As Almas que se Quebram no Chão

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As Almas Que se Quebram no Ch達o


Reimpresso no Brasil, dezembro de 2011 Copyright © 2010 by Karleno Bocarro Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal: 45321 · 04010 970 · São Paulo SP Telefax: (5511) 5572 5363 e@erealizacoes.com.br · www.erealizacoes.com.br Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial Bete Abreu Revisão Nelson Luis Barbosa Marco Gimenes Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É Diagramação e editoração André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Pré-impressão e impressão Prol Editora Gráfica Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.


As Almas Que se Quebram no Ch達o Karleno Bocarro

3a impress達o



Aos meus pais, Marcelo e Maria Gilda



“Spielmann, was streichst Du so sehr, was blickst Du so wild umher? Was springt das Blut, was kreist’s in Wogen? Zerreiß’t Dir ja deinen Bogen. Was brausen Wellen? Daß donnernd sie am Fels zerschellen, daß die Seele hinab zur Hölle klingt!” “Menestrel, por que tocas tão encolerizado, por que olhas em torno tão selvagem? O que ferve o sangue, o que circula em ondas? Por que dilaceras o teu arco? O que ruge as ondas? Que elas, com um estrépito, se quebrem no rochedo, e a alma no chão do Inferno!” (Karl Marx)



Sumário Apresentação por Jessé de Almeida Primo.......................................... 11 Capítulo 1....................................................................................... 17 Capítulo 2....................................................................................... 21 Capítulo 3....................................................................................... 51 Capítulo 4....................................................................................... 63 Capítulo 5....................................................................................... 81 Capítulo 6..................................................................................... 101 Capítulo 7..................................................................................... 117 Capítulo 8..................................................................................... 135 Capítulo 9..................................................................................... 159 Capítulo 10................................................................................... 175 Capítulo 11................................................................................... 209 Capítulo 12................................................................................... 227 Capítulo 13................................................................................... 243 Capítulo 14................................................................................... 247 Capítulo 15................................................................................... 263 Capítulo 16................................................................................... 275 Capítulo 17................................................................................... 283 Capítulo 18................................................................................... 309 Capítulo 19................................................................................... 323 Capítulo 20................................................................................... 333



Apresentação

Eis que a queda do Muro de Berlim propiciou o advento do novo homem: as viúvas do Muro. Muitos, ao se verem diante de tal notícia, perguntaram-se o que fazer, qual o sentido da vida, se valia a pena viver neste mundo em que o mercado dita as regras e que deu um golpe nas utopias. Muitos chegaram a culpar o conluio do saudoso papa João Paulo II com o então igualmente saudoso presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan pela queda desse sonho de concreto que protegia os alemães conscientes, “válidos e inseridos no contexto”, daquelas pessoas insensíveis e alienadas que comiam no McDonald’s e lotavam os cinemas para ver Sylvester Stallone e Schwarzenegger oprimindo os pobres vietnamitas. Poucos anos depois, um diretor canadense exprimiu suas dores contra a invasão dos bárbaros, que são umas criaturas bemsucedidas cuja alta periculosidade reside na crença de que apenas a iniciativa individual e a inventividade podem tornar sua vida melhor e, de modo ainda mais perigoso, desmoralizam a caridade estatal. Como se não bastasse, os velhos comunistas, com o fim das utopias, mergulharam nas drogas e nos prazeres hedonistas, e se contaminaram com Aids, uma doença burguesa. Moral da história: enquanto se acreditava nas utopias, o homem estava no bom caminho, livre de todo o mal. Por outro lado, se caiu o Muro ou o comunismo estatal, ficou o comunismo do coração, aquele que mundo capitalista algum, Apresentação | 11


com todas as suas tentações, pode arrancar. Mesmo que as verdades a seu respeito sejam comprovadas, é tudo sempre uma conspiração dos inimigos do sonho; resta o consolo de pensar – “era a única alternativa”. Qualquer semelhança com um pacto mefistofélico não parece ser mera coincidência... Apesar desse preâmbulo, o romance que ora apresento, As Almas Que se Quebram no Chão, de Karleno Bocarro, título este tirado de um poema de Karl Marx que lhe serve de epígrafe, não pode ser reduzido a mero panfleto de oposição contra os vermelhos. Não é um comentário ao comunismo em si mesmo ou às esquerdas: é de fato uma narrativa com todas as virtudes literárias, em que as ideias são sugeridas não por construções teóricas, mas por acontecimentos. A distribuição desses acontecimentos, a forma como são interrompidos para dar espaço a outros e a forma como retornam nos momentos mais improváveis sem que o leitor se perca revelam uma habilidade narrativa impressionante. Pela leitura deste romance, do qual boa parte da história é ambientada na Alemanha Oriental, principalmente nos meses que sucedem a queda do Muro, conhecemos uma galeria tão imprevista quanto a própria realidade. Marco é uma das personagens mais engraçadas e também mais tristes com que podemos nos deparar: um sujeito infantilizado e oportunista que, tendo ido à Alemanha Oriental para estudar graças ao apoio financeiro do Partidão, só pensa em se dar bem com as mulheres alemãs, ao mesmo tempo em que não se esforça em se ambientar ao mundo europeu e aprender a língua local, além de alimentar um sonho vago de ser escritor e deixar seu nome na história. Compõem também essa galeria, entre outros: Barad, um brasileiro de origem nordestina que, embora empenhado em realizar 12 | As Almas Que se Quebram no Chão


seus projetos e mais integrado ao ambiente europeu, não consegue ver as pessoas senão como personagens de um possível livro; e Dias, um exilado da ditadura que exagera o poder do finado regime militar como um recurso desesperado para mostrar que tem alguma importância, autor de uma curiosa versão do Manifesto Comunista para metalúrgicos do ABC. E é através de Dias, numa situação tão constrangedora quanto inusitada, que a nós e a Marco é introduzida outra personagem marcante: Bocas, que foi estudar na antiga União Soviética e, com o colapso do regime comunista, se muda para Berlim, onde, sem qualquer escrúpulo, passa a explorar a curiosidade que o europeu tem com relação ao exotismo brasileiro e, de modo igualmente inescrupuloso, explora Marco, que não consegue esboçar uma reação firme e adequada. Marco, apesar de ser um oportunista, não tem fibra para tirar vantagens dignas desse nome, ou, nas palavras de Machado de Assis, é “uma alma ardente e frouxa, nascida para desejar, não para vencer, uma espécie de condor, capaz de fitar o sol, mas sem asas para voar até lá”. Podemos perceber algo curioso na natureza da relação de Marco com Bocas, a qual é semelhante à relação dos intelectuais com o comunismo e, pois, uma relação de natureza mefistofélica em que o sujeito, tendo-se comprometido demais com a causa, não consegue encontrar uma saída. E o que é pior, teme encontrá-la e, recusando-se a vê-la, sempre inventa uma justificativa para manter o pacto com o que lhe parece odioso, mas que ao mesmo tempo lhe dá um significado à vida, por mais que testemunhe coisas que contrariem tudo aquilo em que acreditavam suas boas intenções. Não dá para afirmar que o autor tenha pensado nisso, mas é muita coincidência que Marco tenha uma relação tão duradoura com alguém que veio da Rússia, um país que espalhou seus erros para o mundo. Mais curioso ainda, o que mostra a eficácia da Apresentação | 13


narrativa, é que algo dessa natureza seja percebido não na descrição de dois militantes, mas através de uma personagem alienada (diz um velho jargão) e oportunista, e através de Bocas, figura hedonista como Marco, porém com mais sucesso. O livro é a história de projetos que não se concluem, de ambições jamais alcançadas, de pessoas que se tornam títeres das circunstâncias, e que, eternamente deslocadas, não encontram conforto senão em suas pequenas misérias. Pessoas para as quais a solução dos seus problemas é um problema ainda maior, que as anula por completo. Finalmente, a relação entre o desabamento de um projeto utópico (a derrocada do comunismo estatal) e a vida pela metade das personagens, como se um revelasse a natureza do outro, é uma das grandes riquezas deste romance. E a impressionante capacidade de percepção do autor nos põe diante de personagens bastante convincentes: como nos romances de Dostoiévski, rimos com elas, rimos delas e nos sentimos constrangidos por nos vermos um pouco como parte dessa galeria. Jessé de Almeida Primo

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Capítulo 1

Marco interrompeu a leitura dos textos de seu amigo Barad, devolveu-os à pasta azul, onde tinham amarelado por mais de dois anos, procurou um número numa velha agenda; teclou ao telefone, as chamadas soaram com insistência: – Ja, bitte? – uma voz sonolenta atendeu. – Andrea, tenho um texto aqui sobre você. – Marco não se importou em incomodá-la; onze da noite em São Paulo, três da manhã em Berlim. – Marco, bist du? – Não, vamos falar em português – ele respondeu com rispidez. – Tenho aqui uns versos de amor. Na verdade, eu nem lembrava mais destes textos. – Estranho teléfono. Você some, e agora anos depois… – Andrea retrucou com dificuldades, como se à procura de palavras certas em português. – Quis fazer você sentir a minha falta. A propósito, por que não vem passar uns dias no Brasil? Pode se hospedar aqui comigo. – Esquece, por favor. – Ainda estão juntos, e ele agora manda em você. – De quem você fala, afinal; de Barad? Você é uma pessoa ruim. – Ah, Andrea, eu brinquei. É claro que ninguém manda em você. – Marco, é tarde, estamos longe… Aqueles dias doeram bastante, ainda me doem. Capítulo 1 | 17


– Por que sermos tão sérios? Vamos preservar o nosso sangue latino, quente e apaixonado, e que levou você a nos trair. É o que eu acho – insistiu Marco. – Tenho apenas parentes aí no Brasil. Além do mais, não gosto desses termos – observou Andrea. – Se a mim você feriu, imagino a ele, o orgulhoso Barad – comentou Marco, mas procurando manter o controle da conversa. – Marco, não faz eu voltar a ter Gewissensbisse… Como se diz isso em português, remorsos? E espero que ele não tenha tomado conhecimento dos meus erros. Como eu ia adivinhar que ele e o…, como se chamava?..., Mário Bocas não se suportavam. Uma inimizade desde o tempo deles em Moscou. – Agiu precipitadamente. Andrea calou-se. – Alô, Andrea? Disse que você se precipitou. Como se fala precipitação em alemão? – Vou desligar. – Mas para ele, o nosso Barad, um consolo: fazer de suas traições uma inspiração à arte. Não sugeriu isso a ele? Marco olhava para os textos de Barad, sentia a confiança aumentar, os sentimentos adormecerem, ou melhor, livrarem-se da paixão e das saudades dela, Andrea, de Barad e dos outros também. Aqueles anos em Berlim, quando lá morou como estudante, pareciam agora distantes. – Marco, você não compreende? Barad nos deixou – murmurou Andrea, como se fizesse uma confissão para si mesma. – Ele está morto? – Não ria, por favor! – ela pediu, mais irritada do que uma súplica. Ele não riu, mas usara na pergunta um tom descontraído. – Está bem. Mas então foi suicídio – ele reagia agora com indiferença… Não escondia a conveniência da notícia às suas intenções. 18 | As Almas Que se Quebram no Chão


– A polícia supõe um assassinato. – Quando foi isso? – escondia-os sim, quer dizer, os seus propósitos. Andrea não devia perceber que os textos de Barad lhe interessavam imensamente. – No dia do nosso último encontro, lembra? Estávamos aqui no meu apartamento… – Ele é o autor do texto que tenho aqui sobre você – ele interrompeu-a com brusquidão. – Como assim? Então isso quer dizer que estão todos com você. E eu e o pai dele sem saber o paradeiro dos textos… Faz o seguinte, devolva-os para mim. Não, melhor, tenho o endereço do pai… – Não foi proposital. Quero dizer, os textos vieram comigo por uma infeliz casualidade. Além disso, passei dois anos no interior do Brasil, e eles ficaram aqui em São Paulo. Arrumando hoje minhas coisas, dei conta de sua presença. Mas, espera, prefiro remetê-los a você. Ainda mora no bairro Pankow? – Mas vão fazer todo esse percurso? O pai dele mora aí no Brasil, eu estou em Berlim. Naquela mesma noite, Marco redigiu um bilhete – juntaria-o a alguns textos do amigo Barad, os quais enviaria a Andrea. Retendo, porém, a maior parte: “Querida Andrea,” Marco deteve-se alguns segundos, depois continuou: “Como combinamos, seguem os textos de Barad. Gostaria de acrescentar que, embora passados alguns anos, recordo bem nossas conversas aí em Berlim sobre literatura, durante as quais ele salientava – sempre! – suas pretensões literárias. Mas não apenas, e isso é uma opinião pessoal, o problema era que ele se dava demasiada importância. Eu alertava – a ele em todo o caso – que se eu pessoalmente decidisse escrever buscaria primeiro um Capítulo 1 | 19


curso de Criação Literária. O talento não se confirmando, resignar-me-ia à própria incapacidade. Há algo mais sensato?” “‘Oh, não! Nesta eu não entro. Eu sei escrever’, respondia ele chateado, como se a minha sugestão fosse fruto da inveja. Tudo bem, as pessoas não são iguais. E o que acontecia? Ou melhor, aconteceu, não é? Às dificuldades do fazer artístico, do escrever, ele respondia com tais coisas de invocação à loucura, ao suicídio – suicídio como a expressão de liberdade de um Freidenker; um livre-pensador. Adiantou alguma coisa? Não, coitado, respondeu pessimamente, nos deixou para sempre.” “Eu exagero nas minhas conclusões? Leia os textos com atenção. O orgulho de se sentir artista e a insegurança – caso o talento não se confirmasse – latejam neles como uma pulsão de nervos sob a pele de um neurótico. Péssima combinação. Não enlouqueceu, mas… Responda, Andrea, me dando razão. Eu aguardo.” “Quanto a enviá-los ao pai dele, melhor não. A visão de mundo contida nos textos é impossível a um homem sofrido. Barad me contou a história de sua família – não é das mais fáceis. Ou você ignora isso?” “Espero que ainda leia bem o português – escrevo da agência central dos Correios. Muito barulho. Falta-me concentração para escrever em alemão. Quaisquer dúvidas, segue endereço; o telefone é do banco onde trabalho, um abraço, Marco Dilthey.”

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Capítulo 2

A história dos textos de Barad, como Marco chegou a eles, começa num dia de agosto de 1990, em Berlim – nos encontrávamos no pátio da Universidade Humboldt, eu e os dois. Éramos poucos – os brasileiros nessa Universidade – e alunos de Ciências Humanas, cujos cursos aconteciam no prédio central. O refeitório também aí, de modo que sempre nos víamos – e infelizmente, com o tempo, aumentaram os motivos para equívocos. Mas se foi aquela convivência demasiado estreita – a necessidade de falar o idioma pátrio, de trocar impressões com facilidade, até de se ajudar mutuamente – ou as dificuldades por quais passava o lado oriental da Alemanha, as adaptações necessárias ao novo sistema político e econômico, as mudanças na própria Universidade, disciplinas canceladas, outras recentes exigidas, as reformas e construções por todos os lados… Se fomos nós, ou aquele momento da história, os culpados pela morte de Barad e pelo fracasso de todos nós sem exceção – me refiro aqui como diplomados –, quem foi ou qual a causa, não julgarei. O veredicto pertence ao leitor. Por quê? Primeiro, eu não pretendo mentir, escondendo atos alheios ou alterando o desenrolar dos acontecimentos. Segundo, nem me desculpar – embora meus irmãos, a fim de tranquilizar-me, se apressassem em cuidar dos negócios da família, usei o falecimento, na época, de meu pai para justificar o retorno ao Brasil. Farei o melhor sendo fiel aos fatos. É o que mostrarei. Capítulo 2 | 21


– Você morou muito tempo na Rússia, não morou? São eles lá parecidos conosco, os latinos, não são? – era o novato Marco colocando perguntas a Barad, este mais de um ano de Humboldt. Marco era um moço de aspecto cansado, olhos escuros envoltos de rugas, como se terminasse de despertar de uma noite bisonha. – A alma eslava é realmente próxima da nossa – explicava Barad a Marco – e distante da germânica ou anglo-saxônica. Mas os russos têm orgulho de sua história, o que nos falta por completo. Ao mesmo tempo, há neles o receio permanente em não serem respeitados pelos ocidentais. A revolta de Dostoiévski contra a arrogância dos alemães é um exemplo. Quase um complexo de inferioridade. Algo parecido com nossos sentimentos em relação aos Estados Unidos, a inveja e o rancor. Por outro lado, a violência do Estado contra o indivíduo é inerente à sociedade russa. Entre nós, este é indolente e inchado – respondeu Barad a Marco. – E as russas? São bonitas, mas engordam facilmente, não é? – aqui Marco traía aquele que viria a ser um de seus principais interesses durante a sua estada na Alemanha, pois a pergunta era um claro desvio do tema da conversa. – Quem tem a vaidade de nossas mulheres? – Barad era paciente. – E a Alemanha? Gosta daqui? – Marco se revelava preocupado. Teria dificuldades de adaptação? – Não moraria a vida toda… Mas para estudar, são poucos os lugares tão apropriados. Este ponto de vista poderia ser, a tipos indolentes, uma amostra de arrogância. Mas Barad era aquele, entre todos nós, que mais se dedicava aos estudos. O único capaz de concluí-los se não viesse a morrer brutalmente. – Por isso deixou Moscou? – procurava o outro uma chave ao fracasso que ameaçava a todos nós? 22 | As Almas Que se Quebram no Chão


– Um amigo meu, russo, me dizia que é preciso muita falta de sorte para se nascer na Rússia… Eu respondia, você não sabe o que é o Brasil! Mas as coisas estavam e estão bem complicadas por lá. Acompanhar as mudanças no Leste? Que seja em Berlim – aqui Barad demonstrava segurança, algo sempre admirável nele. Ao menos enquanto durou nossa convivência. – E as alemãs, também bonitas, não? Mas por que você ri, Barad? E não haveria motivo, eu me perguntei. Os assuntos sérios tocados por Marco pareciam disfarces ao que realmente o atraía. Barad era um daqueles nordestinos de cabelos crespos, mas de cor louro-alaranjada, a pele queimada, agora empalidecida depois de tantos anos na Europa; falava o melhor alemão entre nós, embora não conseguisse desfazer-se do sotaque de sua gente. Altura mediana, a confiança nele crescia durante aqueles anos de mudança. Como explicava ao Marco, vinha de uma Rússia em dificuldades, escapando da anarquia, do naufrágio de um sistema até então sólido, para uma Berlim (Oriental), a qual, apesar também de todos os problemas, encontrava-se amparada pela rica Alemanha Ocidental. O que poderia torná-lo mais seguro? Entre nós era o de maior fé em si mesmo. – Não sei. Achei graça da pergunta. Aqui no pátio… Olha, são muitas para avaliar – e Barad mostrou-lhe todas as alemãs ali com seu esplendor. – Eu quis dizer, não superficialmente, entende? – Marco não se envergonhava daqueles interesses? Não que fôssemos os puritanos, eu e Barad. Mas era um tipo de conversa que permanecia, quando muito, às margens dos assuntos que nos interessavam. Ele tinha um namoro firme com uma garota alemã chamada Andrea; eu mesmo não achava de bom tom falar com ele de mulheres. – Tenho pouca experiência – uma boa desculpa deu Barad. – Nunca ficou com nenhuma? – Marco não desistiria fácil. Capítulo 2 | 23


– Ah, gosto de uma… – agora chega, pensei. Com esta ele se toca. – Ela é alemã? – e você um impertinente, eu quase intervim. – Você não vai querer saber detalhes, vai? – Eu faço essas perguntas todas porque acho as alemãs difíceis de conhecer. – Quanto tempo está aqui? – eu tive que perguntar. – Em Berlim? Alguns meses, e passei um ano em Leipzig a fim de aprender o idioma. Mas também, admito, não tenho tido muito tempo. – Fazer uma graduação na Alemanha não é fácil, eu sei. E você escolheu logo Filosofia, não é isso? – concedi, mas daquele jeito, com ironia. Pois que se ele escolheu Filosofia devia cuidar mais das coisas do intelecto. – É a ideia inicial, ou posso concluir o curso no Brasil. Mas não vou morrer se não conseguir. – Se quiser posso te apresentar alguns amigos. No curso de Língua Portuguesa há muitos alemães, e alemãs, que gostariam de fazer amizade com brasileiros – propus. – Ah, gostaria muito – e largou um vasto sorriso. – Mas me dá o seu número de telefone, se houver alguma coisa neste final de semana… Um encontro de amigos, apresento você a eles – Barad dava a sua contribuição para integrá-lo à cidade. – Vou ficar esperando – era a resposta, ainda que empolgada, de uma pessoa solitária. Barad sorriu: – Farei isso. Não ligou, mas na semana seguinte nos reencontramos: – Terminamos ficando em casa, eu e Andrea. Fez muito frio – justificou-se Barad. – Ah, tranquilo, não precisa ser logo – e a queixa de Marco estampava em seu rosto a decepção. 24 | As Almas Que se Quebram no Chão


– Tem uma apresentação hoje do Tio Vânia de Tchekhov no Deutsches Theater, não quer vir? Vamos eu e a Andrea. – Não há problema? Eles foram. Depois ouvi suas impressões, separadamente. Ao fim da peça, Marco pôde ver melhor a Andrea, a namorada de Barad; era magra, cabelos castanhos, olhos cinza de um brilho vivo, um olhar intenso, mas arredio, o nariz afilado, a boca de lábios finos que pareciam prestes a dizer um segredo; sorridente, bastante bonita, achou ele. – Um vasto território, a Rússia – comentou Marco; tinha de fazer algum comentário. – Mas você gostou? – perguntou Andrea num tom simpático. Ela mesma fazia Francês e Português na nossa Humboldt. – Incomoda o seu conformismo final, chega a ser aborrecido – Marco encontrou a melhor conclusão, achou ele. – Adoro o ator que faz o tio Vânia, Christian Grashof. Tenho uma amiga que o conhece. É um tipo exzentrisch, poucos amigos; diz o que pensa pelos personagens que interpreta. Hoje ele terminou o dia tentando vencer o acabrunhamento da decepção amorosa e da impossibilidade, em nossas vidas, depois de certo tempo, de se buscar novos caminhos. Ela se expressa em português, salvo alguns deslizes, muito bem, pensou Marco. Depois seguiram para um café na rua Oranienburgo. – Não tenho paciência para peças como aquelas que se representam na Volksbühne – dizia Barad as suas impressões dos teatros de Berlim. – Na última a que assisti, Ernst Jünger, o cenário formava um paredão com besouros imensos. Então um sujeito pequeno e efeminado, vestido de soldado raso, arranca os besouros por meio de uma lança com um gancho Capítulo 2 | 25


na ponta, rodopia com eles… Uma referência à paixão de Jünger pela entomologia. Em seguida, entra um general nazista enorme, e entre besouros suspende o recruta à altura do rosto, faz sexo oral nele. Mas o pênis do recruta não reage, e o general, a boca ávida na carne mole, se esforçando... Ufa, alívio ao autor da peça e ao diretor, finalmente a ereção acontece. Uma peça genial! Aplausos entusiasmados. – Crítica ao militarismo de Jünger – Andrea sorria. – É criatividade rasa, nem sombras ao entendimento instiga. Prefiro peças com conteúdo e discussão sobre a alma humana… Como Tio Vânia. Isso serve aos meus textos. As vanguardas buscam a transgressão pela transgressão, é esse o resultado da chamada arte pela arte, mas provocam apenas fadiga. Eu fico com Tchekhov, Strindberg, Hofmannsthal… – Você escreve? – Colho impressões da vida berlinense em textos esparsos, esperando um dia emendá-los numa trama. Antes, preciso terminar os estudos, obter o meu Magister. – O que você achou dele? – Barad perguntou a Andrea após se despedirem do amigo Marco. – Ele parece desconfiado! Mas talvez normal isso, não? Recém-chegado, inseguro com o idioma, à procura de se encontrar, conhecer as pessoas… – Quer uma namorada alemã! – Ele é bonito. Não terá dificuldades! – Mal se dirigiu a você. – Você não o deixou à vontade com seus conhecimentos… E a festa da Karin amanhã? Ele bem pode vir com a gente. “Nesta foto, Ísis amamenta Hórus, a imagem da mãe divina com o filho concebido por um deus. A antecipação do modelo da 26 | As Almas Que se Quebram no Chão


Madona e do menino Jesus. Nesta outra, o trono de Amon-Rá, o faraó. Esculpido em madeira… Vejam o detalhe. Uma mãe com uma criança no colo. É Ísis novamente.” Depois de uma hora, Karin encerrou o seminário sobre a cultura egípcia. Os convidados em roda no chão, Marco percebeu-se, além de Barad, como o único estrangeiro; Barad e Andrea, na linha adiante, conversavam com uma garota ruiva. Marco não sabia para onde olhar, seus vizinhos, virados para seus vizinhos, davamlhe as costas, mas se podia fumar. Luz apagada, muito incenso e velas acesos, uma garota bateu palmas, pediu a atenção de todos: – Meu nome é Manuela, mas agora sou Adilah, aquela que faz as apresentações e reparte justamente. Chamarei a Karin, agora Aasiyah, uma princesa de poderosa dinastia, e desta vez para a Dança do Ventre –, fez-se silêncio; uma música dum taka-tá, dum taka-tá, os snujs, címbalos de metal, subiu de um CD player; aparece Karin Aasiyah, Marco a achou muito gorda, não sabia se era permitido aquele peso todo na tal dança. Ouviu de um alemão, ao lado, muito sério e entendedor, que, apesar dos avanços científicos, ainda não era dada ao gênero masculino a capacidade de gerar vida, e nem de amamentar. Por essa razão é vedada aos homens a Dança do Ventre. Aasiyah mexia de um lado, de outro, as banhas sinuosas se contorcendo ao redor de sua cintura, um pé em ponta apoiado, o outro curvado, enquanto rodopiava no círculo central, lenços coloridos passando pelo rostos de todos numa cena dita sedutora. Marco sentiu-se constrangido, mas os presentes gostaram imensamente e aplaudiram muito, tinha sido uma longa dança de passos e inclinações – os snujs manejados pela esforçada Karin traziam vibrações positivas e secavam os maus fluidos do ambiente. O véu do rosto caiu, Marco ouviu mais explicações, significava abrir os olhos, despertar a consciência velada da mulher, e que esta tinha Capítulo 2 | 27


muito que nos dizer. Marco achou Aasiyah sem expressividade, um rosto impassível cumprindo uma obrigação, embora aquele envolvimento todo com a cultura egípcia tivesse certamente um motivo de coração. Finalmente a hora de comer, uma esteira foi estendida por Adilah e Aasiyah; o pão serviria de faca e garfo, como se faz no Cairo e em Bagdá, Damasco e Ryad. Mas, e precisariam de ferramentas? Aasiyah era vegetariana, como quase todos ali, ao menos naquela noite sem estrelas em Berlim. Lentilhas, tâmaras, romãs, damascos, sementes extraídas do cedro do Líbano… Carneiros e cabras… Não, não! A sabedoria agora é ser vegetariano. A miserabilidade das porções pequenas, como amostras gratuitas de algum mercado oriental. Marco sentia fome, e se constrangia à toa – todos se mostravam muitíssimo satisfeitos com os bocadinhos. Ele podia fumar, e havia cerveja, embora à temperatura ambiente. Aasiyah, a anfitriã, bateu palmas e esclareceu: na próxima vez teriam cerveja caseira, ela mesma a fermentaria sob uma receita milenar de mais de três mil anos, dos tempos de Ramsés, o IV. Marco prometia a si mesmo jamais voltar ali, nem à recompensa de tal raridade. E se foi sem conhecer ninguém, pois não havia entre eles interessados na grande nação do sul da América. Chegou em casa levemente embriagado, mas vomitou um bocado. A ressaca no outro dia… parecia ter gatos brigando dentro de sua cabeça. Passou o dia de cama, não foi à Universidade. – Posso ser sincero, não vai se chatear. Achei a festa chata – comentava ele conosco. – Vou te levar a uma festa angolana – prometeu Barad. – E as alemãs que vão aí gostam da África. Há danças e comidas de verdade. – É como é no Brasil. Parecida. Mas não há muito brasileiros aqui no lado leste, não é? Fazer uma festa. 28 | As Almas Que se Quebram no Chão


– Se você for a Berlim Ocidental vai encontrar muitos. – Mas não quero conhecer aventureiros, prostitutas, capoeiristas e tocadores de pandeiro… São só problemas!, foi o que me disseram. Estou prevenido. Mas veja só, a Andrea não tem nenhuma amiga que a gente possa conhecer? – Não gostou da Karin? – Ah, naquele tipo de festa é difícil fazer amizade, cada um na sua, no seu vizinho, não é? – Puxa conversa – eu disse. Ele me irritava com aquele seu jeito acomodado, como se tivéssemos de portá-lo nos braços. Devo dar aulas de como se fazer amizade?, eu quase emendei. – Falar sobre o quê? – Do que você faz, de Filosofia, Marx, do que gosta de ler..., isso sempre funciona. As mulheres aqui dão importância à cultura – falei, mas segurando-me com dificuldades na paciência. – Realmente, confesso – disse Barad –, estávamos em meio a orientalistas, o assunto ali era aquele: islamismo, dança do ventre… – E numa festa angolana? – Nessa pouco se conversa – respondeu Barad sorrindo. Ele simpatizava com Marco. Na verdade, um interesse geral por pessoas, como se fossem matéria para seus textos. Porque ele, Barad, não era de falar mal dos outros. Raramente eu arrancavalhe uma observação mordaz acerca de alguém. Pois como explicar ele aceitar Marco e aquela aparente ingenuidade, a qual tanto me irritava? Era capaz de responder: ela, a ingenuidade, pode bem ser fonte de preciosas informações – é só esperar que o tempo as revele. Preferi não me intrometer, mas por uma razão: passar-me por egoísta. Ou sim, pois não tinha a menor intenção de adotar um Marco, ou fulano igualmente complicado, como protegido meu. Bastavam as minhas ocupações diárias. Capítulo 2 | 29


“Angola situa-se na costa ocidental da África austral” – Marco foi à Staatsbibliothek ao lado da Universidade ler sobre o país irmão, fez questão de nos dizer. Confiava bastante de que levaria da festa a primeira paixão – precisava se preparar bem para encantar as alemãs, e leu as informações: “A leste, em direção a HasarEnon, a fronteira se traça com o ex-Zaire; abaixo leste, ao oriente de Cades-Barne, a Zâmbia; depois, ao sul, em direção à subida dos Escorpiões, passando por Sin, se chega à Namíbia, e norte, às suas fronteiras terrestres, localiza-se a província de Cabinda – incrustada no velho Brazzaville, ou Congo Sedada. De Cabinda a fronteira se volta em direção à Torrente Salgada do Grande Mar; este limite serve de fronteira ao Ocidente.” – Perfeito. Meus cumprimentos e boa sorte – disse a ele. A festa seria na casa de um cabindês, Dembi Roberto. “Mas a costa é banhada pelo Atlântico, o Grande Mar. O ponto mais alto do país é o Monte Moco, província de Huambo”, Marco declamava com insistência o texto sobre Angola nos dias que antecederam à festa. E chegando lá logo observou: muita comida. Feijão de óleo de palma, calulu de peixe, funje de milho, muamba de galinha, mufete de cacusso – cacusso é um peixe da família dos pércidas, consumido seco. A língua oficial da festa era o português; Marco ouvia também muitos dialetos. Mas, com seus convidados, os simpáticos africanos falavam a língua de Pessoa. Muito bom e farto. Aqueles sim sabiam viver, nada de mixurucagem, embrião de trigo e cascas de cedro. Se Aasiyan estivesse ali, puxariam dela o véu e aquela cara inerte de consciência feminista, com a qual remexia os quadris, como se estivesse apresentado um seminário sobre o córtex órbito-frontal medial e o córtex motor, pois todos dançavam, e as mulheres? Especialmente as alemães… Todos as tiravam para dançar em passos para lá de sensuais; havia trenzinhos, acochatadas e esfregas. Marco 30 | As Almas Que se Quebram no Chão


levou tudo na lambada, estava na moda, e embora péssimo bailarino, sentiu-se muitíssimo bem e integrado. Adaptou-a ao funana, ao kuduro e à coladeira – danças angolanas. Não parou um minuto. Se não dançava, ria dos sotaques, e as diferenças culturais? Mas tão próximas, e as comparava com a dos irmãos de África. Chamou-lhe a atenção as inúmeras belas europeias com os negros; estes calçados em ternos, sapatos escuros e meias brancas, lenços nos bolsos, cordões de ouro no peito e ouro nos dentes… Por que não com ele? Lá pelas tantas, a cabeça leve de embriaguez, também cigarros de haxixe foram acesos e rolaram livremente por dedos e bocas, ele se meteu a apresentações, se dizia brasileiro, mestrando, professor universitário, explicou às alemãs que a sua língua era a mesma oficial de Angola. Ich weiss, ich weiss! – elas sabiam, é claro, e sorriam de sua insistência, como estivesse a falar de gelo a esquimós. Algumas estudavam o kikongo, o que é isso? Um dialeto. Ah, desculpe! Para não ficar atrás discorreu sobre Nietzsche e a morte de Deus. Teve momentos de conversa com Andrea, se sentia garboso, a fez rir com seus passos de lambada. Às tantas da madrugada, galanteou-se para uma alemã, falou um bocado sobre tudo, ela parecia corresponder. Não confundiu ele atenção simpática com atração física? Forçou um beijo; sentiu foi uma mãozada nas costas, era o namorado imenso da cidadã, e o homem gritou: – Este pula brasileiro anda aqui a bumbar feio para minha gaja, querendo dar uma queca, ainda que acompanhasse o ritmo e a mainada. Foi jogado pelas escadas por uma trupe de indignados africanos; não viu Andrea e Barad, já tinham ido embora. Ainda bem, a vergonha menor, não conhecia mesmo os outros. Embora com dor nas costelas, contou com a sorte: Dembi Roberto, da gloriosa e rica província de Cabinda, livrou-o de uma boa sova. Capítulo 2 | 31



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