Alegoria do Amor - Um estudo da tradição medieval

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Alegoria do Amor Um Estudo da Tradição Medieval

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Impresso no Brasil, julho de 2012 Título original: The Allegory of Love Copyright © C. S. Lewis Pte Ltd. 1936 Publicado pela Editora É por meio de acordo com The CS Lewis Company Ltd. Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal: 45321 · cep: 04010-970 · São Paulo, SP, Brasil Telefax: (5511) 5572-5363 e@erealizacoes.com.br · www.erealizacoes.com.br

Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial Gabriela Trevisan Preparação de texto Evandro Lisboa Freire Revisão Denise Roberti Camargo e Liliana Cruz Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É Diagramação e editoração eletrônica André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Pré-impressão e impressão Edições Loyola

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

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Alegoria do Amor Um Estudo da Tradição Medieval C. S. Lewis

M u l ta r en ascen tur quae jam c ec idere, c adentque Q u ae nunc sunt in honore.

Tr aduç ão G abriele G reggersen

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A OWEN BARFIELD O mais sรกbio e o melhor dos meus mestres extraoficiais

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Sumário

Nota da tradutora............................................................................................... 9 Prefácio............................................................................................................ 11

1. Amor cortês................................................................................................. 13 2. Alegoria........................................................................................................ 55 3. O Romance da Rosa................................................................................................... 121 4. Chaucer...................................................................................................... 165 5. Gower. Thomas Usk ................................................................................. 209 6. Alegoria como a forma dominante............................................................. 245 7. A Rainha das Fadas........................................................................................ 313

Apêndice 1 – Gênio e Gênio......................................................................... 379 Apêndice 2 – Domínio................................................................................... 383 Índice remissivo............................................................................................. 387

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Nota da Tradutora

Traduzir uma grande obra de um autor mundialmente reconhecido já é uma tarefa difícil, uma vez que muito do seu brilhantismo é intraduzível e, se o autor é bom mesmo, ele terá usado de todos os recursos de que dispõe sua língua com grande habilidade e nem sempre estes têm equivalentes na língua para a qual se traduz. A dificuldade é redobrada se considerarmos a época do autor, deslocada do nosso tempo (a primeira edição é de 1936) e, ainda mais, se a obra versa sobre uma época ainda mais remota (a Europa na Idade Média). Esse é, a meu ver, outro sinal do brilhantismo da obra que hoje, mais de setenta anos depois, ainda desperta o interesse de editoras pelo mundo afora (tive o privilégio de poder fazer o cotejo com uma tradução argentina de 1953, de Delia Sampietro). Acrescenta-se, também, a extrema erudição do autor, que cita inúmeros autores e obras que leitor brasileiro nenhum tem a obrigação de conhecer. Não se trata, por certo, de um livro da grande literatura, mas de um trabalho acadêmico, com todas as implicações que isso traz para a linguagem e que tentamos amenizar, sem banalização. Confesso, ainda, que não pude captar a totalidade das relações entre autores e obras e não espero, seria irresponsável eu esperar, que o leitor as capte. Reconheço, além disso, que não pude manter a métrica e as rimas dos inúmeros poemas citados (todos escritos em Inglês Médio e a maioria não tem tradução para o português do Brasil) e analisados, preocupando-me mais com o conteúdo e sentido daquilo que está sendo expresso. Então, não espero que os poemas traduzidos gerem grande apreciação artística, mas que, ao menos, possibilitem uma compreensão razoável.

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Dessa forma, além de pedir desculpas pelas minhas limitações neste trabalho, peço que este livro seja encarado como uma pintura antiga: muitos detalhes podem nos escapar – este ou aquele traçado; esta ou aquela perspectiva; esta ou aquela tonalidade, mas isso não nos impede de apreciar a totalidade da obra, o sentimento geral que ela evoca e, principalmente, o que ela tem para nos ensinar. E, quanto a isto, garanto que o resultado será bastante satisfatório aos leitores realmente interessados no autor ou no assunto, este era a área de especialização daquele. Não preciso dizer que quem é da área de literatura, filosofia ou história medieval pode nadar de braçada. Mas não é preciso ser especialista em algo para entender suas ideias centrais. Nesse sentido, procurei acrescentar notas apenas às palavras e aos nomes que realmente são essenciais para a compreensão do todo, para não acabar transformando a tradução em tradução comentada (embora a tentação tenha sido grande), modalidade esta que está fora dos propósitos deste trabalho. Assim, avisado, o leitor pode descansar na certeza de que o prazer de ler, coisa que sempre foi cara a Lewis, virá a reboque como uma espécie de recompensa ao esforço empenhado, à tolerância e modéstia intelectual exercidas. Pois, quando menos se espera, o mundo mágico da literatura medieval se revelará em todas as suas cores, de forma sedutora e misteriosa, ampliando seu repertório de ideias, experiências e visões de mundo. Afinal, Lewis era um romântico convicto, quase religioso, como a temática da obra e sua própria literatura de ficção (com destaque para as famosas Crônicas de Nárnia) sugerem, que abordava literatura através de lentes transcendentais, abertas para a totalidade do real. Não é precisamente essa a proposta dos escritores denominados “alegóricos” ou do amor cortês? Encerro citando o autor nesta mesma obra (um de seus tesouros a serem explorados) que me serve de consolo e motivação: “... se não se perde nada com a ‘tradução’, a obra original deve ser ruim”.

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Prefácio

Espera-se que o propósito deste livro esteja explicado de modo satisfatório no texto, e o prefácio, por isso mesmo, tenha que ser ocupado somente pelos agradecimentos, no lugar em que estes são devidos, até onde eu me lembre. Mas não posso prometer lembrar-me de todas as minhas dívidas, e estou bem consciente, como o filósofo, de que “se tivesse sucesso em dever mais, então, quem sabe eu teria ganhado um direito maior de ser original”. Das dívidas óbvias, a primeira é, naturalmente, para com os agentes da Clarendon Press e às anonimidades habilidosas e pacientes que lhes serviram; depois, dom André Wilmart, O. S. B., pela análise cuidadosa dos primeiros dois capítulos; o professor C. C. J. Webb, por seu interesse no segundo, que foi de grande ajuda; a Sociedade Medieval da Universidade de Manchester (e, em especial, o professor Vinaver), por ter ouvido e discutido o terceiro; o dr. C. T. Onions, por ter sujeitado minhas tentativas com o verso de Inglês Médio à melhor crítica, equacionando toda a distinção entre o literário e linguístico; e o dr. Abercrombie, por tudo o que não seja equivocado no apêndice sobre Danger. O primeiro capítulo foi lido e comentado pelo sr. B. Macfarlane e pelo professor Tolkien há tanto tempo que eles provavelmente esqueceram o trabalho, mas, por isso mesmo, não vou esquecer a gentileza. Até aqui, minha tarefa é fácil; mas, por trás desses credores certeiros, detecto um círculo muito mais amplo daqueles que me ajudaram, direta ou indiretamente, quando nenhum de nós poderia supor que empreenderíamos algo com o que estávamos lidando. Parece não haver entre os meus conhecidos alguma pessoa de quem eu não tenha aprendido alguma coisa. A maior dessas dívidas – aquilo que devo ao meu pai pelo benefício inestimável da infância passada na

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maior parte do tempo sozinho em uma casa cheia de livros – está agora além da possibilidade de recompensa; e dentre o restante eu só posso fazer seleções. Ter convivido com o professor J. A. Smith no mesmo andar da faculdade é, em si, uma educação liberal. O intelecto incansável do sr. H. Dyson, de Reading, e sua forma generosa de usá-lo são grandes incentivos para todos os seus amigos. O trabalho da dra. Janet Spens me encorajou a dizer com mais propriedade o que eu via em Spenser e a ver o que eu ainda não havia visto. Acima de tudo, o amigo a quem eu dediquei o livro me ensinou a não apadrinhar o passado e me treinou para ver o presente como um “período” entre outros. Eu não desejo para mim função mais alta do que ser um dos instrumentos pelos quais sua teoria e prática em assuntos como esses possam se tornar mais amplamente efetivas. Eu tentei registrar a assistência de leitores prévios, sempre que estava consciente deles. Espero que não se suponha que sou ignorante ou desdenhoso de todos os livros reconhecidos que não mencionei. Ao escrever meu capítulo final, lamentei não ter podido aproveitar muito as obras do professor Renwick e do sr. B. E. C. Davis, ou mesmo do nobre prefácio do professor Sélincourt. Todo o conhecimento que tenho da poesia em latim teria sido adquirido de forma mais fácil e prazerosa se eu tivesse tido contato com as grandes obras do sr. Raby mais cedo. Mas, quando tudo tiver sido dito, sem dúvida, eu ainda terei falhado em mencionar muitos gigantes em cujos ombros eu subi algumas vezes. Fatos e interferências, ou mesmo mudanças de expressão, acham lugar na mente de um homem de formas que ele dificilmente se lembrará; e, de todos os autores, eu sou o que menos pretende ser αὐτοδίδακτος (autodidata).

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1. Amor Cortês Enquanto no mundo vivi, era o seu comandante. Shakespeare

I É bem provável que poesia alegórica de amor da Idade Média desagrade ao leitor moderno, tanto pela sua forma quanto por seu conteúdo. Não se pode esperar que a forma, da luta entre abstrações personificadas, interesse a uma época crente de que a “arte quer dizer o que diz”, ou, até, de que a arte não tenha sequer algo a dizer. Pois é essencial para essa forma de narrativa separar o sentido literal da significatio. Quanto ao conteúdo, o que poderíamos ter a ver com esses amantes medievais – que se autodenominavam “servos” ou “prisioneiros” – e que parecem estar sempre em prantos, jogados aos pés de damas de crueldade inexorável? A literatura erótica popular dos nossos tempos tende muito mais para marajás e “vilões arrependidos” ou para raptos matrimoniais, enquanto aquela recomendada pelos nossos intelectuais se resume ao puramente animalesco ou a um livre companheirismo entre os sexos. Em todos os casos, se é que já não superamos o Romance of the Rose [O Romance da Rosa], ao menos nos afastamos dele. O estudo de toda essa tradição pode parecer, à primeira vista, nada mais do que uma comichão pelo “revisionismo”, aquela recusa de deixar para trás qualquer cadáver sem ser exumado, o que é um dos perigos mais angustiantes da pesquisa acadêmica. Mas esse é um ponto de vista por demais superficial. A humanidade não passa por fases como um trem passa por estações; estando viva, ela tem o privilégio de avançar sempre, sem deixar nada para trás. Mas o que quer que tenhamos sido, de certa forma, ainda o somos. Nem a forma nem o sentimento dessa poesia antiga terão passado sem deixar marcas indeléveis em nossas mentes. Devemos entender melhor o nosso presente e, quem sabe,

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até o nosso futuro se tivermos sucesso, por meio de um esforço de imaginação histórica, em reconstruir aquele espírito há muito perdido, para o qual o poema de amor alegórico era uma expressão natural. Mas não devemos estar em condições de fazer isso se não começarmos retrocedendo até um período bem anterior ao nascimento daquela poesia. Neste capítulo e no seguinte devo traçar o surgimento tanto do sentimento denominado “amor cortês” quanto do método alegórico. Essa discussão, sem dúvida, parecerá nos levar para longe do tema central: mas não há como evitá-lo. Todo mundo já ouviu falar em amor cortês e todo mundo sabe que ele apareceu de forma bastante súbita no final do século XI em Languedoque. As características da poesia de trova foram descritas reiteradamente.1 Não precisamos nos preocupar com a forma, que é lírica; nem com o estilo, que é sofisticado e muitas vezes “áureo” ou deliberadamente enigmático. O sentimento, é claro, é de amor, mas amor de uma espécie altamente especializada, cujas características podem ser enumeradas como Humildade, Cortesia, Adultério e a Religião do Amor. O amante é sempre servil. O atendimento aos menores caprichos da donzela, por mais extravagantes, e a aquiescência silenciosa de suas censuras, por mais injustas, são as únicas virtudes que ele ousa reivindicar. Há uma espécie de serviço prestado por amor que segue de perto o modelo do serviço que um vassalo presta ao seu senhor. O amante é o “homem” da donzela. Ele a trata por midons, o que etimologicamente representa não “minha senhora”, mas “meu senhor”.2 Essa atitude foi acertadamente descrita como sendo a “feudalização do amor”.3 Esse ritual solene do amor é tido como parte da vida de cortesia. Ela só é possível a quem seja educado, no sentido antigo da palavra. Assim, isso se torna, de certa forma, a flor; e, de outra, a semente, de todos aqueles usos tão nobres que distinguem o mocinho do vilão: apenas o cortês é capaz de amar, mas é o amor que o torna cortês. Esse amor, sem dúvida, embora não fosse Ver Fauriel, Histoire de la Poésie Provençale, 1846; E. Gorra, Origini etc. della Poesia Amorosa di Provenza (Rendiconti del Istituto Lombardo, etc. II, xliii, 14, xlv, 3), 191012; Jeanroy, La Poésie Lyrique des Troubadours, 1934. 2 Jeanroy, op. cit., t. I, p. 91 n. 3 Wechssler, Das Kulturproblem des Minnesangs [O Problema Cultural da Poesia Trovador­esca], 1909. Bnd. I, p. 177. 1

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nem galhofeiro nem licencioso em sua expressão, é sempre o que o século XIX chamou de amor “desonroso”. Um poeta normalmente se dirige à esposa de outro homem e a situação é aceita de forma tão displicente que ele raramente se preocupa com o marido dela; seu inimigo real é o rival.4 Mas, se ele é eticamente displicente, trata-se de um galanteador despreocupado: o seu amor é representado por uma emoção desesperadora e trágica – ou quase desesperadora, pois ele fica a salvo de desilusão completa pela sua fé no Deus do Amor, que nunca trai seus devotos e que é capaz de subjugar as belezas mais cruéis.5 As características desse sentimento, e sua coerência com a poesia de amor dos trovadores como um todo, são tão impressionantes que, fatalmente, podem provocar mal-entendidos. Somos tentados a tratar o “amor cortês” como mero episódio na história literária – um episódio que encerramos da mesma forma que encerramos as peculiaridades do verso escáldico6 ou a prosa eufuística.7 O fato, entretanto, é que há uma continuidade inconfundível conectando o canto de amor provençal com a poesia de amor da Idade Média tardia e, consequentemente, através de Petrarca e muitos outros, com aquele dos dias de hoje. Se essa coisa, a princípio, escapa de nossa percepção, isso se deve ao fato de estarmos tão familiarizados com a tradição da Europa moderna que a confundimos com algo natural e universal e, por isso, não examinamos suas origens. Parece-nos natural que o amor deva ser o tema mais comum da literatura imaginativa séria: porém, uma olhada na Antiguidade Clássica ou na Idade das Trevas mostra-nos imediatamente que aquilo que tomamos como “natureza” é, na realidade, um estado de coisas que provavelmente terá um fim e que, certamente, Jeanroy, op. cit., t. II, p. 109-13. Ibidem, p. 97. 6 Trata-se de um verso bastante trabalhado e artificioso. Refere-se aos membros de um grupo de poetas da corte dos líderes da Escandinávia e da Islândia durante a era Viking que compunham e apresentavam suas interpretações sobre aspectos do que, hoje, é conhecido como poesia nórdica antiga. (N. T.) 7 Estilo literário específico da prosa inglesa. É inspirado no escritor John Lyly. Consiste em uma maneira de escrever ornamentada e sofisticada, com excessos deliberados utilizando mecanismos como antíteses, aliterações, repetições e perguntas retóricas. Ele foi utilizado basicamente na época da rainha Elizabeth I. (N. T.) 4 5

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teve seu início na Provença do século XI. Parece-nos – ou nos parecia até recentemente – natural que o amor (sob certas condições) devesse ser visto como uma paixão nobre e enobrecedora: é apenas quando nos imaginamos tentando explicar essa doutrina a Aristóteles, Virgílio, São Paulo ou ao autor de Beowulf que nos conscientizamos de quão longe isso está de ser natural. Até o código de etiqueta de hoje, com sua regra de que a mulher sempre tem preferência, é um legado do amor cortês, mas está longe de ser considerado natural no Japão ou na Índia modernos. Muitas das funções desse sentimento, como era conhecido pelos Trovadores, desapareceram; mas isso não deve nos impedir de ver que os elementos mais momentâneos e mais revolucionários dela constituíram o pano de fundo da literatura europeia por oito séculos. Foram os poetas franceses do século XI que descobriram, inventaram ou foram os primeiros a expressar aquelas espécies românticas da paixão sobre as quais os poetas ingleses ainda estariam escrevendo por volta do século XIX. E efetuaram uma mudança que não deixou intocado nenhum ângulo da nossa ética, imaginação ou vida cotidiana, e eles erigiram barreiras intransponíveis entre nós e nosso passado clássico ou o presente oriental. Comparada a essa revolução, a Renascença é mera reverberação na superfície do oceano da literatura. Não pode haver nenhum engano sobre a novidade representada pelo amor romântico. Nossa única dificuldade é imaginar, em toda a sua esterilidade, o mundo mental que existia antes de sua chegada – de apagar das nossas mentes, por um momento, quase tudo o que alimenta tanto o sentimentalismo quanto o cinismo moderno. Temos que conceber um mundo esvaziado de todo aquele ideal de “felicidade” – uma felicidade fundada no amor romântico coroado de sucesso – que ainda constitui o motivo de nossa ficção popular. Na literatura antiga, o amor raras vezes ultrapassa os níveis do conforto meramente sensual ou doméstico, a não ser para ser tratado como mera loucura trágica, um ἄτη, que mergulha pessoas de resto normais (usualmente, mulheres) no crime e na desgraça. Tal é o amor de Medeia, de Fedra, de Dido; e tal é o amor do qual as donzelas pedem a proteção dos deuses.8 Na outra extremidade da escala 8

Eurípides, Medeia, 630; Hipólito, 529.

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encontramos o conforto e a utilidade reconhecida de uma boa esposa: Odisseu ama Penélope, da mesma forma como ama o resto do seu lar e suas posses, e Aristóteles, de má vontade, admite que a relação conjugal possa surgir aqui e ali em mesmo nível que a amizade virtuosa entre homens bons.9 Mas isso pouco tem a ver com o “amor” no sentido moderno ou medieval; e quando nos voltamos para a poesia de amor própria da Antiguidade, podemos ficar ainda mais desapontados. Vemos aí poetas bastante exaltados em suas preces ao amor: τίς δε βίος, τί δε τερπνὸν ἄτερ χρυσῆς Ἀφροδίτης. “O que é a vida sem amor, lá, lá, lá?”, como dizia aquela canção mais tardia. Mas isso não deve ser levado mais a sério do que os panegíricos, tanto do mundo antigo quanto do moderno, sobre as virtudes consoladoras do vinho. E se Catulo10 e Propércio11 introduzem em seu estilo gritos de furor e miséria, isso não é tanto devido a serem românticos, mas porque são exibicionistas. Em sua raiva ou seu sofrimento, eles não ligam para quem conheça a situação na qual o amor os tenha posto. Eles são presas do ἄτη. Eles não esperam que a obsessão que os atormenta seja tida como um sofrimento nobre – eles não usam “vestes de seda ou ostentação”. Platão não é exceção para aqueles que o leram com cuidado. No Simpósio, sem dúvida, encontramos a ideia da escada pela qual a alma pode ascender do amor humano para o divino. Mas é uma escada no sentido mais estrito; os degraus mais altos são alcançados deixando os inferiores para trás. O objeto primordial do amor do homem – que incidentalmente não é uma mulher – simplesmente foi perdido de vista antes que a alma tivesse alcançado o seu objeto espiritual. E o primeiro degrau acima faria um amante cortês ficar ruborizado de vergonha, já que consiste em passar do culto à beleza da amada para aquele dessa mesma beleza em outras Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1162 A, εἴη δ’ ἂν καὶ δι’ ἀρετήν. Gaius Valerius Catullus (87 ou 84 a.C. – 57 ou 54 a.C.) foi um poeta romano que, durante o final do período republicano, destacou-se pela sofisticação e polêmica. Sua poesia se destaca pela forma coloquial, versos ligeiros e improvisações que o fazem aparecer entre os “poetas novos”, cujo trabalho era visto com suspeita pela crítica tradicional. (N. T.) 11 Sextus Aurelius Propertius (43 a.C. – 17 d.C.) foi poeta e mitógrafo romano, representante da antiga escola de Calímaco e expoente da poesia elegíaca latina. (N. T.) 9

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pessoas. Quem sabe os que se autodenominam platônicos na Renascença não possam imaginar um amor suscetível de alcançar o divino sem abandonar o humano e de se tornar espiritual sem deixar de ser carnal? Mas isso não se encontra em Platão. E se fazem essa leitura dele é porque estão vivendo, da mesma forma que nós, na tradição que começou no século XI. Talvez o autor mais característico de todos os escritores antigos sobre o amor e, certamente, o mais influente da Idade Média seja Ovídio. Nos tempos turbulentos do início do império – quando Julia ainda não havia sido banida e a figura das trevas de Tibério ainda não havia entrado em cena –, Ovídio sentou-se para compor para o entretenimento de uma sociedade que o compreendia muito bem um poema ironicamente didático sobre a arte da sedução. O propósito da Arte de Amar pressupõe um público para a qual o amor seja um dos pecadilhos menores da vida e o chiste está em tratá-lo com seriedade – escrevendo um tratado, com regras e exemplos en règle para a boa condução dos amores ilícitos. É engraçado, como é engraçada a solenidade ritualística dos senhores mais velhos em torno do seu vinho. Comida, bebida e sexo são os motivos de piada mais antigos do mundo; e uma das formas mais conhecidas de piada é levá-la a sério. É essa atitude que dá todo o tom da Ars Amatoria. Em primeiro lugar, Ovídio introduz o deus Amor com toda a naturalidade, com uma afetação de temor religioso – da mesma forma como ele teria introduzido Baco, se tivesse escrito uma irônica Arte de Embriagar-se. Assim, o amor se torna um grande e ciumento deus; o seu culto, uma militia árdua. Ofenda-o quem ousar, Ovídio é seu cativo trêmulo. Em segundo lugar, ao se mostrar zombeteiramente sério sobre o próprio apetite, ele tem a necessidade de ser zombeteiramente sério sobre as mulheres. Sem dúvida, ele teria convidado os objetos reais do “amor” de Ovídio a se ausentarem da sala antes de iniciar a conversa séria sobre livros, política ou família. O moralista poderia tratá-las com seriedade, mas o homem mundano (tal como Ovídio), certamente não o faz. Mas dentro da convenção aceita sobre o poema, elas são as “feiticeiras da perdição”, as amantes de sua fantasia, os árbitros de seu destino. Elas o governam com mão de ferro, conduzem-no para uma vida de escravidão. Como resultado disso, encontramos este tipo de advertência endereçada ao aprendiz de amante: 18 - Alegoria do Amor

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Vá cedo, antes do combinado ao encontro Com a mulher formosa na rua e um bom tempo aguarde Em meio à multidão dos errantes que a seguem Mesmo que outras coisas mais sérias fiquem por fazer Se ela exige a tua presença no caminho dela Para lhe servir de lacaio no baile, obedeça! Ou se, em paisagens rurais, ela o chame “Venha”, Vá de carro, se puder, ou vá para Roma E não deixe nem a constelação nem a tempestade De neves alvejantes detê-lo na estrada Covardes, portanto, voem! Nosso general, o amor, Desdenha do seu serviço tépido em suas longas campanhas.12

Ninguém que tenha captado o espírito do autor deixará de compreender isso. A conduta que Ovídio recomenda parece vergonhosa ou absurda, e essa é precisamente a razão por que ele a recomenda – em parte, como uma confissão cômica das profundidades a que o ridículo apetite pode levar um homem; e em parte, como uma lição na arte de ludibriar até a última mulher de reputação duvidosa que lhe tenha solapado a fantasia. A passagem toda deve ser tomada em conjunto com sua outra recomendação – “não a visite em seu aniversário: isso sai muito caro”.13 Mas deve-se notar também – e esse é um belo exemplo da mudança vasta que ocorreu na Idade Média – que exatamente a mesma conduta que Ovidio recomenda ironicamente podia ser recomendada de modo sério Ars Amatoria, II, 223: Iussus adesse foro, iussa maturius hora Fac semper venias, nec nisi serus abi. Occurras aliquo, tibi dixerit; omnia differ, Curre, nec inceptum turba moretur iter. Nocte domum repetens epulis perfuncta redibit – Tunc quoque pro servo, si vocat illa, veni. Rure eris et dicet, Venias: Amor odit inertes! Si rota defuerit, tu pede carpe viam, Nec grave te tempus sitiensve Canicula tardet, Nec via per iactas candida facta nives. Militiae species Amor est: discredite segnes! Non sunt haec timidis signa tuenda viris. 13 Ars Amatoria, I, 403 ss; cf. 417 ss. 12

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pela tradição da cortesia. Tomar de assalto gente errante, passar poucas e boas por sua donzela, ou até quaisquer donzelas, teria parecido honrável e natural a um cavaleiro do século XIII ou até do século XVII. E mesmo nós, ainda que no século XX, já saímos alguma vez para fazer compras com senhoras que não davam sinais de que aquela tradição fosse letra morta. O contraste levanta a dúvida inevitável: seria a coloração de toda a poesia do amor medieval explicável pela fórmula “Ovídio mal-compreendido”. Isso não é uma solução – pois mesmo se esse fosse o caso, ainda teríamos que nos perguntar por que a Idade Média foi assim tão consistente nesse mal-entendido –, mas é bom mantermos esse pensamento em mente ao longo deste estudo.14 A decadência da velha civilização e a chegada do cristianismo não resultou em nenhum aprofundamento ou idealização da concepção de amor. O fato é importante, porque refuta duas teorias que atribuem a grande mudança nos nossos sentimentos, respectivamente, ao temperamento germânico e à religião cristã – especialmente ao culto da Virgem Santíssima. A última se refere a um relacionamento real muito complexo; mas, como a sua natureza verdadeira será evidenciada no que segue, eu me contentarei aqui com uma declaração breve e dogmática. É possível admitir como evidente que o cristianismo, em um sentido muito genérico, através de sua insistência na compaixão e na santidade do corpo humano, tenha a tendência de amenizar ou envergonhar as brutalidades e frivolidades mais extremas do mundo antigo em todos os departamentos da vida humana e, por isso, também em aspectos sexuais. Mas não há aí evidências de que o tom quase religioso da poesia do amor medieval tenha sido transferido Em todas as questões de origem e influência literária, o princípio quidquid recipitur recipitur ad modum recipientis deve ser lembrado constantemente. Empenhei-me em destacar acima que “Ovídio mal-entendido” não explica nada, se não nos dermos conta de que um mal-entendido persiste numa direção particular. Pela mesma razão eu não falei nada sobre a Eneida IV e outras obras da poesia antiga, que algumas vezes são mencionadas nas investigações sobre o amor cortês. A história de Dido fornece muito material que pode ser usado, e era usado, na poesia de cavalaria, depois que o amor cortês foi chamado à existência. Mas, até então, ela não será lida como mais do que é: uma história exemplar e trágica de amor na Antiguidade. Pensar em outra coisa seria como afirmar que a tragédia clássica é causa do movimento romântico, só porque Browning e Swinburne, depois que a poesia romântica surgiu, foram capazes de usar a tragédia clássica com propósitos românticos. 14

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do culto à Virgem Santíssima: mas é só provável – e é até mais provável – que a coloração de certos hinos à Virgem tenha sido emprestada da poesia do amor.15 Também não é verdade, em sentido estrito, que a igreja tenha de alguma forma encorajado a reverência às mulheres. Da mesma forma que é ridículo (como veremos aqui) supor que a paixão sexual, sob quaisquer condições ou de acordo com qualquer processo passível de refinamento, seja uma emoção nobre. A outra teoria, notada por Tácito,16 funda-se numa característica supostamente inata às raças germânicas. Mas o que Tácito descreve é aquela reverência primitiva às mulheres como seres estranhos e provavelmente proféticos, que é tão remota da nossa compreensão quanto a reverência primitiva aos lunáticos ou o primitivo horror aos gêmeos. E, precisamente por ser algo assim tão remoto, não podemos julgar a probabilidade de ter se desenvolvido para o Frauendienst medieval, isto é, o culto à mulher. O que é certo é que, onde quer que uma raça germânica tenha atingido a sua maturidade, intocada pelo espírito latino, como na Islândia, não encontramos nada parecido com o amor cortês. Na verdade, a posição conferida às mulheres nas Sagas é mais alta do que a que elas desfrutam na literatura clássica. Acontece que ela é baseada em respeito puro e simples pela coragem ou prudência que algumas mulheres possuem, da mesma forma que alguns homens. Os nórdicos, de fato, tratam suas mulheres não primariamente como mulheres, mas como pessoas. Atitude esta que, na plenitude do tempo, pode levar a uma igualdade de direitos e a uma Lei de Propriedade da Mulher Casada, mas isso tem muito pouco a ver com o amor romântico. A resposta final a ambas as teorias, entretanto, encontra-se no fato de que os perío­ dos cristãos e germânicos existiram por vários séculos antes do surgimento do novo sentimento. O “amor”, no sentido que hoje atribuímos à palavra, estava tão ausente da literatura da Idade das Trevas quanto da Antiguidade Clássica. Suas histórias favoritas não eram, como as nossas, histórias de como um homem casou ou deixou de casar com uma mulher. Eles preferiam ouvir como um santo homem ascendeu aos céus ou como um bravo homem foi para o campo de Ver Jeanroy, em Histoire de la Langue et de la Littérature Française, 1896, t. I, p. 372 n.; também Wechssler, op. cit., Bnd. I, cap. xviii. 16 Germânia, viii, 2. 15

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­ atalha. Estaríamos muito enganados se achássemos que o poeta da Chanson de b Rolland [Canção de Rolando] mostrou alguma reserva ao se livrar sumariamente de Alde, a noiva de Rolando.17 Antes, quando ele não a faz sequer entrar em cena, está fazendo o contrário: ele está expandindo a história, enchendo espaços vazios, está se demorando, para o nosso deleite, nos interesses mais marginais, depois de ter tratado, como se deve, os mais importantes. Rolando não pensa em Alde quando está no campo de batalha: ele pensa na fama que o espera na França.18 A figura da noiva empalidece em comparação àquela de seu amigo, Oliver. A mais profunda das emoções mundanas daquela época é o amor do homem pelo homem, o amor recíproco de guerreiros que morrem juntos na luta contra uma força superior, e a afeição entre o vassalo e seu senhor. Nós jamais entenderemos esta última, se pensarmos sobre ela à luz de nossas filiações moderadas e impessoais. Não devemos pensar em oficiais bebendo à saúde de um rei: temos que pensar, antes, no sentimento de um garotinho por algum herói no sexto escalão. Não há perigo na analogia, pois o bom vassalo está para o bom cidadão como um garoto está para um homem. Ele não está em condições de elevar-se para a grande abstração de uma res publica. Ele só ama e reverencia o que ele pode tocar e ver; mas ele o ama com uma intensidade que nossa tradição reluta em admitir, exceto para o amor sexual. Consequentemente para o velho vassalo do poema inglês, partindo do seu senhor, Vinha à sua memória como o senhor A seus vassalos abraçava e beijava e em suas rodas Cabeça e mãos acariciava; assim o senhor costumava Sentar-se em seu trono nos dias de preparo...

Esse sentimento é mais apaixonado e menos ideal do que o nosso patriotismo. Ele se eleva mais facilmente para a prodigalidade do culto, e ele também se quebra mais facilmente, convertendo-se em ódio: consequentemente, a história feudal está cheia de grandes lealdades e grandes traições. O legendário germânico e celta, sem dúvida, legou aos bárbaros algumas histórias de amor trágico 17 18

Chanson de Rolland, 3705 ss. Ibidem, 1054.

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entre homem e mulher – amores desditosos e bem análogos àquele de Dido ou Fedra. Mas o tema não demanda preeminência e, quando é tratado, o interesse se volta tanto para a tragédia masculina resultante, o distúrbio da vassalagem ou da irmandade jurada, quanto para a influência feminina que o produziu. Ovídio também ficou conhecido pelos estudiosos; e havia aí uma literatura abundante sobre irregularidades sexuais para o uso de confessores. Sobre romances, sobre a reverência às mulheres que ele supunha, sobre a imaginação idealizadora exercitada sobre o sexo, quase não há indícios. O centro de gravidade se encontra em outro lugar – nas esperanças e temores da religião, ou nas fidelidades limpas e felizes à casa feudal. Mas, como vimos, essas afeições masculinas – ainda que bem diferentes das que envolvem a “amizade” no mundo antigo – eram em si mesmas parecidas com as dos amantes: em sua intensidade, sua disposição para a exclusão de valores alheios e sua incerteza; eles criaram no espírito hábitos não muito diferentes do que as gerações posteriores encontrariam no “amor”. Esse fato é bastante relevante, é claro. Como no caso da fórmula “Ovídio mal compreendido”, isso não serve para explicar o surgimento do novo sentimento; mas serve para explicar por que esse sentimento, tendo aparecido, teria que se apressar para se tornar uma “feudalização” do amor. O que é novo costuma conquistar seu espaço disfarçando-se de velho. Não pretendo aqui explicar o novo em si. Mudanças reais no sentimento humano são muito raras – quiçá se tenha registro de três ou quatro –, mas acredito que elas ocorram, e que essa seja uma delas. Não tenho certeza de que tenham “causas”, se por causa se entenda algo que dê conta de um novo estado de coisas e, assim, explique-se o que parece ser a sua novidade. Em todo caso, é certo que até aqui os esforços dos estudiosos na busca por uma origem para o conteúdo da poesia provençal de amor fracassaram. Suspeitou-se da influência celta, bizantina e até arábica; mas não se deixou claro em que medida estas poderiam dar conta dos resultados a que temos acesso hoje. Uma das mais promissoras teorias remonta às origens a Ovídio;19 mas, além da insuficiência que mencionei, encontramos aqui a tremenda dificuldade de que a evidência aponta Por W. Schrötter, Ovid und die Troubadours, 1908: severamente resenhado em România, xxxviii. 19

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para uma influência muito mais forte de Ovídio no norte da França do que no sul. Pode-se extrair algo de um estudo das condições sociais em meio às quais a nova poesia surgiu, mas não tanto quanto se poderia esperar. Sabe-se que os exércitos das cruzadas consideravam os provençais uns covardes,20 mas isso só pareceria relevante para um inimigo muito duro do Frauendienst. Sabemos que esse período no sul da França testemunhou o que parecia aos contemporâneos um sinal de degeneração dos costumes antigos e um aumento alarmante da luxúria.21 Mas qual época, qual país, não as tinha? Muito mais importante é o fato de que a cavalaria errante – a cavalaria desprovida de um lugar na hierarquia territorial do feudalismo – parece ter sido possível na Provença.22 Esse cavaleiro intocado, como o encontramos nos romances, respeitável apenas pelo seu valor próprio, amável apenas pela sua cortesia, amante predestinado das mulheres de outros homens era, portanto, uma realidade; mas essa realidade não explica por que ele amava de uma forma nova. Se for certo que o adultério era necessário ao amor cortês, o amor cortês dificilmente era necessário para o adultério. Chegamos muito mais perto de desvendar esse segredo se pudermos aceitar a figura da corte tipicamente provençal, retratada muitos anos atrás por um escritor inglês,23 e, desde então, aprovada como a máxima autoridade viva sobre o assunto. É preciso imaginar um castelo como uma pequena ilha de lazer e luxúria relativos e, portanto, de refinamentos possíveis, elevando-se em uma terra bárbara. Há muitos homens nela e poucas mulheres – a senhora do castelo e suas donzelas. Em torno delas, todo um cortejo de nobres inferiores, os cavaleiros errantes, os escudeiros e os pajens – criaturas bastante arrogantes em relação aos camponeses para além dos muros, mas inferiores na hierarquia feudal à donzela e seu senhor –, seus “homens”, como o expressa a linguagem feudal. Toda a “cortesia” que possa ali se encontrar flui dela: todo o Radulfus Cadomensis Gesta Tancredi, 61, ne verum taceam minus bellicosi; também o provérbio Franci ad bella, Provinciales ad victualia. (Recueil des Historiens des Croisades, Acad. des Inscriptions, t. iii, p. 651.) 21 Jeanroy, op. cit., t. I, p. 83 ss. 22 Fauriel, op. cit., t. i, p. 515 ss. 23 “Vernon Lee”, Euphorion, vol. ii, p. 136 ss. 20

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charme feminino, dela e de suas donzelas. Numa corte assim, não há chance de casamento para a maioria. Todas essas circunstâncias juntas chegam muito perto de uma “causa”; mas elas não explicam por que as circunstâncias muito similares em outro lugar tiveram que aguardar o exemplo provençal para produzir resultados parecidos. Parte do mistério continua inviolada. Mas, ao abandonar o intento de explicar o novo sentimento, quem sabe não possamos ao menos explicar – e, na verdade, já explicamos em parte – a forma peculiar que ele assumiu no começo: as quatro marcas da Humildade, Cortesia, Adultério e Religião do amor. Para dar conta da humildade não necessitamos de nada além do que já foi dito. Antes da chegada do amor cortês, já existia a relação entre o vassalo e o senhor, com toda a sua intensidade e calor; era um molde em que a paixão romântica seria vazada com alguma certeza. E se a amada também fosse o superior feudal, a coisa se tornava inteiramente natural e inevitável. Daí, também, a ênfase que se dava à cortesia. É nas cortes que o novo sentimento surge. A donzela, pela sua posição social e feudal, antes mesmo que amada, já era o árbitro das maneiras e o flagelo da “vilania”. A associação do amor com o adultério – uma associação que durou na literatura continental até os nossos próprios tempos – tem causas mais profundas. Em parte, ela pode ser explicada pelo quadro já desenhado, mas há muito mais a ser acrescentado a isso. Duas coisas preveniram os homens daquela época de conectar seu ideal de amor romântico e apaixonado ao casamento. A primeira, é claro, é a organização da sociedade feudal. Casamentos não tinham nada a ver com amor, e não se tolerava nenhuma “bobagem” a esse respeito.24 Todas as uniões eram uniões por interesse, e, pior, por interesses continuamente em mudança. Se a aliança que havia servido a um interesse já não servisse mais, o objetivo maior do marido era se livrar da donzela o mais rápido possível. Os casamentos eram frequentemente dissolvidos. A mesma mulher que era a donzela e o “temor mais adorado” para seus vassalos muitas vezes não era muito mais do que um artigo de propriedade para seu marido. Ele era o mestre de sua própria casa. Assim, longe de ser um canal do novo tipo de amor, o Ver Fauriel, op. cit., t. I, p. 497 ss. Cf. a cena de cortejo no Erec, de Chrétien, citado adiante. 24

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casamento era, antes, o pano de fundo banal contra o qual aquele amor se destacava com todo o contraste de sua nova ternura e delicadeza. A situação era bem simples e não era peculiar à Idade Média. Qualquer idealização do amor sexual em uma sociedade em que o casamento é puramente utilitário deve começar por ser uma idealização do adultério. O segundo fator é a teoria medieval do casamento – o que pode ser chamado, por um barbarismo moderno conveniente, de “sexologia” da Igreja medieval. O homem inglês do século XIX pensava que a mesma paixão – amor romântico – poderia ser virtuosa ou viciosa, dependendo do fato de ser direcionada para o casamento ou não. Entretanto, para o pensamento medieval, o amor apaixonado era mau em si, e não deixava de ser mau se o seu objeto fosse a esposa. Uma vez que um homem tivesse se rendido a essa emoção, ele não tinha escolha entre o amor “culpado” e “inocente”: ele só tinha a escolha entre o arrependimento e alguma forma diferente de culpa. Vamos nos demorar um pouco nesse assunto, em parte porque nos apresenta as relações verdadeiras entre o amor cortês e o cristianismo, em parte porque ele foi muitas vezes mal representado no passado. Podemos concluir de algumas referências que o cristianismo medieval foi um tipo de maniqueísmo tarimbado de lascívia; de outras, que era um tipo de carnaval do qual todas as partes mais felizes do paganismo participavam, depois de terem sido batizadas e sem perder nada de sua jovialidade. Nenhum dos dois quadros é muito confiável. As visões de clérigos medievais sobre o ato sexual dentro do casamento (é claro que não se discute o ato fora do casamento) são todas limitadas pelos dois convencionalismos complementares. Por um lado, ninguém jamais afirmou que o ato fosse intrinsicamente pecaminoso. Por outro, todos concordavam que algum elemento mau estivesse presente em cada instância concreta desse ato, desde a Queda. No esforço por determinar a natureza precisa desse mal concomitante, exercitaram-se o aprendizado e a ingenuidade. Gregório, no final do século VI, era claro nessa questão: o ato é inocente, mas o desejo é moralmente mau. Se se levantava objeções a essa concepção de um impulso intrinsecamente mau em relação a uma ação intrinsecamente inocente, ele respondia com um exemplo: o da censura justa expressa com raiva. O que dizemos talvez seja exatamente o que devemos dizer; 26 - Alegoria do Amor

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mas a emoção, que é a causa eficiente de o dizer, é moralmente má.25 Mas o ato sexual concreto, isto é, o ato mais a sua causa inevitavelmente eficiente, continua sendo pecaminoso. Quando chegamos à Idade Média tardia, essa visão se modifica. Hugo de São Victor concorda com Gregório ao pensar que o desejo carnal seja mau. Mas ele não pensa que isso tornasse o ato concreto mau, desde que ele seja “desculpado” pelas boas finalidades do casamento, tais como a procriação.26 Ele chega a combater a visão rigorosa de que o casamento baseado na beleza não seja casamento: Jacó, como ele nos lembra, casou com Raquel pela sua beleza.27 Por outro lado, ele é claro em dizer que se tivéssemos permanecido no estado da inocência, teríamos gerado sine carnis incentivo. Ele se distingue de Gregório considerando não apenas o desejo, mas o prazer. O último ele pensa que seja um mal, mas não um mal moral: trata-se, diz ele, não de pecado, mas da punição pelo pecado, e, assim, ele chega à concepção desconcertante de punição, que consiste no prazer moralmente inocente.28 Pedro Lombardo foi muito mais coerente. Ele situou o mal no desejo e disse que não se tratava de mal moral, mas da punição pela Queda.29 Assim, o ato, ainda que não livre do mal, pode ser livre do mal ou pecado, mas apenas se for “desculpado pela boa finalidade do matrimônio”. Ele cita com aprovação uma fonte, supostamente pitagórica, de grande importância para o historiador do amor cortês – omnis ardentior amator propriae uxoris adulter est, o amor passional pela própria mulher de um homem é adultério.30 Alberto Magno adota uma visão muito mais amável. Ele elimina a ideia de que o prazer seja mau ou resultado da Queda: pelo contrário, o prazer seria muito maior se tivéssemos permanecido no Paraíso. O problema real sobre o homem decaído não é a força Gregório a Agostinho apud Bede, Eccles. Hist. I, xxvii, p. 57, na edição de Plumer. A autenticidade dessa carta é discutível; mas o meu argumento independe dela. 26 Hugo de São Vítor, Sententiarum Summa, Tract. VII, cap. 2. (A atribuição tradicional dessa obra não precisa ser questionada para os nossos propósitos.) 27 Ibidem, cap. 1. 28 Ibidem, cap. 3. 29 Pedro Lombardo, Sententiarum, IV, Dist. xxxi, Quod non omnis. 30 Ibidem, De Excusatione Coitus. Para a identidade verdadeira de Sextus (ou Xystus) Pithagoricus, ver Ueberweg, Hist. of Philosophy, vol. I, p. 222: Catholic Encyclopedia, s. v. Sixtus II, etc. 25

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de seus prazeres, mas a fraqueza de sua razão: o homem não decaído poderia ter desfrutado de qualquer grau de prazer, sem perder de vista, nem por um momento, o Primeiro Bem.31 O desejo, tal como o conhecemos, é um mal, uma punição pela Queda, mas não um pecado.32 O ato conjugal pode, por isso, ser não apenas inocente, mas meritório, se tiver as causas certas – o desejo de procriação, pagamento do débito do casamento e coisas parecidas. Mas, se o desejo vier primeiro (em qual sentido “primeiro” não tenho tanta certeza), será um pecado mortal.33 Tomás de Aquino, cujo pensamento é sempre tão firme e claro em si, é uma figura desconcertante para o nosso presente propósito. Ele parece sempre tirar com uma mão o que nos ofereceu com a outra. Por exemplo, ele aprendeu de Aristóteles que o casamento é uma espécie de amicitia.34 Por outro lado, ele prova que a vida sexual teria existido sem a Queda, com o argumento de que Deus não teria dado a Adão uma mulher se não com o propósito de ser uma “ajuda”; para qualquer outro, um homem obviamente teria sido bem mais satisfatório.35 Ele está ciente de que a afeição entre as partes aumenta o prazer sexual, e que a união, mesmo entre os animais, implica certa gentileza – suavem amicitiam – e, assim, parece chegar à beira da concepção moderna de amor. Mas a passagem na qual ele faz isso é a sua explanação da lei contra o incesto. Argumenta que as uniões entre parentes muito próximos é má, precisamente porque os parentes têm muita afeição e tal afeição aumentaria o prazer.36 A sua visão geral aprofunda a de Alberto e a torna mais sutil. O mal do ato sexual não consiste nem no desejo nem no prazer, mas na sujeição da faculdade racional a eles: e essa sujeição, mais uma vez, não é o pecado, embora seja um mal, um resultado da Queda.37

Alberto Magno, In Pet. Lomb. Sentent. iv, Dist. xxvi, art. 7. Alberto Magno, In Pet. Lomb. Sentent. Iv, Dist. xxvi, art. 9, Responsio. 33 Ibidem, art. 11. 34 Contra Gentiles, iii, 123-24. 35 Sum. Theol. Prima Pars Quaest. xcviii, art. 2. 36 Contra Gentiles, iii, 125. (As feras entram em cena em 123.) 37 Sum. Theol. Prima Secundae, xxxiv, art. 1. O relato anterior se confina a autoridades medievais: uma explanação completa da visão escolástica certamente teria que começar pelas fontes dominicanas, paulinas, agostinianas e aristotélicas. 31 32

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Como veremos, a teoria medieval encontra espaço para a sexualidade inocente: o que não encontra espaço é a paixão, não importa se romântica ou de qualquer outra espécie. É quase que obrigatório dizer que isso nega à paixão aquela indulgência que concorda de forma relutante com o apetite. Em sua forma tomista, a teoria absolve o desejo e o prazer carnais e encontra o mal no ligamentum rationis, a suspensão da atividade intelectual. Essa concepção é quase contrária à visão, implícita em tanta poesia de amor romântico, que seja precisamente a paixão que redime. O quadro escolástico da sexualidade não decaída – um quadro de máximo prazer físico e mínimo distúrbio emocional – pode parecer muito menos com o Adão no Paraíso do que a sensualidade fria de Tibério em Chipre. Entretanto, devo me apressar em declarar que isso é inteiramente injusto para com os escolásticos. Eles não estão falando sobre algum tipo de paixão como a dos românticos. Uma parte se refere à embriaguez meramente animal; a outra acredita, seja com razão ou sem, em uma “paixão” capaz de gerar uma alteração química sobre o apetite e afeição e as transforma em algo diferente de ambos. Naturalmente, Tomás de Aquino não tem nada a dizer sobre a “paixão” nesse sentido – da mesma forma que não tem nada a dizer sobre máquinas a vapor. Nem sequer ouviu falar sobre ela. Naquela época, ela estava apenas despertando para a existência e encontrando sua primeira expressão na poesia do amor cortês. A distinção que eu acabei de fazer é delicada, mesmo se a fazemos séculos depois do evento, com todas as expressões posteriores da paixão romântica em mente. Naturalmente, ela não poderia ter sido feita naquele tempo. A impressão geral deixada na mente medieval por seus professores oficiais era a de que todo amor – ao menos aquela devoção enaltecida e apaixonada que o poeta cortês teria considerado meritório desse nome – era mais ou menos vicioso. E tal impressão, combinada com a natureza do casamento feudal, como já descrevi, produziu nos poetas certa disposição, uma prontidão, para enfatizar mais do que ocultar o antagonismo entre seus ideias amatórios e seus ideias religiosos. Assim, se a Igreja lhes dizia que o amante ardente, mesmo o de sua própria esposa, está em pecado mortal, eles prontamente respondem que o verdadeiro amor é impossível no casamento. Se a Igreja lhes dizia que o ato sexual pode 1. Amor Cortês - 29

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ser “desculpado” apenas pelo desejo de procriação, então, ele se tornou marca de um amante verdadeiro, como Chantecler, por exempo, que servia a Vênus mais por prazer do que para o mundo multiplicar.38

A fissura entre a Igreja e a corte, ou, segundo a fina frase de Vinaver, entre Carbonek e Camelot, que se tornará mais aparente na medida em que avançarmos, é uma característica decisiva do sentimento medieval. Finalmente, chegamos à quarta marca do amor cortês – sua religião amorosa, do deus Amor. Isso se deve, em parte, como vimos, à herança deixada por Ovídio e, em parte, àquela mesma lei de transferência que determinava que todas as emoções contidas na relação entre vassalos e seus seigneurs deve ir a reboque do novo tipo de amor: pela mesma razão, as formas das emoções religiosas tenderiam naturalmente a fixar-se na poesia do amor. Mas em parte (e essa, quem sabe, talvez seja a razão mais importante das três) essa religião erótica surgiu como um rival ou paródia à religião real, enfatizando ainda mais o antagonismo entre os dois ideais. O tom quase religioso não é necessariamente o mais forte na poesia do amor mais séria. O jeu-d’esprit do século XII, denominado Concilium Romarici Montis, é ilustrativo aqui. O autor se propõe em um capítulo a descrever uma reunião de freiras em Remiremont, na primavera, cuja agenda era de natureza curiosa – De solo negotio Amoris tractatum est. Excluía-se toda presença masculina, exceto de alguns poucos honesti clerici. Os autos começavam assim: Quando o senado virginal se congregou E preencheu os bancos do saguão, O Doutor Ovídio se leu No lugar dos evangelhos. A leitora jovial dos evangelhos Foi a irmã Eva, que (como se tinha ouvido) Entendia da prática parte Do amor a arte – Aquela que a todos invocou, Irmãs baixinhas e altas convocou. 38

The Canterbury Tales [Contos da Cantuária], B 4535.

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Docemente elas começaram a elevar Canções melodiosas em louvor do Amor.39

Ao final do culto, uma Cardinalis domina se levantou em meio à assembleia e assim anunciou o seu negócio: O deus de todo amante, Amor Mandou-me aqui para investigar De toda a sua vida e conversação E realizar uma Inspeção.40

Em obediência à cardealesa, um grupo de irmãs (duas das quais foram nomeadas) fez uma confissão pública dos seus princípios e sua prática em matéria de amor. Logo fica evidente que o convento estava dividido em dois partidos distintos; um dos quais se havia mostrado escrupuloso em não conceder favores a nenhum amante que não fosse clérigo (clericus), enquanto o outro, com igual pedantismo, reservava a sua gentileza exclusivamente aos cavaleiros (militares). O leitor, que sem dúvida entendeu com que autor estamos lidando, não ficará surpreso em descobrir que a Cardinalis domina se pronuncia enfaticamente favorável aos clérigos como os únicos amantes apropriados para uma freira e convoca o partido herético ao arrependimento. As maldições com que as ameaça, em caso de obstinação ou reincidência, são muito divertidas: Zeitschrift für deutsches Alterthum [Revista da Antiguidade Alemã], vii, p. 150 ss, versos 24-32: Intromissis omnibus Virginum agminibus Lecta sunt in medium Quasi evangelium Precepta Ovidii Doctoris egregii. Lectrix tam propitii Fuit evangelii Eva de Danubrio Potens in officio Artis amatoriae (Ut affirmant aliae) Convocavit singulas Magnas atque parvulas. Cantus modulamina Et amoris carmina Cantaverunt pariter. 40 Ibidem, versos 51 ss: Amor deus omnium Quotquot sunt amantium Me misit vos visere Et vitam inquirere. 39

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Em recompensa à sua impiedade, Terror, Trabalho, Sofrimento, Ansiedade, Medo e Tristezas; Discórdias e Melancolia, Ainda as acometem com sua condenação! Deixe que todas aquelas que em sua cegueira Com o laicato gastaram a sua gentileza Sejam um escárnio e execração Para os clérigos de toda nação, E deixem os clérigos por elas passarem A cada encontro sem as saudarem!... Maldição para a qual, todas nós Digamos Amém, que assim seja!41

O poema ilustra muito bem a influência de Ovídio e da religião do amor; mas não se trata, de forma alguma, de um exemplo de “Ovídio mal compreendido”. O culto ao deus Amor foi uma religião do arremedo na Arte de Amar de Ovídio. O poeta francês assumiu essa concepção de religião erótica com total consciência da insolência que estava cometendo, e procedeu para elaborar a piada em termos da única religião que conhecia – o cristianismo medieval. O resultado é uma paródia fechada e descarada das práticas da Igreja, na qual Ovídio se converte em doctor egregius e a Ars Amatoria, em um evangelho, no qual a heterodoxia e ortodoxia eróticas são distintas, e o deus do Amor é equipado com cardeais, dotados de poderes de excomunhão. A tradição ovidiana adaptada ao gosto medieval pela blasfêmia humorística parece bastar para produzir uma religião do amor, seria possível até falar em uma religião do amor cristianizada, sem qualquer auxílio da nova seriedade da paixão romântica. Contra qualquer teoria de que o Frauendienst medieval derivaria do cristianismo e do ­culto Ibidem, vii, p. 160, 166, versos 216 ss: Maneat Confusio, Terror et Constricio, Labor, Infelicitas, Dolor et Anxietas, Timor et Tristitia, Bellum et Discordia,... Omnibus horribiles Et abhominabiles Semper sitis clericis Que favetis laicis. Nemo vobis etiam, Ave dicat obviam (Ad confirmacionem Omnes dicimus Amen!)

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à Virgem Santíssima, temos que insistir que a religião do amor muitas vezes começa com uma paródia da religião real. Isso não significa que não venha a se converter logo em algo mais sério do que uma paródia ou que não se pudesse encontrar, como em Dante, um modus vivendi com o cristianismo e produzir uma nobre fusão entre a experiência sexual e a religiosa. Mas significa que nós temos que estar preparados para encontrar certa ambiguidade em todos aqueles poemas em que a atitude do amante em relação à sua donzela ou ao Amor pareça, à primeira vista, mais como a atitude do devoto da Virgem Santíssima ou de Deus. A distância entre o “senhor de aspecto terrível” da Vita Nuova e o deus dos amantes no Council of Remiremont nos dá a medida da largura e complexidade da tradição. Dante tem o máximo de seriedade que se possa ter; já o poeta francês não é sério de maneira alguma. Entre esses dois extremos, temos que estar preparados para achar outros autores, escalonados por todo tipo de posicionamento intermediário. E isso não é tudo. As variações não se dão apenas entre o gracejo e a seriedade; pois a religião do amor pode se tornar séria sem se tornar reconciliada com a religião real. Não se trata de paródia da Igreja, que pode ser, em certo sentido, sua rival – um escape temporário, uma evasão dos ardores da religião em que se crê para os prazeres de uma religião meramente imaginária. Descrevê-la como a vingança do Paganismo em relação ao seu conquistador seria um exagero; mas pensá-la como sendo um tingimento das paixões humanas pela emoção religiosa seria um erro ainda mais grave. É como se a metáfora do amante que, em um momento de abandono passional, exclamasse “aqui está o meu paraíso” fosse expandida para um sistema. Mal as palavras saíram de sua boca e ele já sabe que “aqui” não significa o seu céu real; entretanto, desenvolver um pouco mais essa ideia constitui para ele uma audácia prazerosa. Se acrescentarmos a esse “céu” do amante seus acessórios naturais, um deus e santos e uma lista de mandamentos, e se imaginarmos um amante orando, pecando, arrependendo-se e, finalmente, admitindo a bem-aventurança, estaremos já no mundo de sonhos precário da poesia de amor medieval. Quer a tomemos como extensão da religião, escape da religião ou religião rival – Frauendienst pode ser qualquer uma dessas três coisas ou alguma combinação entre elas. Pode ser até um inimigo declarado – como quando Aucassin declara ­abertamente que 1. Amor Cortês - 33

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preferia ir ao inferno para servir a todas as doces damas e cavaleiros bondosos do que ir para o céu sem eles. A donzela ideal dos velhos poemas de amor não é o que os primeiros estudiosos supunham que ela fosse. Quanto mais devotamente se fala dela, menos religioso é, em geral, o poema: Não sou uma rainha dos Céus, Tomás Nunca ergui a cabeça tão alto, disse ele; Pois não passo de uma alegre moça. Que em sua loucura sai para caçar.

Antes de passarmos para o exame duas expressões importantes do amor cortês, devo alertar o leitor sobre uma abstração necessária à minha forma de tratar o tema. Estive falando até aqui como se os homens primeiro se tivessem tornado conscientes de um novo sentimento para depois inventarem um novo tipo de poesia para expressá-lo: como se a poesia de trova fosse necessariamente “sincera” no sentido puramente biográfico da palavra; como se as convenções não assumissem nenhum papel na história literária. Minha justificativa para tal procedimento está no fato de uma investigação ampla desses problemas pertencer mais à teoria literária do que à história de um tipo particular de poesia. Se os assumíssemos, meu texto teria que ser interrompido a cada capítulo por digressões quase que metafísicas. Para nosso propósito, é suficiente destacar que a vida e as letras estavam inextrincavelmente misturadas. Se fosse o sentimento que viesse primeiro, a convenção seria logo despertada para dar expressão a ele; se a convenção, ela ensinaria logo um novo sentimento àqueles que a praticam. Não importa muito qual visão iremos adotar, desde que evitemos a dicotomia fatal de tratar todo poema ou como um documento autobiográfico ou como um “exercício literário” – como se todo poema que valesse a pena ser escrito fosse uma coisa ou outra. Pode-se ter bastante certeza de que a poesia que marcou toda a Europa com uma mudança tão grande de sentimento não era nenhuma “mera” convenção: mas não é menos certo que também não se tratava de uma transcrição de fatos. Tratava-se de poesia. Antes do fechamento do século XII, encontramos a convenção provençal estendendo-se, a partir do seu berço, em duas direções. Uma corrente ­descendo 34 - Alegoria do Amor

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até a Itália, passando pelos poetas do Dolce Stil Nuovo, expande o grande oceano da Divina Comédia; e ali, ao menos, apazigua-se a briga entre o cristianismo e a religião do amor. Outra corrente abriu caminho em direção norte para se fundir com a tradição ovidiana, que já existia ali, produzindo, assim, a poesia francesa do século XII. É a essa poesia que devemos nos voltar agora.

II Chrétien de Troyes é seu maior representante. Seu Lancelote constitui a fina flor da tradição de cortesia na França, tal como se encontrava em sua primeira maturidade. Contudo, esse poeta não é totalmente produto de novas concepções; quando começou a escrever, parece que ele não as aceitava.42 Temos que imaginá-lo como poeta do estilo de Dryden: um daqueles homens de gênio raro, capazes de levantar suas velas à menor brisa de novidade sem pôr a perder sua excelência poética. Foi um dos primeiros a adotar as histórias de Artur. A ele devemos, mais do que a qualquer outro escritor individual, o colorido com que “o tema da Bretanha” chegou até nós. Ele esteve entre os primeiros (do Norte da França) a escolher o amor como tema central de um poema sério. Tal poema foi Erec, escrito antes de ter passado pela influência da fórmula provençal em plena maturidade. E quando essa influência o alcançou, ele não foi apenas o primeiro, mas, quem sabe, o maior expoente dela para os seus compatriotas; e, combinando esse elemento com a lenda arturiana, ele imprimiu indelevelmente na mente dos homens a concepção da corte de Artur, o lar par excellence do amor verdadeiro e nobre. O que era teoria para a sua própria época era prática para os cavaleiros britânicos. Pois é interessante notar que ele situa seu ideal no passado. Para ele “a idade da cavalaria já estava morta”.43 E ela sempre esteve: G. Paris, Le Conte de la Charette (România, xii). Quanto ao grau em que o novo sentimento aparece nos romances de Eneias e Troie e a influência que essas obras podem ter tido sobre Chrétien, ver Gustave Cohen, Chrétien de Troyes et son Oeuvre, 1931, p. 38-73 e passim. 43 Ivain, 17 e 5394. A posição ímpar da corte de Artur como o lar da cortesia tornou-se tão fixa na tradição romântica posterior que ela é registrada como 42

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mas que ninguém a despreze por conta disso. Esses períodos fantasmas que o historiador busca em vão – a Roma e a Grécia nas quais a Idade Média acreditava, o passado britânico de Malory e Spenser, a Idade Média por si, como foi concebida pelo Renascimento romântico – têm um lugar mais importante na história do que aquele que normalmente lhe é atribuído. Uma apreciação da obra de Chrétien como um todo estaria fora de lugar aqui. Admite-se que ele tenha reivindicações sobre a nossa atenção muito além do propósito restrito para o qual eu o cito agora. É a sua sina aparecer constantemente na história da literatura como uma espécie de tendência. Mas ele merecia mais do que isso. E o lado trágico da coisa é que ele mesmo nunca se submeteu totalmente a essa tendência. É muito questionável que ele jamais tenha se deixado deslumbrar pela tradição do adultério romântico. Há protestos em Cligès que pareciam vir do coração.44 Ele nos conta, nas linhas de abertura de Lancelote, que o escreveu a mando da condessa de Champagne,45 e que ela forneceu a ele tanto o tema quanto o seu tratamento. O que isso significa? Provavelmente eu não sou o primeiro leitor que tenha visto nas fantásticas vicissitudes pelas quais Lancelote passa, a mando da rainha, um símbolo do próprio gênio do poeta, amarrado às tarefas indignas por causa dos caprichos de uma mulher mundana. Por mais que isso possa ter acontecido, algo em Chrétien vai além do alcance de todas as mudanças de gosto. Depois de tantos séculos, não há necessidade de nenhum conjunto histórico para dar vida a versos como: “Ah! onde foi tão grande beleza criada? / Deus a forjou com a sua mão despida”,46 nem para apreciar o poder narrativo majestoso logo no início de Lancelote. Quão irresistível tendo ultrapassado aquela de Charlemagne, mesmo pelos partidários da “matéria da França”. Cf. Boiardo, Orlando Innamorato, II, xviii, parágrafos 1 e 2: “Fu gloriosa Bretagna la grande Una stagion”... “Re Carlo in Franza poi tenne gran corte, Ma a quella prima non fu somigliante... Perche tenne ad amor chiuse le porte E sol si dette a le battaglie sante, Non fu di quel valore o quella stima Qual fu quell’altra”. 44 Cligès, 3145-54, 5259-62. (Entretanto, Foerster trata a segunda passagem como uma interpolação.) 45 Lancelot, 26: Matiere et san l’an Done et Livre La Contesse. Ver G. Paris, op. cit., p. 523: ver, ainda, o admirável décimo capítulo de Tristan et Iseut dans l’Oeuvre de Malory, de Vinaver, 1925. 46 Ivain, 1497: “Don fust si granz biautez venue? Ja la fist Deus de sa main nue”.

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é aquele cavaleiro secreto que vai e vem, sem sabermos de onde e para onde, e atrai o leitor a segui-lo, da mesma forma que certamente ele atraiu a rainha e Kay! Com quanta nobreza o poema de Ivain se aproxima do ideal romântico do conto labiríntico em que a ameaça nunca é perdida, e a multiplicidade não faz mais do que ilustrar uma unicidade subjacente. Para o nosso propósito presente, entretanto, pouco espaço podemos dar a esse autor. O que é de interesse para nós é aquela versatilidade que ele demonstra e que nos permite traçar, pela distância entre Erec e Lancelote, a extensão da revolução emocional que estava se desenrolando no seu público. Em Erec – quase com certeza uma obra do início de sua carreira47 – as regras posteriores do amor e da cortesia são violadas a cada passo. Trata-se, de fato, de uma história de amor; mas de um amor dentro do matrimônio. O herói casou com a heroína antes que a ação principal tenha se iniciado. Só isso já representa uma irregularidade; mas o método de cortejo é ainda pior. Erec vê Enide na casa de seu pai e se apaixona por ela. Não há passagens sobre o amor entre os dois: nenhuma humilhação da parte dele, nenhuma crueldade da dela. De fato, não fica claro se eles sequer conversam um com o outro. Quando ele chega à casa da donzela, a moça, a mando do pai, conduz o seu cavalo ao estábulo e o trata com suas próprias mãos. Mais tarde, quando eles estão sentados, o pai e o visitante falam sobre ela na sua presença, como se ela fosse uma criança ou um animal. Erec a pede em casamento e o pai consente.48 Não parece ocorrer ao amante que a vontade da moça pudesse ser um fator relevante em seu acordo. Dá-se a entender que isso a agrada, mas não se espera dela nenhum papel ativo, o que nem sequer lhe seria permitido. A cena toda, por mais verdadeira que possa ser quanto às práticas matrimoniais da época, é estranhamente arcaica, comparada às novas ideias sobre o amor. Somos transportados de volta para um mundo em que as mulheres são meros objetos mudos de presente ou de troca não apenas aos olhos dos seus pais, mas mesmo aos olhos dos seus amantes. Quando passamos para a história principal, essa falta de “cortesia” é ainda mais notável. A história

47 48

Para uma cronologia provável, ver Cohen, op. cit., p. 87. Erec, 450-665.

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da atitude de Eric para com sua esposa será familiar a todos que leram Geraint and Enid, de Tennyson. Chrétien o torna mais verossímil seguindo uma versão em que o enredo não se volta inteiramente para a trama absurda de um solilóquio de surdos49 e no qual o marido tem motivos mais verdadeiros e sutis para a sua raiva do que Tennyson é capaz de lhe dar. Mas isso não altera a brutalidade inerente ao tema. Trata-se de uma história do tipo geral de Créssida – a história da paciência da esposa triunfando sobre a provação imposta pela crueldade irresponsável de um marido – e, como tal, ele não pode, em hipótese alguma, reconciliar-se com o ideal de cortesia, nem mesmo o mais moderado. Mas Erec não limita sua descortesia à provação. Da mesma forma que ele permitiu a Enide que tratasse de seu cavalo antes do casamento deles, assim, em suas viagens ele deixa que ela tome conta do cavalo, enquanto ele mesmo dorme no conforto debaixo do manto que ela tirou de cima de seus ombros para cobri-lo.50 Quando nos voltamos para Lancelote, tudo muda de figura. O Chrétien de Lancelote é primeiro e principalmente o Chrétien que traduziu a Arte de Amar,51 de Ovídio, e que vive na corte da senhora de Champagne – que é, por si, uma autoridade em todas as questões ligadas ao romance de cavalaria. Em contraste com a vida matrimonial de Erec e Enide temos um amor secreto entre Lancelote e Guinevere. A história trata, principalmente, do rapto da rainha para as terras misteriosas de Gorre, em que os nativos podem entrar e sair, mas os estrangeiros só podem entrar;52 e seu resgate daquele lugar por Lancelote. Um dos azares de Chrétien é que as sugestões obscuras e tremendas do mito celta que espreitam no pano de fundo da sua história (pelo menos para o leitor moderno) são ofuscadas pelo amor e pela aventura do primeiro plano. Ele mesmo, sem dúvida, não faz ideia disso. Nós pensamos que a Idade Média usava os fragmentos dispersos da Antiguidade Clássica como brinquedos, sem entendê-los, como quando, por uma degradação intolerável, convertem Virgílio em um O solilóquio passou despercebido a Chrétien, mas o que importa é a conversação que resultou disso (Erec, 2515-83). 50 Erec, 3095-102. 51 Cligès, 2-3. 52 Lancelot, 1919 ss. 49

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mágico. Mas a verdade é que eles lidaram de forma tão grotesca com os fragmentos de um passado bárbaro, de que tão pouco entendiam, que acabaram por destruir muito mais mágica do que inventá-la. Lancelote sai em busca da rainha e, quase que imediatamente, perde o seu cavalo. Sob essas circunstâncias, ele topa com um anão conduzindo uma carroça. À sua pergunta o anão responde – como certamente todos os da sua raça responderiam – “suba e eu o levarei para onde deves ter notícia da rainha”. O cavaleiro vacila por um instante antes de embarcar na carroça da vergonha, que o faria parecer um criminoso comum; mas acaba obedecendo.53 Dessa maneira, ele é conduzido pelas ruelas em que a populaça grita, querendo saber o que ele tinha cometido: se ele tinha roubado ou matado. Ele é levado a um castelo onde lhe mostram uma cama na qual, porém, ele não deveria se deitar, porque era um cavaleiro caído em desgraça. Ele chega à ponte que se cruza para chegar à terra de Gorre – a ponte de espadas, feita de uma única lâmina de aço – e é advertido de que o empreendimento de cruzá-la não era para uma pessoa tão desonrada como ele. “Lembre-se de sua viagem na carroça”, diz o guardador da ponte. Até mesmo os seus amigos dão a entender que ele nunca se livraria de tamanha desgraça.54 Quando consegue cruzar a ponte, machucando as mãos, os joelhos e os pés, finalmente chega à presença da rainha. Mas ela não quer falar com ele. Um velho rei, movido pela piedade, pressiona-a para que fale com ele, à luz dos méritos de seu serviço. A sua resposta, e a cena que segue, merecem ser citadas na íntegra: “Senhor, perdeu seu tempo por nada, Pois de minha parte nada farei, Não obrigada, vê-lo não quero.” Lancelote em sua face mostrou a dor Mas como a amante ele diz, Em virtude de sua modéstia e humildade, “Senhora, é claro que estou a sofrer Por assim me desaprovar Não ouso pedir nada.” 53 54

Ibidem, 364 ss. Ibidem, 2620 ss.

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