Goiás, no Museu de Arte Contemporânea, em 2022, parte de um resgate da formação da Ceilândia, que possui 489.351 habitantes, e foi historicamente a morada de indígenas do povo Cataguá e negros fugitivos das minas de Paracatu (MG) e Goiás. O município, chamado de “cidadesatélite”, para que se mantenha a ideia de um “centro”, é resultado dos processos da urbanização de Brasília e, mais especificamente, da remoção de famílias moradoras da Vila
do IAPI, em 1971, durante a Campanha de Erradicação de Invasões (CEI), de onde veio o nome da cidade. O IAPI localiza-se nas proximidades do Museu Vivo da Memória Candanga, entre a Candangolândia e o Núcleo Bandeirante, todos na região metropolitana de Brasília, e, na época, não possuía infraestrutura urbana ou comunitária. Hoje, é o “Setor de Mansões IAPI”, que abriga pessoas da alta classe média do Distrito Federal.
A transferência da população para a região localizada a cerca de 30 quilômetros do Plano Piloto acarretou uma drástica queda na qualidade de vida das pessoas. Consideradas invasoras, as cerca de 82 mil pessoas foram expulsas para longe da região central de Brasília, cidade que esses mesmos “invasores” ajudaram a construir. Gu da Cei apropria-se de e problematiza o título de invasora que foi dado para a população da cidade, faz da própria intervenção urbana uma invasão, evidenciando os processos de ocupação de territórios e direito à moradia para afirmar que Ceilândia nunca foi uma questão ambiental, mas sim de classe social. (LR)
CORTESIA MASP; CORTESIA DO ARTISTA
FOTOS:
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SÉRIE PEÃO (2022), RENATO RIOS
Rasgando a atmosfera do real para abrir espaço para o imaginário, Renato Rios, artista brasiliense nascido em 1989, tensiona a tradição pictórica e estabelece, por meio da abstração a óleo, um jogo cromático entre forma, ancestralidade e sonho. Rios explora, por meio da pintura, as relações entre a imagem e as narrativas do inconsciente, evocando símbolos que guiam o observador em uma jornada interna. Sua investigação formal baseia-se no arranjo de imagens figurativas e signos abstratos em séries, dípticos e/ou polípticos, tecendo narrativas a partir de outra noção de escrita poética e imaginação mítica, e demonstrando uma percepção cromática apurada na articulação entre a história da arte e anedotas do Centro-Oeste.
Na série em questão, o artista escolhe, não por acaso, representar um pião usado em brincadeiras de crianças e como um instrumento do mundo dos sonhos, de adivinhação e xamanismo. A pintura apresenta fortes tensões entre áreas de cor, que mudam de atitude de acordo com a vizinhança; lida com a alteração gradual do temperamento das cores, como um dégradé celeste, deslocando o objeto cotidiano até um espaço surrealista. Nesse movimento, Rios convida o espectador a vivenciar novas experiências cromáticas em direção a um lugar metafísico: do mundo das coisas para o mundo das ideias. (LR)
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CERRADO
VOL. 11 / N. 56 DEZ/JAN/FEV 2022/2023
CERRADO
EXCEDENTE MONUMENTAL (2020), TALLES LOPES
O artista goiano Talles Lopes propõe uma revisão sistemática do legado arquitetônico modernista e de suas reiterações de um projeto de país assente na colonialidade. Em Excedente Monumental (2020), Lopes atrita as noções de estrutura e ornamento, polos usualmente díspares na discussão da arquitetura moderna, mas unidos na produção de arquitetos modernos brasileiros, como Oscar Niemeyer. No modernismo, almeja-se compor um caráter estético a partir do ordenamento de elementos estruturais e funcionais, sobretudo ortogonais e austeros, sem elementos acessórios que se comportariam como ornamento: afinal, todo ornamento é excedente. Em Brasília, busca-se superar a funcionalidade e atingir a monumentalidade, nem que para isso seja preciso flertar novamente com a ideia de ornamento. De forma irônica, o artista remete-se a essa teatralidade ao falsear o peso e a materialidade das colunas, fazendo-as de isopor revestido de argamassa cimentícia. Na instalação, Lopes replica o que se situa entre a estrutura e o ornamento, a desenhada coluna do Palácio da Alvorada (1958), incorporada na memória coletiva acerca de Brasília. O artista as dispõe encostadas na parede, como sobras de canteiro de obra – talvez desnecessárias, à vista de puristas –, apresentando uma família de variações do elemento, como vocábulos diversos que pudessem se adequar à complexidade e, de certa forma, à individualidade de cada edifício, embora replique um modelo de matriz invariável. Amplamente reeditada na arquitetura popular, como atesta a pesquisa de Lopes acerca da repetição dessa forma em construções Brasil afora, Excedente Monumental expõe as contradições da arquitetura moderna brasileira e a prova de que, talvez, jamais fomos modernos. (MN)
JARDIM DE ACLIMATAÇÃO (2022), TALLES LOPES
Em Jardim de Aclimatação, Talles Lopes dá prosseguimento às investigações críticas acerca da exposição Brazil Builds (1943) do MoMA em Nova York, que buscava apresentar ao mundo a produção arquitetônica modernista brasileira. O artista produz um baixo-relevo em concreto a partir de uma das fotografias da exposição e imprime em serigrafia a reprodução de um recorte fotográfico de uma das plantas que compunham o espaço expositivo, em uma proposta de ambientar a mostra com um tom tropical. Lopes busca combater um exotismo sempre atrelado à imagem do Brasil, cuja exuberância da fauna era argumento colonial para a exploração dos recursos naturais e para a fetichização do que é brasileiro. Com o mesmo intuito dos projetos de “jardins de aclimatação”, criados na França no século 19 – que, além de fauna e flora, tinham como atrações pessoas indígenas das colônias francesas na América, “exibidas” em recintos nos jardins –, a exposição Brazil Builds buscava aclimatar os visitantes em uma fantasiosa realidade brasileira centrada na floresta. Embora responsável por inúmeros feitos na botânica no Brasil, Roberto Burle Marx privilegiou plantas de outros biomas que não o Cerrado em seus projetos paisagísticos para Brasília, reiterando dinâmicas coloniais na propaganda moderna de uma imagem florestal brasileira divulgada em sua sede administrativa. (MN)
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DO ARTISTA 35
FOTOS: CORTESIA GALERIA KARLA OSORIO; RICARDO MIYADA/CORTESIA
CERRADO
ANDA BOI ANDA BOIADA... CAMINHANDO NO SERTÃO (1984), MIRIAN INEZ DA SILVA
ESPAÇO CONFINADO (2012-2022), PEDRO
MOTTA
Do tupi-guarani, Ipê significa “árvore de casca grossa”. Sua madeira, incorruptível e indefinidamente durável, lhe confere o símbolo de força e resistência. Na crença popular, fechar os olhos e imaginar um Ipê-do-Cerrado, com folhas em tom amarelo ardente, favorece a cura do corpo e da alma. Pedro Motta, artista mineiro que reside em Brasília, ilustra o ritual na série Espaço Confinado. Composta de 40 fotografias da espécie de árvore nativa do Cerrado, as fotografias seguem a metodologia de adição de pequenas quantidades de terra dentro de molduras de madeira e vidro. Ao serem acrescidas de terra e porções de folhas de ouro, as obras ultrapassam o plano bidimensional, propondo uma relação entre tempo e espaço, já que as fotografias foram capturadas em uma dada região e a terra retirada de um local distinto. São estabelecidos deslocamentos atemporais entre fotografia e matéria e, da união desses dois elementos, surgem as fotoesculturas. Espaço Confinado também remete ao processo de produção de Day by Day, Good Day (1974-2013), obra do artista Peter Dreher, que pintou mais de 5 mil telas de um mesmo copo de água durante anos. A série parte da mesma premissa ao mostrar uma floração que se repete, ano após ano, em busca de uma taxonomia, reforçando também sua permanência em um momento que a árvore está na lista de espécies ameaçadas do Cerrado. Com isso, Pedro Motta reforça sua proposta de recriar paisagens por meio de aproximações com o campo escultórico, dando continuidade a uma investigação de longa duração sobre a relação entre o homem e a natureza. (LR)
Um ritmo existe nas pinturas de Mirian Inez da Silva (19371996). No sentido de continuidade e constância. As bordas que contornam seus retângulos, triângulos, arcos e formas sextavadas não desgrudam nunca das madeiras que lhe servem de suporte. É duro pra caramba. Os mesmos marrons, os mesmos brancos esmaecidos. Rosa, azul, verde-escuro, estão sempre lá. Num sistema de equivalências. Agudo. Quase um padrão de paletas de cores de uma consolidada multinacional, com identidade visual cravada. Como um vício do olhar em codificar o mundo. Tudo muito familiar. Pois as composições de Mirian reúnem familiaridade: retratos, santinhos, casamentos, futebol. Até quando são imagens absurdas. Esquizofrênicas. Não correspondem à realidade que vivemos, no comum. São desproporcionais. Lembram um sonho ou um retrato pintado que, por mais desengonçado o arranjo, olhamos e sabemos: são meus avós quando se casaram, pendurados na parede da sala. Figuras compõem um bizarro e improvável cenário. Por que um homem voaria pelos céus com sua bengala, a vistoriar um gado ao lado de um solitário pé de milho? Quando chega o mar, a água engole a razão. Anda boi anda boiada... caminhando no sertão… está escrito no plano térreo da pintura. Temos uma distinção muito clara do que é chão e céu: uma linha corta o horizonte, abrupta. A não ser pela cor – está no que é céu e no que é terra. O que leva Mirian a insistir nos mesmos marrons, brancos, sóis, mares, sereias, cobras? A justificativa pode transitar entre mercadoria e compulsão. Devoção, perseguição. Às vezes, as imagens de Mirian lembram lembrancinhas de viagem. São Miguel das Missões e sua valente índia. São Jorge guerreiro. Nossa Senhora. Em qualidade pouco durável, muito fiel ao preço, a menos que você seja estrangeiro e pague em dólar, mas sempre à mão. Permeia as casas, as bolsas, os olhares. Chega em qualquer um. Vai cartinha por esse mundo sem-fim. (EA)
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CORTESIA GALERIA LUISA STRINA/CORTESIA DO ARTISTA; CORTESIA ALMEIDA & DALE GALERIA DE ARTE;
MENDES WOOD DM/CORTESIA DO ARTISTA 36 VOL. 11 / N. 56 DEZ/JAN/FEV 2022/2023
FOTOS:
CORTESIA
PAISAGEM ALUCINADA: GENEALOGIA
ANTONIO OBÁ
(2022),
Em repouso está um rapaz em meio à paisagem, como quem descansa por cansaço do trabalho ou por caminhar no calor do sol. Ao contrário de outras figuras criadas por Antonio Obá, repletas de olhares penetrantes, o rapaz está de olhos fechados. Esse cansaço tamanho, que faz esquecer os galhos que carregava nos braços, mas que encontra abrigo na paisagem.
CERRADO
Os campos vastos e secos do Sertão e do Cerrado são geralmente associados à hostilidade, à infertilidade e à ruína. Revertendo essa relação, Obá faz aparecer dos galhos no meio do mato alto do Cerrado Denso uma fenda de onde irrompe um coração, um sinal de que ali, entre os angicos e paus-santos, há pulsação de vida, como uma ramificação sanguínea.
Mesmo que em suas pinturas exista certa autorreferenciação, assumida pelo próprio artista, ou a designação de um sujeito histórico, como na pintura de Chico Rei, figura representativa no século 18 em Minas Gerais, a pessoa retratada não possui uma identidade definida. Não há pistas de quem é, se possui existência real, com nome e sobrenome. Entretanto, o apagamento de quem ele possa ser apenas abre outras formas de identificação possíveis. (EA)
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37
CAMINHAR PARA ACENDER (2020), JOÃO TREVISAN João Trevisan (1986, Brasília-DF) desenvolve seus trabalhos em múltiplas plataformas em uma escuta atenta aos materiais e processos com que se relaciona, em gestos meditativos e silenciosos que dialogam com a natureza em que se insere. A partir do pensamento zen-budista, que o artista segue de forma convicta, entende não só a materialidade dos corpos com que trabalha, mas lida com sua espiritualidade em uma hierarquia horizontal. Em diálogo íntimo com a terra de Brasília, onde nasceu e afinca suas raízes, Trevisan recolhe dormentes, peças de madeira que sustentavam a linha férrea a alguns metros de sua casa, mas que foram substituídos e descartados. Ele não lanha ou golpeia a madeira, nem mesmo a submete a lixa ou plaina; mas a colhe do chão, já corpo feito em valor e cicatriz, e a carrega consigo, não para posse sua, mas para exibição da graça que encontrou. Na videoperformance Caminhar para Acender (2020), o gesto intencional de carregar o dormente na horizontalidade dos ombros, sobre o dorso vulnerável, guarda um simbolismo da dor, da renúncia e do sacrifício, além do título que prevê a transformação e sugere o abandono do plano presente e a elevação. No final da performance, monta-se um diálogo de corpos em fogo, não só vivos, mas inflamados, em uma espécie de interlocução espelhada, pautada pelo silêncio: “Vejo-me em ti, dormente em brasa, e te vês em mim, corpo ofegante. Sobre o mesmo chão nu, encontramo-nos no topo da colina. Imagino que me olhas como te olho, em uma nova linha do horizonte. Solidez e solidão, frente a frente. A tua queima também é a minha queima: o que teu corpo crepita na tua dança particular com o vento é a fugacidade da inquietação dentro de mim. Teu silêncio, depois da chama ter te transformado novamente, não é o mesmo de antes; mas é o meu silêncio, do corpo posto em forja e do olhar clemente. Agora, por fim, me entendes? Agora, por início, te entendo? Tudo que o fogo toca vira fogo. Talvez tuas cicatrizes sejam as mesmas que as minhas. Por quantas transformações já passaste? Por quantas ainda terei de passar? Afinal, somos um, e não sei se as tuas feridas fecharam como as minhas. Para a minha dúvida se resistirei ou ascenderei, talvez o silêncio seja a resposta. Ponho-me à escuta diante de algo que me faz não falar”. (MN)
CERRADO
VOL. 11 / N. 56 DEZ/JAN/FEV 2022/2023
SEM TÍTULO (S/D), CONCEIÇÃO DOS BUGRES
Olhamos de frente. São três figuras empilhadas. Três cabeças erguem-se em uma coluna. A madeira é o embrião para olhos, bocas, cabelo, nariz e sobrancelhas. Olhos absolutos, que olham para quem as vê através da reprodução fotográfica e enquanto escultura. Olham para todos os lugares, olhos grandes e escuros – vincados com rigidez, surgem como buracos que engolem tudo que está em volta. E se olhássemos pelas costas? A pilha escura, densa, que um dia já se misturou no mato. “Tudo do natural do mundo. Madeira do mato. Tudo é coisa de mato. Tudo é da natureza do mundo”, diz Conceição dos Bugres (1914-1984) sobre os amuletos que cria em um documentário de 1980. Surge então uma imagem precisa e inteiriça, assim como os ídolos de madeira do povo Kadiwéu, habitante da fronteira entre Mato Grosso do Sul com o Paraguai. O que está dentro dos olhos e atrás dos cabelos das três cabeças?
Mesmo que sugados pelos pares de olhos empilhados, na situação de fotografia, não temos a compressão material do peso da madeira, tão pesada quanto a aura que a ronda. Tampouco concebemos essa figura inserida na sua origem, no Cerrado, no terreiro em frente à casa de Conceição, ou ao lado, em sua oficina. “Parecia o rosto de uma pessoa, fui lá e fiz”, diz ela, quando responde para a câmera do cineasta Cândido Alberto da Fonseca por que começa uma nova peça. O modo de fazer é contínuo e segue, apesar das mãos de quem a faz. Conceição é, portanto, instrumento. (EA)
ALVORADA (2018), EVANDRO PRADO
O Palácio da Alvorada, primeira construção de alvenaria da capital federal, figura em diversos trabalhos de Evandro Prado. Na série Brasília (2018-2019), por exemplo, duas pinturas retratam as típicas colunas externas do edifício, cujo formato inusual foi inspirado, segundo a literatura arquitetônico-urbanística, nas redes estendidas em varandas dos casarões coloniais. Nas telas de Prado, a coluna-rede é representada ancorada e encoberta por estruturas de obras de engenharia, dispositivo que instaura uma ambiguidade temporal: estamos vendo a construção de Brasília, uma reforma, ou uma preparação afrofuturista para a implosão?
Já na instalação Alvorada (2018), apresentada pelo artista campo-grandense no Memorial da América Latina (outra obra arquitetônica de Niemeyer), em São Paulo, o recurso narrativo é diferente: uma coluna do Alvorada feita de pau a pique, na proporção de um quinto da original, confere à obra uma noção de tempo mais ancestral, que pode ser lida como homenagem (aos construtores de Brasília e/ou aos habitantes originários do Planalto Central), mas também como um tipo de revolta ou retomada, sugerindo que o palácio-residência do Presidente da República pudesse ser reclamado por esses mesmos antepassados (candangos, caboclos, indígenas e negros), tomado de volta e “camuflado” de barro para reintegrar o monumento modernista à paisagem originária do Cerrado. (JM)
CERRADO
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA; CORTESIA GALERIA ESTAÇÃO/JOÃO LIBERATO; CORTESIA DO ARTISTA
CERRADO
DAS SÉRIE EX-CULTURAS (ANOS 1980), BENÉ FONTELES
Em cinco décadas de prática artística, Bené Fonteles (1953, Bragança-PA) propõe integrações entre arte, política, espiritualidade e ecologia no Brasil, operando diferentes matrizes culturais, geográficas e temporais. Os trabalhos do artista com o Cerrado se iniciam em 1981, onde residiu nos seguintes 29 anos como interlocutor entre comunidades indígenas locais, ativistas ecológicos, líderes religiosos e instituições políticas e artísticas. No trabalho da imagem, registrada por Mário Friedlander, fotógrafo e ativista ecológico do Cerrado, Fonteles ajuda a construir ocas juntamente com o pintor Miguel Penha, indígena Bororo originário da região, no Refúgio da Vida Silvestre do Vale do Jamacá, na Chapada dos Guimarães (MT). As técnicas construtivas utilizadas eram repassadas pela comunidade xavante, cuja cosmovisão é estruturada a partir da relação com o bioma. A arte dos povos indígenas da região é centrada em padrões gráficos atentos à peculiaridade do Cerrado, sobretudo com as nascentes de rios que irradiam para outras partes do Brasil, como nos desenhos de pintura corporal, na cestaria, na cerâmica e na plumária.
A reserva natural, trabalho de preservação que segue nos dias atuais, foi iniciativa coordenada por Fonteles e outros
ativistas locais, que adquiriram a terra com ajuda da Gaia Foundation, instituição ecológica da Inglaterra com atuação mundial. Cercada por latifúndios onde a terra era devastada e incendiada para a atividade agropecuária, boa parte dos animais se refugiavam na reserva – levando ao nome Refúgio da Vida Silvestre –, liderada por indígenas Bororo e Xavante. Juntamente com essas comunidades, Fonteles participou da fundação da Associação de Defesa da Chapada dos Guimarães e da Associação Mato-grossense de Ecologia. Como intermediador, o artista também integrou a criação da União dos Seres do Cerrado, que levaria à instituição da Reserva da Biosfera do Cerrado, junto à Unesco em 1993.
Na imagem, em frente à oca, está um dos trabalhos que compõem a série Ex-culturas, feito a partir do empilhamento de pedras equilibradas. Embora comum em tradições tibetanas e havaianas, o empilhamento de pedras como prática ritualística e espiritual não é usual nas comunidades indígenas locais. Fonteles, portanto, propõe hibridismos culturais através da prática escultórica que, ao buscar o ponto de equilíbrio que sustenta a matéria e emana energia para o observador, para a terra e para todo o universo, procura também a própria cura em conexão com a natureza. (MN)
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CERRADO
FEBRE DO CERRADO (2008), ROSÂNGELA RENNÓ
Essa história começa quando Rosângela Rennó, movida pelo desejo de conhecer o sertão mineiro da obra literária Grande Sertão: Veredas, escrita pelo conterrâneo João Guimarães Rosa, decidiu fotografar redemoinhos de poeira. O fenômeno, que surge e se desfaz em segundos e, por isso, torna-se difícil de fotografar, tem grande carga simbólica na região: é visto como uma espécie de materialização do demônio. Partindo desse princípio alegórico, registrar um redemoinho seria como fotografar o próprio deus das trevas. O desejo e a viagem não se realizaram, mas Rennó iniciou então um projeto de pesquisa à procura de pessoas que já tivessem conseguido realizar essa façanha e que pudessem compartilhar, com ela e com o mundo, não
apenas a documentação do fenômeno natural e efêmero, mas a sensação de fotografá-lo. Contando com a parceria de fotógrafos amigos, desconhecidos e famosos, a artista propôs em Febre do Cerrado (2008) que, além da captura da imagem, o autor escreva um relato. A tarefa não era fácil, mas resultou em 32 fotografias capturadas por seis autores, evidenciando o caráter instantâneo da fotografia como ferramenta para prolongar o tempo, neste caso, de um fenômeno da natureza. Ao reunir imagens de outras pessoas, a instalação reforça a ideia de autoria compartilhada, a partir da apropriação de imagens que permeia a produção de Rennó, acrescentando outra camada ao seu trabalho, a de coletividade e troca de experiências. (LR)
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FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA; CORTESIA GALERIA VERMELHO/CORTESIA DO ARTISTA
MAPAS (2017), GERVANE DE PAULA
Sobre uma placa de madeira com a silhueta cartográfica do estado de Mato Grosso, Gervane de Paula desenvolve o trabalho Mapas (2017), pintura em que retrata um artista morto ao chão, do qual nasce um rio de sangue, com um papel que homenageia o pintor mato-grossense “Jared Aguiar e outros famintos”. Acima do corpo lê-se “arte aqui é mártir”, reiterando a ameaça que as produções artísticas apontam às cátedras de poder e agressividade pelos latifundiários na percepção desse instrumento de delação. As numerosas árvores que cercam o corpo e que tomam o quadro inteiro, ao mesmo tempo que exibem a densidade florestal da região enfatizam-na como elemento de isolamento de crimes silenciosos que acontecem na zona rural, transformando-a em campo de batalha afastado com pouca visibilidade. Os trabalhos do artista também se debruçam sobre críticas à desigualdade social brasileira, ao racismo, ao autoritarismo policial, à corrupção política e ao sucateamento dos serviços públicos. (MN)
ARTE AQUI EU MATO (2018), GERVANE DE PAULA Gervane de Paula (1962, Cuiabá-MS) desenvolve sua produção artística em múltiplas plataformas, como pintura, desenho, performance, objeto e instalação. O artista opera imagens da cultura popular, também se abastecendo de uma estética pautada pelas imagens do consumo de massa e pelo uso de materiais cotidianos. Em tom provocador, de Paula tem consistentemente denunciado atividades rurais e legais no Cerrado e os sistemas de violência que as estruturam, atestando que a liberdade de expressão é cerceada por essas instâncias. Em Arte Aqui Eu Mato (2018), retrata a hostilidade de latifundiários quando confrontados com os questionamentos críticos da arte, enxergando-a como ferramenta de denúncia e de ameaça à permanência de seus lugares de poder. De Paula propõe uma leitura análoga à invasão da terra por uma onça, que coloca em risco os animais criados para a atividade pecuária; assim, a forma de lidar com o problema é matá-la, como o faz o vaqueiro que carrega o felino morto sobre o ombro e uma espingarda. (MN)
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GUERRILHA (2014), ALICE YURA
O autorretrato com o rosto pintado nas cores da bandeira arco-íris, com uma peruca branca que faz as vezes de balaclava, e o olhar fixo em nós, espectadores da obra, entre desafiador e raivoso, envolto em uma mancha vermelho-sangue, não deixa margem a livres interpretações. Alice Yura, aqui, está declarando guerra. A guerrilha em questão passa por uma série histórica de lutas, conforme a curadora Carollina Lauriano elenca no texto de apresentação da mostra individual Acalentar, de Yura, em que a obra foi exposta, em Brasília: da pergunta de Linda Nochlin sobre a invisibilidade das artistas mulheres ao questionamento de Howardena Pindell sobre sexismo e racismo na arte, que estão atrelados à dominação e ao apagamento da experiência, passando pelo debate mais recente, levantado por Agrippina R. Manhattan, no artigo “Por Que Não Houve Grandes Artistas Travestis?”, atualizando e ampliando as lutas feminista e antirracista de suas predecessoras. “Acalantar constrói-se a partir das próprias contradições impostas pelo sistema da arte”, escreve Lauriano, evidenciando a denúncia contida nas obras de Alice Yura sobre a inscrição de seu pensamento neste sistema, por meio de uma dupla retomada: a de si, como corpo político, e a da história da arte, como campo de batalha, para discutir noções de gênero e das subjetividades, sobretudo em torno da ideia de performatividade do feminino. (JM)
CERRADO INFINITO
(2015-2022), DANIEL CABALLERO
Interessado nas transformações da paisagem de São Paulo, Daniel Caballero resgata, no projeto em processo Cerrado Infinito, as reminiscências de cerrado nativo em regiões periféricas e terrenos baldios da cidade. Junto aos moradores da Praça da Nascente, no bairro da Pompeia, Zona Oeste de São Paulo, ele restabelece o bioma. A entrada do cerrado é por uma trilha que adensa em pequis, lobeiras e outras árvores e arbustos, recolhidas por Caballero em outros cantos da cidade. “Uma linha que se desenha caminhando, rasgando a vegetação e o relevo”, diz o texto em uma placa. As trilhas estendem-se em vídeos, no livro Guia de Campo dos Campos de Piratininga (2016), na Escola Estadual Jardim das Camélias, Zona Leste de São Paulo, e na Casa do Sol, morada da escritora Hilda Hilst, em Campinas. Plantio e cultivo, aqui, não são reflorestamento ou conservação, mas a descolonização da paisagem urbana e a reflexão sobre os processos de mudança na paisagem, em especial pelo agronegócio e a especulação imobiliária. (EA)
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FOTO: CORTESIA DO ARTISTA / REDAÇÃO; PAULA AZUGARAY / CORTESIA DA ARTISTA 43
NA MIRA – GUARIBA (2019), JOSAFÁ NEVES
O guariba está na mira da extinção. Nome tupi-guarani do macaco bugio-ruivo, o guariba vive na mira dos avanços predatórios da pecuária, da monocultura agrícola e da mineração. Mas também surge aqui no foco do olhar amplificador e contestatório do artista brasiliense Josafá Neves. Conhecido pela pesquisa sobre a cultura afro-brasileira, Neves já voltou suas lentes críticas a outros elementos do Cerrado, do ipê-amarelo e da onça-pintada, a irugbin (semente, em iorubá) e yabá (mãe rainha, em iorubá, termo utilizado para se referir aos orixás femininos). Por meio de um tratamento pictórico que sempre parte de uma tela recoberta de preto para fazer emergirem divindades empoderadas e símbolos de resistência Nkenda (do bantu, “caminho interior para dentro de si mesmo”, união das raízes e ancestralidade de nativos indígenas e africanos diaspóricos), o artista nascido no Gama (DF), filho de migrantes baianos, mudou-se para Goiânia com sua família aos 7 anos, onde, desde 1996, se dedica às artes visuais. Mesclando referências ao cubismo histórico, ao expressionismo de Siron Franco, e à simbologia das religiões de matriz africana, Neves consegue, na pintura Na Mira – Guariba (2019), o feito de fazer ouvir a vocalização dramática pela qual o macaco bugio é conhecido no Cerrado. Para o artista Emanoel Araujo, o sincretismo estético de Neves tem DNA definido: “O cubismo, como sabemos, é também fruto direto da arte africana, de suas máscaras de forte apelo religioso e simplificação formal. Josafá Neves, por sua vez, contamina suas obras com referências expressionistas, com elementos oriundos do concretismo ocidental, associando-os aos signos arquetípicos e a soluções formais presentes na escultura e na pintura corporal africana”. (JM)
SÉRIE
RESISTÊNCIA (2017-2019), SALLISA ROSA
Inspirada na líder e guerreira Kayapó, ativista dos direitos indígenas e do meio ambiente, Tuíra Kayapó, que, em 1989, apontou um facão no rosto do presidente da Eletronorte como ato de protesto contra o impacto ambiental gerado pela construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará, Sallisa Rosa reproduz, em imagens, este símbolo de luta e sobrevivência para trabalhadores rurais e povos indígenas em todo o mundo. A obra reúne imagens de facões pertencentes a familiares e pessoas próximas da artista goiana, demonstrando sinais do tempo e do uso em suas mais diversas funções. Se a ferramenta é um símbolo de resistência e da abertura de caminhos, ela é também amplamente utilizada no dia a dia no campo, na cozinha e em outros afazeres rurais. O trabalho exibe fotografias de facões que contam histórias coletivas, registrando práticas dissidentes de sobrevivência. Reproduzidas em lambe-lambe, as imagens foram espalhadas nos muros de várias cidades, até o projeto ser assimilado pelo núcleo Retomadas da exposição Histórias Brasileiras, no Masp, e incorporado ao acervo do museu. O trabalho evoca urgência de maior visibilidade das lutas indígenas por demarcação de terras, pelo protagonismo de mulheres indígenas na militância e pelos movimentos contemporâneos de autodeclaração identitária. (LR)
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CENA DE INTERIOR N° 3 (INCÊNDIO) (2019), PEDRO GANDRA
Com o perdão pela leitura demasiado impressionista, não é possível olhar essa tela de Pedro Gandra sem ver nela um aceno intergeracional e intercultural à célebre pintura de Dorothea Tanning, Eine Kleine Nachtmusik (1943), por sua vez um (duplo) aceno a Danger on the Stairs (1927), de Pierre Roy, e à Serenata Noturna (1787) de Mozart. Nesse jogo intersemiótico, o gênero de pintura de interior dialoga com a música de câmara, surrealismo com lirismo, simbolismos freudianos com persuasão emocional carregada de pathos melódico. A chama incandescente sugerida na porta entreaberta ao fundo da pintura de Tanning, na de Gandra tomou quase inteiramente a cena; e o contraste rebaixado entre o verde das paredes de hotel e o vermelho-sangue do tapete de corredor da artista surrealista estadunidense
ganha tons agudos no alastramento do fogo pelo ambiente verde da escadaria do carioca baseado em Brasília. A reiteração da escada tem um rebatimento na contração muscular das figuras encostadas à parede. O clima noturno perpassa todas as obras postas aqui em relação. “À noite, imagina-se todo tipo de acontecimento nas sombras da escuridão. Um quarto de hotel é íntimo e desconhecido, quase alheamento, e isso pode evocar uma sensação de ameaça e forças desconhecidas em jogo. Mas essas forças desconhecidas são uma projeção de nossa própria imaginação: nossos pesadelos particulares”, disse Dorothea Tanning sobre a sua Eine Kleine Nachtmusik, assim como são notórios os pesadelos particulares que atormentavam Mozart. Cena de Interior n° 3 (Incêndio) conjura essas forças desconhecidas que habitam o Cerrado em cada um de nós. (JM)
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FOTOS: CORTESIA MUSEU DE ARTE DE SÃO PAULO / CORTESIA DO ARTISTA / CORTESIA DO ARTISTA, FOTO: JEAN PEIXOTO
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CAPITAL (2014), ÍRIS HELENA
Vamos falar sobre dialética. É entre destruição e construção, lembrança e esquecimento que Íris Helena, nascida em João Pessoa (PB) e baseada em Brasília (DF), delineia sua investigação crítica e estética sobre a paisagem urbana. A artista faz da fotografia seu instrumento de ação. Utilizando objetos ordinários e descartáveis como suporte, de folhas de post-it a pedaços de reboco de parede, cria “fotoinstalações” apresentando cidades em ruínas, construções e monumentos, em imagens compostas de fragmentos. Em Capital (2014), da série Arquivo Morto, um conjunto de 24 edifícios brasilienses impressos em cupons fiscais termossensíveis, estabelece uma dúbia sobreposição de sentidos, comprovando nossa dependência do mundo mercantil. Em 1987, Brasília foi nomeada Patrimônio Cultural da Humanidade, a primeira cidade do século 20 a receber tal honraria. Assim, além de ser reconhecida como uma “obra-prima” de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, ficou também defendida da ação predatória dos especuladores e de qualquer outra transformação urbanística. A partir disso, Íris Helena imprime os monumentos da capital, como o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e a Catedral Metropolitana, entre outros, em notinhas fiscais azuis e amarelas. As imagens já nascem em processo de desaparecimento, consoante à lógica efêmera da película termossensível que lhes serve de suporte. Estabelece-se uma conversa sobre quanto tempo dura um patrimônio. Seguindo a lógica observada por Lévi-Strauss em Tristes Trópicos – “aqui tudo parece que é ainda construção, mas já é ruína” –, Íris Helena reivindica que nos lembremos dessas imagens, ao mesmo tempo que, no suporte leve e descartável utilizado, evidencia seu inevitável destino de invisibilidade. Entrar em contato com a sua produção é pensar sobre a (re)construção da memória atrelada ao risco, à instabilidade e, sobretudo, ao apagamento. (LR)
PASAQUAN: THE SECOND CARD/VIBERATIONS (2020), GÊ ORTHOF
“Em Brasília, monumental mesmo é o vazio”, afirma Gê Orthof, artista e professor na Universidade de Brasília. O contraste percebido e vivenciado por Orthof traduz-se, em suas obras, nos pequenos formatos, quase sempre miniaturizados, e na investigação dos espaços vazios. Pode-se estabelecer um paralelo entre a sua pesquisa estética e o partido literário adotado por Samuel Beckett na última fase de sua trajetória, quando problematiza o esgotamento da literatura. Enquanto Beckett vai em busca do silêncio e de uma economia da representação como solução possível diante da constatação de que a literatura não pode representar nada, Gê Orthof encaminha seu trabalho para uma redução de expressividade e para um evidenciamento do vazio. Na instalação Pasaquan: The Second Card (2020), que apresentou na exposição coletiva Viberations, no Corn Center for the Visual Arts, em Columbus, Geórgia (EUA), Orthof mistura fábulas tradicionais, patafísica, história e eventos políticos para desconstruir antigos paradigmas artísticos. “Gosto de brincar com diferentes escalas, materiais e assuntos, com o objetivo de diminuir a ansiedade contemporânea, despertando no espectador um senso de autonomia e responsabilidade por sua experiência”, afirma o artista. (JM)
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SÉRIE PALETA (2018), RAQUEL NAVA
A cena é estranhamente familiar. Repleta de elementos do doméstico, como fôrmas de alumínio, uma pia, azulejos, um ralo, farinha e carnes embutidas. Um gato, um cavalo e outros bichos, também familiares, estão mortos – empalhados ou dispostos em ossos ou pedaços. As partes equilibram-se numa linha tênue entre cotidiano e absurdo e, juntas, constituem uma área ambígua – inventada e ao mesmo tempo concreta. Algo entre uma cozinha, um ateliê e uma indústria. Os mesmos itens que estão nas fotografias, compartilhados em qualquer casa de classe média brasileira, parecem se desconstituir na sua própria superfície e emergem só como coisas, despidas de natureza. Tudo indica para o artifício, desde o presunto rosado até os chassis vazios no último plano da fotografia. Mas a associação entre os elementos não é objetiva e, sobre a imagem, paira algo como um fantasma. O universo de Paleta (2018), em conversa com outras obras da brasiliense Raquel Nava que carregam corpos do mesmo imaginário, fica imerso num mistério, justamente o mistério do procedimento, do resultado material deslocado de sua origem. Para além da reconexão dos binarismos da modernidade (como morte/ vida, cultura/natureza etc.) e as claras referências às vanitas e à tradição da natureza-morta na história da arte, como bem sinalizado em textos de Fabricia Jordão e de Lola Fabres, a série ressalta a ambiguidade desses elementos ordinários que caminham sempre tão juntos, bem como a escatologia e a morbidez intrínseca aos processamentos da carne, do alimento e da arte. (EA)
INTEMPÉRIES PERMANENTES
MATIAS MESQUITA
(2018),
Acompanhar o ritmo das nuvens no céu é perceber a ação do tempo, num movimento ininterrupto. Na série do artista carioca Matias Mesquita, que reside em Brasília desde 2013, o ato de pintar uma nuvem é a tentativa de capturar uma fração do passado, num esforço de eternizar o instante. Em Impermanência, imagens realistas do céu de Brasília são delicadamente pintadas sobre a rispidez de blocos de cimento. A representação fiel dessas visões celestes, ao serem aplicadas sobre uma superfície alheia às tradições artísticas, mas presente na vida urbana, propõe uma dubiedade: não apenas a nuvem se desmanchará com os ventos, mas a luz daquele momento, que incide sobre ela, será outra. Esse instante efêmero, capturado e reproduzido pictoricamente, é fixado no concreto como um lembrete de sua beleza frágil, de sua provisória memória.
A materialidade da obra estabelece um processo que leva a pintura de encontro à escultura. Enquanto o suporte de seus trabalhos busca uma arquitetura que combine materiais brutos como concreto, barro e escombros de ruínas urbanas, evocando a condição inerente à sociedade contemporânea em constante transformação, a pintura tenta eternizar o instante para a posteridade, com um olhar de contemplação para o cotidiano. Temporalidade, matéria e memória constituem os elementos essenciais com os quais Mesquita produz as imagens do lugar onde vive. Toda essa construção, somada à delicadeza das pinceladas da pintura realista, dá abertura à subjetividade do observador e à possibilidade de imersão em um processo contemplativo. (LR)
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CORTESIA DAS ARTISTAS / CORTESIA: ZIPPER GALERIA 47
FOTOS:
ESCOLHE A BANDEIRA E RENUNCIA (2018), HELÔ SANVOY
A bandeira de Helô Sanvoy foi realizada para a exposição Porta de Banheiro, curadoria de Maria Adelaide Pontes, no Centro Cultural São Paulo, em 2018. Exposto na área expositiva e replicado nas portas dos banheiros do centro cultural, o trabalho afirma o banheiro público como local de manifestação coletiva. A justaposição de elementos de diferentes origens orienta a composição. O arranjo formal replica a bandeira Seja Marginal Seja Herói (1968), de Hélio Oiticica, colocando, no lugar ocupado pelo cadáver de Alcir Figueira da Silva, o mapa do Plano Piloto de Brasília, projetado nos anos 1950 por Lucio Costa. A partir das músicas Geleia Geral, de Torquato Neto, e Tropicalea Jacta Est, de Tom Zé, Sanvoy elabora um novo lema: na manhã que se inicia escolhe a bandeira e renuncia. Breve retrospecto. Em 1966, Alcir Figueira da Silva percebe que será alcançado pela polícia após assaltar um banco e se suicida. Ele renuncia ao roubo e à própria vida, mas, principalmente, ele se recusa a se sujeitar à prisão e ao destino certeiro da execução pela polícia. O corpo anônimo estendido no chão vira bandeira de afirmação de outro tipo de heroísmo, “a denúncia de que há algo podre, não neles, pobres marginais, mas na sociedade em que vivemos”, disse Hélio Oiticica no texto “O Herói anti-herói e o anti-herói anônimo” (1968). Cinquenta anos mais tarde, em 2018, em outra bandeira, coloca no lugar de Alcir, suicidado, a planta do projeto de Brasília. O avião que está sugerido no desenho de Lucio Costa já não aponta para cima, sua direção é a queda, como um corpo que cai sem vida. “O que temos aqui não é obra do acaso, uma injustiça esporádica ou um devaneio político, temos exemplos do que estrutura a base social brasileira. O avião do voo para o progresso foi abatido no Centro-Oeste”, aponta Sanvoy. (EA)
NÓIS É RESISTÊNCIA E NUM ARREGA (2017), CAMILA SOATO
A artista brasiliense Camila Soato introduz com sua pintura o conceito de “fuleragem”, método de produção em que não há lugar para delicadeza, cuidado ou pudor. Apropriando-se tanto de imagens virais quanto de quadros famosos do universo da arte para promover deslocamentos e releituras de eventos históricos, personalidades e sistemas culturais, a artista opera sua intervenção crítica no debate do Brasil contemporâneo. Seu trabalho dessacraliza a estética clássica e seus valores, trazendo à pintura figurativa uma atmosfera bruta, indelicada e impolida, produzida por uma mulher de maneira intensa e pulsante.
Soma-se a isso uma temática escatológica e transgressora, que institui um espaço no qual corpos não hegemônicos e sujeitos socialmente silenciados se tornam protagonistas de atos de resistência política. Em Nóis é Resistência e Num Arrega (2017), pinceladas fortes e camadas espessas, envoltas em uma atmosfera satírica e absurda, narram uma cena cheia de acontecimentos: durante a invasão colonial, uma mulher, com os seios à mostra, usando uma balaclava e com as tiras de um chinelo presas no braço, luta contra soldados europeus, representados em azul e branco, cores dos tradicionais azulejos portugueses. Em meio a isso, crianças praticam o pega do porco, brincadeira infantil típica de São Paulo na primeira metade do século 20. (LR)
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MAPA CARTE DU BRÉSIL (2012), PAUL SETÚBAL
A dimensão do corpo como suporte é constantemente explorada nos trabalhos de Paul Setúbal, sendo este um importante meio material, social e geográfico para discutir temas atuais e traduzir relações de poder. Mapa (Carte du Brésil) (2012), díptico produzido quando o artista, natural de Aparecida de Goiânia, vivia entre Goiânia e Brasília, trata do corpo como mapa, resgatando o legado de suas experiências com o desenho. Setúbal propõe uma relação imagética e poética criada pela objetificação de seu corpo, que passa a ser utilizado como suporte de uma cartografia europeia, substituindo o status de sujeito pelo de colonizado. O trabalho foi produzido para a individual Aviso de Incêndio, realizada em 2015, durante a residência artística Elefante Centro Cultural, em Brasília, em que foram apresentados trabalhos que pensam questões relacionadas ao território, ao entorno e ao contexto do Centro-Oeste. (LR)
DOCUMENTOS E FICÇÕES DE ORIGEM: QUANTOS BRASIS FORMAM O BRASIL
(2019-2020),
HAL WILDSON
A carteira de identidade oficializa, com uma foto 3 x 4 da bandeira e um mapa no lugar da impressão digital, a herança colonizadora, escravocrata e conservadora do Brasil. Neste trabalho, Hal Wildson, nascido no Vale do Araguaia, região fronteiriça de Goiás e Mato Grosso, investiga documentos pessoais e oficiais como ferramentas de manipulação de memórias. O artista discute como a criação do Brasil foi moldada por ficções e projetos de poder, permeada por uma história oficial controlada pelo olhar do opressor. O documento torna-se suporte para a oficialização das formas de apagamentos sociais e o estado de crise de suas instituições, colocando em questão a formação e a identidade do povo, dentro de uma noção imposta de identidade nacional. (LR)
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50 SELECT ARTE E POLÍTICA PROTESTO E MANIFESTO AMBIENTAL SÃO GESTADOS NO PROJETO ESTÉTICO-POLÍTICO DO ARTISTA GOIANO SIRON FRANCO GOIÁS ERA UM CASULO PORTFÓLIO PAULA ALZUGARAY, DE GOIÂNIA
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Casulo de Seda (1996)
FOTO: DELRE/STEIN_VIVA FOTO
A ELEIÇÃO, EM 2022, PARA O CONGRESSO NACIONAL DE UM EX-MINISTRO DO MEIO AMBIENTE NOTABILIZADO POR SUGERIR QUE O GOVERNO APROVEITASSE AS ATENÇÕES DA IMPRENSA VOLTADAS À PANDEMIA DO CORONAVÍRUS PARA DESMANTELAR A REGULAMENTAÇÃO DE LEIS AMBIENTAIS, É ALGO QUE ESTÁ POR SER ASSIMILADO E COMPREENDIDO NESTE BRASIL PÓS-BOLSONARO. O novo integrante da Bancada do Boi é um defensor das pautas retrógradas de outros ruralistas reeleitos, como a mudança do Código Florestal com o objetivo de diminuir a área de preservação de reservas legais dentro das propriedades do Estado, com o intuito deliberado de manter o Cerrado na condição de bioma mais devastado do território nacional. Nesse contexto de violência rural nasceu e trabalha Siron Franco (Goiás Velho, 1947), artista que há 60 anos se dedica a apresentar e comentar criticamente os problemas do Brasil.
DATAS, DA SÉRIE O CURRAL, 1989
O Cerrado tem hoje 56% da sua área coberta por vegetação nativa e 40% voltada às atividades agropecuárias – números que não falseiam a realidade. E é sobre esse mundo codificado que Siron Franco se debruça na série de 16 pinturas que compõem O Curral (1989), inscrevendo, nos cortes das madeiras das cercas dos currais de gado, números que representam datas e valores significativos: o ano do golpe militar; o ano do acidente com Césio-137, em Goiânia; o número da rua em que ocorreu o evento; calibres de armas; datas de outros acontecimentos relevantes. Os troncos demarcados nas pinturas de Siron, vistos hoje à luz de um desmatamento que atinge níveis alarmantes, nos remetem a um processo atual de autodemarcação: o de territórios indígenas, que vem sendo feito a tinta em troncos de árvores por lideranças na Amazônia e do Centro-Oeste, diante do retrocesso dos processos de delimitação pela Funai.
RUA 57, 1987
O local e o global se tocam e amplificam na obra de Siron Franco. O artista assume-se cronista e jornalista de seu tempo e seu espaço quando usa as linguagens artísticas para propagar a notícia do mais grave acidente radiológico ocorrido no mundo fora de usinas nucleares. Em setembro de 1987, um maquinário abandonado no antigo edifício do Instituto Goiano de Radiologia (em ruínas) foi violado por dois catadores de sucata, moradores do Bairro Popular, próximo ao local, e vendido a um ferro-velho. O fascinante brilho azul que irradiava dentro de uma cápsula contaminou os vizinhos da Rua 57, e as partículas de cloreto de Césio-137 dispersaram radioatividade com o vento, envenenando o solo, as plantas, os animais e atingindo mais de 100 mil pessoas. Realizadas nos três meses seguintes, as pinturas e os desenhos das séries Rua 57 e Césio (1987), que processam em
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Datas, da série O Curral (1989)
sombras e traços expressionistas as geografias do acidente, foram, em uma ação pioneira de crowdfunding, vendidas para arrecadar fundos para o socorro das vítimas. O acidente, até então acobertado pelas autoridades locais, ganhou a divulgação necessária quando o artista, morador do Bairro Popular de Goiânia até os 21 anos, organizou um protesto artístico vestindo manifestantes goianos com máscaras de chapas de raio X, que ganhou as páginas de revistas e jornais de todo o país.
EMBALAGEM, 1995
A violência das demarcações a ferro e fogo, implícita nos cercados de gado da série O Curral, volta a se afirmar na série Embalagem (1995), composta de oito pinturas envoltas em arame farpado. Em texto para o catálogo da exposição do projeto, na Embaixada do Brasil em Paris, o editor e curador Charles Cosac atenta para uma pintura que não carece de tinta e para a forma como “as perfurações a que as telas estão inevitavelmente submetidas, mesmo que
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Sem Título, da série Rua 57 (1987)
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imperceptíveis, criam uma estranha noção de unidade”. O contato dissimulado dos espinhos de aço com o tecido e a força de contenção de suas linhas sobre a imagem pintada desenham a intensidade da violência ambiental e social que a obra de Siron busca revelar.
PELES, ANOS 1980-90
Nos anos 1980, o interesse pelo ritmo gráfico das peles de onças-pintadas dá origem à tela Pele de Onça (1983). Em toda
a sua elegia à beleza, a pintura anuncia, na pequena mancha de tinta a óleo vermelha, a violência que será frontalmente abordada na série Peles, dos anos 1990. Outras pinturas antecedem esse conjunto. São retratos de fazendeiros e personagens abastados da sociedade goiana, trajando peles. Entre elas, Casaco de Pele (1984), Traje de Inverno com Interferência (1981) e Homem Apressado (1982). Os retratos de corpos em desfile prenunciam as pinturas em que a pele é representada em sua condição de caça, com números de calibres de armas
Detalhe de Embalagem nº 3 (1996)
FOTOS: DELRE/STEIN_VIVA FOTO
Pele, Cabeça e Armadilha (1994-95); na pág. ao lado, Homem apressado (1982), da série Peles impressas sobre tela e, em Pele, Cabeça e Armadilha (1994-95), fragmentos de peles escorrem verticalmente, como as carnes e entranhas animais da série Tripas (2009-17).
CASULOS, 2000
Se a arte é um instrumento para o artista Siron Franco questionar e modificar a realidade, arte e vida fundem-se também na materialidade de seu trabalho. Matérias orgânicas como fumo-de-rolo, couro de peixe, asas de borboleta, pele de rã, penas de galinha-d’angola, cera de abelha, terra preta, ouro e a palha de trançados indígenas são elementos que compõem os Casulos (2000), série de esculturas que são uma espécie de autorretrato ambiental. “O estado de Goiás
tinha a forma de um casulo, antes de ser cortado. A parte de cima é Tocantins”, diz Siron à seLecT.
ANTAS, 1986, E CAIXÕES, 1990
A atualidade das instalações Antas (1986) e Caixões (1990) pode ser imediatamente aferida no contexto da crise climática, do agravamento de casos de abuso aos direitos humanos, de um Congresso Nacional corrompido por acordos ilícitos, do sequestro das cores da bandeira brasileira pela extrema-direita, da necropolítica e das fake news . Composta de uma bandeira brasileira formada por 60 antas de gesso, a obra Antas (1986) foi originalmente instalada na Esplanada dos Ministérios, em frente ao Congresso, com o intuito de chamar atenção para o perigo de extinção desse animal, e é um dos primeiros protestos ambientais de que se tem notícia na história da arte contemporânea brasileira. Quatro anos depois, no Dia da Criança, o gramado do Congresso amanheceu com 1.020 caixões de bebês pintados de verde, amarelo, azul e branco. A bandeira fúnebre foi
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motivada por dados de um relatório da Unesco, que chegou a Siron Franco por meio do jornalista Gilberto Dimenstein: a estatística de que a cada dia, no Brasil, mais de mil recém-nascidos morriam por desnutrição ou falta de cuidados no pré-natal. Em um tempo sem internet, a instalação funcionou como um alto-falante da negligência da política brasileira, levando os números da mortalidade infantil ao debate público e midiático. Aqui, o trabalho enquanto artista e enquanto cidadão são esferas que se somam: ser noticiado, para Siron, é intervir no debate social. Com essa forma própria de intervenção, o artista sugere a ampliação do conceito de arte pública.
MONUMENTO ÀS NAÇÕES INDÍGENAS, 1992
“O Brasil foi invadido. Se tivesse sido descoberto, eles teriam levantado o véu de ciências e mistérios que tinham esses povos originários”, diz o artista à seLecT. Monumento às Nações Indígenas (1992) foi realizado no ano em que o Brasil sediou a ECO-92, mas longe dos holofotes
voltados a um Rio de Janeiro higienizado para inglês ver –o que foi sabiamente denunciado pela instalação Atentado ao Poder (1992), de Rosângela Rennó. O monumento foi construído no coração do Cerrado brasileiro, a partir de uma pesquisa realizada nos anos 70, quando Siron viajou a Paris com o dinheiro de um prêmio, e viu, no Museu do Homem, uma exposição de objetos confeccionados por indígenas brasileiros Karajá. Em um conjunto de 500 blocos de concreto, fincados em um terreno circular com 3.700 metros quadrados, cada coluna era suporte para elementos relacionado à cultura indígena, como réplicas, fragmentos petrificados, inscrições, desenhos, baixos-relevos, objetos de arte plumária em vitrines. Se Goiás era um casulo, um berço da biodiversidade brasileira, o Monumento às Nações Indígenas logo se tornou um retrato do pior do Brasil. A obra foi vandalizada e totalmente destruída pelo ódio e pela intolerância. Agora, o artista está empenhado em reconstruí-la, buscando ajuda do poder público. Assim como o Brasil entra em reconstrução, após a derrota do fascismo nas urnas.
FOTOS: DELRE/STEIN_VIVA FOTO E ESTERAN LUÍZ CAIRES
Monumento ás Nações Indígenas, inaugurado durante a conferência Rio ECO92, vandalizado em 2008; à dir., Antas (1986), na Esplanada dos Ministérios, em Brasília
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FOTO: CORTESIA DO ARTISTA
HELÔ SANVOY ABORDA AS ESTRUTURAS E CONTRADIÇÕES DO PODER POLÍTICO NO BRASIL EM SEU CARTAZ PARA O PROJETO DE GRÁFICA ATIVISTA DA SELECT TRONCOS RETORCIDOS, CASCAS ESPESSAS E RAÍZES PROFUNDAS SÃO PARTICULARIDADES DAS ÁRVORES DO CERRADO PARA RESISTIR AO CLIMA DO BIOMA, QUE OSCILA ENTRE LONGOS PERÍODOS DE SECA E DE CHUVAS. Ao trazer para o cartaz da série #FlorestaProtesta a imagem de um pequizeiro, da raiz à copa, sobre fundo vermelho, Helô Sanvoy (1985), membro do Grupo EmpreZa, evoca essas características como um símbolo de resistência e resiliência diante das adversidades e os conflitos que assolam o meio ambiente e a realidade brasileira. Um grito de luta e de renascimento.
Cerrado Resiste, 2022, Helô Sanvoy
SELECT.ART.BR JUN/JUL/AGO 2020 60 PROJETO
#FLORESTAPROTESTA
PROJETO
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ESTA FONTE É PARA USO
ALDONES NINO E VICENTE DE MELLO COLECIONISMO
VOL. 11 / N. 56 DEZ/JAN/FEV 2022/2023
DE TODOS OS SEDENTOS
COLEÇÃO SÉRGIO CARVALHO EVIDENCIA AS RELAÇÕES MÚTUAS ENTRE OS ARTISTAS DO CENTRO-OESTE
Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça. Faz de tua vida mesquinha um poema.
E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir. Esta fonte é para uso de todos os sedentos. Toma a tua parte.
Cora Coralina
PENSANDO EM COMO PODERÍAMOS COMEÇAR UMA ESCRITA ACERCA DA COLEÇÃO SÉRGIO CARVALHO, A POETISA GOIANA CORA CORALINA NOS INDICA UM CAMINHO POSSÍVEL, QUANDO EM
A POSSIBILIDADE DE CRIAÇÃO DE UM ESPAÇO AO MESMO TEMPO DE INTIMIDADE E DE PARTILHA. Vale ressaltar que esta coleção, que vem sendo criada ao longo das duas últimas décadas, tem como uma das suas bases o compartilhamento de trabalhos artísticos, que não foram acumulados a partir de
Detalhe da instalação A irmã de São Cosme e São Damião (2016), de Dalton Paula. Na pag. dupla ant., Mané, Manet e Monet (2015), pintura de Camila Soato
VERSOS
uma lógica de especulação mercadológica, mas sim a partir de relações tecidas por cuidado e apreço. Paralelamente ao seu trabalho como advogado, Sérgio Carvalho foi construindo este acervo como um poema infinito, que se escreve a partir do encontro, das conversas e do retorno, além de uma base de suporte aos artistas e seus caminhos. A maioria dos artistas possui mais de uma obra em seu acervo, não adquiridas de uma vez, mas resultando do regresso ao ateliê, às exposições e de um compromisso estabelecido com o percurso pessoal de cada um. Seria clichê falar que cada uma das obras possui sua história particular, já que a maioria dos colecionadores gosta de destacar a especificidade de cada aquisição. Mas, no caso de Sérgio Carvalho, essas histórias começam a mesclar-se em uma névoa, fusionando de forma ímpar as biografias do colecionador, dos artistas e das obras. Seu acervo pode ser considerado uma fonte para uso de todos os sedentos, já que desde 2014 ele vem sendo apresentado em instituições públicas, como um modo de compartilhar o que de mais íntimo convive com o colecionador em
SEUS
ABORDA
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seu ambiente doméstico. Fato evidenciado em exposições como: Duplo Olhar (2014), no Paço das Artes (São Paulo); Vértice (2015), no Centro Cultural dos Correios (São Paulo e Rio de Janeiro) e no Museu dos Correios (Brasília); Cantata (2016), realizada no Centro Cultural Minas Tênis Clube (Minas Gerais); Contraponto (2017), no Museu da República (Brasília); e Espelho Labirinto (2022), no Centro Cultural Banco do Brasil (Brasília), da qual tivemos o prazer de realizar a curadoria.
TEIAS RELACIONAIS
Além de reunir obras de destacados artistas do cenário nacional, ultrapassando barreiras regionalistas, ainda é possível (quando nos convém) destacar a potente marca da produção do Centro-Oeste nesta coleção. Considerando suas práticas de aquisição, a proximidade geográfica com os artistas de seu entorno resultou na formação de um dos acervos particulares mais ricos no que diz respeito à produção desta região. Podemos encontrar na Coleção Sérgio Carvalho obras de Antonio Obá e Dalton Paula, artistas atravessados por interesses
que desdobram ritos e mitos que compõem a identidade brasileira. Eles tensionam suas poéticas enfocando crenças, tradições e heranças multiculturais, questionando a influência cristã nos processos de soterramento histórico da identidade racial e política. Podemos destacar a série Verônica (2013), de Antonio Obá, composta de desenhos em sépia e nanquim que absorvem e regurgitam narrativas provenientes da iconografia e do sincretismo religioso. Esse questionamento ganha forma a partir do sangue, considerando a Verônica bíblica – que, na Via Sacra, teria usado seu lenço para enxugar o rosto suado e ensanguentado de Jesus. Uma estratégia próxima é utilizada por Dalton Paula, que realiza pinturas a óleo sobre alguidares, peças de cerâmica onde são armazenados alimentos votivos, oferecidos às divindades em algumas religiões de matriz africana. Na instalação A Irmã de São Cosme e São Damião (2016), vemos imagens de crianças retiradas de fotografias históricas, vendedores ambulantes e santos curandeiros dos períodos gótico e renascentista. Ainda que tradicionalmente retratados como brancos, agora são corpos negros que protagonizam a composição.
FOTO: VICENTE DE MELLO
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Outra questão interessante é a criação de teias relacionando vários artistas que integram a coleção. Como Carvalho realiza a maioria de suas aquisições diretamente com os artistas, ele se integra a uma rede de produção e interlocução, fazendo com que outros artistas tenham suas pesquisas apresentadas e adquiridas para a coleção permanente. Assim, a coleção evidencia relações entre os próprios criadores.
INFLUÊNCIAS MÚTUAS
A Universidade de Brasília (UnB) é um destacado campo de formação para artistas do Centro-Oeste, influente na produção de docentes e discentes que passaram pela instituição. Isto se evidencia na influência mútua entre as pesquisas do professor de pintura Elder Rocha e da pintora Camila Soato, uma relação universitária que logo passou para trocas no ateliê. Em Justaposição Polar 3 (2008), de Elder Rocha, e Mané, Manet e Monet (2015), de Camila Soato, duas telas de grandes dimensões que integram a coleção, podemos discernir exercícios de sobreposição e contaminação que compartilham dos mesmos atravessamentos de imagens cotidianas, da mesma articulação de faturas para a deformação dos cânones da tradição pictórica. A Coleção Sérgio Carvalho foi uma das primeiras coleções privadas brasileiras a possuírem performances em seu acervo. Adquiriu, em 2014, a primeira performance do EmpreZa, denominada Tríptico Matera, realizada na mostra Duplo Olhar, no Paço das Artes, e em Vértice, no Centro Cultural dos Correios, em 2015. Dois anos depois, na abertura da mostra Contraponto, no Museu da República, em Brasília,
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o Grupo EmpreZa apresentou a performance Maleducação, que propunha uma análise sociocultural dos comportamentos e suas limitações superadas a partir da colaboração. Na ação, um banquete era oferecido aos integrantes do grupo, que, com as mãos atadas e as bocas permanentemente abertas por equipamentos dentários, eram privados do consumo. A saciedade do desejo de acesso vinha a partir do auxílio mútuo para a transgressão às boas maneiras, chegando, enfim, ao desenlace do projeto, graças à ação coletiva. O EmpreZa foi criado como grupo de estudo e pesquisa sobre performance. Seus integrantes passaram a realizar happenings, vídeos e fotografias baseados em suas propostas individuais, e vários deles também possuem trabalhos no acervo, como é o caso de João Angelini. Alguns dos trabalhos de Angelini se voltam para a análise da alienação da sociedade capitalista e a busca desenfreada por ascensão, poder e reconhecimento. Os trabalhos da série Novo Bloco Econômico Ocidental (2012/2017), por exemplo, compostos de cédulas de euro, dólar e real, são montados como quebra-cabeças, formando complexos amálgamas. Nas dinâmicas de desmontagem e montagem, as peças tocam em questões como a integração de economias centrais e periféricas, que oscilam de acordo com decisões macroeconômicas e definem realidades particulares em que testemunhamos o incremento de processos de precarização.
Em Sérgio Carvalho, a vida e a prática do colecionismo que a integra certamente tornaram-se um poema. Versos de Cora Coralina podem ser evocados para o entendimento desta coleção tecida como uma rede de apoio à produção artística do Centro-Oeste. Neste acervo, temos um importante recorte do que está sendo produzido nessa região onde ainda há tanto por descobrir. Uma fonte para uso de todos os que têm sede.
FOTO: VICENTE DE MELLO
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Novo Bloco Econômico Ocidental, de João Angelini. Abaixo, o colecionador Sérgio Carvalho
Cineclube do Sertão Negro, com programação de temática e identidade pretas
REPORTAGEM
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E AGORA
O HISTÓRICO GOIANO DE CONVOCATÓRIAS PARA AS ARTES VISUAIS É POR EXCELÊNCIA LONGEVO. Além de o acontecimento do 19º Salão Nacional no Museu de Arte Contemporânea de Jataí ter sido concretizado de maio a julho de 2022, ainda neste ano é levado a cabo, a partir do mês de novembro, o 26º Salão Anapolino de Arte (Anápolis). Não obstante, é imediata a lembrança do hiato de 16 anos desde a descontinuação do Salão Nacional de Arte de Goiás – Prêmio Flamboyant, ocorrido anualmente de 2001 a 2006, e a influência ou legado que este concurso-salão gerou para a cultura visual de toda a região. Goiânia foi fundada em 1933 e conta hoje com uma população aproximada de 1 milhão e meio de habitantes. Em tempos tão desafiadores, a atualização inicial é apenas a ponta de lança de um tempo artístico e cultural em ebulição, e segue como tal: realizado no MAC Goiânia – projeto de Niemeyer de 2006 – de julho a outubro de 2022, testemunhamos o (res)surgimento do 1º Salão Nacional de Arte Contemporânea de Goiás. Com a admirável presença de mais um chamamento público nacional no estado, o circuito de arte viu irromper 35 participantes em sua edição inaugural, com o exato número de 16 artistas selecionades do Centro-Oeste brasileiro. Sob coordenação geral de Paulo Henrique Silva, foram formadas uma comissão julgadora, com representantes de todas as regiões do país, e um júri de premiação, que nomeou com louvor a Desali (MG), João Angelini (DF), Lucélia Maciel (GO), Marcela Bonfim (RO) e Valdson Ramos (GO).
RELATO DE UM MERGULHO EM PROCESSO DE PESQUISA E DE REFLORESTAMENTO NESSA FLORESTA INVERTIDA CHAMADA CERRADO MARCIO HARUM
FOTO: CORTESIA @SERTAO_NEGRO
Espaço de trabalho da galeria A Pilastra, na cidadesatélite do Guará; acima, ateliê e escola de artes do Sertão Negro, em Goiânia; no alto, à dir., visita no Pé Vermelho Espaço Contemporâneo, em Planaltina (DF)
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Lucélia Maciel, uma das premiadas, trabalha em coletividade junto a Dalton Paula, Ceiça Ferreira e demais assistentes e residentes no Sertão Negro Ateliê e Escola de Artes, nascido em 2022 no Shangry-lá de Goiânia. O quintal com plantas medicinais e árvores frutíferas cuidado com esmero por Dalton é realmente de atrair a nossa viva atenção, logo dando sentimento às noções da origem na matriz africana de terreiro e quilombo. Além de lar, o Sertão Negro é também um centro de desenvolvimento de experiências ecologicamente autossustentáveis, uma biblioteca, uma cozinha aberta, refúgio para conversa boa no café da tarde, o lugar de aulas de capoeira e do Cine Maria Grampinho, dirigido por Ceiça, voltado a uma programação especializada em filmes e cineastas de identidade e temática pretas. Para se adquirir agudamente conhecimento acerca do sentido e contexto da arte em Goiás, em particular, foi imprescindível o diálogo com Divino Sobral, artista, crítico e curador de Goiânia, principalmente por sua área de interesse e pesquisa sob perspectiva histórica – o modernismo goiano – e sobretudo após a exposição Raio-Que-o-Parta: Ficções do Moderno no Brasil (2022), com cocuradoria sua no Sesc 24 de Maio, em São Paulo. Em relação a uma sensibilização panorâmica da produção local na atualidade, vale
muitíssimo a visita à Galeria Arte Plena, de Wanessa Cruz e Sandro Torres, fundada em 2019 no setor sul da capital. A dupla é responsável também pela FARGO – Feira de Arte Goiás, a maior de negócios em arte do Centro-Oeste, em encaminhamento para os preparativos de sua 5ª edição em 2023.
INDEPENDENTES, INDISCIPLINADOS E ITINERANTES
Pelo Cerrado, rumo à cidade de Goiás, ao sul, a antiga capital, fundada como arraial em 1729, conta com uma população de cerca de 20 mil pessoas. Por sua arquitetura barroca bastante singular, a cidade é reconhecida pela Unesco como patrimônio mundial desde 2001 e sedia três universidades: Universidade Federal de Goiás (Arquitetura e Urbanismo), Universidade Estadual de Goiás e Instituto Federal de Goiás (Artes Visuais e Cinema). A melhor cicerone possível nessa empreitada é a anapolina residente em Goiânia Selma Parreira, artista, ex-docente da UFG e forte entusiasta da vida artística e cultural de Goyáz Velho. Com ela, estivemos em conversações com Emilliano Freitas, artista e docente da faculdade de arquitetura e urbanismo da UFG no campus de Goiás, que fundou, em agosto de 2022, o I Festival de Arte Urbana de Goiás – Cidade, Memória e Identidade, um projeto do CAPU – Coletivo de Ações Poéticas Urbanas da UFG. O CAPU atua desde 2018,
71 FOTOS: TRAZINE-SE; CORTESIA @SERTAO_NEGRO; @PEVERMELHOEC
realizando intervenções urbanas, como nas mostras Ações Poéticas Urbanas (2019) e Narrativas e Memórias Poéticas: Experiências em Tempos de Pandemia (2020). Vem participando de diversas exibições como A Exceção e a Regra (Salvador, 2020), Imersões: Arte e Arquitetura (Rio de Janeiro, 2021), 13a Bienal Internacional de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo (2022) e UPAC, Goiás (2022). Foram selecionados publicamente por edital alguns projetos de monta, entre outros, com produção de catálogo e vídeo: Ode à Sarça Não Quista – Romper, Brotar e Corromper (Coletivo SARÇA, Goiânia), Resistentes (Beatriz Rezende, Goiânia), Derivas para Outros Cultivos (Rumos e Müquifü, Goiânia). Segundo o próprio statement de Rumos e Müquifü, são eles “espaços independentes, indisciplinados e itinerantes, que se organizam a partir de uma metodologia de cartografias de bússolas perdidas, de vetores autobiogeográficos, visando para tanto atravessar esse cerrado que compõe a nós e a nossa paisagem, buscando forjar, por meio dos mais variados procedimentos conceituais, estéticos e técnicos, um processo de pesquisa e de reflorestamento dessa floresta invertida”.
Outra iniciativa extrainstitucional marcante no Cerrado é o Pé Vermelho Espaço Contemporâneo, em Planaltina (DF). Fundado em 2018, é destinado à formação, produção e promoção das artes com foco cerratense. Um grupo de artistas exerce diversas funções da gestão: Douglas Ferreiro, João Angelini, Lu Ferreira, Luciana Paiva, Marcela Campos, Rafael da Escócia, Raíssa Studart e Shevan Lopes. Como o próprio João Angelini informa, de novembro de 2022 até março de 2023, o programa de residência passa a contar quatro ciclos com duplas de artistas da região Centro-Oeste, fomento do Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal e acompanhamento de nomes convidados da curadoria em escala nacional. Pela ocasião será inaugurado o novo galpão para as futuras temporadas expositivas.
EM CONSTRUÇÃO, EM EBULIÇÃO, SEMPRE
Durante os deslocamentos de memória para a escrita deste texto, a digressão paira no ar, uma pausa para reflexão sobre tantas realizações surgidas recentemente em Goiás, terra do agrobusiness avassalador, e no Distrito Federal, casa do Palácio da Alvorada, do Senado e do Congresso Nacional tão assustadores – talvez reação e resposta naturais e espontâneas aos piores anos vividos desde o processo de redemocratização do país, nos anos 1980. Sem dúvida alguma, a viagem de investigação de campo no inverno pelo Cerrado foi se abrindo como uma experiência verdadeiramente estimulante. O mapeamento BSB Plano das Artes (FAC–DF), da curadora Cinara Barbosa, com estudos impressos em 2018 e 2019, nos fornece o senso de direção necessário para começar, nos dias tão bicudos de hoje, a se descobrir Brasília. Desta vez com Yana Tamayo, artista e educadora, uma guia formidável no plano piloto e satélites. Ela que foi gestora do Nave Arte Projeto Pesquisa, mantendo
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Galeria Risofloras, que foi o nome de um coletivo de mulheres artistas, em Ceilândia (DF); acima, interior da galeria Arte Plena; acima, à dir., vista do 1º Salão Nacional de Arte Contemporânea de Goiás
FOTOS: CORTESIA ARTE PLENA; PAULO RESENDE E GU DA CEI
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UPAC, ação do Coletivo de Ações Poéticas Urbanas (CAPU); à dir., Fernanda Maria em ação, ambas no I Festival de Arte Urbana de Goiás
atividades entre 2015 e 2019, foi quem me abriu as portas do Distrito Federal, iniciando por deCurators, um espaço criado em 2014, e pensado como uma vitrine para exercícios curatoriais ao redor de ações culturais e educativas. Os cinco mandamentos deCurators são: >Transitório como uma vitrine, >Em construção, em ebulição, sempre, >De/entre/ com/para/sobre/por, >Que seja inútil, inútil e ainda inútil, >E não está à venda.
Desde 2016, o atual endereço da Alfinete Galeria de Dalton Camargos é a W2 Asa Sul. A proposição central tem sido o acompanhamento mútuo de processos, trajetórias, reflexões e dialogias entre artistas, pesquisadores e público(s) integrados à paisagem urbana de concreto e cerrado. Prevalece no ambiente a autonomia para experimentação, e suas atividades abertas envolvem exposições, feiras, encontros com artistas, cursos e palestras. Na cidade-satélite do Guará, a Galeria A Pilastra sustenta o próprio desejo de exibir criticamente trabalhos em desenvolvimento de jovens artistas e curadores. Desde 2017, Gisele Lima, sua diretora, canaliza a atenção ao debate de questões urgentes na sociedade, como violência e realidades periféricas em meio ao não planejamento urbanístico e a arte como força para transformações sociais. Relançada e reeditada em 2020, a Galeria Index criou em 2021, por convocatória para exposição, o 1º Programa Incubadora de Artistas, um feito direcionado à produção artística jovem em formação do Centro- Oeste. A galeria visa recursos de documentação e divulgação para estabelecer pontos de contato intergeracionais como práticas e processos de suas estratégias curatoriais. A Galeria Risofloras, localizada na Praça do Cidadão, Ceilândia Norte, é dirigida por um coletivo de
artistas que trabalham com arte periférica há 15 anos – o que implica forte direcionamento da descentralização cultural. Inaugurada em 2018 num posto policial abandonado, é um lugar de ação e formação de novas gerações de artistas, acolhendo o programa Jovem de Expressão, em parceria com a Rede Urbana de Ações Socioculturais – RUAS.
Gu da Cei é artista, produtor cultural e curador da Risofloras. Selecionado para o 1º Salão Nacional de Arte Contemporânea de Goiás, seu trabalho debate vigilância, direito à cidade de qualidade e mobilidade por meio da intervenção urbana, instalação, poesia, performance e imagem em movimento. A galeria igualmente promove atividades e práticas diversas, como terapia comunitária, prevenção à violência, ao crime e ao uso de drogas. Risofloras é o nome de um coletivo de mulheres artistas que surgiu internamente no próprio programa Jovem de Expressão. Salve o 2º maior bioma da América do Sul e do Brasil, viva o Cerrado!
FOTOS: CORTESIA CAPU
@a.pilastra
@galeriarisofloras 75
@museu_mapa @sertao_negro @arteplena.casagaleria @capu_goyaz @pevermelhoec @decurators @alfinetegaleria
@galeriaindex
LAURA LIMA APRESENTA SEU LADO CHARGISTA AO SITUAR OS VÍCIOS QUE PROSPERAM NO BRASIL NEOFASCISTA, ENTRE ELES A NECROPOLÍTICA, QUE MATA GENTE E FLORESTA INDISCRIMINADAMENTE SOBRE
A HISTÓRIA DE JULIETTE, OU AS PROSPERIDADES DO VÍCIO (1797), DO MARQUÊS DE SADE (1740-1814), LAURA LIMA ACOPLA DIGITALMENTE OS ROSTOS DE ALGUMAS FIGURAS POLÍTICAS DA HISTÓRIA BRASILEIRA RECENTE. O autor de Os 120 Dias de Sodoma (1785) publicou A História de Juliette, que é a continuação de Justine, ou os Infortúnios da Virtude (1791), em um breve período de liberdade, durante a Revolução Francesa, mas foi preso em 1801, por ordem de Napoleão, em Charenton, onde viveu seus derradeiros 13 anos. A edição original francesa traz uma epígrafe, atribuída ao satirista romano Petrônio, que afirma On n’est point criminel pour faire la peinture / Des bizarres penchans qu’inspire la nature (Um homem dificilmente é um criminoso por retratar as inclinações bizarras inspiradas pela natureza). As inclinações bizarras da natureza humana são o alvo da série Charges, de Laura Lima, iniciada no processo do golpe institucional de 2016.
A artista apropria-se de imagens jornalísticas, recortadas de forma deliberadamente tosca, e as sobrepõe a imagens pre-existentes, sejam da história da arte, sejam do cinema, que conferem o contexto ideal para situar aqueles personagens. A escolha de imagens do universo sádico vai bem com a ascensão do neofascismo no Brasil, que de 2016 para cá levou ao extremo a perversão e a sevícia, culminando no gozo diante da morte por asfixia da população, no auge da pandemia, e da floresta. Dar nomes aos bois é uma forma ética e política de defender a vida.
Charge, 2018
SELECT.ART.BR JUN/JUL/AGO 2020
PROJETO #FLORESTAPROTESTA
Laura Lima
UMA GRAVURA QUE ORIGINALMENTE ILUSTROU
PROJETO 76
A ANCESTRALIDADE SEMPRE SERÁ O GRANDE PILAR DA NOSSA AUTONOMIA
JÁ QUE PRECISAMOS NOS SENTAR EM SUAS CADEIRAS DE OURO, FRUTO DO GARIMPO RESPONSÁVEL POR TODO ESTRAGO EM NOSSAS TERRAS, PRECISAMOS DE ESTRATÉGIA. PRECISAMOS AFIRMAR A NOSSA IDENTIDADE
HÁ MUITAS MANEIRAS DE DIZIMAR UM POVO. A morte física, entre elas, é a mais eficaz aos olhos ensanguentados da colonização e está cada vez mais adormecida aos olhos cotidianamente colonizados. Mas e a morte do espírito? Quando estou sentada diante de rios como o Capibaribe e o Tietê, lembro dos rios que atravessam a minha atual cidade, Poxim e Sergipe, eles estão quase mortos. Os seus espíritos se despedem aos poucos, eles não querem ir, por isso seguem o curso de suas águas, enquanto nos abastecemos com as suas lágrimas.
Para onde a cidade empurra esses espíritos? Há morte maior do que essa? Estamos vivendo mais um daqueles momentos em que nós, povos não brancos, ditos marginalizados, estamos sendo convocados para sentar à mesa da branquitude e conhecer um pouco dos castelos e das fortunas banhados a sangue que sustentam o seu império. Basicamente, para fornecermos respostas aos problemas por eles criados, mas e as nossas interrogações, nossas inúmeras perguntas, quando haverá respostas?
A perversidade colonial opera para que no momento em que a gente tente olhar para trás os nossos olhos não consigam enxergar nada, pois a nossa conexão com a natureza
estará rompida. Apesar disso, a nossa existência coletiva no mundo é o nosso maior combustível para nos movimentarmos, é o que mantém a continuidade das nossas histórias. Quando enxergamos as nossas raízes anteriores, sejam elas humanas ou não, sabemos por onde e como devemos caminhar.
O rompimento desse fio condutor entre o nosso coração e o coração do mundo nos deixa sem saber para onde ir – e quem não sabe para onde ir, pode ir, definitivamente, para qualquer lugar. Falando dessa forma, talvez não seja possível elucidar a gravidade da situação. Portanto, serei mais direta. Digo que, desse modo, eles retiram a nossa independência e a nossa emancipação, já que a ancestralidade sempre será o grande pilar da nossa autonomia. Retiram de nós o direito de viver em comunhão com a terra e nos deixam à mercê do seu controle para que não tenhamos onde morar. Retiram de nós a possibilidade de plantar, colher e consagrar o nosso alimento, para nos vermos na obrigação de plantar, colher e ainda pagar por ele. Diariamente, lamentamos a perda dos pedaços que compõem o alicerce que nos mantém de pé, a ponto de muitos de nós precisarem ceder, como mão de obra barata, ao trabalho
LITERATURA
DÉBORA ARRUDA
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no garimpo, nas fazendas de gado, na agricultura de monocultura e na extração ilegal de madeiras como as únicas possibilidades de sobrevivência.
Em terra de governantes que ignoram a periferia e as favelas, localizadas em espaços urbanizados, como sobrevive o povo na zona rural e em locais com extrema dificuldade de acesso à água? Me vejo novamente olhando para os rios e me perguntando para onde levaram os seus espíritos e por que não podemos nos alimentar de sua água, por que vivemos em um mundo onde precisamos pagar por ela?
Por ter crescido na cidade, muitos me olham como se eu tivesse escapado totalmente dessa narrativa, mas, para isso acontecer, a minha mãe precisou se deslocar do Vale do Jequitinhonha para limpar o chão e a privada dos senhores de engenho na cidade grande, em São Paulo, e não mais bem viver em seu território. A senzala brasileira tem sido muito bem conservada nas casas de família. Quando criança, ao ter de responder na escola qual era a profissão de minha mãe, eu não entendia direito o que significava trabalhar em casa de família, ainda que eu e quase todas as crianças da minha turma respondessem sempre a mesma coisa. Hoje, aprendi que casa de
família é sobre controle e oportunidade... ou sobre a falta dela.
Por causa da excitação colonial em domesticar a natureza, as florestas têm sido desmedidamente destruídas com o aumento das queimadas, que por sinal alcançou todas as terras indígenas com povos isolados na Amazônia nos últimos anos. Já que precisamos nos sentar em suas cadeiras de ouro, fruto do garimpo responsável por todo estrago em nossas terras, precisamos de estratégia. Precisamos afirmar a nossa identidade.
Se, para eles, o ponto de partida é o extermínio da nossa cultura, façamos da afirmação dela a saída para a libertação do nosso povo. Duas canções de Edson Gomes me lembram da infância com o meu pai e com os meus tios e agora resgato um pouco da incansável força para continuar, herdada da minha família, para ressaltar o quão importante é permanecer insistindo na criação de outros mundos. Começo com Acorde, Levante e Lute: “Pois tu és o filho da natureza, ao longo dos anos sempre foi assim, agora não pode ser adulterado [...] Homem da mata, não queira apito não”. E finalizo com Lute: “Que a vida não parou, a vida não para aqui, a luta não acabou e nem acabará, só quando a liberdade raiar”. Resistiremos.
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LUANA ROSIELLO
QUAL IMAGEM VOCÊ VÊ QUANDO PENSA NO CERRADO? NA IMAGINAÇÃO COMUM, ESSE BIOMA É ILUSTRADO PELO SERTÃO, COBERTO POR ÁRVORES SECAS E RETORCIDAS, CASCAS ESPESSAS, FOLHAS GROSSAS, CLIMA ÁRIDO E POEIRA NO AR. Não que isso não seja verdade, mas não o totaliza. Como todo estereótipo, são características determinadas a partir de um olhar geral e não específico, sem uma análise atenta sobre o objeto em questão.
Como um caleidoscópio, o Centro-Oeste é muito mais do
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CURADORIA CONCEBIDA ESPECIALMENTE PARA O SITE DA SELECT REÚNE FILMES DE ARTISTAS QUE EXPANDEM A IDEIA COMUM SOBRE O BIOMA, ABORDANDO SUAS CAMADAS E DISPUTAS DE IMAGINÁRIOS EXPANDIDA/CURADORIA
CERRADO EM
EM MOVIMENTO
que se imagina, seja em relação à sua extensão territorial, à sua rica e ameaçada biodiversidade (leia mais em Por um fio, à pág. 26) e, principalmente, ao seu poderoso e emergente cenário cultural-artístico. O Cerrado, enquanto território e identidade, é objeto de estudo e debate de diversos artistas contemporâneos que trabalham com imagens em movimento, em trabalhos que retratam diferentes facetas da região para travar críticas sociais e políticas pertinentes em um momento de revisão das histórias brasileiras.
ASSISTA EM WWW.SELECT.ART.BR
Branco Sai, Preto Fica (2014) , de Adirley Queirós Pt. 1: Rosa Maria, Codinome Rosa Luz (2017) , de Rosa Luz
Teko Haxy – Ser Imperfeita (2016) , de Patrícia Ferreira Pará Yxapy e Sophia Pinheiro Cavalo Sem Nome (2014) , de Benedito Ferreira
A Cristalização de Brasília (2019) , da série Superficções, de Guerreiro do Divino Amor
DEMARCAR A TELA
Equipe curatorial da exposição sobre a história visual do Xingu fala sobre a importância do protagonismo indígena no ambito institucional, ressignificando acervos históricos
OS TERRITÓRIOS DO ALTO, MÉDIO, BAIXO E
LESTE
XINGU, ABRIGAM DEZESSEIS ETNIAS NO NORDESTE DO ESTADO DO MATO GROSSO. Hoje, a região é símbolo não só da luta pela demarcação, mas da força dos realizadores indígenas, que trabalham para reverberar seus próprios olhares: “Estamos demarcando a tela com a história do nosso povo, com a nossa cultura”, afirma Takumã Kuikuro, cineasta e um dos curadores da exposição Xingu: Contatos. Sob a perspectiva de que o audiovisual é ferramenta de luta e também território a ser demarcado, a exposição em cartaz no Instituto Moreira Salles, em São Paulo, é traçada. O processo de elaboração e pesquisa, realizado a muitas mãos, decorreu durante dois longos anos atravessados por um governo declaradamente inimigo dos povos
indígenas do Brasil e por uma pandemia desastrosamente gerenciada pelo mesmo.
O projeto parte do podcast Xingu: Terra Marcada, disponível online na Rádio Batuta IMS, produzido pelo pesquisador Guilherme Freitas em colaboração com Takumã Kuikuro e Kamikia Kisedje. A densa pesquisa remonta aos 60 anos de demarcação da região e envereda pelo acervo de imagens do instituto, com fotografias de Alice Brill, Henri Ballot, Maureen Bisilliat e José Medeiros, sobretudo da primeira metade do século 20. Como contar a história do Xingu através de imagens? A pergunta que dá fôlego à mostra sinaliza a parcialidade do arquivo. Atrás das câmeras estavam fotógrafos brancos, que, apesar do valor plástico e documental, detinham apenas um lado
ENTREVISTA / GUILHERME FREITAS E MARINA FRÚGOLI
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ELOISA ALMEIDA
À frente na bancada, da esquerda para a direita: Teseya Panará, Kanhõc Kayapó, Raoni Metyktire e Tutu Pombo Kayapó, dentre outros, ocupam auditório da liderança do PMDB nas negociações do capítulo dos indígenas na Constituinte em Brasília, no dia 31 de maio de 1988.
da história. Os “ladrões de imagem”, como pontua Watatakalu Yawalapiti, liderança feminina do Xingu e uma das colaboradoras da exposição. “Quem é o dono da imagem: quem fotografou ou quem foi fotografado?”, questiona Takumã, reforçando o que talvez seja o principal debate da exposição: as imagens são instrumentos de poder. “Essas fotografias são posadas, há um trabalho de luz, há todo um enquadramento. Há um recorte histórico para se contar uma história”, sinaliza o artista Denilson Baniwa sobre as reportagens da Revista O Cruzeiro, em exibição no IMS. A seLecT conversou com Guilherme Freitas e Marina Frúgoli, parte da equipe curatorial da exposição, sobre as estratégias de exibição de imagens já cristalizadas no imaginário pro-
blemático sobre os povos originários e os ecos do protagonismo indígena na fotografia e no audiovisual. seLecT: Como foi o processo de contraposição de materiais realizados por autores brancos e por autores não brancos e de materiais de diferentes naturezas, desde a parte das expedições etnográficas até a produção recente, protagonizada pelos povos indígenas?
GUILHERME FREITAS: Durante a produção do podcast, antes do lançamento, surgiu a ideia de transformar essa pesquisa numa exposição, porque tinha uma força ali. Ao longo de 2021, fizemos pontes com os pesquisadores, por um lado levantando mais imagens dessa história de olhares
FOTO: DIVULGAÇÃO
não indígenas e também mapeando trabalhos de cineastas do Xingu, cineastas indígenas e de outras regiões que poderiam colaborar com esse projeto. Me incomodava a ideia de contar essa história cronologicamente, porque o percurso iria de imagens feitas por não indígenas até chegar na produção audiovisual indígena. A gente resolveu inverter: abrir o percurso com um andar inteiro dedicado ao audiovisual do Xingu, para apresentar ao público em seguida as imagens históricas, para que contemple o que significam.
MARINA FRÚGOLI: A partir de alguns conjuntos selecionados, levamos de volta essas imagens históricas para o Xingu, por meio do contato com associações indígenas, como a Associação Terra Indígena do Xingu (Atix), que nos possibilitou o contato com cada povo para identificar as pessoas e locais retratados nessas imagens. Então, tem um momento muito emocionante de ver fotos que até então nunca tinham sido vistas por eles, dos seus próprios. Muitas vezes é um avô, um tio, um parente. Nessa colaboração constante,
você ressignifica essa imagem que está no acervo, até então, como um documento jornalístico sem informações precisas, e que passa a ter, de fato, um caráter histórico e afetivo.
GF: O IMS não inventou esse procedimento, ele, na verdade, está atualizando uma prática de outras instituições brasileiras, como o Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia (IGTA), de Goiás, e a (Universidade) Federal de Pernambuco, que já fazem um trabalho muito consistente. Gustavo Caboco, quando realizou uma pesquisa sobre o acervo etnográfico do Museu Paranaense, disse que essas imagens antigas de indígenas, para as instituições, elas são acervo; mas, para os povos retratados, elas são algo de família. Para contemplar todos os povos retratados, a gente abriu conversas com associações e lideranças de todos os povos que aparecem na exposição. E onde o caderno não chegou para eles olharem a imagem, a gente foi montando grupos de WhatsApp com as lideranças e os pesquisadores...
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Cineastas do Coletivo Beture entrevistam o cacique Takakpe em base de vigilância no Rio Xingu, na Terra Indígena Kayapó (Pará) em 2021.
Nesse processo, algumas fotos foram identificadas, outras não, mas o principal foi entender que esse diálogo é muito importante para a exposição. A mostra ganhou essa conotação de abertura de diálogo, e não de conclusão de um processo. Está longe de estar concluído.
MF: Como produção contemporânea indígena, é importante notar que ela não se dá só na base do contraponto, como em alguns momentos é claro na exposição, com as fotos narrando a chegada de um olhar branco e os vídeos do ponto de vista indígena sobre essa mesma chegada, esse contato. Mas ela nem sempre se dá na base da contraposição, porque também essas fotos produzidas pelos não indígenas são muito importantes para a história do Xingu, para a história dos próprios povos indígenas. A participação de Watatakalu na seleção de fotos das lideranças femininas também fez parte da concepção da mostra, de ir incluindo mais pessoas nos processos de decisão, para que não fosse uma decisão só nossa.
Como a chegada da exposição tem impactado a subjetividade, e também de uma forma mais material e concreta, os povos envolvidos?
GF: Como a Marina falou, a gente foi ampliando o círculo de interlocutores da exposição, o que possibilitou muita profundidade de reflexão sobre essas imagens. Um exemplo é Yamalui Kuikuro, que está escrevendo um livro sobre o avô dele. Uma liderança importante, figura que foi fundamental na época em que os Villas Bôas chegaram ao Xingu, porque falava português. Ele virou uma espécie de diplomata, intérprete e um representante geral de questões políticas. Kuikuro conta que começou essa pesquisa depois de ver o filme Xingu, de Cao Hamburger, e ficar muito chateado porque o avô dele não aparecia. Ou seja, trata-se de um artista que tinha um trabalho próprio dele, bastante sofisticado de pesquisa, e que veio somar-se à exposição. Portanto, não é um movimento de nós levando as imagens do acervo até
FOTO: NHAKMÔ KAYAPÓ | REDE XINGU+
eles. A gente vem estabelecendo diálogo com pessoas que já estão fazendo isso no Xingu. Do aspecto mais material, a gente fez e segue fazendo contratos com todas as associações dos povos retratados, contratos de direito de imagem, contratos dessa identificação de imagens, para que as lideranças e as associações sejam contempladas por trabalhos que usam as imagens de povos indígenas.
Ao mesmo tempo, temos uma levada de posições institucionais que tendem a valorizar esse olhar e essa produção. Mas há resultados materiais, que é o que realmente fica e o que permite que essa produção continue sendo feita e difundida.
GF: O nosso combinado com cada cineasta era fazer um filme de cerca de 10 minutos, que é um tempo que entendemos seria possível, ali, de fruição do público na galeria. Fora isso, o tema e o conteúdo foram definidos por eles. E surgiu, em quase todos os vídeos, uma afirmação dos cineastas, como nos títulos Kamati Cineasta, e Comunicadores da Floresta, uma afirmação da existência daquele trabalho, da importância dele. O que a gente espera é que a exposição seja uma plataforma para difusão, para alcançar um público mais amplo. O Xingu é um polo de audiovisual indígena no Brasil. A gente torce
para que isso seja como um trampolim para essa produção, que já existia há muito tempo e seguirá existindo.
A produção cinematográfica em exposição tem uma pluralidade bastante significativa. E existem pontos de convergência, sobretudo acerca da questão ambiental, do território e de como o agronegócio tem se expandido.
MF: Foi bem espontâneo. Como há seis vídeos comissionados e produzidos neste ano para a exposição, são os temas que urgem no momento. Realmente, chama bastante atenção como os temas convergem. E é interessante que, apesar de serem povos bem distintos, alguns do Alto Xingu, que têm mais relação cultural, outros povos que vieram de fora do território, que têm culturas muito diferentes, eles estão num polo onde trocam bastante. Os próprios cineastas, todos se conhecem. Inclusive, o Kamati aprendeu a fazer cinema com o Kamikia, que, por sua vez, aprendeu com o Vídeo nas Aldeias
GF: Isso foi uma preocupação constante: veicular o trabalho da forma que eles fazem, na linguagem que eles fazem. Por exemplo, Kamikia tem 20 anos de estrada e foi, talvez, o primeiro comunicador xinguano a atuar com regularidade.
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À dir., frame de A câmera é a flecha (2022), do Coletivo Kuikuro de Cinema; à esq., frame de Devolução Kaiabi (2022), de Kujãesage Kaiabi
E ele passou a usar muito cedo o monitoramento ambiental no território dele, que fica bem na divisa. Então já era algo do trabalho dele. No momento em que a gente o convida para expor os trabalhos na exposição, isso vai estar representado ali. A parede de fotografias do Kamikia foi muito bem resolvida, pela seleção que ele fez de imagens para a exposição. Tem a questão do desmatamento, o monitoramento ambiental, o agronegócio chegando, mas também os rituais do dia a dia. Você mostra ao público, também, o porquê da luta por isso, qual a importância da demarcação. Não é só frear o agronegócio; é proteger modos de vida singulares. Porque, se não fosse a demarcação, um processo que começa no Xingu, talvez hoje não existisse aquela foto famosa do Kamikia. Talvez aquilo tudo fosse soja.
Como foi articulada e quais reflexões vieram a partir da seleção e contraposição das imagens do acervo do IMS à produção recente?
MF: Eu acho que tem um desafio de, exatamente, não cancelar todas as imagens. Mas, ao mesmo tempo, trazer para o público um olhar crítico com relação a elas. Acho que o exemplo mais claro são as reportagens da revista O Cruzeiro, da qual mostramos alguns originais e uma
matéria bastante sensacionalista do casamento da Diacuí Kalapalo com um branco no Rio de Janeiro e todo o fervor que se criou a partir dessa notícia. Uma reportagem fotográfica muito intensa em cima desse assunto, que, para nossa realidade atual, já tende a causar estranhamento. E isso está apresentado em frente à obra de Denilson Baniwa, que vai falar criticamente a respeito dessa construção imagética das revistas, principalmente a O Cruzeiro, que acaba criando o imaginário de um brasileiro sobre o que é um indígena no Xingu, e o próprio arquétipo do indígena. Porque aquilo passa a representar, ser uma referência do que é um indígena no Brasil.
GF: Desde o início, a ideia era ter esses contrapontos de imagens. Não colocamos nenhuma na exposição que fosse graficamente violenta, mas é violência colonial muito forte. A gente se questionava sobre como mostrar as imagens, por que mostrar essas imagens. A ideia, desde o início, era apresentar esse panorama do audiovisual produzido no Xingu, a autorrepresentação. Mas, cada vez que a gente debatia, a importância de ter essas imagens históricas ganhava força, porque foram elas que constituíram o olhar dos brancos, dos não indígenas, sobre o Xingu e os povos indígenas de um modo geral. Então, acho que o percurso é também
FOTOS:DIVULGAÇÃO |
ACERVO INSTITUTO MOREIRA SALLES, COLEÇÃO PROGRAMA CONVIDA
uma desmontagem disso, que fica mais evidente quando se contrasta essa produção autoral com todo um século de histórias e imagens produzidas por não indígenas. Pensando nessa trajetória histórica de contatos muito violentos, quais as novas possibilidades de contatos hoje?
GF : É uma coisa que o Takumã trouxe muito também nas conversas, de falar na ideia de contato como algo que não se deu num passado, não é só o primeiro contato. Esse contato se refaz o tempo todo de modos diferentes, e pode se refazer de outras formas, inclusive pelo audiovisual. O que não tem objetivo de, digamos assim, edulcorar esses contatos antigos ou apagar a violência desses primeiros contatos. Não é isso. Os contatos continuam acontecendo. A fronteira do agronegócio continua pressionando o território do Xingu, os garimpeiros continuam invadindo terras indígenas no Brasil inteiro, o Rio Xingu está com a nascente comprometida. A violência do contato continua ocorrendo. Mas existem essas outras brechas, outras possibilidades.
MF: Quando você revisita a história das imagens, quanto mais antiga a foto, mais é inevitável essa consciência da presença da câmera. As fotos do século 19 superposadas, que depois vão se tornando mais instantâneas, mas são sempre essas grandes câmeras. Então, as imagens históricas, mesmo quando a pessoa branca não aparece, a presença dela é evidente. Então, também tem essa dimensão do contato, que depois, quando a gente chega ao audiovisual contemporâneo indígena, não tem um branco ali, mas a forma como esses vídeos vão circular fora das aldeias também refaz um contato, a partir de outra intencionalidade. Nota da redação: por motivos técnicos, até o fechamento da edição #56 em 01/12/2022, a entrevista com o curador Takumã Kuikuro não pôde ser realizada. A redação permanece em contato com a assessoria de imprensa do IMS para dar seguimento à pauta, cujo desdobramento será publicado no site www.select.com.br.
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Pirakumã Yawalapiti em protesto no Acampamento Terra Livre - ATL, Brasília, em abril de 2014; à dir., avião retido pelo povo Kawaiweté no posto indígena Diauarum, em 1983
FOTOS:ANDRÉ D’ELIA | DUDA BENTES 89
CRÍTICA
SÃO PAULO
COMO ATIÇAR A
BRASA
Como a arte se posiciona ou responde ao atual estado de coisas no país? Que respostas o Panorama da Arte Brasileira tem a dar a esta pergunta
JULIANA MONACHESI
“Contribuir para a desconstrução do legado colonial do Brasil” é uma das intenções anunciadas pelo 37º Panorama da Arte Brasileira – Sob as Cinzas, Brasa, em cartaz no MAM-SP até janeiro de 2023. No dia em que fui visitar a exposição, no início de novembro, encontrei, no percurso habitual para o Parque do Ibirapuera, uma rua fechada em
razão de um acampamento de neofascistas em frente à sede do Comando Militar do Sudeste, contrariados com o resultado das eleições. Ao redor do bloqueio, vendedores ambulantes ofertavam diferentes itens “patrióticos” aos passantes. “Vai uma bandeira, senhora?”, me oferece um deles. Com o legado colonial assim atualizado nos arredores do Museu de Arte Moderna, a visita ganhou contornos de urgência. Como a arte se posiciona ou responde ao atual estado de coisas no país?
Previsto para o ano de 2021, o Panorama foi adiado em decorrência da pandemia de Covid-19. Mas sua realização em 2022 não poderia ter sido mais oportuna. A presença de obras como as de Éder Oliveira, Jaime Lauriano, Sidney Amaral, Marina Camargo, Gustavo Torrezan e Xadalu Tupã Jekupé se endereça diretamente aos golpistas de plantão, demonstrando, por exemplo, que o bordão “a nossa bandeira jamais será vermelha” é de uma ingenuidade vulgar. Além de manchada pelo sangue do genocídio de povos autóctones e escravizados, a bandeira do Brasil carrega o vermelho originário da madeira que deu nome ao país. Daí vem o título da exposição: do nome que foi dado à árvore – o primeiro ativo explorado economicamente pelos invasores. “Vermelho como brasa” é o significado de brasil em tupi-guarani. Sob as cinzas de uma terra arrasada, arde a brasa da revolta, da resistência, das retomadas, nos contam as obras reunidas no Panorama 2022. As esculturas de Luiz83, reluzentes em suas grandes dimensões e acabamento com tinta automotiva, projetam-se virtualmente em todas as direções sinuosas pelas quais nos conduz o traço do artista. Traço que deriva do desenho e da escrita, que amplifica o gesto político de ler a cidade, de denunciar as condições sociais das populações desprivilegiadas que nela
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vivem. Essas peças escultóricas abstratas, instaladas no centro da sala principal da mostra, podem ser vistas, dependendo do ponto em que se está circulando, contra dois “fundos”: de um lado os lambes da artista Laryssa Machada, do lado oposto, desenhos da artista Tadáskia. Ou seja, na sobreposição com as imagens ampliadas em lambe-lambe, as peças são mais sociais, dialogando com o instantâneo da vida precária enaltecido pelo dispositivo afrofuturista de Machada; já na interação com Tadáskia, as formas-tags de Luiz83 começam a dançar no ar, junto aos gestos leves e precisos, delicados e contestadores da desenhista.
EXCESSIVAMENTE CORRETO
São poucos os momentos epifânicos como essa roda em torno da grande base com esculturas coloridas com tons pastel 70’s. No geral, a curadoria opta por um espaço aberto e supostamente democrático, que termina por esconder as epifânicas pinturas de André Ricardo atrás de um painel próximo à parede de vidro. Na montagem, assim como na abordagem teórica,
37º Panorama da Arte Brasileira – Sob as Cinzas, Brasa, até 15/1/23, Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), Av. Pedro Álvares Cabral, s/nº, Parque do Ibirapuera mam.org.br Vista do Panorama 2022, com esculturas de Luiz83, série fotográfica de Laryssa Machada, e pintura de Jaime Lauriano
a escolha das obras e as afirmações sobre os temas ali enredados, esse Panorama é excessivamente correto. As cotas raciais e de gênero sendo acertadas e perfeitamente contempladas, o didatismo e a ênfase no trabalho do educativo como força agregadora devidamente garantidos, e assim por diante. Não existe tensão nesta mostra, o que a torna paradoxal. As relações das obras no espaço são frouxas sob a justificativa igualitária; as críticas estão mais assertivamente defendidas em alguns dos trabalhos do que nos ensaios do catálogo, exceto o texto de Cristiana Tejo, o que mais se posiciona. O Panorama não toma partido, em suma. E, quando toma, carrega as tintas em pretensões politicamente corretas: afirma que foram contemplados predominantemente artistas de fora do circuito comercial, mas os nomes sem representação em galerias são ali uma minoria; diz que as pinturas de No Martins estão no corredor que leva à sala maior porque o conjunto integra o Projeto Parede, mas as telas estão ali desrespeitosamente espremidas e nenhuma linha nos textos da exposição menciona o conceito proposto pelo artista para um projeto site specific. Sim, elas causam impacto visceral na proximidade, tanto quanto causariam também no jogo longe/perto, se nos fosse ofertada a possibilidade de vê-las na sala expositiva, reforçando a assertividade com que Martins demarca o espaço e o protagonismo das pessoas pretas no museu ou onde quer que decidam estar. É sobre isso. As obras do corredor ganhariam muito ao ter potencializadas as suas evidentes relações com os trabalhos de Sidney Amaral ou Davi Jesus do Nascimento, por exemplo. Sobretudo, na opção curatorial por destacar os elementos simbólicos de tudo o que reúne na mostra, o Panorama perde a oportunidade de confrontar elementos da realidade concreta. Se o ato de atear fogo à estátua de Borba Gato é um dos aspectos que a exposição quer evidenciar na brasa que arde socialmente sob as cinzas, por que se manter no território seguro de uma alusão simbólica à derrubada do monstrumento que enaltece um genocida como herói? Por que, ademais da instalação Meio Monumento (2022), de Giselle Beiguelman, não convidar o coletivo Revolução Periférica como artista do Panorama 2022?
A exposição acontece em paralelo ao processo contra os autores do “atentado” (como foi enquadrada juridicamente a ação) e, ainda que Thiago Zem e Danilo Biu tenham sido absolvidos, Paulo Galo aguarda a sentença da Justiça, inclinada a condená-lo pelo incêndio. A presença legítima de Paulo Galo em uma exposição com o peso do Panorama da Arte Brasileira faria uma diferença real no Brasil cujo legado colonial a mostra pretendia desconstruir. Isto, sim, seria atiçar a brasa.
FOTO: BRUNO LEO/ CORTESIA MAM-SP
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SÃO PAULO
REGINA SILVEIRA: OS MEIOS SERVEM ÀS IDEIAS
Exposição de longa duração da artista no MAC-USP mostrou desdobramentos e permanências de um raciocínio poético, da xilo ao NFT
DANIELA MAURA RIBEIRO
No corredor de entrada da exposição Regina Silveira: Outros Paradoxos, o visitante já podia se sentir envolvido pelas pegadas de patas gigantes de animais, alongadas por distorções anamórficas, sombras silhuetadas, adesivadas nos vidros laterais desse espaço de passagem. Tratava-se do site-specific Tropel (2021), uma derivação da instalação Gone Wild (1996), “a primeira vez em que rastros de animais ausentes mobilizaram Regina Silveira a pensar em intervenções em espaços culturais”, como esclarece a legenda da obra. Gone Wild foi pintada sobre
as paredes do Museu de Arte Contemporânea de San Diego, nos Estados Unidos, em uma área de 140 metros quadrados (cuja maquete, registro da obra, estava na exposição do MAC-USP).
Era muito interessante caminhar por esse longo corredor, em meio aos dois vidros laterais, recobertos pelas aplicações das sombras das pegadas de animais agigantadas e distorcidas. Dependendo do horário e, se dia de sol, tais sombras se projetavam no chão, e poderiam funcionar como uma “pista” do universo da artista.
Ledo engano. Ao adentrar o espaço expositivo esse universo se tornava muito maior, trazendo uma retrospectiva, mostra antológica de Regina Silveira, que abrangeu, ao longo de um ano, obras realizadas entre 1962 e 2012, e, na semana de encerramento, em novembro deste ano, a apresentação de Wall Series (2022), a primeira coleção em NFT da artista. É curioso que a primeira sala tenha sido dedicada às obras do início dos anos 1970 e a segunda, aos 1960. Mas em minhas reflexões com oito pequenos grupos na exposição – a maioria composta de artistas, mas também de fotógrafos e designers, além de amantes das artes, interessados e admiradores da obra de Silveira – a razão dessa escolha evidencia-se no percurso da mostra. O núcleo das xilogravuras do ano de 1962, estando entre a primeira e a terceira sala – dedicadas aos anos 1970 –, serve de contraponto às mudanças radicais que as obras da artista sofreram na década de 1970. Nesse sentido, teria a inversão cronológica um papel didático?
As xilogravuras são do mesmo período em que Regina Silveira trabalhou como professora contratada de desenho, no Hospital Psiquiátrico São Pedro, em Porto Alegre, entre julho de 1962 e agosto de 1964. O conjunto foi doado ao MAC-USP pela artista,
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Regina Silveira: Outros Paradoxos, MAC-USP Encerrada
À esq., Encuentro (2020), de Regina Silveira
conjuntamente com a Luciana Brito Galeria, por ocasião da exposição, exceto aquela intitulada As Loucas (1963), que entrou para a coleção do museu em 1964, por meio do Prêmio Aquisição MAC-USP, no 21º Salão Paranaense de Belas Artes.
O contato com os internos do hospital, seus alunos em aulas de desenho, inspirou Regina a fazer essa série de xilogravuras. Cabe aqui observar que Regina Silveira, além do Bacharelado em Pintura, realizado no Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1958), no ano seguinte obteve Licenciatura em Desenho pela Faculdade de Filosofia da PUC-RS. Uma vez licenciada, Regina volta ao IA-UFRGS como colaboradora voluntária de ensino, nas aulas de desenho do professor João Fahrion (entre 1959 e 1961). Além disso, a artista fez três cursos diferentes no Atelier Livre da Prefeitura de Porto Alegre, em 1961-62, um deles de xilogravura, com Francisco Stockinger, segundo dados da cronologia do livro, já histórico, organizado por Angélica de Moraes, Regina Silveira: Cartografias da Sombra (1995). Essa formação acadêmica em desenho e o voluntariado de ensino nessa técnica, somados ao curso livre de xilogravura com Stockinger, formam a mistura perfeita para que Silveira, ao mesmo tempo que ministra aulas de desenho aos internos do hospital, se inspire nesse universo para realizar suas xilogravuras, de caráter expressionista, que lembram, nesse aspecto, aquelas do gravador Oswaldo Goeldi (1895-1961).
ATELIÊ NA UNIVERSIDADE
Ao começarmos por esse núcleo, e depois passarmos para a primeira sala, ainda embriagados pela força dessas xilos, é outra Regina Silveira que está lá. Aquela que começará a desenvolver uma arte de características conceituais, que teve origem na Universidade de Porto Rico – Recinto de Mayagüez, entre 1971 e 1973. A convite do crítico espanhol Ángel Crespo, Regina Silveira
e o artista espanhol Julio Plaza – que ela conheceu em 1967, em Madri –, os dois artistas, então casados, mudam-se para Porto Rico, para atuar como docentes e artistas residentes, no Recinto de Mayagüez-(RUM). Crespo, por sua vez, chegou em Porto Rico nesse mesmo ano de 1967, com sua esposa Pilar Gómez Bedate, ambos deixando obrigatoriamente a Espanha devido à oposição ao governo franquista. Crespo e Gómez Bedate vieram como docentes da Faculdade de Humanidades da Universidade de Porto Rico. O crítico espanhol e sua esposa Pilar foram convidados pelo primeiro reitor do RUM José Enrique Arrarás Mir – que trouxe a vanguarda artística para o campus de Mayagüez –, além de Stuart Ramos Biaggi (ajudante especial de Arrarás), para implementar o Programa de Artes. É esse o contexto da primeira sala da exposição Regina Silveira: Outros Paradoxos, na qual temos dois álbuns de serigrafia realizados no ateliê instalado na universidade: os álbuns Middle Class & Co. (1971), e 10 Serigrafias (1971), faltando a presença, nesse núcleo, do álbum 15 Laberintos, que é anterior a Middle Class & Co., embora do mesmo ano – o qual não pertence à coleção do MAC-USP, motivo de sua ausência na exposição. Comecemos por Middle Class & Co., – no qual, efetivamente, a obra de Regina Silveira passa a ter um caráter conceitual –, mas não sem antes destacar que já no álbum 10 Serigrafias observamos uma clara mudança: das xilos com todo o seu caráter expressivo, dramático e figurativo, para as formas geométricas coloridas, evidenciam-se a diferença de propósitos e os rumos que a obra foi tomando, tanto pela mudança de técnica (da xilogravura para a serigrafia) como do conteúdo: do figurativo para formas geométricas simplificadas, com efeitos ópticos, devido a traços largos em preto, intercalados às cores das formas geométricas, de cada uma das serigrafias, que se aproximam da op art. Daí para os 15 Laberintos, onde tais formas são ainda mais simplificadas, lembrando labirintos, um tema recorrente na obra da artista, ao longo das décadas, que vai se transformar em realidade virtual e na já mencionada primeira coleção em NFT da artista, Wall Series, que, apesar de o título dar a ideia de muros, é uma clara alusão aos labirintos do álbum de 1971. Segundo Walter Zanini, diretor do MAC-USP entre 1963 e 1978, o álbum 15 Laberintos “é o primeiro impulso que indica nova etapa na arte de Regina Silveira. A imaginação reina nessas malhas geométricas de cujas relações resultam sugestivos espaços perspectivados”. No mesmo ano de 1971, Silveira evolui para um pensamento conceitual e político, em Middle Class & Co., por vezes irônico, em outras obras, a partir dali. Nesse álbum, a artista associa formas geométricas, derivadas dos 15 Laberintos, na verdade “formas fechadas, construídas como caixas espacializadas segundo a Perspectiva Paralela”, nas palavras da artista (em entrevista de 2014 à autora), “propostas como continentes para um conteúdo bem específico: a foto de uma multidão anônima, sempre vista de cima”.
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SÃO PAULO
EU LÍRICO
O padrão repetitivo e a reverberação entre as obras de Lenora de Barros
PAULA ALZUGARAY
Distribuída em três salas da Pinacoteca, a exposição Lenora de Barros: Minha Língua tem a circularidade dos poemas que iniciam e terminam com a mesma estrofe. Cada uma das três portas por onde se escolha entrar determinará um percurso narrativo que resulta inacabado, não se fecha e pede recomeçar em outra direção. Esse andamento ricocheteado se afirma em ecos e repetições entre muitos dos 40 trabalhos da mostra, realizados entre 1975 e 2022. Escolhemos começar por Ri-Chora (1975-2017), um poema gutural formado por lamentos e exclamações. A obra é, em si, composta de um padrão repetitivo, na medida em que acontece simultaneamente no modo sonoro e no formato impresso. Nesse sentido, é um exemplar cristalino do padrão “verbivocovisual” da poesia concreta, que explora a simultaneidade da comunicação verbal e visual. Na versão impressa em adesivo vinílico na parede, dois poemas rigorosamente idênticos se espelham. A variação acontece apenas no título de cada um: ri/ chora. Na versão sonora, os dois poemas idênticos são lidos com as entonações próprias de quem ri e de quem chora.
Ri-Chora reverbera no vídeo-poema-perfor-
mance Ela Não Quer Ver (2005), em que similares lamentos e exclamações se reorganizam em um texto sobre a impossibilidade de visão e discernimento. Parte da quadrilogia de vídeos Não Quero Nem Ver (2005), a obra é um desdobramento de um tema de interesse central para a artista: os sentidos. As (im)possibilidades de olhar vão repercutir em Fogo no Olho (1994) e Olhos de Lila (2000). A mesma lógica de irradiação entre trabalhos pode ser observada entre muitas outras obras sobre a fala, ou seu impedimento, como Pregação (2016), performance coletiva em que a artista convoca colaboradores a martelar na parede as letras da palavra silêncio, com o duplo sentido de pedir silêncio e de negá-lo com um ruído ensurdecedor.
PERSONA
Outro aspecto que sobressai neste raro encontro de obras é o papel da cinematografia e da teatralidade na estruturação da linguagem de Lenora de Barros. A reincidência do uso de frames fotográficos, compondo palavras, frases e discursos – em CALABOCA, 2006; Eu Não Disse Nada, 1990; e Homenagem a George Segal, 1990, por exemplo –, confere aos trabalhos fotográficos a relação tempo-espaço das imagens em movimento.
Já a teatralidade é manifestada e reiterada em cada poemaperformance “escrito” com o rosto ou as mãos. “Sim, vejo as imagens criadas nesse trabalho como espécies de máscaras que me permitem passar de um plano subjetivo ao plano de um ‘eu lírico’, digamos”, diz Lenora sobre Procuro-me (2001), em entrevista a Luisa Duarte e à curadora da exposição Pollyana Quintella, publicada no catálogo da mostra. O “eu lírico” ao qual Lenora se refere remonta ao conceito de persona – personagem literário encarnado pelo autor, ou, na psicologia, aspecto da personalidade dissimulado da aparência real de uma pessoa. Atendendo à logica circular de um grande corpo de trabalhos que inicia e termina com a mesma estrofe, voltamos a RiChora (1975-2017), em sua capacidade de manifestar, em som e texto, a imagem das máscaras do riso e do choro que simbolizam o teatro.
VOL. 11 / N. 56 DEZ/JAN/FEV 2022/2023 FOTO: RAFAEL SALIM/ DIVULGAÇÃO
Minha Língua, Pinacoteca do Estado de São Paulo, São Paulo, até 9/4/2023
Pregação (2016) de Lenora de Barros
SÃO PAULO
O VIGOR, O RIGOR E O TREMOR
Memórias da arte e do cotidiano nas linhas da instalação Domingo, de Leandro Muniz
PAULA ALZUGARAY
É como se cada artista inventasse um idioma próprio, com o qual irá se posicionar no mundo e, para que seja possível discernir a mensagem que se agita emaranhada nessa linguagem, fosse preciso escutar. Por um tempo. Esse pensamento que me assola diante de Domingo, instalação de Leandro Muniz na Casa de Cultura do Parque, está de certa forma plasmado nas primeiras linhas do texto que Tarcísio de Almeida escreveu para a exposição, mas que só li dias depois de ter anotado no meu caderno de notas: “É como se cada artista tivesse um idioma...”
Permaneço um tempo debaixo do sol forte, entre as sombras dos tecidos que ventam pendurados em linhas cruzadas. Noto o comportamento imprevisível dessa obra instalada ao ar livre, que resiste a se deixar fotografar ou capturar pela
Até 29/1/23
Casa de Cultura do Parque
Av. Fonseca Rodrigues, 1.300 https://ccparque.com/
atenção compenetrada. Na conversa com o artista, ele fala sobre “uma sensação de domingo”. Sobre aquela expectativa de colocar ordem na casa e na vida, concentrada em um ínfimo fragmento semanal de tempo, um domingo. Mas a vontade de organização escapa no movimento das roupas no varal. Em pinturinhas que se distribuem de forma desorganizada nas superfícies dos lençóis – repetindo seu formato retangular e criando, com isso, uma sensação de encaixe instável –, é possível de pronto discernir fragmentos de “idiomas” de outros artistas: uma cachoeira enquadrada, um sol no canto do quadro, um tabuleiro que pode ser de xadrez, cortinas em uma janela. Reminiscências da história da arte? Dados de memória tanto da arte quanto do cotidiano, diz o artista. Uma condição dúbia, potencializada pelo fato de Domingo ser uma instalação de arte em um espaço físico que há pouco tempo foi uma casa de morar. O projeto de Muniz para a Casa completa-se com Azulejo, Tapetinho nº 6 e camiseta da série Casca, instalados num espaço de passagem, na área interna. Relacionar-se direta e frontalmente com o lugar que ocupa é uma prioridade para o artista. Ele enfrenta com rigor a parede de 2,80 x 10,20 metros, atravessando com pinceladas finas de tinta acrílica as oscilações do reboco e deixando transparecer, na irregularidade das linhas dos azulejos desenhados, a pulsação do próprio corpo. Então, fala sobre a leitura de um texto sobre a resistência do objeto que se impõe sobre o intuito. Nessa manhã de meio de semana, no pico do aperto da agenda de uma quarta-feira, nos perdemos entre grids de estampas e nos equilibramos sobre linhas de textos citados. Mas, diante da pintura Tapetinho nº 6, que interpreta a vida prosaica dos paninhos colocados sobre os pisos dos banheiros, compreendo finalmente que o assunto aqui não é pintura, é vibracional: estamos falando do vigor da luz exterior, das bordas desfiadas, de como a cor escapa ao quadrado e vibra no espaço das planilhas que não se fecham e que ventam. É domingo.
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FOTO: PAULA ALZUGARAY
Domingo – Leandro Muniz
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Domingo (2022), de Leandro Muniz
VENTOS DO NORTE
Racismo, ditadura e devastação ambiental estão na mira dos artistas que integram a edição atual do Arte Pará
CAMILA LANHOSO MARTINS
Em um momento em que o tema da arte no Brasil é descolonizar, o projeto Arte Pará, mantido pela Fundação Romulo Maiorana (FRM), do Grupo Liberal, assume como meta a valorização da produção artística e cultural na Região Amazônica. O curador Paulo Herkenhoff entrou no Arte Pará em 1988 e, em 1992, afirmou que “o Pará tem sido o principal espaço da construção de um olhar amazônico contemporâneo”. Artistas como Anna Maria Maiolino, Lygia Pape, Cildo Meireles, Luiz Braga e Emmanuel Nassar passaram na timeline do salão ao longo de suas quatro décadas de existência. Para celebrar a efeméride dos 40 anos, em 2022, o Arte Pará realiza a tradicional mostra com os selecionados por edital público e convida mais cinco artistas mulheres da Amazônia Legal. São elas: Lucia Gomes, Edvania Câmara, Walda Marques, Keila Sankofa e Silvana Mendes, além da homenageada da edição, a fotógrafa paraense Elza Lima. O projeto é encabeçado pelo curador-geral da mostra, Paulo Herkenhoff, com curadoria adjunta de Roberta Maiorana, Vânia Leal e Laura Rago.
A mostra, este ano, é a rapsódia emergente do inconsciente amazônico, que se insurge contra a violência desde a invasão colonial. No século 17, por causa do mercantilismo na Amazônia, a coroa portuguesa passou a sequestrar mão de obra no continente africano, após a proibição da escravização indígena. O artista Paul Setúbal (Goiás, 1987) apresenta um monumento em escala reduzida que retrata Dom Pedro I invertido, exposto sobre a caixa de transporte da obra, o que faz refletir sobre o que se encontra fora da caixa no Brasil hoje. O texto curatorial da mostra aponta, por exemplo, que “honra, bravura e dominação”, além de fazerem ainda parte da mentalidade dominante na sociedade brasileira, vêm
sendo “sistematicamente estimuladas”. Proposta para Monumento (Morte ou Glória!) (2015 - 2018), a obra selecionada de Paul Setúbal, toca o cerne dessa crítica, assim como a performance da artista Lúcia Gomes (Pará, 1966), intitulada Pelo Julgamento dos Golpistas e Torturadores de 1964 a 1985 no Brasil (2019), para nunca esquecermos os horrores da ditadura militar (19641985). Sem precisar enumerar, pode-se citar o racismo estrutural como outra ameaça constante à democracia, tema que perpassa um conjunto de trabalhos expostos no Arte Pará. Vir a Ser (2019), do artista Maurício Igor (Pará, 1995), uma série de autorretratos impressos sobre papel pardo que vão de uma imagem quase invisível até uma fotografia nítida, passando por variações de contraste, evidencia a invisibilidade da negritude. Ao lado dessa obra está Eu Não Lembro o Rosto do Meu Pai (2022), de Douglas Ferreiro (Piauí, 1995), pintura em que o artista representa uma criança de mãos dadas com uma sombra, invocando questões de ausência afetiva e identidade paterna, “algo recorrente na vida de muitas pessoas, principalmente, pessoas pretas”, nas palavras do artista. As obras de Alexandre Ignácio Alves (São Paulo, 1968) dão sequência à narrativa sobre o empoderamento preto, para dar um
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BELÉM
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Oferta, obra de Gabriel Bicho, que integra a seleção do Arte para 40 anos
soco no estômago do preconceito. Imagens que, por meio da construção da pintura, refletem um posicionamento político de garantir o espaço por tanto tempo negado à representação estética das pessoas negras. De acordo com Elisa Larkin, presidente do Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros, “o escravismo mercantil praticado contra os africanos constitui um crime contra a humanidade. Dessa forma, a população africana e afrodescendente tem direito à reparação como a dos judeus após o Holocausto”.
FLORESTA VIVA
Na obra de Gabriel Bicho (Rondônia, 1989) há uma mancha verde com a imagem cravada de um indígena. Ele fez diversas expedições na Amazônia e o Greenpeace participou de uma de suas marchas. Portanto, histórias e obras relacionadas a Bicho dão a oportunidade de gritar que os animais da Amazônia são os que mais sofrem com as queimadas, assim como 1 milhão de espécies estão em risco. Segundo o livro Amazônia no Século XXI, organizado por Paulo Herkenhoff e Silvia Finguerut, “entre os anos de 2001 e 2021, pesquisadores entenderam que 11.514 espécies de plantas e 3.079 de animais, entre aves e mamíferos, foram atingidas pelas queimadas”. São três obras com técnicas diferentes entre fotografia, objetos e risografia que retratam a resistência para manter a floresta viva.
A obra Ventos do Norte, de Maurício Igor, uma coleção de ventiladores quebrados que funcionam graças a alguma gambiarra, define o retrato não só da temperatura do Pará e do clima amazônico, mas também mapeando a prática cotidiana de pessoas que os consertam, da existência dos remates na vida, que mesmo “quebrada”, continua. Já a artista Nay Jinknss (Pará, 1990) retrata a dança brega paraense no Mercado-Ver-o-Peso. No texto de parede indica-se a contestação carimbada do rótulo de marginal e periférico. Importante lembrar da frase do fotógrafo paraense Luiz Braga, que diz “a cultura do caboclo é o que diferencia a Amazônia do resto do mundo. A casa, a pintura do barco, a forma como ele se veste, assim como a comida”.
A mostra é dedicada este ano às mulheres da Amazônia, portanto, a artista Walda Marques (Pará, 1962) aborda o ofício feminino, assim como a lenda da mandioca que desperta o imaginário mitológico, que faz parte do tesouro da Amazônia. A fotógrafa Elza Lima (Pará 1952), homenageada do Arte Pará 2022, na obra Do Olho
de Peixe a Barra de Saia, faz a conexão de duas cidades vistas como irmãs – Santarém no Pará e Santarém de Portugal. Estas têm em comum a atividade da pesca, em que a mulher mantém o uso da saia iluminando o inconsciente amazônico feminino, íntegro. “O artista na Amazônia tem uma relação intimista com o valor simbólico de ser e viver permeado pela diversidade cultural dos tempos assincrônicos da floresta e da cidade. Os povos indígenas, ribeirinhos, quilombolas, assentados, citadinos, deparam cotidianamente com questões de violência. Dessa forma, operam numa perspectividade de um justiçamento social e geopolítico”, defende Vânia Leal.
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Arte Pará Espaço Cultural da Casa das Onze Janelas, Belém, até 30/12 Bandeira Re-Utopya (2021), de Hal Wildson
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MAIS ARTE, POR FAVOR!
PINACOTECA CONTEMPORÂNEA NOS ÚLTIMOS RETOQUES PARA INAUGURAÇÃO NO ANIVERSÁRIO DE SÃO PAULO, DIA EM QUE A CIDADE COMPLETA 468 ANOS. O projeto é um sonho antigo da Pinacoteca do Estado. Além de integrar o conjunto arquitetônico do museu – até então composto de dois edifícios, Luz e e Estação – ao Parque da Luz e aos bairros do Bom Retiro e da Luz, a Pinacoteca Contemporânea conta, além dos espaços expositivos, com um novo centro de atividades socioeducativas, uma Biblioteca e um centro de documentação. Somadas as suas áreas e capacidade de público, os três prédios tornam o museu uma das maiores instituições de arte da América Latina, criando em São Paulo mais um espaço cultural com oportunidades de emprego, fomento à educação e cultura. “Localizado ao redor de uma grande praça, aberto ao parque e à livre circulação do público, o edifício busca promover o encontro e o diálogo, de forma acessível e inclusiva, incentivando a diversidade, a educação e a sustentabilidade brasileira”, escreve Jochen Volz, diretor-geral do museu, em texto de divulgação. “O novo espaço complementa
os outros dois edifícios da Pinacoteca por meio de uma arquitetura permeável e acolhedora, e reflete o espírito de integração social presente em todos os programas desenvolvidos pelo museu, favorecendo a experimentação da arte contemporânea.”
Com uma programação integrada, a instituição pretende investir em uma consistente pesquisa em torno de nomes históricos e contemporâneos da arte brasileira, em diálogo com a arte internacional. A mostra inaugural da Pina Contemporânea coloca ênfase na Ásia, com uma individual da sul-coreana Haegue Yang. A artista prepara uma instalação construída com persianas industriais que pendem do teto, como grandes móbiles, combinadas a esculturas móveis situadas no solo. Outra exposição, que inaugura a nova sala de mostras temporárias, será composta de obras de grandes dimensões em diversas linguagens, pertencentes ao acervo da Pinacoteca. A programação expositiva de 2023 conta com 14 mostras distribuídas entre os três edifícios do museu, com destaque para Marta Minujín, Chico da Silva, Antonio Obá, Jarbas Lopes, Cao Fei e Denilson Baniwa. (LR)
FOTO: VISTA ILUSTRADA, PINACOTECA CONTEMPORÂNEA – ARQUITETOS ASSOCIADOS EM CONSTRUÇÃO
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Vista ilustrada da Pinacoteca Contemporânea
Mariana Crioula (2022), de Dalton de Paula