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Reimpresso no Brasil, novembro de 2014 Copyright © 2010 by Karleno Bocarro Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal: 45321 · 04010 970 · São Paulo SP Telefax: (5511) 5572 5363 e@erealizacoes.com.br · www.erealizacoes.com.br Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial Sonnini Ruiz Revisão William C. Cruz Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É Diagramação e editoração André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Pré-impressão e impressão Digital Page Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

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As Almas Que se Quebram no Chão Karleno Bocarro

2a edição revista e ampliada pelo autor

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Aos meus pais, Marcelo (i.m.) e Maria Gilda

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“Spielmann, was streichst Du so sehr, was blickst Du so wild umher? Was springt das Blut, was kreist’s in Wogen? Zerreiß’t Dir ja deinen Bogen. Was brausen Wellen? Daß donnernd sie am Fels zerschellen, daß die Seele hinab zur Hölle klingt! ” “Menestrel, por que tocas tão encolerizado, por que olhas em torno tão selvagem? O que ferve o sangue, o que circula em ondas? Por que dilaceras o teu arco? O que ruge as ondas? Que elas, com um estrépito, se quebrem no rochedo, e a alma no chão do Inferno!” (Karl Marx)

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Sumário

Nota à segunda edição.................................................................................... 11 Apresentação por Jessé de Almeida Primo......................................................... 13

Capítulo 1...................................................................................................... 19 Capítulo 2...................................................................................................... 23 Capítulo 3...................................................................................................... 46 Capítulo 4...................................................................................................... 55 Capítulo 5...................................................................................................... 72 Capítulo 6...................................................................................................... 90 Capítulo 7.................................................................................................... 102 Capítulo 8.................................................................................................... 116 Capítulo 9.................................................................................................... 138 Capítulo 10.................................................................................................. 150 Capítulo 11.................................................................................................. 188 Capítulo 12.................................................................................................. 207 Capítulo 13.................................................................................................. 222 Capítulo 14.................................................................................................. 227 Capítulo 15.................................................................................................. 243 Capítulo 16.................................................................................................. 258 Capítulo 17.................................................................................................. 271 Capítulo 18.................................................................................................. 306 Capítulo 19.................................................................................................. 317 Capítulo 20.................................................................................................. 330

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Nota à segunda edição

Já decorreram três anos desde minha estreia como escritor com a publicação destas minhas Almas. A surpreendente recepção do livro, que levou a mais quatro impressões, muito me alegrou. No entanto, durante esse tempo, a par de novos desafios – escrever um segundo romance, O Advento (no prelo), traduzir a obra do romancista teuto-romeno Eginald Schlattner, Luvas Vermelhas –, eu sempre me via, talvez movido por um espírito demasiado exigente, relendo algumas de suas páginas. Entendi, um tanto insatisfeito, que devia ter ido mais longe: cuidado melhor do estilo, da composição, da gramática, da grafia de algumas palavras em alemão, de um ou dois parágrafos, que saíram truncados... Em relação à trama, a impressão inicial, modesta!, de suas virtudes permanecia, mas se eu tivesse descido com mais coragem aos diálogos, às descrições mais detalhadas do tempo e dos lugares – Berlim, Moscou, Leipzig, Praga, São Paulo –, onde ocorre o drama de Marco e Barad, os heróis da história, alcançaria um grau de excelência superior... Suas personagens, que tanto interesse despertaram no leitores, embora já tivessem uma boa compleição, carne e ossos firmes, precisavam também, a fim de continuar a causar uma impressão duradoura, de uma injeção de sangue mais forte: nutritivo e viscoso. No início do ano corrente, esgotada a quarta impressão, e com mais tempo disponível, chegou-me finalmente o dia de poder sanar as falhas apontadas acima. À medida que me empenhava à tarefa, impulsionado por um senso crítico amadurecido, por conseguinte, mais difícil de agradar, percebia que o melhor a fazer era reescrevê-lo. Após nove meses de árduo e prazeroso trabalho, concluí a tarefa, cujo resultado, espero, esteja a contento. Meus esforços foram de tornar a trama mais complexa, as personagens principais, embora as mesmas, mais vivas e incômodas, isto é, instigantes ao leitor, e o estilo mais sóbrio e clássico. Espero que esta edição também tenha uma acolhida favorável do público leitor. Agradeço aos meus amigos fraternos Elpídio Mário Dantas Fonseca, Jessé de Almeida Primo e William Cruz a inestimável ajuda de incumbir-se da revisão do texto, de apontar sugestões e criticar minhas fraquezas literárias. São Paulo, 01 de outubro de 2013 Karleno Bocarro

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Apresentação

Eis que a queda do Muro de Berlim propiciou o advento do novo homem: as viúvas do Muro. Muitos, ao se verem diante de tal notícia, perguntaram-se o que fazer, qual o sentido da vida, se valia a pena viver neste mundo em que o mercado dita as regras e deu um golpe nas utopias. Muitos chegaram a culpar o conluio do saudoso papa João Paulo II com o então igualmente saudoso presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan pela queda desse sonho de concreto que protegia os alemães conscientes, “válidos e inseridos no contexto”, daquelas pessoas insensíveis e alienadas que comiam no McDonald’s e lotavam os cinemas para ver Sylvester Stallone e Schwarzenegger oprimindo os pobres vietnamitas. Poucos anos depois, um diretor canadense exprimiu suas dores contra a invasão dos bárbaros, que são umas criaturas bem-sucedidas cuja alta periculosidade reside na crença de que apenas a iniciativa individual e a inventividade podem tornar sua vida melhor e, de modo ainda mais perigoso, desmoralizam a caridade estatal. Como se não bastasse, os velhos comunistas, com o fim das utopias, mergulharam nas drogas e nos prazeres hedonistas, e se contaminaram com Aids, uma doença burguesa. Moral da história: enquanto acreditava nas utopias, o homem estava no bom caminho, livre de todo o mal. Por outro lado, se caiu o Muro ou o comunismo estatal, ficou o comunismo do coração, aquele que mundo capitalista algum, com todas as suas tentações, pode arrancar. Mesmo que as verdades a seu respeito sejam comprovadas, é tudo sempre uma conspiração dos inimigos do sonho; resta o consolo de pensar – “era a única alternativa”. Qualquer semelhança com um pacto mefistofélico não parece ser mera coincidência... Apesar desse preâmbulo, o romance que ora apresento, As Almas que se Quebram no Chão, de Karleno Bocarro, título este tirado de um poema de Karl Marx que lhe serve de epígrafe, não pode ser reduzido a mero panfleto de oposição contra os vermelhos. Não é um comentário ao comunismo em si mesmo ou às esquerdas: é de fato uma narrativa com todas as virtudes

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literárias, em que as ideias são sugeridas não por construções teóricas, mas por acontecimentos. A distribuição desses acontecimentos, a forma como são interrompidos para dar espaço a outros e a forma como retornam nos momentos mais improváveis sem que o leitor se perca revelam uma habilidade narrativa impressionante. Pela leitura deste romance, do qual boa parte da história é ambientada na Alemanha Oriental, principalmente nos meses que sucedem a queda do Muro, conhecemos uma galeria tão imprevista quanto a própria realidade. Marco é uma das personagens mais engraçadas e também mais tristes com que podemos nos deparar: um sujeito infantilizado e oportunista que, tendo ido à Alemanha Oriental para estudar graças ao apoio financeiro do Partidão, só pensa em se dar bem com as mulheres alemãs, ao mesmo tempo que não se esforça em se ambientar ao mundo europeu e aprender a língua local, além de alimentar um sonho vago de ser escritor e deixar seu nome na história. Compõem também essa galeria, entre outros: Barad, um brasileiro de origem nordestina que, embora empenhado em realizar seus projetos e mais integrado ao ambiente europeu, não consegue ver as pessoas senão como personagens de um possível livro; e Dias, um exilado da ditadura que exagera o poder do finado regime militar como um recurso desesperado para mostrar que tem alguma importância, autor de uma curiosa versão do Manifesto Comunista para metalúrgicos do ABC. E é através de Dias, numa situação tão constrangedora quanto inusitada, que a nós e a Marco é introduzida outra personagem marcante: Bocas, que foi estudar na antiga União Soviética e, com o colapso do regime comunista, se muda para Berlim, onde, sem nenhum escrúpulo, passa a explorar a curiosidade que o europeu tem com relação ao exotismo brasileiro e, de modo igualmente inescrupuloso, explora Marco, que não consegue esboçar uma reação firme e adequada. Marco, apesar de ser um oportunista, não tem fibra para tirar vantagens dignas desse nome, ou, nas palavras de Machado de Assis, é “uma alma ardente e frouxa, nascida para desejar, não para vencer, uma espécie de condor, capaz de fitar o sol, mas sem asas para voar até lá”. Podemos perceber algo curioso na natureza da relação de Marco com Bocas, a qual é semelhante à relação dos intelectuais com o comunismo e, pois, uma relação de natureza mefistofélica em que o sujeito, tendo-se comprometido demais com a causa, não consegue encontrar uma saída. E o que é pior, teme encontrá-la e, recusando-se a vê-la, sempre inventa uma justificativa para manter o pacto com o que lhe parece odioso, mas que ao mesmo tempo lhe dá um significado à vida, por mais que testemunhe coisas que contrariem tudo aquilo em que acreditavam suas boas intenções. 1 4 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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Não dá para afirmar que o autor tenha pensado nisso, mas é muita coincidência que Marco tenha uma relação tão duradoura com alguém que veio da Rússia, um país que espalhou seus erros para o mundo. Mais curioso ainda, o que mostra a eficácia da narrativa, é algo dessa natureza ser percebido não na descrição de dois militantes, mas através de uma personagem alienada (diz um velho jargão) e oportunista, e através de Bocas, figura hedonista como Marco, porém com mais sucesso. O livro é a história de projetos que não se concluem, de ambições jamais alcançadas, de pessoas que se tornam títeres das circunstâncias, e que, eternamente deslocadas, não encontram conforto senão em suas pequenas misérias. Pessoas para as quais a solução dos seus problemas é um problema ainda maior, que as anula por completo. Finalmente, a relação entre o desabamento de um projeto utópico (a derrocada do comunismo estatal) e a vida pela metade das personagens, como se um revelasse a natureza do outro, é uma das grandes riquezas deste romance. E a impressionante capacidade de percepção do autor nos põe diante de personagens bastante convincentes: como nos romances de Dostoiévski, rimos com elas, rimos delas e nos sentimos constrangidos por nos vermos um pouco como parte dessa galeria. Jessé de Almeida Primo Crítico literário e colunista da Revista Dicta & Contradicta

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Marco interrompeu a leitura dos textos de Barad, um colega de sua época de universidade, e de maneira bastante cuidadosa, como se cumprisse um dever sagrado, ou o próprio Barad estivesse ali a observá-lo, devolveu-os à pasta encardenada em azul-marinho, na qual os guardava havia mais de três anos. Então tirou, do fundo de um baú, uma agenda igualmente velha. Abriu-a na letra A e procurou um número de telefone. Depois de alguns minutos, alcançou o telefone, que estava na cabeceira da cama, e discou os números. Enquanto escutava as chamadas soarem insistentemente, apertava com os dedos da mão esquerda os olhos e franzia a testa, como fazem os que aguardam impaciente uma notícia importante. – Ja, bitte? – uma voz sonolenta atendeu. – Andrea, tenho um texto aqui sobre você – disse Marco, ignorando a hora inoportuna daquele telefonema: onze da noite em São Paulo, onde estava, três da manhã em Berlim, o destino da ligação. – Marco, bist du? – Não, vamos falar em português – respondeu ele, com rispidez. – Acabei de descobrir aqui comigo, entre outros textos, alguns poemas de amor e perdição. Na verdade, eu tinha me esquecido deles completamente. – Estranho teléfono. Você some, e agora anos depois... – retrucou Andrea, com dificuldades, como se procurasse as palavras certas da língua portuguesa. – Eu quis que você sentisse a minha falta. Não acredita nisso? Ah, por que então não vem passar uns dias no Brasil? Você pode se hospedar aqui comigo. – Esquece, por favor! – disse Andrea, severamente. – Sei, ainda estão juntos, e ele agora manda em você. – De quem você fala, afinal? De Barad? Você é uma pessoa ruim, Marco. – Ah, Andrea, eu estou brincando. É claro que ninguém manda em você – disse Marco, em tom desinteressado, quase irônico. – Marco, é tarde, nós estamos distantes... Aqueles dias me doeram bastante, ainda me doem. – Por que sermos tão sérios? De uma coisa não devemos esquecer: o nosso sangue latino é quente e apaixonado. É claro que ele corre menos nas tuas veias, Capít u lo 1 | 1 9

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mas em quantidade suficiente para ter traído a todos nós. É o que eu acho – ­insistiu Marco. – Tenho parentes aí no Brasil... Além do mais, não gosto desses termos – observou Andrea. – Ora, Andrea, você machucou meus sentimentos. E os de Barad? Ele já te perdoou? Orgulhoso como ele é... Mas eu sei o quanto você é sedutora! Deve tê-lo convencido facilmente de que é uma pessoa fiel, não é mesmo? – comentou Marco ligeiramente irritado, procurando, contudo, manter a conversa sob controle. – Marco, não me faça voltar a ter Gewissensbisse... Como se diz isso em português, remorsos? E espero que ele não tenha tomado conhecimento de meus erros. Como eu ia adivinhar que ele e o... como se chamava mesmo?... Mário Bocas não se toleravam. – Agiu precipitadamente – ele disse. Andrea calou-se. – Alô, Andrea? Eu disse que você se precipitou. Como se fala precipitação em alemão? – Vou desligar. – Mas para ele, o nosso Barad, um consolo: deve ter feito de tuas traições uma inspiração à arte. Não sugeriu isso a ele? Marco olhava para a pasta azul com os textos de Barad. Sentia a confiança aumentar, os sentimentos adormecerem... Uma sensação boa! Via-se livre da paixão que um dia lhe dedicara, e da relação ambígua, uma mistura de inveja e admiração, que devotara a Barad... Aqueles anos em Berlim, quando lá esteve como estudante, pareciam-lhe agora distantes, como se saíssem de sua vida para cair finalmente em esquecimento. – Marco, você não compreende... Barad nos deixou – murmurou Andrea, como se acabasse de fazer uma confissão amargurada. – Ele está morto? – Não ria, por favor! – ela pediu, mais irritada do que súplice. Ele não riu, mas usara, na pergunta, um tom descontraído. – Está bem. Mas então foi suicídio – ele disse secamente, como se constatasse um fato esperado. Na verdade, reagia com indiferença porque a notícia era conveniente às suas intenções. – A polícia supôs um assassinato. Mas nunca esclareceu o caso... – Quando foi isso? – No dia do nosso último encontro, lembra? Estávamos aqui no meu apartamento... 2 0 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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– Ele é o autor de uns textos que estão aqui comigo – interrompeu-a com brusquidão. – Como assim? Então estão com você? E eu e o pai dele sem saber o paradeiro dos textos... Faz o seguinte, devolva-os para mim. Não, melhor ainda, eu tenho o endereço do pai... – Não foi proposital, Andrea. Os textos vieram na minha mochila por uma infeliz casualidade. Além disso, passei dois anos no interior do Brasil, e eles ficaram aqui em São Paulo, no fundo de um baú. Arrumando hoje minhas coisas, encontrei-os numa pasta azul. Mas, espera, prefiro remetê-los para Berlim. Você ainda mora naquela rua, em Pankow? – Mas vão fazer todo esse percurso? O pai de Barad mora aí no Brasil, Marco. Naquela mesma noite, Marco escreveu uma carta a Andrea, que enviaria com alguns textos de Barad, retendo consigo a maior parte: Querida Andrea, Marco deteve-se alguns segundos, depois continuou: Conforme combinamos, seguem os textos de Barad. Gostaria de acrescentar que, embora passados alguns anos, ainda está vivo na minha memória o teor de nossas conversas aí em Berlim, durante as quais ele demonstrava um apego exagerado à arte, àquilo que antigamente se chamava a vocação de artista, no caso, de escritor. Mas que hoje soa absurda, pois não passa de devaneios metafísicos sem pé nem cabeça. Enfim, uma tola tortura autoinfligida! Então eu o alertava: ‘Olha, Barad, eu também pretendo escrever um livro, e isso é uma possibilidade cativante. Mas primeiro vou fazer um curso de letras e um de criação literária. No entanto, se eu perceber que não tenho talento, desisto. Busco outra coisa, e sem olhar, frustrado, para trás. Há algo mais sensato?’ ‘Oh, não! Nisso de resignação eu não entro. Eu sei escrever’, dizia ele, cobrindo os olhos com as mãos, como se buscasse proteção contra uma sugestão invejosa, ressentida. Tudo bem, as pessoas são diferentes. E o que acontecia? Ou melhor, aconteceu, não é? Às dificuldades de realizar aquilo que entendia como vocação, ele aventava, como resposta ao fracasso, a hipótese do suicídio. O suicídio como uma expressão suprema de liberdade acessível a um Freidenker, a um livre-pensador. (Ah, outra ideia sem sentido numa época rápida, artificial, de brincadeiras, como é a nossa, não é?). Coitado! Como previsto, respondeu mal... Deixou-nos para sempre, legando uns textos esparsos sem valor estético. Exagero em minhas conclusões, Andrea? Leia com atenção os textos que te envio! O orgulho de pensar como um gênio, o que ele não era, e a insegurança – caso o talento não se confirmasse – latejam neles como uma pulsão de nervos sob a pele de um Capít u lo 1 | 2 1

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neurótico. Péssima combinação. Não enlouqueceu, mas... Responda, Andrea, dando-me razão. Eu aguardo. Quanto a enviar os textos ao pai dele, melhor não. A visão de mundo refletida nos textos é impossível a um homem tão sofrido. Barad me contou a história de sua família – não é das mais fáceis. Ou você ignora isso? Espero que ainda consiga ler em português – escrevo da agência central dos Correios. Faz muito barulho. Falta-me concentração para escrever em alemão. Quaisquer dúvidas, o meu endereço, com telefone, é este do remetente, no envelope. Pertence ao banco onde trabalho. Um abraço, Marco Dilthey

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A história dos textos de Barad, e como Marco chegou até eles, começa num dia de agosto de 1990, em Berlim, no pátio da Universidade Humboldt. Eram poucos os brasileiros na Humboldt, e alunos de Ciências Humanas, cujos cursos aconteciam no prédio central. O refeitório também ficava aí, de modo que sempre se encontravam – e infelizmente, com o passar do tempo, a proximidade, entre eles, deu motivo para equívocos. Mas se foi aquela convivência demasiado estreita – a necessidade de falar o idioma pátrio, de trocar impressões com facilidade, e até de ajuda mútua – ou as dificuldades por que passava o lado oriental da Alemanha, as adaptações necessárias ao novo sistema político e econômico, as mudanças no seio da Universidade, disciplinas canceladas, como o marxismo-leninismo, outras recentes exigidas, as reformas e construções por todos os lados da cidade... Se foram esses eventos, ou aquele momento da história, os culpados pela morte de Barad e pelo fracasso de todos sem exceção – como alunos diplomados –, quem foi ou qual a causa... O veredicto pertence ao leitor desta triste história, entre as mais tristes de nossa literatura. – Você morou muito tempo na Rússia, não morou? São eles lá parecidos conosco, os latinos, não são? – perguntava Marco, o calouro, a Barad, que já estava havia um ano na Humboldt. Marco era um rapaz de aspecto cansado, magro, alto, com ombros largos. Tinha uns olhos castanhos claros que expressavam enfado, como se todas as suas noites de sono fossem bisonhas e cheias de tosse. – A alma eslava realmente se parece com a nossa – disse Barad –, e difere da germânica ou da anglo-saxônica. Mas os russos têm orgulho de sua história, o que nos falta por completo. No entanto, padecem de certo ressentimento, pois acham que a Europa Ocidental não os respeita como merecem. A revolta de Dostoiévski contra a arrogância dos alemães é um exemplo. Quase um complexo de inferioridade! Algo semelhante aos sentimentos de rancor e inveja que dedicamos aos Estados Unidos. Por outro lado, a violência do Estado contra o indivíduo é inerente à sociedade russa. Eles esperam por isso! Entre nós, este é indolente e inchado, corrupto... E nós gostamos disso! Capít u lo 2 | 2 3

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– E as russas? São bonitas, mas engordam facilmente, não é? – disse Marco, com um interesse inquietador. – Quem tem a vaidade de nossas mulheres? – respondeu Barad, com paciência. – E a Alemanha? Gosta daqui? – a pergunta de Marco revelava preocupação, como se viesse sofrendo dificuldades de adaptar-se à cultura alemã. – Não moraria a vida toda... Mas para estudar não há lugar melhor. – Seria esta então a nossa única obrigação aqui, estudar? Acho que a cidade pode oferecer também outros encantos, não? – murmurou Marco, não sem soltar um gemido. – Preciso me acostumar a esta ideia tão exclusivista, e exaustiva... Ah, então foi por isso você deixou Moscou? – Um amigo meu, russo, me dizia que é preciso muita falta de sorte para nascer na Rússia. Eu respondia: é porque você não sabe o que é o Brasil. Mas as coisas estavam e estão bem complicadas por lá. Acompanhar as mudanças políticas no Leste? Então, que seja em Berlim – disse Barad, procurando demonstrar segurança. – E as alemãs, também são bonitas, não acha? Mas por que você ri, Barad? Barad era meia cabeça mais baixo que Marco. Tinha os cabelos crespos, mas de cor alaranjada; a pele queimada, que se tornara pálida depois de vários anos de Europa. Os olhos, de um castanho escuro, pareciam sempre atentos, e às vezes exprimiam bondade. Gostava de andar vestido com calças jeans desajeitadas, uma expressão de quase desleixo, e um pesado casaco russo. Falava bem o alemão, com um pouco de sotaque da sua terra natal, Fortaleza. E acreditava que aqueles anos de mudança no leste europeu contribuíam para aumentar-lhe a confiança e a ânsia de aprender. O fato de deixar a Rússia, escapar do naufrágio de um sistema até então aparetemente sólido, e conseguir uma vaga na Universidade Humboldt, uma instituição que recebia agora apoio da rica Alemanha Ocidental, reforçava suas convicções. – Não sei. Achei graça da pergunta. Aqui no pátio... Olha, há muitas para avaliar – e Barad fez um círculo amplo com a mão para mostrar as alemãs: bonitas, indiferentes, enigmáticas... E achou a conversa um tanto trêmula; veio-lhe à mente a imagem de algo gelatinoso. As perguntas de Marco tinham um teor incômodo. Também suas respostas eram horríveis, ele ia achando. Talvez porque o outro alternasse o assunto, como se os temas sérios servissem de disfarce ao que realmente o atraía. – Eu quis dizer, não superficialmente, entende? – balbuciou Marco. – Olha, não há nenhum mal em revelar nossas paixões mais íntimas – disse Barad, erguendo os ombros; hesitou um pouco, depois acrescentou: – Mas tenho pouca experiência com elas. – Nunca ficou com nenhuma? – Ah, gosto de uma... 2 4 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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– Alemã, claro! – Não vai querer saber os detalhes, vai? – disse Barad, não sem ligeira irritação. – Eu faço essas perguntas todas porque acho essas alemãs difíceis de conhecer. – Há quanto tempo está aqui? – Em Berlim? Alguns meses, e passei um ano em Leipzig, onde tive de aprender o idioma. Mas também, admito, não tenho tido muito tempo. – Fazer uma graduação na Alemanha não é fácil, eu sei. E você foi escolher logo Filosofia, não é isso? – É a ideia inicial, ou posso concluir o curso no Brasil. Mas não vou morrer se não conseguir. – Se quiser, posso te apresentar alguns amigos. No curso de Língua Portuguesa, aqui da Universidade, há muitos alemães, e alemãs, que gostariam de fazer amizade com brasileiros. – Ah, gostaria muito – e Marco lançou um olhar interrogativo ao amigo. – Mas me dá o seu número de telefone. Pode acontecer alguma coisa neste final de semana... Um encontro de amigos... – Vou ficar esperando. Era a resposta, ainda que empolgada, de uma pessoa solitária, achou Barad. – Farei isso. Barad não ligou. Reencontraram-se na semana seguinte. – Ah, eu e a minha namorada terminamos não saindo. Fez muito frio – justificou-se Barad. – Ah, tranquilo, não precisa ser logo – e a queixa de Marco estampava no rosto a decepção. – Tem uma apresentação hoje do Tio Vânia, de Tchekhov, no Deutsches Theater. Não quer vir com a gente? – Não há problema? Eles foram. Duas horas mais tarde, após o término da peça, Marco pôde ver melhor a namorada de Barad, Andrea; ela era magra, um pouco mais alta que Barad. Tinha os cabelos castanhos, e olhos, sob um friso de alongados cílios, eram cinzas, de um brilho vivo, mas arredios. O nariz afilado... “As feições são suaves, com lábios finos que parecem pronunciar só segredos... Sorridente! Tudo nela é sensualidade, e bonita a mais não poder”, achou. – Um vasto território, a Rússia – disse ele; tinha de fazer algum comentário. – Mas você gostou? – perguntou Andrea em português, num tom simpático. Ela estudava língua e literatura francesa e portuguesa na Humboldt. – Me incomodou o conformismo final, chega a ser aborrecido – respondeu Marco, satisfeito com a conclusão. Capít u lo 2 | 2 5

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– Adoro o ator que fez o tio Vânia, Christian Grashof. Tenho uma amiga que conhece ele. É um sujeito exzentrisch com cara de poucos amigos. Diz o que pensa pelos personagens que interpreta. Hoje, por exemplo, ele concluiu o dia lutando pra vencer o acabrunhamento da decepção amorosa e da impossibilidade, em nossas vidas, de alterar o destino depois de certa idade. “Ela se expressa muito bem em português. Salvo alguns deslizes”, avaliou Marco. Depois seguiram para um café na Oranienburger Straße. – Não tenho paciência para aquelas peças encenadas na Volksbühne – dizia Barad, com voz expressiva, suas impressões dos teatros de Berlim. – A última a que assisti ali, Ernst Jünger, tinha um paredão com besouros imensos formando o cenário. Então, um sujeito, pequeno e efeminado, vestido de recruta, sob efeito de uma fúria injustificável, vem e arranca, com uma lança curvada na ponta, os besouros do paredão e rodopia com eles... Uma referência, é claro, à paixão de Jünger pela entomologia. Depois aparece um ator enorme, louro... Ator? Sei que ele usava uma farda da SS. E suspende o recruta bem alto e, enquanto bailam juntos por entre os besouros espalhados pelo palco, tenta fazer sexo oral nele. Mas o pênis do recruta pouco reage, e o general, com uns lábios inchados, como se tivesse feito aquilo várias vezes na vida, pintados de vermelho, se esforça com avidez em ativar a carne impotente... Ele já começa a cansar... Bailar, girar e, ao mesmo tempo, chupar aquele incompetente não é fácil... Ufa, alívio para o autor da peça, para o diretor, finalmente a ereção acontece, a ejaculação acontece... Uma peça genial! Aplausos entusiasmados. – Uma crítica ao militarismo de Jünger – disse Andrea, sorrindo. – É uma criatividade rasa, incapaz de instigar, ou deixar, uma simples sombra para a inteligência dar conta de entender. Prefiro peças com conteúdo e discussões sobre a alma humana... Como Tio Vânia. Isso serve aos meus textos. As vanguardas buscam a transgressão pela transgressão! Tornou-se a tradição de mediocridade. O resultado é torpe, provoca apenas fadiga. Enfim, fico com Tchekhov, Strindberg, Hofmannsthal... – Você escreve? – perguntou Marco. – Ah, colho impressões da vida berlinense, esperando um dia emendá-las numa trama. Mas antes preciso concluir os meus estudos, obter o meu Magister artium. – O que você achou dele? – Barad perguntou a Andrea após se despedirem de Marco. – Parece desconfiado! Mas talvez normal isso, não? Recém-chegado, inseguro com o idioma, querendo encontrar-se, conhecer pessoas... – Ele quer desesperadamente uma namorada alemã! – Ele é bonito. Não terá dificuldades! 2 6 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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– Mal se dirigiu a você. – Você não o deixou à vontade com seus conhecimentos de teatro. Mas tem a festa da Karin amanhã. Ele pode vir com a gente. “Nesta foto, Ísis, a mãe divina, amamenta Hórus, o filho concebido por um deus. A antecipação do modelo da Madona com o menino Jesus. Nesta outra, o trono de Amon-Rá, o faraó, esculpido em madeira... Vejam o detalhe. Uma mãe com uma criança no colo. É Ísis novamente.” Assim, após uma hora, com muitas fotos e explicações, Karin deu a palestra sobre a cultura egípcia por acabada. Os convidados estavam todos sentados em círculo no chão; Marco percebeu que ele, afora Barad, era o único estrangeiro. Barad e Andrea conversavam com uma garota ruiva, cujo rosto parecia representar, com sua pele levemente enrugada e marcada de espinhas, o mapa de um solo vulcânico, avermelhado e seco. Marco não sabia para onde olhar. As pessoas ao seu lado, viradas para seus vizinhos, davam-lhe as costas. Mas se podia fumar... A luz volta a apagar-se, incenso e velas são acesos, a garota ruiva se levanta e bate num copo com um garfo, pedindo a atenção de todos: – Meu nome é Manuela, prazer, sejam bem-vindos! Neste momento, eu sou Adilah, aquela que apresenta a verdade e reparte as coisas com justiça. Mas como é que faço isso? Apresentando-vos a vossa princesa, da poderosa dinastia saíta, Aasiyah! Palmas para ela! E, desta vez, para um número de dança do ventre. Fez-se silêncio; uma melodia marcada com som dos snujs, címbalos de metal, subia lentamente de um CD player. Mas quem aparece? A mesma Karin da palestra. Que mulher! Uma Cleópatra de mil facetas... No entanto, completamente louca! Marco descobria que ela, vestida de odalisca, era bem gordinha, e inadequada para uma dança tão sensual. Escutou um alemão comentar, com voz expressiva de especialista, que, apesar dos avanços científicos, o gênero masculino não pode ainda parir nem amamentar. Por isso, é vedada aos homens a dança do ventre. Quiçá um dia a ciência resolva este imbróglio. Então, como dizia ­Nietzsche, seremos todos estrelas bailarinas. Aasiyah meneava-se de um lado para outro alucinadamente. As banhas contorciam-se ao redor do quadril, enquanto ela rodopiava no círculo central, roçando, com lenços coloridos, o rosto dos espectadores numa atitude supostamente sedutora. Marco sentiu-se incomodado... Os outros aplaudiram entusiasmados a longa dança de passos e inclinações... Ah, Aasiyan! Ela se esforçava para manejar os snujs e trazer vibrações positivas ao ambiente. O véu de seu rosto desprendeu-se. Marco escutou mais explicações: a queda do véu significa abrir os olhos; despertar a consciência velada da mulher... E ele pensou: “sim, a mulher, este ser louco! Mas o mundo, privado dela, não passaria de uma simples cocheira”. Ele Capít u lo 2 | 2 7

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também achou Aasiyah sem expressividade: era um rosto impassível no cumprimento de uma obrigação, embora houvesse naquele envolvimento com a cultura egípcia uma busca emotiva. Finalmente o jantar foi servido. Adilah e Aasiyah estenderam uma esteira diante de todos; o pão serviria de garfo e faca, como se faz no Cairo, em Bagdá, Damasco e Ryad, elas explicavam. Mas... E precisariam de talheres para comer tâmaras, romãs, damascos, sementes extraídas do cedro do Líbano e azeitonas? Carneiros e cabras... Não, não! A sabedoria agora é ser vegetariano!, alguém comentou. A miserabilidade das porções minúsculas, como amostras gratuitas de algum mercado oriental, irritava Marco. Ele sentia o estômago doer de fome e constrangia-se vendo todos satisfeitos com aqueles bocadinhos. Podia fumar, e havia cerveja, embora à temperatura ambiente. Aasiyah, a anfitriã, bateu palmas e esclareceu: na próxima vez beberiam uma exclusiva cerveja artesanal, cuja receita milenar, que ela guardava a sete chaves, provinha dos tempos de Ramsés II. Marco prometia a si mesmo jamais voltar ali, nem à recompensa de tal raridade. E se foi sem conhecer uma garota... Ninguém ali se interessava pela grande nação do sul da América. Chegou em casa levemente embriagado, vomitou e acordou de ressaca no dia seguinte... Parecia que gatos brigavam dentro de sua cabeça. Passou o dia de cama, faltou à Universidade. – Posso ser sincero, não vai se chatear? Achei a festa muito chata – disse ele. – Vou te levar a uma festa angolana – prometeu Barad. – E as alemãs que vão estar lá gostam da África, a nossa África. Há danças e comidas de verdade. – Como é no Brasil. Mas percebo que não há muitos brasileiros estudando aqui na Humboldt... Não dá para fazer uma festa só nossa. – disse Marco com um riso descontraído. – Se você for à Berlim Ocidental vai encontrar muitos... – Mas não quero conhecer aventureiros, putas, capoeiristas e tocadores de pandeiro... São só problemas!, foi o que me disseram. Estou prevenido. Mas veja só, a Andrea não tem nenhuma amiga que a gente possa conhecer? – Não gostou da Karin? – Ah, naquele tipo de festa é difícil fazer amizade, cada um na sua, não é mesmo? – Puxa conversa – disse Barad. – Falar sobre o quê? – Do que você faz, de Filosofia, Marx, do que gosta de ler..., isso sempre funciona. As mulheres aqui dão importância à cultura. A beleza para elas é um aspecto secundário. Mas realmente, confesso, o mundo da Karin é de orientalistas, o assunto ali era aquele: islamismo, dança do ventre... 2 8 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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– E numa festa angolana? – Nessa pouco se conversa – respondeu Barad sorrindo. “Angola situa-se na costa ocidental da África austral” – Marco foi à ­Staatsbibliothek, que ficava ao lado da Universidade, ler um pouco sobre Angola. Confiava-se de conhecer na festa a primeira paixão; precisava preparar-se bem para encantar as alemãs, e continuou a leitura: “A leste, em direção a Hasar-Enon, a fronteira se traça com o ex-Zaire; abaixo leste, ao oriente de Cades-Barne, a Zâmbia; depois, ao sul, em direção à subida dos Escorpiões, passando por Sin, se chega à Namíbia, e ao norte, às suas fronteiras terrestres, localiza-se a província de Cabinda – incrustada no velho Brazzaville, ou Congo Sedada. De Cabinda a fronteira se volta em direção à Torrente Salgada do Grande Mar; este limite serve de fronteira ao Ocidente.” – Perfeito. Meus cumprimentos e boa sorte! – desejou a si mesmo. A festa realizar-se-ia no apartamento de um cabindês, Dembi Roberto. “Mas a costa é banhada pelo Atlântico, o Grande Mar. O ponto mais alto do país é o Monte Moco, na província de Huambo”, Marco ainda declamava o texto sobre Angola horas antes da festa. E lá chegando logo observou que havia comida à vontade: feijão de óleo de palma, calulu de peixe, funje de milho, muamba de galinha, mufete de cacusso, um peixe da família dos pércidas, consumido seco. A língua oficial da festa era o português, mas Marco escutava também alguns dialetos. Com os convidados, os simpáticos anfitriões falavam a língua de Fernando Pessoa. “Então é verdade... Barad está certo. Tudo muito bom e farto!”, pensou ele. “Estes sim sabem viver, nada de mixurucagem, de embrião de trigo e cascas de cedro. Se Aasiyan estivesse aqui certamente a fariam livrar-se daquele rosto inerte, insosso, com o qual ela remexia os quadris, como se estivesse apresentado um seminário sobre o córtex órbito-frontal medial e o córtex motor...” Todos dançavam. E as mulheres? Especialmente as alemãs... Danças alegres, sensuais... Marco aproveitou para ensaiar alguns passos de lambada, que estava no auge da moda. Embora fosse um péssimo bailarino, sentiu-se muitíssimo bem e integrado. Adaptou-a ao funana, ao kuduro e à coladeira – danças angolanas. Não parou um minuto. Se não estava dançando, ria dos sotaques. E as diferenças culturais? Mas tão próximos... Brasil e Angola! Chamaram-lhe a atenção as inúmeras belas europeias namorando africanos. Estes usavam ternos, calças curtas de algodão, sapatos escuros e meias brancas, lenços enfiados no bolso do paletó, cordões de prata no peito, ouro nos dentes... Por que ninguém se interessava por ele? E às duas da manhã Marco sentia a cabeça leve de embriaguez. Também cigarros de haxixe foram acesos e passaram de mão em mão; ele começou a imiscuir-se nas conversas alheias, apresentando-se como brasileiro e estudante universitário. Capít u lo 2 | 2 9

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E insistia em explicar às alemãs que ele e os angolanos falavam a mesma língua. Ich weiß, ich weiß! – elas respondiam que sabiam, e uma e outra começavam a irritar-se com ele. Algumas estudavam o kikongo... O que é isso? Um dialeto. Ah, desculpe! Para não ficar atrás, discorreu sobre Nietzsche e a morte de Deus... Conversou com Andrea, sentia-se garboso, e fê-la rir com seus passos de lambada destrambelhados. Estava tão obstinado em seu propósito de conquistar uma alemã, que não lhe ocorreu que houvesse algo imoral em galantear a esposa do irmão de Dembi, o anfitrião da festa. Falava com ela sem cessar, e sobre tudo o que lhe vinha à cabeça. Ela parecia corresponder... Talvez ele houvesse confundido atenção simpática com interesse pessoal. Forçou-a a beijá-lo. Bem, foi daquele jeito... Sentiu a pressão de uma mão pesada na nuca, que o empurrava da porta para fora, e o esposo da bela loura agora gritava para seus amigos: – E não é que este pula brasileiro anda aqui a bumbar feio pra minha gaja, querendo dar uma queca? Ainda que ache que acompanha o ritmo e a nossa mainada. Foi jogado aos degraus da escada por uma trupe de africanos indignados. Por sorte, Andrea e Barad já haviam partido; teria morrido de vergonha... Como não conhecia os outros, lamentou-se apenas de que as costelas doíam. Marco confessou a Barad parte da história. Ou melhor, o que lhe aconteceu dias depois. A impressão de Barad, após escutá-lo, era que o amigo não esperava risadas de suas confusões nem aceitação de uma fraqueza. Ele buscava conselhos, mas indiretos. Era como se a reação de Barad, quer dizer, os comentários decorrentes de sua surpresa, fossem suficientes para ele orientar-se em Berlim, evitando futuros desastres. Simples assim! Eis a história de Marco: Perto da Karl-Marx-Allee, um cinema de arte trazia um documentário sobre a tomada de Berlim pelos soldados soviéticos e os estupros por eles perpetrados. Um tema tabu entre os comunistas do Leste e ignorado pelo Ocidente. Mulheres entrevistadas falavam da dor que permanece para não mais sair; algumas diziam que os mais terríveis eram os asiáticos do Exército Vermelho: uzbeques, chechenos, tártaros, mongóis... Havia fotografias chocantes – as mulheres como vítimas da política estúpida dos homens. Nos anos seguintes, a triste consequência: suicídios, filhos indesejados, abortos. Marco encontrou o documentário numa revista de cultura, a zitty. Achou bom ir, teria assunto para conversar com Barad e Andrea, e tudo de Berlim deveria atraí-lo. Em meio à projeção, o cinema lotado, sentou-se entre duas mulheres. Uma delas encarou-o interrogativamente, retribuiu com um sorriso. Isso era de péssimo gosto, um mau sinal. O que ele queria? Seria algum sádico que procurava excitação e masturbava-se vendo a violência da soldadesca? Reagiram: “O que você 3 0 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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quer aqui, afinal?”. Ao redor, aumentava a tensão: todos esperavam sua resposta... E isso parecia bem feito para ele... Ele era uma espécie de homem doente no lugar errado... Ninguém prestava mais cuidados ao drama da guerra... Marco pouco podia fazer, salvo balbuciar: “Estou sendo vítima de racismo”. Racismo? Só uma idiotice dessas mesmo, responderam. Na saída, investiram contra ele, como se o ódio e a frustração, retratados no documentário, saíssem da tela e descessem sobre todos ali. Voltou para casa... ainda duvidando de que tinha conseguido escapar. – Havia lá sim uns caras vestidos com casacos longos, que usavam cabelos compridos, amarrados em rabo de cavalo, e óculos. Com um livro e uma caderneta de anotação enfiados na bolsa a tiracolo... Sabe, sujeitos que saem de casa para diagnosticar as doenças da cultura, participam de algum evento cultural e logo depois procuram um café onde possam beber uma taça de vinho... Mas pra eles o remédio que eu merecia era uma pisa bem dada, aplicada por aquelas feroces. Você ri, Barad? Enquanto ele falava, um homem pequeno veio e recostou-se no imenso banco do pátio da universidade, bem ao lado de Barad. Tinha o rosto pálido e os olhos vermelhos, lacrimejantes, ligeiramente puxados. Sentou-se resfolegando, cruzou as pernas, acendeu um cigarro e lá ficou. Marco julgou-o estrangeiro. De repente começou a falar em português (a voz era pausada, esforçada): – Já ouviu falar da cidade destruída pela ira de Deus, onde morava Lot e sua mulher, aquela figura curiosa transformada em estátua de sal? Lá todos eram depravados, dos velhos aos jovens, dos jovens aos velhos. Meninos de 13 anos, homens de 31 anos, velhos de 62 anos, todos possuíam um só interesse: conduzir anjos para fora de suas moradas a fim de conhecê-los na intimidade. – Quem é ele? – perguntou Marco baixinho a Barad. – Ah, este é o Dias. O Dias é o autor de uma versão do Manifesto Comunista, didático e em linguagem simples, para metalúrgicos do ABC paulista. Ganhou prêmios e reconhecimento da esquerda internacional. Dias beirava a meia-idade e, se lhe perguntavam o que pretendia com aquela vida de eterno estudante – mesmo aos cinquenta anos de idade –, respondia num sussurro: “Oh, vocês vão ver, meus jovens, o tempo não é pra brincadeiras. Hoje se tem vinte anos, num piscar de olhos, nos transformamos numa carcaça de sessenta”. E com vinte e poucos anos viera à Alemanha, fugindo da Ditadura Militar. Barad gostava muito dele... Mas ele não ia com frequência à Humboldt. Frequentava a Universidade Livre, localizada no outro lado da cidade, a parte ocidental, onde residia. – Ninguém se lembra mais daquilo. Tudo esquecido! – disse ele, referindo-se à sua versão do Manifesto. Capít u lo 2 | 3 1

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– Você mora há muito tempo aqui? – De exilado da Ditadura, fui ficando, ficando... Faço Lateinamerikanistik, estudos da cultura e da literatura da América Latina. É o que você quer saber e ele aqui ia dizer – Dias pousou a mão calejada no braço de Barad. Em seguida, acendeu, alheio, um novo cigarro. Era moreno, magro, de feições tristes e cansadas, calvo; usava barba malfeita, com fiapos brancos e manchas cinzentas. Tragou o cigarro e disse: – Demoníaca paisagem de onde brota tal erva – e ficou a mirá-lo entre os dedos. Barad zombou furtivamente de Marco, que parecia impressionado. – Marlboro polonês! – acrescentou Dias. – É mais barato que o alemão, não é? – Ah, você o encontra facilmente nas estações afastadas do metrô, vendido pelos polacos. E estes se vestem de roupas desbotadas, têm um aspecto sofrido, amargurado, castigados que foram, durante décadas, pelos opressores nazistas e stalinistas. Os pacotes de cigarro ficam expostos sobre caixas de papelão. Com isso, fica melhor para escapar da polícia. – Contrabando? – Tem gente que acha o gosto ruim, Dias... – murmurou Barad. – Gosto ruim, não. Menos industrializado, o que o faz mais saudável a nós, os inveterados. Mas quando trago, sempre penso que o solo lá é perverso, banhado de sangue e entranhado de ferro das armas da guerra. – Os vietnamitas também vendem – acrescentou Barad. – Nestes, o negócio está nas mãos das mulheres. Mas na busca do lucro, sempre selvagem, não há diferença: até os santos matam por ele – Dias comentou. – Posso experimentar? Não parece tão diferente – concluiu Marco. – Vou indo, a gente se vê. Dias parecia mover-se com dificuldades; o cachecol, muito grande, que envolvia seu grosso pescoço, arrastava uma ponta pelo chão. – Ele é estranho. Nesta idade, e ainda estuda – disse Marco, assustado. – É uma forma de pagar muitas coisas pela metade e comer quase de graça. Mas é inteligente, conhece muito de literatura. Um excelente escritor de contos. Procura quem os traduza para o alemão, mas cobram caro – disse Barad. – Por que não volta para o Brasil? No lugar dele já teria ido – exclamou ­Marco com um sorriso sério. – Ele tem uma filha aqui. Separou-se da esposa, que tomou conta de seu nome, Carvalho. Ela agora se chama Berta Erdmenger-Carvalho. Professora universitária, estuda a obra de Stravinsky e de Adorno, e ontem mesmo deu uma palestra, no auditório, sobre a Bestialidade Nazista aos Olhos de Theodor W. 3 2 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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Adorno. Ele tenta reconquistar a filha, mas esta só ouve coisas terríveis da mãe: Dias é preguiçoso, e o pior, batia nas duas. Na semana seguinte, Marco encontrou Barad e Dias no café situado na ala direita do prédio principal da Universidade. A temperatura caía, o outono se aproximava, e as folhas das árvores tombavam apressadas nas ruas e parques da cidade. – Eu só quero o meu nome de volta – Dias contava a Marco seu drama, e era tocante como o fazia. Baixava a cabeça, cruzava as mãos como numa oração, mas dirigida ao chão; talvez escondesse as lágrimas. – Nos aniversários de minha filha, tento contato. Mas ela sempre bate o telefone na minha cara, e ainda escuto os xingamentos da mãe. – Por que elas fazem isso? – Marco quis saber. – Ah, as mulheres, quando querem odiar... E a Justiça lhes deu o direito de usar o meu nome, finito. Mas quer um conselho? Terminou os estudos, vai embora rápido daqui. Não há lugar pior no mundo para uma pessoa envelhecer. E se casar com uma dessas alemãs, saiba: elas mandam e você obedece. Na primeira cisma, te enxotam, debaixo de nomes indecifráveis, como a um cachorro, e todos estarão ao lado delas. Elas sempre têm razão! – Há quantos anos você não vai ao Brasil? – Quatro anos. Minha mãe faleceu... Acabou, não tenho mais nada lá. Um dia antes de voltar, isso em São Paulo, num banco de praça, ali na República, ouvi dois cegos conversando: “É, ele voltou. Sabe quem tá aqui?”, perguntaram para um coxo que se aproximava cantando Vou ter dinheiro, vou ter casa!, “O bandido metido a escritor”. Depois chegou um bêbado chamado Cabo Herói que se dizia injustiçado. A própria esposa, uma capivara, lhe passara uma rasteira, expulsando-o de casa, depois de abrir um salão de beleza. Estava nessa ladainha de lamentos quando os outros apontaram para aquele que tinha voltado. – Você? – Me cercaram e quase me matam. – E policiais, não os havia por perto? As perguntas de Marco acabavam por tornar a história hilária. Barad disfarçava o riso mantendo a xícara de café colada aos lábios. – Você não entende? Essas pessoas me conhecem. Lembra da cartilha que eu traduzi, citada por Barad? – disse Dias, levantando-se como se fosse partir. – O Manifesto Comunista? – disse Marco, surpreso. Ele não via nada de grave na tradução. Aceitava a atitude de Dias mais como a atuação de um velho ator. – Não me perdoam por eu ter tornado Marx e Engels acessíveis aos ­trabalhadores. Capít u lo 2 | 3 3

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– Mas você acha que é assim? A Ditadura acabou... – Os agentes do SNI usam de disfarces pra nos pegar! E Dias catou o maço de cigarros da mesa, enfiou-o num dos bolsos do casaco e se foi, lamuriando: “Eles pegam a gente, não tem jeito. Não há escapatória. Estão em todos os lugares, até aqui, pertinho de nós”. – Ele é completamente neurótico. Você viu? E nem disse adeus. Não confio em sujeitos assim. – Sabe por que ele escreve contos? Não suporta a dor que os textos longos despertam na alma do escritor. Ora, para escrever um romance, o escritor recorre, como fonte de inspiração, às suas piores experiências de vida. Então, não lhe faça perguntas pessoais – aconselhou Barad. – Peça pra ele falar de literatura, de Goncharov... – Não conheço. – Flaubert? Ele te dá uma aula sobre a Educação Sentimental. Moreau, o protagonista? Exemplo de narcisista cínico que despreza a realidade. Marco e Dias voltaram a encontrar-se: – Sabe, Dias, e Flaubert? – perguntou Marco, como se ele próprio tivesse descoberto os interesses do amigo. – Minha maior influência. – Quem é o maior escritor latino-americano vivo? – Marco variou a pergunta, inspirado pelo receio de assumir uma postura, de conhecedor profundo de literatura, e não conseguir corresponder a ela. – Falam muito de Moas I. L. Brandino. Teve um rapaz, também de São Paulo, que veio pra cá escrever sobre ele. Eu disse logo: “Você gasta munição atirando numa lebre doente, Brandino é medíocre”. “Mas vou fazer o quê, li tudo dele, tenho apoio de departamentos de letras, bolsa de estudos da Capes, CNPq, sei mais o quê”. “Sim, e o que isso quer dizer?” Ficou na maior das dúvidas. Quando o reencontrei, tinha debandado para as bandas dos franceses do desconstrutivismo, Derrida & Merda Ltda. S. A. Depois virou artista plástico, um trabalho vagabundo de imitação da obra do Joseph Beuys. Chamei ele num canto: “Olha só, conheço o tradutor do Jorge Amado, desde a época da ex-Alemanha Oriental. Eu te apresento a ele, ele te orienta numa tese decente, mas larga mão disso. É besteira o que você faz com essas tiras de papel, com nomes de doenças, amarradas em fios vermelhos de sêda”. – Deixaram de se falar? – Ele, né? – E os seus contos?

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– Ah, é fácil, vem ao meu apartamento em Neukölln. Sabe onde é? Anota o endereço. Gosta de chá preto? Vamos passar umas horas agradáveis lendo e conversando sobre literatura. Marco anotava: – Dias, o que você acha de Kafka? – Ah, é a resposta de tudo isso aqui, e uma advertência. Por quê? Ora, o que você espera? Judeu, feio, membro de uma minoria num país estranho... E com um pai extremamente opressor que só via sentido para a vida na integração a um sistema, o capitalismo, que não dá chances, a não ser para sugar nossas energias... Mas ele recebeu sua recompensa: acabou num campo de concentração. E o filho, por culpa da pressão paterna para também se integrar a uma vida burguesa desumana, nos bacilos de Koch, eh, eh. Está interessado nele? – Talvez eu escreva o meu mestrado sobre ele e... ou Heidegger... – Não vá imitar o Barad. Já reparou como ele não para: estuda dia e noite. Vai ficar pra doido! Leve as coisas na Gelassenheit, na calma. Conheça também a cidade... Viva, e intensamente! Você tem bolsa de estudos, não precisa trabalhar. Não se apaixone. E se se apaixonar, encontre uma africana. Ah, as africanas são mulheres verdadeiras! Não roubam o nome e nem o destino alheios. – Tenho um seminário pra apresentar sobre Sein und Zeit de Heidegger... – Heidegger? Nossa, nota mística, né? Êxtase, terra e sangue violento. Ler em alemão o que ele escreve é como consultar um palimpsesto medieval, impresso numa língua morta, e perceber, nas entrelinhas, que ali se invoca deuses sanguinários. Porém, cuidado! Ou acreditará que a obsessão, por alguma atividade artística, é capaz de fazer o mundo curvar-se aos nossos anseios. Como isso é uma tolice, o resultado para seus adeptos é a loucura ou o suicídio. Deveriam proibir aos jovens a leitura de sua obra! – Realmente é muito difícil compreender seu pensamento. Mas o que eu queria fazendo Filosofia? Não sei se vou conseguir. – O Barad se empolga com Nietzsche, você com Heidegger. Resultado? Escolhem andar sobre o fio de uma navalha. – Ah, se o professor dispensasse a apresentação. Tenho receios de que, ao ter de falar em alemão, eu falhe. – Mas o que Heidegger tem a ver com Kafka? Uma descoberta complicada. Bom trabalho! – Algo mais concreto seria melhor – disse Marco, e quase num lamento completou: – Sociologia, por exemplo. – Bem, aí é outra coisa. Falando nisso, não quer vir comigo a West-Berlim? Eu e uns amigos brasileiros estamos formando um núcleo partidário de esquerda. Capít u lo 2 | 3 5

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– Tenho um seminário agora sobre Kierkegaard... Mas, sinceramente, estou sem vontade de participar... Ah, foda-se! Vamos! Os líderes do núcleo partidário eram um casal de professores universitários, que também faziam estudos na Alemanha. Ela era alta, esquelética e dentuça. Tinha os cabelos encaracolados e usava uns óculos quadrados que, juntamente com os dentes de coelho e os cachos da cabeça, proporcionavam ao rosto um estranho equilíbrio; se fosse um objeto seria algo disforme ou quebrado. Enérgica e direta, criticava com ardor aqueles que discordavam de ideias fomentadas pelo Partido, que deveriam prevalecer como verdade e revolução. Seu parceiro era pequeno, um pouco gordo, e de cabelos lisos. Míope e risonho, quando falava a voz acompanhava-se de um impertinente assovio: uma espécie de sopro que procurava atenuar o caráter ardoroso da amada. Assim, aquele par, com suas particularidades aparentes, formava uma joia do convencimento. Marco se apresentou a todos, reafirmou seu empenho pela causa socialista, deplorou a decepção que foram as últimas eleições presidenciais... Ele saíra do país um pouco antes do resultado, mas prestigiara o candidato das esquerdas – uma adesão solidária, e solitária –, e compartilhara, já em Leipzig, sua tristeza com o coração daquelas pessoas que sofreram com a vitória de Fernando Collor... Enquanto ele falava, Cláudia enfiava um cacho de cabelo entre os dentes; franzia a testa, lançando contra Marco um olhar inquieto. César, o marido, sorria atento, um sorriso que iluminava os cantos da boca por onde escorria fios de saliva. Mas Marco estendeu a explanação, fez uma avaliação pessoal dos fracassos do Partido, criticou a recusa, por parte de seus dirigentes, a uma aliança com os setores da burguesia, a falta de pulso do líder maior, o despreparo dos militantes e a pureza ideológica desproposital, e teria entrado em mais análises e teorias se Cláudia não o interrompesse e desfizesse pausadamente, mas com viva ira nos olhos, cada ponto de seu argumento. César deu o rebate final, mas trazendo-o de volta ao núcleo: Marco não estava inteiramente errado! Críticas servem de reavaliação estratégica para futuros pleitos, e sorriu muito cordato, acariciando o queixo molhado de baba com as pontas dos dedos. “Mas posso dizer...”, assoviu a voz, “que o importante, aqui e agora, é a formação de uma célula fiel, aqui em Berlim, à linha do Partido, marcando sua presença no mundo”. E alemães simpatizantes à causa eram bem-vindos. Dias nada disse, o que soou estranho a Marco. Parecia não estar ali. Como é que o convida a participar e não tece considerações a seu favor? No próprio lanche, após encerrar-se a reunião, servido de salgadinhos e cachaça da terra, grupos se formavam, a tensão diminuía, músculos se relaxavam, as primeiras risadas afloravam... Nenhuma grande ideia mais, apenas abraços prolongados, tapinhas nos 3 6 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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ombros, beijos cordiais, apertos calorosos de mão... Mas Dias, na extremidade da sala, sozinho, diante de uma estante, puxava um livro; curvou-se, comprimiu os olhos e ficou ali a ler. Pareciam considerá-lo uma relíquia sagrada, um ídolo magnânimo. Usufruía de direitos às ocupações individuais. Marco sentiu-se deslocado; arrependeu-se do que fez: falara demais, demonstrara desconhecimento da causa e do programa do Partido. Não via chegar a hora de partir... Esperava pela iniciativa de Dias... Não vieram juntos? Dirigiu-se discretamente à saída, pegou o casaco do cabide, César aproximou-se, e com aquela babação toda, disse: – Olhe! A próxima reunião é no dia... Mas qual é mesmo o seu telefone? E queremos que traga pessoas de sua universidade. Precisamos realmente formar um grande núcleo, traçar metas realistas... E queremos lhe dizer que estamos esperando, para bem breve, uma visita de nosso grande homem, o futuro presidente do Brasil, pois perdemos esta eleição, mas não as dos anos vindouros. Ele irá nos presentear com uma palestra na Universidade Livre ou na Universidade Técnica... Falta só definir o lugar. Ainda bem que moram em West-Berlin, e Marco quase não andava por aquelas bandas. Esperava não reencontrá-los... Mais alguns meses, e a vergonha que ali sentira também sumiria. “Que coisa chata tudo aquilo!”, ele pensou. “Têm o meu apoio, simpatizo, voto, mas me falta o talento e a paciência para discussões longas, bem como o empenho em ações conjuntas. O meu consentimento às decisões tomadas é mais do que suficiente para reafirmar meu compromisso com o socialismo”, concluiu. Numa tarde de inverno de 1991, meses depois da reunião, durante o Karneval de Berlim, Marco reencontrou, por acaso, César, Cláudia e um bando do núcleo partidário – a essa altura bastante atuante. Alegres e divertidos! Os homens fantasiavam-se de guerrilheiros e as mulheres de czarinas. Por alguns segundos ele pensou em dizer um simples olá, e disse, mas a saudação desfaleceu na garganta, engasgando-o. Aproveitou, então, o engasgo para curvar-se e cair por entre as pernas da multidão. Afastou-se e mergulhou na folia distante. De resto, admirou-se que suas feições estivessem nítidas na lembrança. Não esperava o mesmo do casal... Naturalmente acharam-no um pequeno-burguês sem convicções, não confiável... Um tolo! Os dias agora passavam tecidos de profundo tédio e indisposição, Marco se lamuriava. Ia às aulas rastejando, entendia mal o assunto das matérias, desistia, passava horas sentado na Bierstube da universidade diante de uma caneca de cerveja a mirar as minúsculas bolhas que subiam vagorosamente à superfície do líquido amarelado, como se os detalhes dos objetos o levassem a uma revelação (do essencial em sua vida). Na verdade, ele perdia gradualmente Capít u lo 2 | 3 7

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a capacidade de reagir ao apego demasiado de si mesmo... Seu seminário sobre Sein und Zeit de H ­ eidegger foi um verdadeiro fracasso. Ninguém o compreendeu. O professor, solícito, pediu-lhe então uma explanação breve, que resumisse o que lera; tentou, desistiu: “Não consigo, não consigo!”, repetia, repetia, como um mecanismo arrebentado à espera de misericórdia. O professor teve de explicar aos alunos o parágrafo 27 do livro, aquele que lhe cabia apresentar. Nunca sentiu tanta vergonha na vida. Abandonou o seminário... Um dia, ao sair da Mensa, o refeitório da universidade, encontrou o professor conversando com Barad. Fixou bem na memória a cena: os dois riam muito. Puro deboche! Eles se entendiam harmoniosamente, como um casal de golfinhos a sulcar alegre as ondas do mar azul, assim lhe pareceu. Marco tinha certeza que falavam mal dele, do compatriota pateta de Barad. Restava-lhe ainda um semestre sem preocupações financeiras antes de prestar contas, por meio de boas notas, à fundação que assumira sua bolsa de estudos com o fim da Alemanha Oriental. Às vezes procurava pôr em ordem seus pensamentos, ou frustraria de vez seus objetivos de estudante: como obter notas sem apresentar seminários? E ainda havia as malditas provas orais... Depois de alguns momentos de angústia, dava de ombros: não devia desesperar-se antes do tempo. Ademais, tinham de aceitar sua condição de estrangeiro, as dificuldades com o alemão, um problema nunca fácil! E entender que ele era uma vítima inocente das mudanças da história. Ora, o país, onde viera estudar, desaparecia, e com este a filosofia, a filosofia da práxis, o marxismo... Agora jogam tudo fora? Isso não se faz. Não tinha culpa se a Alemanha Ocidental devorava a co-irmã numa verdadeira Anschluss. Professores do antigo regime, justamente aqueles que poderiam ajudá-lo, eram investigados... E eles até que tentaram, coitados, buscar o apoio dos estudantes... Muitos foram forçados a solicitar suas aposentadorias. Houve manifestações a favor do reitor – descobriram que ele também bisbilhotava a vida dos colegas, fazendo o jogo sujo de espionagem para a Stasi, a polícia secreta comunista. Mas os estudantes tinham sua deposição como um complô dos alemães ocidentais para impor uma política educacional capitalista. Marco adorou as passeatas, percebeu-se membro de consciências unânimes e precisas, conheceu a sensação extraordinariamente bela que é expressar-se sem freios e compartilhar paixões semelhantes, intensas. Por fim, seus esforços não surtiram efeito: o reitor foi afastado. Quando o desespero com o futuro incerto, que costumava abatê-lo nos finais de tarde, se tornava intenso, Marco telefonava para Luiza, a namorada que deixara em São Paulo, suplicava que esperasse por ele e pedia desculpas pelas tristes 3 8 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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palavras que lhe dissera antes da viagem: não deviam prender-se um ao outro. Mas é porque não acreditava que o amor suportasse cinco anos de separação. Claro que suporta!, estava agora convicto disso. Sim, ele também chorara na despedida, ela não viu? Não! “Por dentro, Luiza, por dentro! Minhas lágrimas escorriam pelo coração, pois o que importa são os sentimentos profundos”, insistia. Ora, um homem não deve chorar abertamente. Não, não, ele não conseguia gostar de ninguém... Ela continuava sendo sua grande paixão. Ah, apareciam garotas, sim, mas não as queria. “As pessoas na Europa são complicadas, psicóticas, peças de cera!” Luiza sorria de seus comentários; ele gostava. E ela, estava ficando com alguém? Não! Ah, venceriam a distância, é só se falarem constantemente. Por fim, reafirmava a fé nos dois: ele a queria de vez quando voltasse. Quando? Talvez já no fim do ano! Convencia-se de que país bom mesmo é o Brasil. Certo sábado, pegou o metrô para Neukölln. Queria sair para beber, mas longe do bloco de apartamentos onde vivia, que já o afligia o suficiente durante os dias da semana. O bairro do Tierpark, construído após a guerra segundo o cânone arquitetônico socialista, ficava na parte leste da cidade, e distante do Centro. Fazendo jus ao nome, o lugar era um verdadeiro parque de animais apinhado de alemães orientais assustados com o futuro e de imigrantes estrangeiros ávidos por possuí-lo. A residência estudantil ocupava três grandes blocos quase grudados um ao outro. E Marco não suportava o estudante do Afeganistão com quem a administração da universidade o colocara para dividir o apartamento. O afegão era um sujeito com cabelos lisos e escuros e olhos igualmente escuros. Tinha os dentes muito brancos, mas os lábios carnudos e avermelhados, harmonizando-se mal com o tom igualmente escuro de seu rosto, davam-lhe uma aparência sinistra e arrogante – “Ele se julga um gênio!”, achava Marco. “Tá certo que fala bem o alemão. Mas também, estudando Germanistik, letras e língua alemãs, até um mudo consegue”. Também era sedutor, esperto: conquistara uma alemã, embora Marco não a achasse bonita. E o casal passava finais-de-semana inteiros com um aparelho de som ligado, de onde pipocavam canções folclóricas afegãs, as heratis. Era uma música melosa, acompanhada de alaúde e com tablas marcando o ritmo. E o afegão puxava, com uma voz chorosa que irritava Marco profundamente, gazais tristíssimos, como se fosse a qualquer hora desfalecer fulminado pela saudade da pátria arruinada. Marco jamais escutara a voz da alemã! Sabia que ela estava ali porque via seus tênis diante da porta do quarto do afegão, e este também cozinhava o tempo todo, ia e voltava da cozinha, batendo a porta, e ela lá, certamente sentada no chão atapetado, entre almofadas, inerte, submissa, feliz da vida. Quando encontrava Marco, Asif danava-se a chamar-lhe a atenção para alguma coisa errada, suja, fora do lugar, no banheiro, na Capít u lo 2 | 3 9

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cozinha, mas num alemão, senão fluente, rápido que nem a peste, forçando-o a responder Ja, Ja! Sim, sim! Marco não o compreendia, e nem pretendia esforçar-se para compreendê-lo. Achava sua presença intragável; não se sentia à vontade com ele; não tinha confiança nele. Corria para o quarto, onde podia xingá-lo à vontade: “Desgraçado de afegão! Pensa que é mais inteligente que Maomé... E por quê? Vem de uma terra inóspita e nunca perguntou a minha origem, não se interessa por futebol, ignora o adesivo da bandeira do Brasil que eu preguei na geladeira, age como se eu não existisse... Porque sempre tem reclamações pra fazer, como se fosse eu quem infesta o apartamento de gordura, temperos azedos e enjoativos... Não para de cantar e cozinhar... E eu tenho de aturar suas músicas, que torturam e fritam a paciência de qualquer um...” Em Neukölln, na parte ocidental da cidade... Na rua, um ar tenso punha olhares desconfiados no rosto das pessoas; prédios mal cuidados, paredes pichadas com palavras de ordem em turco ou em curdo, sujas, riscadas... Parecia um bairro entregue à própria sorte, e isto quer dizer ao domínio de estrangeiros, porque nesta área, que antes da Guerra compunha a imponente e orgulhosa capital do Terceiro Reich, não vive um só alemão. É uma gente que desperta nos alemães medo, vergonha, desgosto e tormentos à consciência, pois excita um ódio racial ainda bastante latente no espírito germânico. O prédio de Dias tinha quatro andares, mas sem elevador. No lance de escadas, que conduzia ao último andar, Marco ouviu uma discussão em português... Dias discutia... com quem? Pensou em dar meia-volta, mas curioso... Esperou. – Não vai pagar? Vou te esmurrar até a morte, desgraçado. Quantas últimas vezes ouvi tuas desculpas? – Uma. – Não quero saber, Dias. Vai pagar? Diz logo pra eu começar a virar e revirar tudo aqui. – Eu devolvo em trabalho. Compreende, Bocas, por favor! – Então vem, agora! E não vai pagar tudo, fica sabendo. Dos quinhentos marcos da dívida, dispenso cinquenta pelo trabalho de hoje. – Faço o seguinte: contando de amanhã, trabalharei uma semana, todos os dias. E ainda levo uma parte da dívida... Tenho um amigo brasileiro que pode me emprestar. Amanhã bem cedo eu falo com ele. Mas hoje eu realmente não posso. – Por quê? O que tem aí? Não, deixa eu ver. Caralho! – Eu prometo... Aiii! Não empurra, espera. – Quem é ela, Dias? – Uma amiga, vai ficar uns tempos aqui comigo. – Mentira, Dias. E ela não é alemã! 4 0 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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Marco subiu os últimos degraus da escada; atraía-o um diálogo em alguma língua estranha; distinguiu as palavras da e niet. Diante da porta escancarada do apartamento, bem na sua frente, encontrou Dias, que agiu como se não o conhecesse; ele cerrava os olhos e tremia os lábios, e parecia murmurar uma prece contra o desespero. Um jovem bastante alto, magro, negro, olhou para trás, fitando Marco detidamente. Tinha a face envelhecida, caída, e o cabelo, de pontas endurecidas e embaraçadas, apontava caoticamente para todos os lados. Possuía uma boca enorme, os lábios rachados e feridos, e de suas orelhas rugosas, como a de um velho elefante, pendiam duas imensas argolas douradas. Os olhos eram esbugalhados. Mas havia neles uma perturbação meio desconfiada, meio perplexa, que brilhava e apagava de modo que Marco não conseguia entender. Sentada numa poltrona pequena, rasgada e suja, estava uma garota muita branca, de cabelo preto, vivo, e parcialmente solto. Tinha uma boca pequena, o queixo redondo e nariz afilado. Os olhos dela, um pouco míopes, mas que a tornavam ainda mais atraente, eram perfeitamente azuis. Marco quis apresentar-se; balbuciava: – Meu nome é... – Brasileiro? – Sim – respondeu Marco. – Ah, ah! – o negro gargalhava – Mais um pra passar a perna, não é, Dias? – e voltando-se para o Marco: – Amigo, vá s’imbora enquanto é tempo! Ele vai te tomar dinheiro emprestado e nunca mais pagar, ou te meter em confusões. Tchau! Dias, acabrunhado, dava de ombros, como se se desculpasse ou contasse com o gesto para desmentir o outro. Mas Marco se interessou pela garota, queria ver o resultado da história, a intenção dela, a deles. Ela sorria para o negro, um sorriso doce, perdido, mas que queria achar-se. – Ela vem comigo – disse o negro a Dias, cuja pele morena tornava-se acinzentada, assumindo uma palidez anêmica. – Não! – Como não? Pergunta com quem ela quer ficar, seu mau-caráter. – E Dias ainda tentou... Falava em alemão com a garota, que continuava a sorrir, e agora abertamente com o que o negro lhe dizia, e o que lhe dizia impedia-a de compreender ou aceitar de Dias as suas súplicas, que soavam ridículas e quebradas. – Vamos! – disse o negro, puxando a menina pela mão. Sua voz era um pouco rouca, mas perfeitamente segura, alerta, e disfarçadamente sedutora. Dias deixou-se cair na poltrona, no lugar onde estava a garota. Marco achou que ele fosse chorar... Melhor não! Ou não saberia o que fazer... O negro interpelou-o: – Vem, não vou deixar ninguém te trapacear! – e voltou a ameaçar Dias: – Não é Capít u lo 2 | 4 1

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página virada, amiguinho! Não perdoo dívidas de velhaco vagabundo. Mas pela garota aqui dispenso cinquenta marcos. Mas eu volto, pode esperar! Eu sempre volto, ah, ah! – e derrubou uma estante. Os livros caíam sobre Dias, que aceitava impassível a pesada carga como alguém condenado, desde que nascera, a ser uma vítima eterna de um sofrimento composto de azar e fadiga. Estas ameaças e a decisão da garota afastaram as hesitações de Marco. Os três agora desciam juntos as escadas do prédio. Se Marco tivesse voltado a cabeça para trás, teria visto Dias agora encolhido na poltrona, quieto e atrofiado, como se sangrasse, ou se perguntasse se ainda lhe restava tempo suficiente para reentrar no mundo e refazer a própria vida. – Sou Marco, prazer! – Ah, e eu, Mário Marcos. Somos xarás, mas me chame de Bocas. Vem, vamos nos divertir! Acabei de te livrar de uma daquelas. Aposto como não conhece o Dias direito. No começo ele é prestativo, fala que escreve, fez traduções, adaptações de livro, abre o apartamento, te oferece chá, é um bom papo... Depois vem a facada, pede teu dinheiro emprestado e te mete numa fria. Se você está ilegal aqui, ele te chantageia. Por isso não acredita nunca no que ele diz. – E ela? – caminhavam em direção ao metrô; a garota mirava Bocas com pasmo e admiração. – Dias encontrou na rua, ofereceu a ela um lugar pra ficar e muitas outras coisas mais e proibidas. Teria uma noite de prazeres! Depois de se fazer de bonzinho, iria embriagá-la. Se ela recusasse, usaria outros artifícios, mas ela não escaparia, teria de dar a boceta pra ele. – Russa? – Chegam aqui em Berlim na mão de máfias ou através de traficantes de escravas, coiotes... Ilegais, putas, trabalham pros caras. – Muito bonita. – Não parece ser uma dessas! Busca uma vaga numa universidade, quer estudar. Pelo menos foi o que me disse. Vamos ver. – E você, fala russo? – Morei lá, amiguinho. – Então conhece um brasileiro chamado Barad. – Estudávamos em Moscou. A União Soviética em poucas horas virou um inferno. Eu disse a ele: Berlim é mais jogo. Mas ele se acha muito o tal, metido também a escritor, procura o bem nos estudos... – Sei. – Já prestou atenção que todo brasileiro se julga escritor? Mas ele ainda não te mostrou? 4 2 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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– O que escreve? – Você vai ver! Ele se sente o próximo Nobel de literatura. Pensa que é só misturar uns versos filosóficos medíocres com prosa poética ruim, que resultam em textos enfadonhos, para se chegar ao livro do século. Ah, deixa pra lá. Cansei dos estudos! Quero mesmo é me divertir, e isto aqui, a cidade de Berlim, é o lugar. O paraíso dos desocupados, eh, eh. E mais, estudos não levam ninguém pra frente, lição número um. Lição número dois, brasileiro no exterior é baixo-astral. Decora isso. Um sujeito com quem lá no Brasil, você não trocaria uma palavra, não se ocuparia dele um minuto aqui você suporta, procura, convive. Uma merda! Se mandam de lá, porque aquilo lá é uma porcaria mesmo, o pior país inventado, esta é a verdade, mas aqui morrem de saudades. Estão sempre juntos! Querem passar o tempo todo falando de comida brasileira, de futebol, de que a mulher brasileira é a melhor do mundo, só nós entendemos de música e de cinema, e o planeta para pra apreciar a maior festa do universo, o carnaval do Rio de Janeiro... Essas babaquices idiotas que nenhuma pessoa decente leva a sério. E enquanto fazem intrigas, fofocas, vão tomando a namorada do outro... Uma porra de merda! – Ele é de Brasília – insinuou Marco. Sabia a origem de Barad, mas preferiu fazer-se de ingênuo. – Quem, Barad? Com esse nome? De onde você acha que ele é? – Não sei, Foz do Iguaçu? – arriscou Marco propositadamente errado. – Ah, ah, por que Foz? – Tem muitos árabes lá, e esse nome... – Que nada, amiguinho. Ele é nordestino! Nome estranho eles lá, daquelas bandas, adoram colocar nos filhos. Pode ver, tudo quanto é nome miserável eles inventam. – E você? – Tricordiano. – Onde fica? – Três Corações? Nossa, nunca ouviu falar? A terra de Pelé? Somos até parentes distantes, embora de futebol eu não entenda porra nenhuma, e nem quero! – respondeu Bocas. Entraram no metrô. Bocas virou-se para garota; dizia-lhe algo em russo. Marco compreendeu algo que soou como Tânia. Ela agora o observava atentamente, enquanto Bocas gargalhava e a fazia sentar-se nas suas pernas. “Eles falam mal de mim”, achou Marco. A garota continuava a fitá-lo com uma expressão curiosa, mas despreocupada, e aos poucos enrubescia. – Fala com ela! – disse Bocas, olhando meio de lado para o rosto atento da garota, que deslizava de suas pernas para o assento livre ao lado. Capít u lo 2 | 4 3

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– Em alemão? – perguntou Marco, levantando-se para saudá-la com um beijo. – Prazer! – deixou escapar em português. Tânia enrubesceu mais ainda. – Ei, amigo, bem direto, não? – observou Bocas. – Acha que errei? – Ela sabe a peça que somos nós, latinos! Se não sabe, aprende. – Você conhece muita gente? – Quer dizer, mulher? – Pode ser. – Tá na maior secura, não? – e Bocas gargalhou. – Precisando urgente de uma mulher. – Confesso. – Claro, dá pra ver. Faltou foi engolir a menina aqui na frente de todo mundo. Mas não esquenta a cabeça, aonde vamos o que não falta é da espécie. O prédio não era alto, três a quatro andares... Sombrio. Tinha a fachada escura marcada de balas e granadas, uma parte caída – não se recuperara desde a II Guerra Mundial –, e estava isolado numa esquina, pois os prédios do lado haviam sido varridos pela destruição, dando lugar a espaços vazios. Ao lado, num destes terrenos baldios, sofás com as molas esfoladas, carcaças de televisor e de rádio, um esqueleto de um Trabant – produtos da Alemanha agora extinta, a ex-RDA –, juntavam-se a monturos, aplainados pelas intempéries, de suas paredes e de construções arruinadas de todo o quarteirão. Por uma parte retorcida de uma cerca de flandres, a entrada seguia por entre aqueles objetos. Encostada à parede, havia uma tábua grossa de madeira, a qual Bocas removeu e segurou, enquanto Tânia e Marco passavam através de um buraco. Já dentro, um cobertor empoeirado servia de cortina, formando um átrio minúsculo. Bocas gritou para eles esperarem. Recobriu o buraco com a tábua, e os três ficaram por alguns instantes apertados no pequeno átrio. Bocas afastou a cortina. Uma escada de concreto, suja e estreita, conduzia a um Keller. Bocas descia à frente, acendendo, com um isqueiro, velas que já estavam pregadas nos degraus. Após o último degrau, ele empurrou uma porta pesada de metal, entrou e acionou o interruptor de luz. Marco, então, pôde ver uma espécie de cave ou de abrigo antiaéreo com três compartimentos; dois deles decorados com mesas e cadeiras de tamanhos diferentes – certamente recolhidas de algum lixo. À esquerda do que seria a antessala, uma cavidade aberta a golpes de marreta na espessa parede dava para um pequeno cômodo; a base da cavidade servia de balcão. No pequeno cômodo, uma geladeira usada, uma mesa velha, uma pia e, sobre esta, uma mangueira, por onde escorria água ininterruptamente. A entrada se dava pela lateral a partir do último compartimento. Bocas conduziu Marco até lá; 4 4 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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empurrava-o sutilmente pelo cotovelo, como se ele fosse um cego perdido, e lhe explicou onde estavam e o que queria: – Uma mina de ouro isso tudo aqui! Sabe o que tem aí dentro? – abriu a geladeira. A gaveta de verduras e as laterais estavam abarrotadas de limão, e sacos de gelo e de açúcar ocupavam o resto dos compartimentos. – Agora senta lá. Vou te mostrar. A russa acolheu Marco com um leve sorriso e algumas palavras em inglês, uma língua que ele não dominava; respondeu-lhe com um don’t speak duas, três vezes. Ela tentou com uns cacos de alemão... É, não se entendiam mesmo! Uma música dançante da Bahia soou no ambiente; Bocas ligara o aparelho de som. Marco sentiu-se bem; ele e a russinha não precisavam mais conversar. ‘Musique’ good!, ele disse, levantando o polegar... Ela riu. Como ela ria, e cada sorriso mais bonito que o outro. Bocas chegou até eles com dois copos. – Caipirinha! – gritou Marco. – O ouro.

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C a p í t u l o

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Sim, Bocas explicou a Marco onde estavam e o que ele pretendia: aquele buraco, naquele prédio arruinado, seria um bar de uma só bebida, a caipirinha. O segredo do negócio! E dá certo? “Vamos ver como eu vou ganhar muito dinheiro”, Bocas respondeu. Sim, ele estava certo. Aos poucos, um, dois, três clientes desciam até ali... Admiravam-se do lugar... O fascínio era imediato: só Berlim mesmo para inspirar uma criatividade tão agressiva, misteriosa... Marco aprendeu a preparar a bebida, ajudou no atendimento... Ele se divertiu! Já bem tarde da noite, os dois, Tânia, um casal de alemães e uma holandesa acenderam uma vela grossa de maconha, que rodou rápido entre os dedos... Riram-se bastante. Bocas não mente! Marco percebeu que tinha de fazer qualquer coisa para agradá-lo. Parecia ser este seu papel na vida, ou ao menos ali em Berlim. Por isso devia cumprir todos os seus pedidos e ordens... Bocas fazia o tipo feio engraçado, o bom selvagem, e de grande poder sexual. Algo que encanta os europeus! E ele possuía um talento inato para idiomas: comunicava-se com Tânia em russo, com o casal em alemão e com a holandesa em inglês. Marco o invejou. Sentiu-se levemente infeliz, mas esperou compartilhar suas conquistas. A holandesa era bonita, ruiva, espontânea. Tinha veias azuis, que brilhavam nos longos braços brancos de leite. Bocas puxou e levou a russinha para dançar, e a holandesa também, e ele no meio das duas, enorme, subindo e descendo ao som de timbalada e axé music. E mais adiante: gritos, evocações e urros. Descobriam a alegria para não mais perdê-la. Marco conversou com o casal de alemães... Que orgulho! Seu alemão fluía. Ah, Asif ali para vê-lo! Chegou a pensar que ela se interessava por ele. Por que não? Esse povo não conhece o amor possessivo, as demonstrações de ciúmes são raras e a autonomia da mulher é peso marcante... É ela quem determina a graduação da paixão. O dia certamente raiava lá fora... Prometeram voltar na noite seguinte, mas a russinha nem piscou, ficaria com Bocas. E a bela holandesa de veias celestiais e cabelos salpicados de fogo dourado? – Por que você não dorme aqui? Marco aceitou o convite de Bocas. Além do que, àquela hora, os carros do metrô, como serpentes ao despertar, giravam (ainda!) lentamente... Ah, ele não 4 6 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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queria voltar ao Tierpark, não tinha a menor vontade de encontrar o afegão e sua cantoria triste e sua namorada de cera e sua mania de rebaixá-lo com um alemão aprendido em algum Asylbewerberheim – a moradia, mantida pelo governo, que acolhe refugiados políticos do mundo inteiro... Asif seguiu direitinho as regras da civilização! Deixara para trás o comportamento bruto e ganhara o prêmio de sua vida: uma namorada alemã e um lugar na universidade. Marco esperou que fosse abarcar a holandesa... Mas Bocas, impressionante!, levou as duas. Mas onde ele ia dormir naquele prédio caindo aos pedaços? – Este é teu quarto – disse Bocas, empurrando-o para um cubículo sem janelas provido de um colchão velho, dois cobertores imundos, lenços de papel usados espalhados pelo chão e um espelho acentuadamente opaco ainda na moldura – o que sobrara de alguma penteadeira enorme e antiga – jogado num canto. Ele vai mesmo ficar com as duas? – Fecha bem a porta – disse Bocas. Por quê? Marco quis perguntar-lhe a causa de tantos cuidados ou quais perigos espreitavam o prédio... Receando, contudo, uma reprovação a sua covardia, preferiu silenciar. – Ah, outra coisa... Aqui, é seu: cinquenta marcos! Você fez o serviço do Dias. Marco pensou em responder que preferia como pagamento uma das garotas. “Puxa, e ele conhece a minha necessidade torturante de sexo, que sofro tanto agora”, pensou. “Amanhã sem falta eu falo com ele.” E Bocas seguiu adiante com as duas belas presas debaixo dos braços. Se gemeram, ou o que fizeram, Marco estava muito cansado para escutá-los; pegou logo no sono. Acordou sobressaltado, ergueu o rosto. Pôs um dedo numa das narinas, entupidas por causa da poeira, expelindo nervoso o ar pela outra. Ele realmente dormira naquele lugar, uma cela de hospício, e naquele colchão, no qual certamente um tuberculoso se deitara? Pois o prédio preservava o mesmo estado precário da época da guerra! Levantou-se de um pulo, lembrando-se de uma história que descrevia Berlim como a cidade dos ratos. E ele lá, o Marco, juntando ideias na cabeça... Não mais, arrastou os pés, puxou a porta; lá fora o esperava um sol embaçado pelo tempo permanentemente nublado do inverno berlinense e com aquele vento gelado que torna a cidade morosa, aumenta a depressão e os casos de suicídio. Sentiu-se imerso em tristeza. Diante de si, pôde ver melhor: uma espécie de ponte estreita se estendia para o outro lado do prédio. Acima, mais duas outras pontes – o prédio parecia ter três andares. Embaixo, pilhas de madeira, tijolos, blocos de cimento vencidos pela poeira, fuligem e abandono... Ele julgou: “Alguma bomba, lançada por um bombardeiro inglês, caiu aqui e assim ficou. Uma ruína sonhada por Hitler!”. Adiante, além do terreno baldio, a parede lisa e imensa de um prédio vizinho. Mas não quis arriscar-se pela ponte; virou Capít u lo 3 | 4 7

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à esquerda, uma porta de ferro, trancada; deveria ter sido por ali que vieram ao amanhecer... Tinha de seguir mesmo pela ponte... Por alguns segundos acreditou ter caído numa cilada. A tarde escurecia, e como sempre às duas e meia... Apurou a vista, percebeu do outro lado uma porta. “Espero que seja o harém do Bocas. E essa porcaria de ponte estreita, é segura?”. – Bocas, Bocas! – disse ele, batendo à porta. – Ah? – Sou eu, Marco. Lembra? – Espera – uma voz sonolenta respondeu. Bocas, enfiado numas ceroulas apertadas e encardidas, abriu a porta. Tinha o rosto inchado, um olhar fosco como que voltado para dentro, a boca encurvada e um sorriso amargo que deixava à mostra um dos caninos. “Como é feio!”, pensou Marco. O quarto era amplo, com uma cama enorme e alta, quase à altura do teto, montada num canto, e sob a armação da cama um computador largado numa mesa. Um janelão dava para um pequeno balcão, onde havia uma cadeira velha e um jarro de planta, que enrijecera de frio. À direita, uma geladeira de segunda mão, que Bocas também recolhera do lixo. Ah, os produtos do socialismo, que se espalhavam pelas esquinas e terrenos baldios de Berlim Oriental... As pessoas se desfaziam às pressas desses objetos como se fossem de mau augúrio. Marco mirou em direção à cama. Estavam lá a russinha e a holandesa com pele de leite derramado e veias de gelatina azul? Uma mão suspensa saía da coberta. – Que horas são? Faz o seguinte: aqui ó, a chave da porta de ferro, desce lá, anda sete quarteirões, direção-Gendarmenmarkt, encontra uma Kaufhalle, compra pão, chá, leite, queijo... Nossa, que fome de Lara! Não demora. Vai, cara, o que tá esperando? Marco gastou o dinheiro dado por Bocas pelo seu trabalho no bar... Voltou, comeram, e elas lá, a russa e a holandesa. Marco não acreditava no que via; passou a mão no rosto como para afastar algum efeito tardio do álcool, da maconha, do cansaço... Que nada! Bocas, este sujeito feio e desajeitado, realmente tivera e amara as duas. – Marco, agora vai lá no teu quarto e pega o espelho que você viu lá – ordenou Bocas. Por que obedecia? Para se entenderem, os três usavam a língua inglesa; Marco não passava do don’t speak... Nem isso mais ele diria. Diante de um grupo de pessoas? Ficou lá em silêncio, mastigando, rindo amarelo, observando Bocas, que não parava um minuto: gesticulava e falava como uma metralhadora. É, ele sabe deixar estas gringas felizes. Fazer o quê? Tinha mais é que obedecer. Poderia arriscar-se no alemão com a holandesa de leite e estrias azuis, e tão alva era sua 4 8 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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pele que ele via quando os fios de chá descia pela garganta, e ruivos e macios seus pêlos pubianos... Mas, e a vergonha? Enquanto o Bocas, da velha Rússia para Berlim em dois pulos e um tempo, falava o alemão melhor do que ele, que estudava e quebrava a cabeça para compreender os escritos de Heidegger e Nietzsche... Ah, ele tinha... Tinha mais é que buscar a porra do espelho. Mas Bocas era gentil – a seu modo! Disse-lhe: teu quarto! Bem que poderia morar ali... Era só limpar, varrer, arranjar uma Matratze nova... Asif nunca mais iria vê-lo. Que nada! Depois de mudar-se para ali reencontrou-se com ele no pátio da universidade. Mas Marco tinha orgulho, sabia ter quando queria. Deu-lhe as costas. “Ah, vai queimar na Kabul que te pariu, filho de uma puta!”, soltou entre os dentes. Bocas pegou o espelho, deslocou-o da moldura, aqueceu uma parte com um isqueiro, tirou de uma latinha de Dannemann um pacote prateado, abriu-o: bolotas brancas rolaram pelo espelho; novamente a chama do isqueiro foi passada por baixo, o pó branco agora se desprendia... Bocas afilou o pó com um cartão telefônico, deixando-o pronto para ser aspirado. Cada um deles escolheu uma ou mais tirinhas, curvando-se, com uma nota de cem marcos enrolada e enfiada nas narinas, sobre a própria imagem embaçada! E aí ficaram mais bavardes e felizes. E Marco também! Mas antes ele cedeu a vez. Como não conhecia a cocaína, esperou para ver como os outros a consumiam, restando-lhe uma só e última fileira. E quando entraram no bar à noite, Bocas lhe fez um sinal de positivo com a cabeça: ele podia preparar a bebida e cobrar dos clientes. Sentiu-se importante!... Gostava das pessoas... Ao pé do balcão, escavado na parede, elas esperavam a preparação do coquetel. Marco aproveitava para falar da cachaça, da música brasileira que soava pelas caixas de som; perguntava se já tinham estado no Brasil... Sentia-se esperançoso!... Não demoraria para conhecer e namorar uma das inúmeras garotas que desciam ali empolgadas com um bar atípico, criativo e caótico. Bocas recebia a todos com sorrisos e frases de efeito; parecia um charlatão em início de carreira. Havia momentos, quando o movimento aumentava, em que Marco se perguntava se não estava tendo a boa vontade explorada ao ter de cortar limão, amassá-lo, misturá-lo ao açúcar, quebrar gelo, verter a cachaça e entregar a bebida pronta para o Bocas... beber! E como ele bebia! Se ao menos ficasse bêbado para, assim, generoso e extravagante, empurrar nos seus braços as migalhas que sobravam das mulheres que agarrava... Mas não, o miserável abandonava-o sozinho no bar para se olhar no espelho embaçado... “Toma conta aí, volto já!”, ele dizia. Voltava feito um perturbado mental, aos pulos, e toda a alegria, a espontaneidade e a conversa fiada contavam pontos: as pessoas caíam como moscas nas teias de sua sedução... E Bocas, a atração exótica, a figura perfeita do homem insaciável, com uma sensualidade à flor da pele, supostamente bem-dotado, fogoso, que Capít u lo 3 | 4 9

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dava conta brincando de duas, três, quatro garotas, confirmava a lenda que envolve o povo brasileiro: não vive para trabalhar, mas trabalha para viver plenamente a liberdade, uma liberdade que não conhece restrições. O único povo bon-vivant do universo! E não importa se as garotas vinham do Oeste, do Mar do Norte, ou do Nordeste, as costas do Mar Báltico, ou do longínquo Leste, as estepes de Simbirsk, Bocas atraía e seduzia a todas com sua inteligência instintiva, ambiciosa... Marco esperava pelas migalhas... Naquela segunda noite, Marco trabalhou redobrado, pois a propaganda boca a boca atraíra um público maior. E ganhou mais cinquenta marcos. – Amiguinho, quer um conselho de irmão? – disse-lhe Bocas, no dia seguinte. – Fica aí, economiza no aluguel e se livra do jihadista afegão. Eu até podia ir lá contigo, dar uma surra nele, mostrar a ele que nós também temos nossos terroristas, os jagunços e cangaceiros... Machos que encaram o inimigo de frente e com facas! Não aquela covardia de se explodir no meio dos outros. Mas você sabe, esses caras são neuróticos: vêm aqui, retribuem a visita e explodem o nosso barzinho que acabamos de inaugurar. – Não, deixa isso pra lá. – Prefere, então, aguentar sua música de morte e o cheiro de sua comida leprosa? – os dois se encontravam num supermercado, na Alexanderplatz, à procura de açúcar e limão. A cachaça vinha de uma importadora de bebidas, que ficava em West-Berlin. O preço de uma garrafa era salgado, mas Bocas auferia ganhos do investimento com apenas cinco coquetéis vendidos. – Você viu, né? O aumento vertiginoso de fregueses... Acho que vamos ter de cobrar também a entrada, eh, eh! E você, a cada noite, embolsa cinquentinha... Quanto dá isso no mês? Vamos ficar ricos... Lembre do que eu te disse, estudos não levam ninguém pra frente. O negócio hoje em dia é ser capitalista. Marco fez os cálculos. Os ganhos do bar, mais o dinheiro da bolsa de estudos, perfaziam realmente uma excelente renda mensal. E não gastaria com o aluguel! E ainda se livraria do mulá Asif... E as inúmeras mulheres que desciam ao bar? A possibilidade de encontrar a grande paixão da sua vida aumentava. – Limpar o quartinho... – balbuciou ele. – É todo teu. – Aquele colchão... – Isso lá é preocupação, Marco? Caralho, terminei de falar! Em breve estaremos vivendo no luxo e na doce lascívia – um termo poético para putaria. Eu também sei ser escritor, eh, eh! Ah, e tenho um plano... Mas paciência agora é tudo. Mas, embora detestasse Asif intensamente, Marco, ao buscar suas coisas na residência estudantil, lamentou não tê-lo encontrado. Pretendia, estimulado pela 5 0 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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recente situação privilegiada adquirida, demonstrar-lhe indiferença. Por outro lado, a postura desejada certamente perderia efeito diante de perguntas, em alemão fluente, que o desgraçado lhe faria. Nesse caso, o imprevisto saiu-se melhor, ele achou: “Asif, ao ver meu quarto vazio, vai encher-se de dúvidas: onde ele está, aonde foi, qual seu destino? E então vai jogar-se no chão e, como uma criança birrenta, chorar copiosamente... Pobre desgraçado!”. Quando entrou no quartinho trazendo suas coisas, encontrou-o limpo e varrido, e com um colchão que não era novo, mas bem melhor que aquele outro de tuberculosos. “Fawela!”, batizou Bocas o bar, e com W, o que facilitava a pronúncia para os alemães. E ele estava mais uma vez certo! Sem alardes e propaganda, todas as noites mais e mais pessoas passavam pelo buraco na parede do prédio, desciam tateando, à luz de parcas velinhas colocadas nos degraus, a escada suja sem corrimão, empurravam a porta pesada de ferro e caíam num ambiente frouxamente iluminado, com cadeiras e mesas recolhidas nos lixos da Berlim Oriental, onde se servia somente caipirinha... Vinham dos bairros boêmios da cidade, de Berlim Ocidental, da Alemanha rica, de outros países; algumas, via-se, pertenciam à elite intelectual: jornalistas, escritores, atores... Mas Bocas não permitia que se tirassem fotografias. Ele temia a polícia, a vigilância sanitária... A água, usada para lavar os copos, descia sabe-se lá de onde e sem parar através de uma mangueira, ou era enfiada para ser escoada direto no buraco da pia. Marco sentia frequentemente um forte odor de fezes. Ora, eles estavam abaixo do nível da rua, próximo da rede de esgotos... E num lugar sem saídas de emergência... Sobre eles, um prédio... de quantos séculos, caramba?, ele se perguntava. Quem morou ali antes, quem dele se ocupara até ser abandonado pelo falido governo da Alemanha Oriental? Localizado próximo à Potsdamer Platz, o coração da cidade longamente separado por minas, muros, soldados armados, carros militares... Mas em breve o local mais valorizado da Europa... Era uma questão de meses ou semanas para os órgãos públicos determinarem sua demolição. Antes disso, Bocas esperava divertir-se bastante. E se ele, felicíssimo com a descoberta do lugar, tomava uma caipirinha atrás da outra, pouco se importando com a limpeza dos copos, com a água, com os esgotos, por que haveria de preocupar-se com seus clientes? Eram saudáveis, nascidos num país rico, livre de bactérias, conhecido por sua medicina avançada, sua eficiente indústria farmacêutica; os maiores fabricantes de aparelhos hospitalares do mundo, os mais importantes cientistas da história... Mas Bocas não permitia que se tirassem fotografias, muito menos que se entrasse no cubículo onde era preparada a caipirinha. E quando percebia a presença de algum Capít u lo 3 | 5 1

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suspeito, alguém com aparência de policial ou de fiscal sanitarista, tremia-se todo, levava as mãos à boca, roía as unhas e, ao falar, gaguejava e sorria amarelo. Não dava um minuto, desaparecia. Sim, deixava Marco sozinho... Voltava uma hora depois, pulando, sorrindo... Acompanhava os gestos com uma confiança surda, enigmática. Chegava como quem não quer nada; era mais um cliente... Mas trazia as narinas dilatadas, fumegantes, e os olhos vidrados pareciam duas enormes tochas de fogo negro. – Foi embora, foi embora? Eh, eh! – ele perguntava, fungando sem parar. Os dias da semana eram mais tranquilos. Mas aos sábados e às sextas-feiras o movimento no bar ia até o dia amanhecer... Bocas devia faturar uma média diária de três mil marcos limpos, limpos, julgava Marco. Julgava! Bocas não deixava o dinheiro acumular na gaveta da mesa, pois enfiava o bolo de cédulas nos bolsos do casaco. – Bocas, eu não consigo mais dar conta do trabalho sozinho – disse Marco. – Não esquenta, deixa comigo! A reclamação de Marco ocorreu quando Bocas ainda se interressava pela jovem russa. Ele, então, a empurrou para o cubículo e lhe ensinou como preparar a bebida. Estimulada pela paixão que lhe sentia e por fartos goles de aguardente – na Rússia, ela dizia, uma bebida como a cachaça seria considerada um xarope para crianças –, prestou uma grande ajuda aos dois. Marco a achava linda, a mais bela criatura da Terra, e usava de recursos amistosos – abraços rápidos, beijinhos na cabeça – para obter seu afeto. E criaram para se comunicar um idioma primitivo feito de gestos e palavras soltas do português, russo e alemão. Mas a paixão dela era por Bocas: amava-o com uma intensidade alucinante... Ciúmes acabariam aflorando... Bocas tinha à disposição as mulheres mais bonitas do continente; era só uma delas descer àquele buraco. Enquanto Marco e Tânia, confinados no cubículo, descansavam somente ao fim da noite, ele, o proprietário do recinto, ocupava-se em expandir o charme e a sedução, e as drogas tinham parte nisso. Além do haxixe, consumido fartamente, Bocas reservava um cardápio especial para as garotas que levava ao seu quarto, um andar acima. Tânia parecia não perceber... ou fazia de conta que não enxergava suas investidas e conquistas amorosas. Quando fechavam o bar, às vezes pela manhã, ela recaía no foco de sua atenção. Um mês? Os primeiros dias da semana eram os melhores para Marco. Podia, por alguns instantes, deixar o balcão e unir-se ao círculo de amizade do amigo – alguns tipos se repetiam. Marco viu logo que eram eles que forneciam a Bocas suas vitaminas alucinógenas, estimulantes. Bebiam à vontade, traziam mulheres, conquistavam e faziam contatos, traficavam... Chegavam tarde e 5 2 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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consumiam seus próprios entorpecentes. A relação entre eles era tranquila, sem tensão, ameaças ou olhares atravessados. Verdadeiros amigos de Bocas! Mas não deveriam ser os tubarões do tráfico, estavam mais para peixinhos correios, quase todos alemães. Havia porém um turco no meio, Savas – um homem nos seus quarenta anos; cabelos alourados que lembravam a Marco uma peruca de doido. E, sob essa juba de leão velho, guardava-se um rosto mal-humorado, um olhar escuro. De poucas palavras, falava bem o alemão, mas carregado de dialeto berlinense; trocava com Bocas gestos secretos, insinuações de coisas especiais, como um mercador que traz de longe produtos inovadores acessíveis a alguns poucos clientes. Com frequência os dois se levantavam, saíam e retornavam com o espírito e o corpo alterados: Bocas felicíssimo, como se tivesse sorvido um elixir que se sobressaía em magia às porções antes experimentadas, mas Savas (Marco não detinha a má impressão que este lhe provocava) trazia consigo as piores nuvens, a modificação do clima da Terra para pior: degelo e friagem satânicas; suas feições portavam o desprezo e o deboche – juntos, moldados, a verdadeira ponta de lança da perversidade. Um mês? Amigos de Bocas eram eles. As mulheres, que eles traziam, serviam também de objetos de tráfico; agarravam-se com um, com todos, sempre risonhas... ou sofriam com um, com todos, sempre bonitas e submissas. Trocavam beijos entre si a fim de agradá-los, vestiam roupas curtas, maquiavam-se... Sabiam provocar! Marco as achava mais fáceis do que as outras mulheres que apareciam por lá, mas por receio de seus bosses não arriscava uma aproximação. Esperava quem sabe uma oferta ou uma indicação – deles ou de seu amigo Bocas. Preferia o silêncio. Inclusive, antecipava às ordens de Bocas servindo-os com esmero e profissionalismo. Tânia, no entanto... Depois da aflição, cada dia mais forte por causa das traições constantes do amado, veio a raiva, na qual ela mergulhava com uma embriaguez religiosa – uma espécie de ocupação excessiva com as próprias dores. Marco tinha pena, mas não compreendia aquela paixão absurda por Bocas, que não dava a mínima importância se as mulheres sofrem de caprichos, e menosprezava as que ficavam bêbadas para arrumar encrencas... Mas aí Tânia não se conteve. Certa noite, uma jovem tcheca escanchou-se nas pernas de Bocas e, enquanto o beijava com malícia, despia-se... Sim, era uma atitude animadora que arrancava risos e comentários obscenos. Tânia, que pensara que aquilo era parte de um complô para irritá-la, fez um escândalo; trocaram nomes feios, e as duas se entendiam, eslavas... É assim, em Moscou e em Praga, que as mulheres lutam por seus homens. Todos riam, e Bocas, na maior graça desta vida, afastou-se para vê-las brigar. Marco achou injusta a brincadeira, mas não interferiu. Embriagada, Tânia não suportou os arranhões e os chutes da jovem tcheca e lá ficou, no chão, Capít u lo 3 | 5 3

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chorando baixinho... suja e descabelada enquanto os outros voltavam às ocupações divertidas, como se ela não existisse. Um mês? Tânia não completara um mês com Bocas... É, Berlim não lhe dera sequer trinta dias de abrigo. Tinha de trocar o quarto de Bocas, naquele prédio ainda que precário e aterrador, pelas ruas frias e inóspitas de um destino incerto. Foram dormir, não demorou muito para Marco ser despertado pelos gritos de Tânia. Ele se levantou rápido, abriu a porta e avistou-se com Bocas jogando a pequena mochila de Tânia por cima do parapeito da ponte. Marco recuou; do quarto, através da porta entreaberta, via os dois discutindo em russo. Trancou-se. Na porta soaram pesadas pancadas de luta e empurrões: Bocas arrastava Tânia para fora do prédio. E Marco escutou, em português mesmo, quando ele a mandou se foder, puta vagabunda! Esperou que Bocas se recolhesse ao quarto, desceu e deparou-se com peças de roupas, um livro e um diário em russo espalhados pelo terreno baldio ao lado do prédio ... Tânia certamente o viu quando ele juntara suas coisas e as enfiara na mochila, pois fumava sentada num monturo próximo; tinha a face e olhos vermelhos de lágrimas. Marco encostou a mochila nas suas pernas. Ela sofria, mas estava linda; possuía uma aura de menina abandonada de conto de fadas, ele pensou, desejando-a intensamente. E como desejava também saber falar o russo ou o inglês para convidá-la para morarem juntos no Studentheim, e pouco lhe importava a presença de Asif... Teria uma amada para rivalizar com ele. Tentou consolá-la com algumas palavras em alemão. Ela parecia alheia; ajoelhou-se diante dela. Então se deu conta de que lhe faltava algo estável... Essa súbita revelação o encheu de tristeza, mas talvez não fosse tarde para voltar atrás... E havia o dinheiro que ganhara no Fawela... Tânia não viera a Berlim para estudar? Bocas lhe disse isso no dia em que se conheceram. Subitamente pensou em Luiza, a namorada na pátria distante. Lamentou-se de que a perdia. Mas por Tânia ele faria qualquer coisa, inclusive empenhar todo o seu talento e esforços para continuar os estudos. Adquiriu coragem, segurou seu rosto, aproximando-se para um beijo... Mas ela reagiu mal, repeliu-o de si agressiva. Marco caiu para trás com as pernas agitando-se no ar e, por alguns segundos, sentiu-se um imenso inseto que tem o dorso ao chão e se debate sem conseguir levantar-se. – Idiot! – ela o xingou, afastando-se de encontro à pálida claridade do sol que se erguia por trás da cerca de flandres. Marco nunca mais a viu.

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C a p í t u l o

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Mário Marcos, o Bocas, era de Minas Gerais. Era filho único de uma família muito pobre, e o pai, alcoólatra, um homem que adorava a folia: desordeiro e servo da violência. Bem, a mãe não aguentava mais a visão de uma criança assustada, tímida; não sabia mais como lhe dar conforto e alimento: a criança era igualmente insegura e raquítica. Buscou amparo numa igreja evangélica. Conversaram com o pastor, o pastor gostou do menino, passou a dar-lhe lições de escrituras; ele aprendia a ler e a ter confiança e desprendimento. O pastor se chamava Tiresa... Um dia, contou ao menino a história de sua conversão. Comunista a maior parte da vida, começara a sofrer perseguições políticas ainda no governo de Getúlio Vargas; estivera preso na mesma cela onde enfiaram o escritor Graciliano Ramos. Em seguida começou a falar todo orgulhoso sobre a referência positiva que o escritor lhe faz em Memórias do Cárcere. Tiresa sofreu inúmeras torturas, e como envelhecia... Veio o regime militar!... cansou-se da luta e das perseguições. Para se ver livre, ele, então, conheceu a Assembleia de Deus, e também a sua amada e fiel esposa; percebeu semelhanças entre os ensinamentos de Javé e a doutrina de Marx: a luta do povo oprimido pela terra, por exemplo. Mas guardava as teorias do mestre alemão no silêncio do coração. Bem, ele agora tinha uma filhinha, não queria mais conversas com os inimigos, que o deixassem em paz, conseguia... Tornava-se um homem com uma aparência de devoção e simplicidade, esqueciam seu passado... Mas não deixava de lado as saudades dos tempos de política e nem suas ideias socialistas se apagavam de vez. Aquele menino tinha os olhos meios saltados de um corvo! Quer dizer, expressavam descrença e, à espera, perscrutando, sempre, incógnitos, interrogativos... Tiresa se sentia desafiado... O menino não se confundia ao responder suas perguntas sobre o evangelho; parecia tê-lo na ponta da língua. Era vivo! Tinha uma memória fabulosa para nomes hebraicos e gregos e romanos e um desejo incontido, que sugeria ambição e dom oratório, de impressionar os outros. Tiresa lhe deu comida e roupa, reservou para ele um cantinho na casa do Senhor; salvou-o dos espancamentos do pai... A mãe demonstrava uma imensa gratidão ao pastor... Ela agora sofria sozinha, mas aceitava com resignação as agressões Capít u lo 4 | 5 5

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impingidas pelo esposo. O jovem agora tinha uma nova família, e todos os dias, após o jantar, eles conversavam sobre o passado, sobre os segredos e ideais políticos de Tiresa, que vez por outra lia em voz alta o capítulo em que era citado no livro de Graciliano Ramos... Mário surpreendentemente se interessava mais pelo pensamento de Marx do que pelos ensinamentos de Cristo... Ele não dizia a Tiresa, mas o apóstolo Paulo lhe parecia um envenenador da alegria e dos prazeres, cujo objetivo é amargar a vida humana. No entanto, aos poucos Mário ia percebendo que o pastor não se importava com suas opiniões nada cristãs. Quando ele completou vinte anos, Tiresa o levou a Belo Horizonte; procuraram a casa de um amigo, que se assustou ao vê-lo. Tiresa se desculpou pelo sumiço, explicou-lhe a nova vocação... O homem não riu, não o desprezou; entendeu seus motivos, embora pessoalmente continuasse a achar um absurdo a escolha de um caminho que leva ao nada: Deus! Ele permanecera fiel ao Partidão, mesmo que agora adotasse um outro nome. Tiresa lhe falou de Mário, que buscava para ele uma boa formação universitária e política, algo que poderia servir a todos no futuro – Tiresa ousou indicar, com um amplo gesto de mão, os três ali presentes e o mundo. E então perguntou ao membro do Partido se eles ainda tinham aquelas bolsas de estudos para a Universidade Patrice Lumumba da Amizade dos Povos de Moscou. O rapaz é atento, esperto, inteligente... Desde pequeno revela um dom do Espírito Santo para idiomas... O homem fez uma careta... Tiresa olhou um tanto fixo e estranhamente para Mário, que retribuiu o olhar com um gesto de incentivo, um breve levantar de cabeça. Tiresa conseguiu corrigir-se a tempo: não um dom do Espírito Santo, mas um talento superior, peculiar ao meio proletário. Dias depois, o pastor voltou para Três Corações. Mário Marcos ficou em Belo Horizonte... Almírio entrou em contato com a embaixada soviética para fazer um pedido formal do Partido: uma bolsa de estudos. Mário obteve também a passagem de avião pela Aeroflot, que partia de Buenos Aires com destino a Moscou, e o visto de entrada para o Império Vermelho. Em Moscou, Bocas frequentou um curso intensivo de língua russa com aulas de segunda a sábado – um requisito imprescindível para entrar na universidade. E, sem dúvida, às vezes as mais de trinta letras do alfabeto cirílico embaraçavam-no, mas aprendia rápido a falar bem. Escrevia a Tiresa: “Os vietnamitas e os cambojanos gaguejam, soletram e se engasgam com o idioma. Ah, pastor, a minha língua é como a pena do escrivão que escreve agilmente! Eu despacho frases inteiras em segundos... E acho também que a professora gosta de mim. Ela me admira!”. Mas não escrevia a Tiresa a respeito do ódio que começava a sentir do que mais esperava gostar (e naturalmente): o marxismo-leninismo, a disciplina mais importante da educação soviética... Se ele se saía bem no idioma, engolia 5 6 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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mal, ao contrário dos vietnamitas e cambojanos, os fundamentos filosóficos de Marx e Lênin. Achava o tema maçante: “O marxismo-leninismo compreende o mundo tal como ele é. Investiga e esclarece a realidade em suas verdadeiras relações e fundamentos materiais. A única e verdadeira concepção científica da realidade, a mais perfeita”. Às verdades dos mestres sobre a teoria que rege o universo, Bocas reagia com raiva e tédio; não conseguia vencê-los. Na primeira página do livro Russo para Todos – Ciências Sociais –, ele rabiscou o seguinte comentário: “É um livro inútil, de tema maçante, que só convence idiotas de mente estreita, como esses orientais excessivamente obedientes. Como não me considero idiota sinto-me um mártir, que sofre torturas, ao obrigar-se a lê-lo, sem reclamar”. Reprovado no teste final de marxismo-leninismo, embora com excelentes notas em língua russa, passaram-no à universidade pela boa média – os ares políticos começavam a mudar. Na verdade, sua professora convencera o diretor do Instituto de Língua Russa a aprová-lo. E essa foi a sua primeira conquista amorosa... Demonstrava aptidão! O relacionamento dos dois se aprofundou durante as excursões promovidas pelo Instituto por cidades próximas a Moscou. Os dias eram de programação cultural, visitas a museus da Revolução, a grutas de minério, fábricas e hidrelétricas, e à noite, nos albergues, organizavam-se festinhas de confraternização. Tirou a professora para dançar, ensinou-lhe passos complicadas, curvas audaciosas, que só o corpo humano é capaz de empreender. Ah, aquilo estava no seu sangue. E como ela se divertia! As maçãs de seu rosto, de uma brancura celestial, ficavam logo vermelhas, como uma fruta temporã, e sorria afoita como uma criança num parque de diversões. Eles arrancavam aplausos! Os outros se recolhiam para dormir, e eles lá saracoteando os quadris... Aconteceu o primeiro beijo, a troca íntima de carícias... De volta a Moscou, seus dias se encheram de relações íntimas e apaixonadas. A permuta seguia adiante: ele usava a dança, cada dia mais curta e simplória, para possuí-la, e ela, o idioma, para educá-lo, pois acreditava na permanência de seu amor por aquele aluno estrangeiro de paixões intensas. Nos primeiros meses de universidade, no curso de ciências sociais, Bocas até que gostou... Estava livre de seus colegas orientais. Porque não precisava mais conviver com a estupidez, a gagueira e o espírito de obediência cega que os definiam. Descobriu os clubes de estudantes, onde agora passava a maior parte do tempo, e que a alegria que envolve as conversas em torno de uma mesa com bebidas é mais dinâmica e saudável que as ideias de Lênin e Marx apregoadas nas salas de aula. Bocas não percebia, e talvez nem a sua dedicada amada, mas o envolvimento, antes impossível, entre um aluno e uma professora num relacionamento aberto Capít u lo 4 | 5 7

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e provocativo, refletia em escala pessoal as mudanças pelas quais passava a União Soviética com a política de distensão de Mikhail Gorbatchov. Mas a questão decisiva era a resposta pouco entusiasmada do povo! Depois de décadas de sacrifícios estúpidos e ansiedade insatisfeita, a postura visível das pessoas era de indolência – proveniente de um esgotamento físico e mental – e descrença conformista. De uma hora para outra ninguém mais se importava com o passado, a preservação do legado leninista, nem tampouco com a construção do futuro. As pessoas se cansaram de uma vida determinada pela burocracia estatal: um deixar-se levar, como um cadáver abandonado num mar tempestuoso, era a única coisa a fazer. Na universidade, a exigência acadêmica decaiu, a comida do refeitório piorou; os estudantes tiveram de formar grupos de segurança contra a criminalidade que agora se aproximava do campus, e os professores abandonavam suas convicções ou perdiam-se em dúvidas acerca da validade dos princípios a serem ensinados. O sentimento predominante era de espera e entrega: se há um senhor da história é ele quem devia levantar-se cedo e extrair algo de útil do dia que se apresenta. Muitos alunos enlouqueceram; seu mundo virava de ponta-cabeça. Bocas viu adiante: um universo de possibilidades! E o nome disso é liberdade, ao menos ali em Moscou. Poderiam um dia, ele e os outros, sentir falta de um Estado que lhes indicava caminhos sem desvios e concessões, pois não afrouxa a vigilância ideológica que impõe ao indivíduo... Mas aquele momento da história oferecia a interessante experiência de viver o expirar de um império: os freios morais arrebentam, os costumes desembestam ao encontro do permissivo, surgem novas drogas, as bebedeiras se intensificam, os mais espertos tiram proveito e as mulheres se entregam facilmente... Bocas sentiu que não podia mais ficar com a professorinha, e os clubes de estudantes deixavam de ser um salão de livre discussão de ideias para se tornar um lugar de lamentos, expressões de medo e desespero... Apareciam os primeiros bilionários – ex-membros da KGB e do Partido Comunista que adquiriam empresas falidas a preço módico ou formavam cartéis para conquistar os setores promissores da economia: petróleo, indústria de armamentos, prostituição e comercialização de drogas... A pobreza estreitava nos seus braços a vida de Bocas: o pagamento de sua bolsa de estudos atrasava. Ele deixara de escrever a Tiresa, porquanto as novidades com o aprendizado da língua e da cultura não faziam mais sentido. E o que escrever se de um canto a outro do país só havia escuridão e desordem, e justamente para a pessoa que depositava nele todas as suas esperanças de um mundo melhor? Ao seu redor, ideias supostamente mortas ressuscitavam; surgiam os primeiros grupos racistas e paramilitares de caça a estrangeiros... Moscou mergulhava no caos! Abandonada por um sistema totalitário ela agora virava um pasto infestado de feras e parasitas. 5 8 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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As aulas rareavam... No entanto, ele estremecia diante da possibilidade de voltar para o Brasil, para Três Corações... Conheceu um brasileiro: Barad tinha alguns dólares; talvez Berlim fosse o melhor lugar na época para se continuarem os estudos, Barad presumia... Havia a forte Alemanha Ocidental, forte em virtudes sólidas e sérias, e muito dinheiro, para sustentar a combalida Alemanha Oriental e os países falidos da Cortina de Ferro e seus estudantes apavorados. Ora, não foi difícil corromper um funcionário da Aeroflot para lhes vender, por um terço do preço, duas passagens aéreas até Berlin-Schönefeld. No começo, eles se deram bem, mas Bocas logo cansou da prolongada companhia de Barad, um sujeitinho ambicioso que procurava destacar-se entre os colegas brasileiros pelos planos futuros de estudos, pois parecia imaginar que não houvesse entre eles alguém capaz de rivalizar com ele em inteligência e consciência de atitudes e atos corretos. Enfim, um controlador de comportamentos alheios! Bocas estava saturado disso. Bocas não acreditava que se tornava uma espécie de cínico em sua percepção particular da história. Supunha sim que não fazia mais sentido envolver-se com obrigações e projetos distantes, ou fiar-se na permanência inteiramente falsa dos atos humanos. Ao contrário de Barad, não pretendia continuar os estudos; não tinha pretensões de físico quântico ou psiquiatra para tentar entender fenômenos em constante mudança... Tudo que tinha a fazer era viver como se fosse morrer no dia seguinte, e, em Berlim, esta perspectiva do provisório dar-se-ia pelo gozo pleno das paixões. Além disso, a luta com a vida real, aquela parte da existência que exige o empenho contra as dificuldades diárias, seria obviamente facilitada pela eficiência e generosidade germânicas. Mas algo que lhe ficou claro – sobre o qual não restavam dúvidas e equívocos – era que a pretensão de Barad em querer regular a todos e a tudo provinha na verdade de um espírito inseguro e pouco confiante. Quaisquer sugestões que Bocas fazia, Barad ponderava longamente, como se fosse possível pesar numa balança imensa e pesada decisões que urgiam providências imediatas: “Isso vai nos trazer problemas, não é bem por aí”, Barad sempre dizia. E que Berlim não era Moscou; o respeito às leis devia ser o princípio básico de sobrevivência no novo destino. Bocas questionava; depois de tantas loucuras enfrentadas em Moscou, não dava mais para abrir mão da esperteza, e aplicá-la contra aqueles que não a conheciam, os berlinenses orientais, era sim o verdadeiro manual de sobrevivência. No próprio aeroporto, após passarem incólumes pelo controle de passaportes, mais alguns passos, e nem um dasvidânia eles desejaram um ao outro. Bocas sabia que devia uma boa soma de dinheiro a Barad, e Barad também, mas ambos tinham consciência de que não haveria cobranças, e procurariam não se importar com isso. Barad matriculou-se na universidade localizada no lado oriental da cidade, Capít u lo 4 | 5 9

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a Humboldt-Universität, e Bocas também, mas em dias e horas diferentes. Mas a Bocas interessava a comida barata, o valor do transporte pela metade, o status de legalidade... Nunca colocou os pés numa Vorlesung, não ouviu uma aula. Um ano depois, com a implementação de um sistema educacional em comum para toda a Alemanha, a fim de não encontrar Barad, Bocas escolhia os restaurantes universitários do lado ocidental de Berlim. Desprezava o ex-amigo sem deixar de lhe desejar o pior: que abrisse finalmente os olhos à realidade, dando razão ao seu modo superior e atual de vida. Enfim, que quebrasse a cara... a alma! Mas, para si, Bocas ansiava pelos verdadeiros frutos da democracia capitalista: mulheres, bebidas, drogas... O que fazer com sociologia? Se um dia retornasse ao Brasil, talvez de férias, escolheria as praias do Nordeste. Uma única vez, já em Berlim, ligou para a mãe. Soube, então, que o pai sumira, ou morrera como indigente em alguma vala de esgotos, e que Tiresa partira de vez: uma morte triste, diabetes. Ficou cego, amputaram-lhe as pernas... A mãe de Bocas, nas suas visitas ao pastor, sentia-se embaraçada, constrangida, com o silêncio e a ingratidão do filho... O pastor sofria de desespero! Não queria morrer, lamentava-se: “Irmã, onde está o meu menino Mário Marcos? Nunca mais me chegou uma palavra sua, um bilhete sequer... Ah, Deus, o que tens contra mim para tratar-me como uma folha seca levada pelo vento? Estou sem rumo!”. Às vezes ele delirava, cumulando-se de culpas: o fim da URSS acabou com seus sonhos e nublara a existência daquele a quem confiara seus segredos. Morreu acreditando que o sistema político de suas crenças, o socialismo, tombara sobre Bocas, esmagando-o injustamente. Neste dia, Bocas enviou um boa quantia de dinheiro à mãe. Depois a esqueceu completamente. Em Berlim, Bocas descobriu os squatters – prédios abandonados invadidos e ocupadas pelos anarquistas. Uma alemã convidou-o para morar num desses prédios, aquele que ficava na Mohrenstraße. Katja descendia de nobres prussianos, mas não queria saber da família, que agora reivindicava um palácio e sua vila de moradores nas cercanias de Berlim... Ela achava a reivindicação horrorosa, pois perdera, depois de tantos anos, o sentido de reparação de uma injustiça perpretada pelos comunistas contra a família para tornar-se uma transmissão de dor àqueles que nasceram na hora errada, os pobres moradores da vila ali alojados depois da guerra. Artista plástica iniciante, Katja não se importava de fazer sacrifícios... Aprazia-lhe a vida alternativa e independente da mesquinharia dos pais; trabalhava, para manter-se e poder comprar tintas e pincéis, como garçonete num restaurante suíço na Kurfürstendam, a avenida luxuosa de Berlim. Não era bonita! Mas ela fez bem em não demonstrar carência afetiva, pensou Bocas, sentindo-se livre de um apego inconveniente, o que certamente geraria problemas de relacionamento. Até poderia deitar-se com ela... Mas uma 6 0 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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só vez, e pronto! Ah, não pretendia mais considerar os sentimentos alheios. Ele achava que existem certas ilusões desnecessárias, como a culpa e o remorso, que só servem para atrapalhar uma vida livre. E gostou do quarto, que Katja lhe indicou, no primeiro andar do prédio... Ele descobriu, nas proximidades de seu quarto, após cruzar uma ponte estreita, uma pequena descida... Gastou uma semana inteira para abrir espaços e afastar monturos empoeirados até encontrar uma pesada porta de ferro. Parecia-lhe que aquela porta jamais fora aberta depois da guerra; ainda estava suja de fuligem das bombas incendiárias. Com grandes esforços conseguiu empurrá-la, entrou e encontrou um imenso porão de três espaços distintos. Enquanto imaginava o que fazer com aquilo tudo, teve a ideia do bar. Subiu, saiu à rua pela porta principal, contornou o prédio, entortou a cerca de flandres que protegia o terreno vizinho, entrou e estudou a área. Dois dias depois, voltou ao terreno e abriu a marretadas um buraco na parede do prédio, criando um acesso à escada do porão. Agradou-lhe que Katja não o procurasse. Artista ascética e dedicada, o ateliê, no segundo andar do prédio bombardeado, atraía toda a sua atenção. Melhor assim... Evitava chateações! E ele podia ocupar-se inteiramente de seu novo projeto. No andar de cima, viviam dois poloneses, que também se davam à arte... Bocas nunca quis saber qual tipo de arte. Mas eles, e o brasileiro Dias, limparam o porão, que estava abarrotado de pedaços de tijolos, ripas e blocos de cimento. Bocas agradeceu gentilmente aos dois polonenses. Quando o bar ficou pronto, e começou a atender, pediram para ter uma conversa com ele: exigiam imediatamente metade do lucro ou iriam expulsá-lo do prédio e fechar o bar. “Oh, Claro! Com todo o direito”, respondeu Bocas. Ora, se houve uma lição, que aprendera bem nos tempos de Rússia, foi aquela de se impor, de jamais demonstrar fraqueza. Uma vantagem e tanto numa cidade como Berlim, onde a ordem estabelecida recompensa a confiança e a autoafirmação. Ele não tinha nada a perder! Empregava, logo que conhecia as pessoas, uma paciência extraordinária, quase apática. Mas que podia tornar-se extremamente violenta se contrariada, ou se ele percebesse que os frutos rendidos pela indiferença eram insuficientes. – Marco, lembra que eu te falei de meus planos pra melhorar de vez as coisas por aqui? – perguntou ele – Sabe quais? O prédio inteiro só pra nós. Por enquanto a Katja não perturba. Mas no terceiro andar há dois quartos grandes, um é teu... – Sim, e? – Têm dois polacos filhos da puta, neste andar mais alto, vivendo no luxo, como se tivessem piscina, heliporto e churrasqueira. Deram agora pra vir aqui me cobrar taxas e pedágio... Onde já se viu isso? Pois vamos expulsar os dois hoje à noite Capít u lo 4 | 6 1

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enquanto estão dormindo. Ninguém vai matar eles, mas eu quero dar neles uma surra sem piedade e tréguas. Aqui está: um cabo de vassoura! Tem também este cinto... – Prefiro o cinto. – Não vai chicotear como quem dá surra de pano em crianças. Lembra, são dois cagões. E estão completamente ilegais aqui em Berlim, não têm a quem recorrer. Não é que Marco gostava de estar ali com Bocas; seus sentimentos oscilavam... Atribuía à carência física as saudades que sentia de Luiza. Além disso, a fim de afastar o senso de dever pessoal – em especial, empenhar-se para retomar os estudos –, proveniente em grande parte da lembrança de Luiza, esperava conquistar uma daquelas alemãs que frequentavam o bar... Mas tinha de ser uma que aceitasse aquela vida de escasso conforto, banhos raros e comida ruim. Por outro lado, de gratificante recompensa: dias divertidos de eterna despreocupação! Mas ele perdia gradualmente as condições de ir às aulas, o semestre chegava ao fim. Não mais lia, falava em português com Bocas e um pouco de alemão com os outros. Embrutecia-se. Oh, claro, parecia condenado... Então mascarava as importunações da dúvida quanto à atitude correta de vida com bebidas, cigarros de haxixe e cocaína. E com esperança renovada, todas as noites, de uma conquista amorosa: esperava ansioso pelas clientes que ali desciam. Uma delas, a sua provável alma gêmea. Embora cansado, após noites de muito trabalho e farras, Marco aproveitava, ao deitar-se no velho colchão, as mãos atrás da cabeça, para desfiar, como uma oração habitual, sua queixa recorrente, dizendo: “Eu não pego mesmo no sono facilmente... Maldita insônia! Mas é porque o Bocas sabe de minha fissura de mulher. Ora, que custa ele me passar, como me passa o haxixe e a cocaína, uma só de suas inúmeras conquistas, que logo descarta... Por que se recusa a socorrer-me? Se eu suplicasse... Ah, isso não! Iriam rir-se de mim feito loucos, ele e este sujeito chamado Reimar Grube, seu novo e imenso amigo. Melhor esperar. Que o diabo zombe, mas um dia cede. E o que tenho a perder? Ao menos vou juntando dinheiro... Espero mais um ano, levo alguns comprovantes da universidade, arranjo uma matrícula no Brasil, tenho Luiza à minha espera... O que mais quero?”, e procurava consolar-se, ou não alcançaria o sono que deveria revigorar para enfrentar o dia seguinte. Na noite em que expulsaram os poloneses, apareceram no bar duas brasileiras, Sandra Tarachand e Ishtar Brandão. Marco apostou logo: estão ilegais na Alemanha... E procuram um marido alemão para casar e evitar uma possível deportação, embora a paixão seja pelos latinos, quer ver? Às vezes conseguem matrículas nas universidades, e movidas pela suposta facilidade escolhem os cursos de espanhol 6 2 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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e português. Mas ali estavam aquelas duas prontas para cortar limão, emborcar açúcar e aguardente nos copos, triturar pedras de gelo... De onde Bocas as tirara?, perguntou-se Marco. Ele arranja cada uma. Não eram feias, e a Sandra valia bem a pena. Era um pouco alta, e já fora magra. Não era mais; era bem atraente de corpo; tinha uma bunda empinada, e o rosto esperto, ligeiramente agradável. E uma boca grossa, os olhos castanhos e os cabelos jogados para trás. Mas não era só a esperteza, o corpo vivo; ela tinha também um quê de desfaçatez, como se procurasse reafirmar uma disposição, meio selvagem, meio sobrenatural, para triunfar a qualquer custo, e prender junto a si suas conquistas tão laboriosamente ansiadas. Conversaram bastante enquanto trabalhavam. Ele mesmo não sentiu falta das alemãs... Empolgou-se! Acreditou que poderia levar a Sandra para o quartinho... De que parte do Brasil elas seriam? Confiante, ele lhes deu dicas valiosas e se dispôs a ajudá-las, pois conhecia a cidade de Berlim tão bem como um geógrafo. Marco se achou no direito de protegê-las, e se decepcionou quando as viu, uma de cada vez, subir com Bocas para aquelas olhadas típicas no espelho embaçado. Voltaram falantes e cheias de planos de vida. Foi só isso, ou Bocas lhes presenteou com algo mais do que farinha boliviana? Lá pelas quatro da madrugada, o chamado importante de Bocas: “Marco, vem, a urgência nos chama! É hora de expulsar os parasitas da Polônia. Pega o cinto! Temos de fazer a recompensa cair nas nossas bolsas, eh, eh”, proclamou Bocas. Escalaram as três pontes até o último andar, uma subida perigosa, mas necessária pela surpresa a ser preservada. Enquanto subiam ia combinando a estratégia de ataque: entrar de uma vez e acertar os polacos sem dó e compaixão. Na terceira ponte, tomaram impulso: um alvo para cada um. Marco lembrou depois de ter voado com os dois pés contra a porta de um dos quartos, mas sem atentar que se ela resistisse ele teria caído para trás, machucando seriamente as costas e a cabeça. Como Bocas bem orientou, era para atacar com gritos animalescos e virar e revirar o que encontrasse pela frente. Bocas foi mais rápido, sua presa logo berrava de dor. Mas Marco não descobria onde estava o maldito polaco que devia expulsar; revolvia impaciente no quarto: objetos de arte, estantes, mesas... Dava chutes e chibatadas a esmo. Finalmente o encontrou encolhido num canto: Bitte, ich bitte, bitte!, o sujeito piava por misericórdia. Contudo, Bocas não o instruiu na melhor maneira de enxotar um sujeito tão submisso e frouxo. Marco – ele estava tão nervoso que não parava um segundo de estalar o cinto – começou a praguejar contra o polaco, mas em português mesmo: “Sai daí, coisa do inferno!”. E lá o pobre coitado obedeceu... Poderia ter-lhe enfiado um chute no traseiro. Mas a aparência de Marco devia estar assustadora, pois o outro partiu porta afora como um suicida ao encontro de um trem. Capít u lo 4 | 6 3

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E seus adversários foram empurrados escada abaixo – Bocas e Marco agora tinham domínio do andar; não precisavam descer pela encosta perigosa das três pontes. Bocas era duas vezes mais violento que Marco! Ele não amainava os golpes com o cabo de vassoura, ferindo seriamente o alvo, e gritava para Marco também não aliviar a mão: aqueles polacos tinham de ter ciência de suas loucuras assassinas! No térreo, os polacos, chorando e soltando súplicas em polonês misturadas com alemão, ansiosos para se livrarem daqueles demônios, abriram eles mesmos a porta principal do prédio e escaparam... Marco achou: Ufa, ganhamos a guerra! Não para Bocas. Na rua, Bocas prosseguia a pancadaria, e bramia para Marco não suspender as chicotadas: era para tê-los definitivamente longe dali. De preferência em Varsóvia. E a perseguição continuou pelas vias berlinenses adentro... O dia, ainda escuro e frio, mas com uma lua úmida e arroxeada, favorecia seus esforços... Levaram as vítimas debaixo de bênçãos sacrificiais até a rua Jerusalém, onde, como bodes em fuga, elas desceram uma pequena ladeira, marcando seus passos com gotas de sangue. – Eles voltam? – Duvido. Mas vamos, ainda temos muito o que fazer. E despejaram, de uma altura de três andares, todas as porcarias que os polacos, como dois corvos, haviam juntado: inclusive suas supostas obras de arte – objetos da Alemanha Oriental recolhidos nos lixos da cidade e pintados com cores psicodélicas. Havia, porém, um conjunto bem realista: de cor vermelha, e, sobre portas velhas e janelas desgraçadas, a expressão Alles Paletti! Bocas não quis salvaguardar nem um único butim de lembrança. Era tudo para ser arriado sobre o parapeito da ponte... Interessava-lhe apenas o espaço limpo, e desinfetado. De volta ao bar, Bocas tomou Sandra nos braços e cochichou algumas palavras nos ouvidos de Ishtar. Esta fez uma careta, um riso de descontentamento, mas moveu a cabeça numa afirmação resignada. Bocas subiu com sua amante, e Marco ficou ali lavando os copos, limpando o bar agora vazio, e Ishtar por perto... Ela tinha o rosto partido de cansaço com cicatrizes de decepção. – Ganhou quanto? – ela disse. – Eu? – É, o trabalho que faz aqui, quanto ele te paga? Marco quis contar vantagens: – Eu moro aqui, não importa o que recebo – e quase acrescentou que era sócio do negócio. – E a você? – Uma esmola de cinquenta marcos. E mais cinquenta se eu esperar por Sandra. Mas chega, quero dormir. Marco poderia entender que Bocas lhe comprara Ishtar. Mas afastou de si a ideia de que obtinha, finalmente, uma concessão facilitada, agora que a 6 4 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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experimentava... Isso o fazia sentir-se incapaz – talvez porque não achasse o presente atraente. Subiram ao pequeno quarto. Ele pensou impressioná-la com o seu aspecto mais limpo – em relação à sujeira que reinava no quarto do amigo. Mas ela não parecia dar importância aquilo. – Não repara na desordem. Estou de mudança para o terceiro andar, terminamos de adquirir o restante do prédio... Ele é todo nosso! Se quiser, façam-nos uma visita, e sejam bem-vindas. – ele disse, mas pensando mais em Sandra. Quem sabe Bocas a dispense, como sempre faz, depois da primeira noite. – Ah, não volto mais! – a voz de Ishtar soou fria e indiferente, completando, enquanto se desvencilhava do casaco, antes mesmo de ele acrescentar uma pergunta: – E por hoje isso aqui dá pro gasto. – Se você quiser eu saio... – Marco receou tê-la por inteira, e nua, diante de si. Mas e o frio lá fora? Ele aumentou, porém, o volume do aquecedor portátil. – Para quê? Aqui cabem dois perfeitamente... Embora um pouco sujo, diga-se de passagem – ela apontou os cobertores amontoados sob o colchão. Mas Ishtar era um pouco cheia... Gorda, na verdade! Ela estava agora só de calcinha, Marco a olhava decepcionado. E ela parecia tão gostosa vestida. Como calça jeans engana!, é um diabo. – E vai ficar aí olhando, feito besta? – ela resmungou. Ele começou lentamente a despir-se, e ela já a postos. Apesar do aquecedor, ele sentia frio... Mas era porque tinha receios de não conseguir excitar-se. Imaginava-se um garoto diante de sua primeira experiência com uma prostituta... E o que ela era, então? – Vem – ela o chamou com a expressividade de um cadáver. Se ele fosse até ela e puxasse seus lábios para cima, os dentes sorririam, se ele curvasse a pele do seu queixo para baixo, a boca apresentaria seriedade; vê-la morta, bastava baixar suas pálpebras com a ponta dos dedos. Que coisa! Deitada era bem maior, parecia uma imensa boneca inflável. Ela, então, avançou sobre ele como um elefante indomável, sufocando-o ao esfregar-se-lhe na barriga. Ele a empurrou para a posição correta. Mas ela fazia uma fricção sem efeito, como se quisesse esfarelar seu membro. Marco sentia cócegas e dor. A impressão que tinha era de estar nas mãos de uma cozinheira apressada e incapaz de fazer uma simples massa crescer. Forçou-a a descer mais ainda: devia fazer dos lábios um aparelho de sucção. E não é que entendeu a insinuação... Ah, ela não é tão ruim assim!, sorriu satisfeito. Mas que prazer se tem de enfiar na boca um pedaço murcho de pele? Uma verdadeira brincadeira de criança... Ela puxava, esticava, e nada... Marco logo iria estourar de rir. – O que você tem, afinal? – ela disse, levantando a cabeça de entre suas pernas e mirando-o com enfado. – Acho que cansaço. Capít u lo 4 | 6 5

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– Ah, tá! – e ela lhe virou as costas. Ele, contudo, achou que devia agradá-la; aprendera, na Alemanha, que um homem digno se preocupa com o direito das mulheres ao prazer. Aproximou-se pelos flancos, ela permitia. Marco desceu direito ao ventre de Ishtar, mas um cheiro desagradável o recebeu muito mal. Prendeu a respiração, fez o que pode, não iria longe; teve nojo, e o esforço para vencê-lo, extenuante. – Desculpa, estou realmente cansado. – Foi bom – ela respondeu num muxoxo. Marco acordou ao fim da tarde... Estendeu a mão para o lado, percebendo que estava sozinho. Escutou o som de vozes, abriu a porta do quarto: eram de Ishtar e Sandra. Elas chegavam com uma mala e uma mochila. Sandra iria ocupar o quarto de Bocas. – E Bocas? – Vai morar no terceiro andar! – respondeu Sandra, rápido, a voz límpida, e a fisionomia tranquila de quem acabara de tirar dos ombros uma pesada inquietude. – Oi, você realmente estava cansado – comentou Ishtar, e as duas riram-se de chorar. Marco não ligou; ficou a matutar: “O que tem Bocas em mente? Naturalmente o quarto do outro polaco será meu”. Mas não subiria atrás de respostas... Preferiu voltar para o quartinho, onde acendeu um cigarro depois de cair de costas na colchão; pensou: “Ao menos parece que esta Ishtar não vai grudar no meu pé... Foi tudo tão terrível com ela. Nada deu certo!”. Não, o que realmente precisava era de uma alemã. Brasileira por brasileira, havia Luiza, e ela o esperava lá embaixo na gigante nação do hemisfério sul – esse pensamento deixou-o satisfeito. “Fico aqui mais um ano, junto dinheiro e retorno. A garantia para que Luiza me espere? Um telefonema mais tarde com confissões de amor eterno. Mas não vou embora daqui sem possuir uma alemã.” Reimar Grube, o Gruba, o novo amigo de Bocas, teve um dia um bisavô alemão – o restante da família era do Piauí, que descera para o Rio de Janeiro, onde ele nasceu. A ascendência germânica era cultivada com cuidado: Gruba esperava obter, por meio de tão tênue fiapo genético, a nacionalidade alemã, e com esta a porta para amplidão: a comunidade europeia! Como Marco, Gruba conseguira uma bolsa de estudos do governo alemão oriental, mas para fazer em Halle, a cidade de Händel, uma graduação em física. Ele acalentava sonhos astrofísicos grandiososos que só poderiam ser satisfeitos em contato com os especialistas na área. Mas veio 1989, a Queda do Muro de Berlim... Halle perdia a graça, e para chegar aos tais especialistas Gruba tinha de graduar-se com méritos. O diabo!, as aulas eram pela manhã, e ele não acordava antes do meio-dia. A cidade era 6 6 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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praticamente um Kaff, uma aldeia, sem diversões e vida movimentada... Pensou então em Berlim como onde as coisas acontecem de verdade – uma ideia, para ele, exemplar! E ponderou que, com as mudanças vindas de Bonn – do governo vitorioso –, os físicos famosos da universidade seriam dispensados. E chegou a uma conclusão interessante: eles escapavam para a Ásia, onde iriam contribuir, em troca de proteção e muito dinheiro, com o projeto de bomba atômica dos aiatolás fanáticos do Irã e do maluco da Coreia do Norte. Perguntas e muito faro levaram-no ao Fawela, o bar de Bocas. Gruba possuía um talento inato: cozinhava muito bem. Não tinha ainda vinte e cinco anos, mas o cabelo se tornava grisalho. A cabeça era grande e quadrada, o rosto glabro, de tez morena, e jamais seria tomado por um alemão. O nome de família, Grube, era seu único traço de raça superior, a coisa mais bem prezada por ele e pela mãe. Baixo e de mãos grandes, estalava a língua ao se pronunciar a respeito de seu assunto preferido: discorria empolgado sobre pratos brasileiros, e realizava o dom culinário com os ingredientes encontrados na metrópole unificada. Adorava ver seus comensais se fartarem com os pratos que preparava... Ele apenas beliscava! A sua sofreguidão eram as drogas, qualquer uma que aparecesse: não interrogava os efeitos, não temia experiências ruins, e sem peso de consciência ou medo (de uma overdose). Um homem dos mais corajosos nesse quesito. A identificação com Bocas foi imediata... Se Marco tinha momentos de reflexão... A sua função no bar não era gratuita... Bocas precisava de alguém como ele para conduzir o barco... Não falavam a respeito, mas Marco percebia que ele e Bocas não se casavam. Mesmo nos momentos de descontração, algo permanecia atravessado entre ambos. Marco se interrogava sobre o motivo de suas diferenças... Bem, de Bocas ele achava que o sabia: o amigo era excessivamente imprevisível. Mas por que Bocas, em relação a ele, mesclava indiferença com raros votos de confiança? O episódio de expulsão dos polacos foi uma boa demonstração de entendimento... Mas geralmente Marco tinha de esforçar-se para que acontecesse uma aproximação. Já com Gruba Bocas era um irmão... Um estado permanente de euforia mantinha a detestável tristeza... Gruba conseguia como ninguém afastar os pensamentos que pudessem prejudicar mais ainda o humor sempre instável de Bocas. Ele o mantinha preso ao presente e, através de graças e disposição, às maiores loucuras. Outro ponto, Gruba não era um rival para ameaçar suas conquistas amorosas. Gruba pouco se interessava por Weibas... De espírito acomodatício, não tinha disposição para tomar a iniciativa. A sedução, se ocorresse, devia partir das mulheres. Ele considerava o sexo, por mais estranho que soasse a Marco, algo secundário, dispensável. Ou eram as drogas que lhe adormeciam a libido? Marco se perguntava. Talvez não. Gruba Capít u lo 4 | 6 7

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era do tipo oral, com o órgão sexual transmudando em boca, goela e estômago, e anal – o prazer estava em defecar. Bastava-lhe ao pênis a função urinária. Mas se a disfunção erétil pudesse ser um defeito encarado com indiferença, não a úlcera, que o deixava preocupado e estourava todas as vezes em que recebia as cartas da mãe – agora reenviadas de Halle para uma caixa postal que ele mantinha numa agência de correios na Friedrichstraße. – Rasga isso, débil mental, e antes da leitura! – recomendava Bocas, irritado, ao ver o amigo curvar-se de dor após ler as cartas. Mas Gruba não se entregava... Eis sua virtude! Ele debochava da própria situação de filho idiota que não consegue desprender-se das saias da mamãezinha... As cartas da mãe de Gruba compreendiam inúmeras exigências. Ela cobrava do filho resultados elevados na universidade e a cópia de notas das provas. Extremamente convicta da aptidão do filho para o desenho, um promissor Albrecht Dürer, ela lhe mandava do Brasil lápis de cor da Faber-Castell acompanhados de ameaças: que ele não negligenciasse o talento herdado do bisavô à água-forte, e cuidasse dos estudos, pois não desceria no Rio de Janeiro sem o diploma de físico. Gruba dizia: – Ah, vocês não conhecem a louca da minha mãe. Não duvido que um dia ela apareça lá em Halle à procura de meus professores e das notas do filhinho. Sabem de onde ela vem? Do Piauí. Vocês conhecem isso? Sai alguma coisa boa de Teresina? Mas parece que descende do velho Grube... Suas manias são bem alemãs no que isso tem de pior. Meu pai não aguentou, sumiu. Nem o diabo sabe onde ele se meteu. É o meu caminho fazer o mesmo, ou vou morrer de câncer no estômago. Foi assim que Marco conheceu o Gruba: – Ele vai morar no terceiro andar, no quarto que fica ao lado do meu – disse Bocas. E pronto. Marco continuou no quartinho, Sandra naquele que um dia fora de Bocas, e Bocas subiu, e Gruba cozinhava para ele. O cortiço estava formado! Katja era a única estranha na dança da morte... Mas ela não incomodava, raramente era vista, e se se mostrasse excessivamente, metendo-se onde não era chamada, Bocas fá-la-ia conhecer a dor daqueles que perdem seu afeto, como Tiresa, a professorinha de Moscou, Barad, Dias, Tânia, os dois polacos... E Ishtar desapareceu, Marco não lamentou: ela era uma chatice. Além de gorda e apagada, fedia nas partes íntimas. Sandra não vivia ali tão de graça, pagava o aluguel com o trabalho no bar. Ao menos, Marco continuou sendo remunerado, embora não mais diariamente. Em pouco tempo, Gruba perdeu a bolsa de estudos. Marco também. Mas este mantinha vivo o propósito de juntar dinheiro... E aparecia na universidade, nos fins de semestres, para recolher o comprovante de presença naquelas aulas que não exigiam Prüfungen – testes para obtenção de notas. E ele ainda tinha um visto de estudante para dois anos. 6 8 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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Meses depois, Bocas comprou uma Mercedes usada, mas uma Mercedes é uma Mercedes. Impressiona! É o sonho de todo brazuca! E ele cismava; tinha dias em que não abria o bar... Então os quatros se enfiavam no quarto de Gruba, que lhes preparava filé à parmeggiana, arroz, vinagrete, feijoada e, de sobremesa, pão com leite e ovos, frito na manteiga, polvilhado com canela e açúcar. Eles varavam a noite jogando pôquer; os dois grandes amigos trapaceavam no jogo, ­surrupiando de Marco alguns bons marcos... Acesos devido às cheiradas de cocaína, secavam como água dois litros de whisky Talisker. Mas ninguém podia dormir antes de Bocas, ou experimentariam agressões gratuitas acompanhadas de gargalhadas sarcásticas. Tinham de forçar o corpo além do cansaço... Sandra mantinha-se desperta, e Marcos igualmente, dançando com sensualidade... Ele a achava extremamente sinnlich – uma safada que transpirava sexo, mesmo quando ficava drogada, pelos poros do corpo e da alma. E o Gruba, o que achava de Sandra? Ele só fazia rir, ou se levantava para preparar algum prato ou passar café no fogão. Marco não entendia como é que Bocas a trocava todas as noites por outras mulheres... Mas Bocas não escondera de Sandra a história de Tânia, a jovem russa: uma advertência para ela evitar demonstrações de ciúmes... Ela, então, fechava os olhos, no único ato em que dói fechá-los, a fim de não ver suas trapaças, recompensando-o ainda mais com votos de fidelidade. Às vezes aconteciam aproximações entre Marco e Sandra. Ele resistia! A lembrança do rosto deformado de Bocas era muito forte: a boca imensa, os olhos esbugalhados, a ossatura acentuada sob a pele fina, manchada... Tudo isso dava forma a um bicho enorme... E logo surgia diante de seus olhos a imagem dele correndo atrás dos polacos com um cabo de vassoura... Não valia a pena arriscar-se! Bem, seja como for, ele não era como os outros que supunham viver num lugar, como um castelo de vampiro, incólume ao tempo. Preocupava-se, ao seu modo, com o dia de amanhã... Sandra Tarachand se tinha por pessoa sensitiva... Um dia lhes mostrou a marca da mediunidade. Baixou a cabeça, afastou os fios escuros do cabelo, e lá estava a marca, eles podiam vê-la: o sinal se assemelhava a um minúsculo graveto. Sandra julgava saber quem ocupara aquele prédio antes: aquilo havia sido um bordel de luxo para oficiais da SS – ela conhece um pouco de história, avaliou Marco. Quando se encontrava sob ação do sobrenatural, a sós no seu quarto, em meio a velas acesas e preces, Sandra via braços e mãos enluvados no vazio acenando em sua direção. Então orava a Allan Kardec e os espíritos dos mortos se aquietavam. Bocas sempre respondia, muito sério, que aprendera o ateísmo na Rússia, mas que muito respeitava o fenômeno da mediunidade. Gruba gargalhava, mas um dia sugeriu que testassem a presença dos espíritos... Acenderam uma vela de cor vermelha, apagaram as luzes do quarto, Sandra retirou uma pequena Capít u lo 4 | 6 9

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Bíblia de um saco roxo; eles deram as mãos, enfiaram umas orações estúpidas, inventadas ali mesmo, no meio, enquanto Sandra abria a Bíblia e lia: “O rei disse aos seus servos: ‘Procurai-me uma necromante para que eu a consulte’. – ‘Há uma em Endor’, responderam-lhe. Saul disfarçou-se, tomou outras vestes e pôs-se a caminho; à casa da mulher, Saul disse-lhe: ‘Predize-me o futuro, evocando um morto; faze-me vir aquele que eu te designar’. Disse-lhe então a mulher: ‘A quem evocarei?’”. Fim da leitura. – E quem a gente evoca? Marco respondeu, a voz um pouco alta: – Ah, qualquer um, qualquer coisa! – Quem estiver aqui próximo que se manifeste – disse Sandra. Silêncio. Gruba começou a gargalhar, como sempre fazia nessas horas. Bocas também, mas não muito; preferia a seriedade (também nessas horas)... Todos estavam de olhos fechados por ordem expressa de Sandra. Mas Marco, curioso, abriu os seus, e viu sob as pálpebras de Sandra pequenas ondas que se moviam de um lado a outro, como vermes apressados. Assustado, ele largou as mãos de Gruba e Bocas e soltou um pequeno grito ao escutar a resposta de Sandra sentada à sua frente. Mas quem ou o que respondeu? Ela simplesmente grunhiu, como faria um bicho de selvas distantes. Gruba e Bocas também abriram os olhos. Gruba riu-se do que julgou ser uma brincadeira. Sandra grunhiu de volta, e cada vez mais alto e estranho. Bocas empalideceu; soltou um riso cinzento: “Sandra, larga de frescura”. Ela, então, rasgou uma folha de sua Bíblia e escreveu rápido de caneta vermelha, como se estivesse sob efeito de um transe: Au secours! Mas tão mal riscado, que as letras pareciam corcundas, e o derradeiro “s” inclinava-se para frente semelhante a uma serpente naja em posição de ataque. – Isso não é em alemão! – Parece francês, o que quer dizer? Ninguém sabia. – Acende a luz, Marco. Chega, Sandra! – insistiu Bocas. Mas como ela apenas rezingou, ele lhe enfiou um tapa no rosto. Ela caiu para o lado, pondo-se imediatamente de quatro e afastando o corpo como uma fera que estuda o terreno para contra-atacar; arreganhou os dentes e rosnou ferozmente. Num instante, os três ficaram bons dos efeitos do álcool e da cocaína: o caso exigia uma resolução. Marco achou que deviam rezar; agravou a manifestação: a besta, que havia em Sandra, urrava acuada todas as vezes em que tentavam dizer o Pai-Nosso. “Vamos de mãos dadas.” Bocas se recusava a acreditar: “Isso é bobagem!” E Gruba: “E eu só acredito nas leis naturais”. Sandra agora retorcia o corpo. Bocas não aceitava o que se afirmava como teatro; chutou a amada. Ela agarrou a sua perna, que ele 7 0 | As Almas Que se Qu e b r a m n o C h ão

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teve dificuldades de puxar de volta. Marco lhe pediu para não fazer aquilo, podia ser pior. Melhor esperar, talvez o espírito baixo fosse embora! O tempo passava, Sandra ficava cada vez mais fora de si. – Ela pode morrer – alguém salientou. – E aí sim teremos problemas, mas com os vivos. Seremos expulsos da Alemanha como delinquentes! – Marco se lembrou da residência dos estudantes de Teologia na rua Tucholsky; resolveram levar Sandra até lá. Talvez eles pudessem curá-la. Ainda bem que agora existia o Mercedes-Benz do Bocas, um deles reconheceu agradecido. Na Französische Straße, Sandra danou-se com alguma coisa; gritava enlouquecida, contorcia-se e grunhia. Todos perguntaram a razão, pois temiam que ela tivesse um colapso nervoso. Mais um dia amanhecia na Berlim agora unificada, e uma névoa azulada flutuava ao redor. Bocas ligou o limpador de para-brisa: perceberam a cruz sobre a cúpula da igreja católica. “Será isso?”, soltou Bocas, acelerando o carro. Com isso, Sandra ficou mais calma, apenas uma baba esbranquiçada escorria pelo nariz, entrando rápido na sua boca. Na Oranienburger Straße, retornaram os ataques... Avistaram o prédio da velha Sinagoga. “É isso”, deduziu Gruba, “ela se sente mal diante de sinagogas e igrejas”. – Dobra aí, chegamos, Tucholsky Straße – avisou Marco. Marco tocou a campainha da residência dos estudantes de teologia. Ainda era muito cedo, um domingo... Demoraram a atender. Finalmente apareceu um estudante. Marco não conseguia explicar-se direito... O nervosismo atrapalhava ainda mais o seu precário domínio do idioma alemão. Mas o estudante poderia zangar-se com aqueles Ausländers perturbados (estrangeiros que não têm o que fazer) que buscam em seu país o que de mais torto existe. E zangou-se, pois nem se deu ao trabalho de olhar a endemoninhada, embora Marco insistisse para que ele fosse até o carro parado ali na esquina. “Olha!”, ele revidou, “Nós estudamos a teologia de Lutero, e sob um ponto de vista estritamente moderno. Ninguém aqui acredita em spiritus malignus – usou o latim; quer esnobar, este filho da puta, pensou Marco –, diabolus e coisas e tal. Procurem os católicos, eles sim têm a superstição como meta!” – Onde estão eles? E o estudante lhe deu às pressas o endereço, e cantando Ein feste Burg ist unser Gott – Deus é nosso refúgio e nossa força! –, o belo hino luterano, bateu a porta. – E então? – Nem perguntou sobre a nossa origem, o canalha racista. Mas informou da Diocese Católica em West-Berlin. Vamos até lá, é o jeito.

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