Como Ouvir e entender
MĂşsica
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 1
22/08/13 14:12
Impresso no Brasil, agosto de 2013 Título original: What to Listen for in Music Copyright © 2011 by The Aaron Copland Fund for Music. Todos os direitos reservados. Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal: 45321 · 04010 970 · São Paulo SP Telefax: (5511) 5572 5363 e@erealizacoes.com.br · www.erealizacoes.com.br Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial Sonnini Ruiz Produção editorial Liliana Cruz Revisão técnica Leandro Oliveira Preparação de texto Fernanda Marcelino Revisão de texto Vera Maria de Carvalho Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É Diagramação André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Pré-impressão e impressão HRosa Gráfica e Editora Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 2
22/08/13 14:12
je ;
F
Como Ouvir e entender
MĂşsica
C
R Yh
AARON COPLAND
Traduzido por Luiz Paulo Horta
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 3
22/08/13 14:12
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 4
22/08/13 14:12
Sumário
Prefácio à presente edição............................................................................... 7 Nota do autor para a edição norte-americana de 1957................................. 13 Prefácio......................................................................................................... 15 Agradecimentos............................................................................................. 19 1. Preliminares............................................................................................... 21 2. Como você ouve....................................................................................... 25 3. O processo criador na música................................................................... 31 4. Os quatro elementos da música – 1. O ritmo........................................... 39 5. Os quatro elementos da música – 2. A melodia........................................ 49 6. Os quatro elementos da música – 3. A harmonia...................................... 57 7. Os quatro elementos da música – 4. O timbre.......................................... 67 8. Textura musical.......................................................................................... 81 9. A estrutura musical.................................................................................... 89 10. Formas fundamentais – 1. Forma seccionada.......................................... 99 11. Formas fundamentais – 2. A variação.................................................... 109 12. Formas fundamentais – 3. A fuga.......................................................... 121 13. Formas fundamentais – 4. A sonata....................................................... 131 14. Formas fundamentais – 5. Formas livres................................................ 143 15. Drama musical e ópera.......................................................................... 153 16. Música contemporânea......................................................................... 167 17. Música de filme..................................................................................... 173 18. Compositor, intérprete e ouvinte.......................................................... 181 Apêndice 1.................................................................................................. 187 Apêndice 2.................................................................................................. 193 Apêndice 3.................................................................................................. 197 Bibliografia sugerida e leitura complementar............................................. 201 Índice analítico............................................................................................ 203
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 5
22/08/13 14:12
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 6
22/08/13 14:12
Prefácio à presente edição
Falar ou escrever sobre música são tarefas de suma ingratidão. Primeiro porque a matéria sobre a qual se deve debruçar é de natureza evanescente. Como toda arte de performance, a música se dá no tempo mas, à diferença da dança, do teatro ou do circo, ela se dá sobretudo através do tempo. Uma cena no teatro pode fazer uso do tempo – assim como todos nós fazemos uso do tempo quando admiramos um quadro e podemos congelar um frame de determinado filme. Mas, de fato, o tempo é para o teatro ou o cinema um recurso expressivo, jamais elemento estruturante. A música, é claro, pode se valer nestes termos do tempo como um recurso expressivo – já que é possível executar uma melodia com pulsação mais lenta ou mais rápida. Mas é, e será sempre, impossível parar uma melodia; quando “congelamos” uma música, nós não só a tornamos estática, mas decretamos sua morte. Falar de música é, portanto, falar de algo que já não há. Falar de ocorrências que mal se preservam e que, se preservadas na memória, foram criadas ao longo de um complexo processo no qual uma série de relações próprias precisaram lidar, em ato contínuo, tanto com a construção da compreensão do passado quanto com a adequação das expectativas e possibilidades de ocorrências futuras. Da mesma forma, é um processo nada objetivo o de escutar música. E talvez por isso tomamos a música naturalmente como uma arte abstrata – para muitos, talvez a mais abstrata entre as artes. Mas, é claro, dizemos isso sem que necessariamente atentemos para o fato de que estamos falando de um tipo especial de “abstração”, não aquela das artes plásticas. Não nos cansamos de acusar a eventual falência do significado e da representação em quadros de, por exemplo, Jackson Pollock. Mas a abstração da música é de outra natureza. A música, em nossa cultura, é recebida como um espaço expressivo, talvez o mais expressivo entre todos, de exploração desses elementos atávicos particulares que compõem nossa vida espiritual e que chamamos grosseiramente de “emoção”. Embora aparentemente abstrata, a música é uma expressão plena de significado.
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 7
22/08/13 14:12
Nesse sentido ela “diz algo”, evidentemente. Todos que gostamos ou não gostamos de música nos emocionamos com ela. Alguns talvez a cultivem exatamente pelo contato com essa interioridade – outros possivelmente a refutem pelo mesmo motivo. Parte da dificuldade de falar de música reside no fato de que “falar de música” não pode ser “falar de emoções”. Elas são uma realidade indizível. E a pior solução para o imbróglio seria tratar a música por ilustrações dessas mesmas emoções que ela eventualmente expressa; a música nos transporta inequivocamente para um lugar especial, que podemos chamar poeticamente de “geografia das emoções”, mas o que fazemos individualmente por aquelas searas, como nos prendemos ou somos levados para este lado e não para aquele, por que paramos em dado recanto e por ali nos regozijamos, isto é matéria por demais misteriosa para qualquer discussão científica que não seja absolutamente rigorosa. Apesar de todas as dificuldades, para a música clássica contemporânea, falar e escrever sobre ela é uma atividade cada vez mais necessária. E sua necessidade a faz, hoje, ser uma prática coadunada facilmente àquela da própria performance. Hoje em dia, a crítica tem dois objetivos bastante específicos: apresentar um dado repertório (mais comum) ou dividir as peculiaridades e visões que permitam o juízo de valor de determinada performance (cada vez mais raro). Podemos ver o primeiro caso nas tantas anotações de CDs e em programas das sociedades organizadoras de concerto em todo o mundo; podíamos ver com frequência o segundo nas colunas de jornais dedicadas ao assunto – até pouco tempo atrás, antes da época do jornalista como divulgador, todo grande jornal tinha seu crítico de música ativo, analista preocupado em tornar pública a real dimensão dos eventos de uma localidade. A importância de Aaron Copland, nascido em 1900, não deve ser medida pela excelência em qualquer um desses dois papéis extraordinários, em que atuou como um mestre. Se é fato que inicie suas atividades como escritor em 1924, e realize a partir dali uma longa carreira como observador e crítico da música de seu tempo, sua posição foi decididamente aquela de quem vive a matéria musical em sua radicalidade – Copland é um compositor. Não qualquer compositor, mas o mais importante norte-americano da primeira metade do século XX. Quando nasceu Copland, os grandes compositores de seu país eram figuras hoje virtualmente desconhecidas, como Edward MacDowell, 8 · Como Ouvir e Entender Música
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 8
22/08/13 14:12
rthur Foote, George Whitefield Chadwick ou Ethelbert Nevin. Todos culA tivavam uma expressividade inquestionavelmente romântica, de padrões europeus (na verdade germânicos), e figuras originais como o esquisito Charles Ives eram apenas isto: jovens excêntricos e jamais levados a sério. Copland nasceu no Brooklyn, Nova York, no dia 14 de novembro de 1900. De família de imigrantes judeus lituanos, aprendeu a tocar piano ainda muito jovem, com sua irmã mais velha. Aos dezesseis anos foi estudar com Rubin Goldmark, que lhe ensinou os fundamentos da composição – e o estimulou a frequentar as apresentações da Filarmônica local. Embora seus primeiros estudos tenham apresentado a ele nada mais que o convencional, sua sensibilidade e interesse pela história e pelas tradições europeias o fizeram aproximar-se das linguagens nada ordinárias do modernismo que tomava – pouco a pouco – parte dominante da geografia musical de seu tempo. É tal interesse que o faz, aos vinte anos, deixar Nova York pelos famosos seminários franceses da professora Nadia Boulanger. Através de Boulanger, Copland conhece a música de Igor Stravinsky – que se torna o principal modelo do compositor por boa parte da vida. Ainda por ela tem a oportunidade de negociar sua primeira composição com uma importante casa editorial (Durand) e viver o ambiente dos expatriados norte -americanos, vanguardistas de seu tempo, como Hemingway, Gertrude Stein, Ezra Pound, T. S. Eliot e tantos outros que passavam os extraordinários anos 1920 na capital francesa. Na França, o modernismo especial da época foi definido esteticamente pelo apetite por uma arte que fugisse do mal-estar, de cerebralismo ou simbolismos herméticos. O projeto fora delineado por Jean Cocteau para quem a música não deveria ter tempo para germanismos (com exceção de Bach), mas também deveria rejeitar a “perfumaria” sofisticada de Debussy e Ravel; a nova geração de compositores franceses deveria ter sua inspiração a partir do humor e da sonoridade do mundo urbano, presentes e vivos, aqueles do music hall ou das farras do dia a dia. Na Europa, o jazz se junta a esse projeto por ser um tipo de música cada vez mais popular nos círculos intelectuais europeus, pela sua vitalidade e pouca pretensão, mas sobretudo – por que não? – pelo seu exotismo. Era o exotismo da modernidade de Bartók e seus ritmos assimétricos, o exotismo dos “Choros” de Villa-Lobos e sua recém-criada mitologia indígena que os fazia marcar posição naquele contexto. A imagem dos outros povos, na arte, era a imagem da liberdade. Prefácio à presente edição · 9
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 9
22/08/13 14:12
Para um americano, este mesmo jazz tinha outra função, bem específica. Como diz Copland, “a década de 1920 foi definida pela noção de que os americanos precisavam de um tipo de música que eles pudessem reconhecer como sua. O jazz se torna a maneira de escrever essa música mais imediatamente reconhecível”. É por isso, para fazer uma arte reconhecível, do dia a dia, que Copland, com seu retorno ao país, cultiva por um tempo obras que estilizam os elementos do jazz, como seu Piano Concerto (1926) ou a Music for the Theater (1925), ao lado de peças desafiadoras e contundentes como as originais Piano Variations (1930). Ao final dos anos 1920, começa a interessar-se ainda pela música popular de outros países – fica encantado com os modos e as harmonias do folclore mexicano, por exemplo. Além disso, segue com o compromisso de organizar e ativar parte de sua comunidade em Nova York, tornando-se membro e fundador de organizações como o “American Composers’ Alliance” e a “League of Composers”. Ao lado de seu amigo Roger Sessions, começa os concertos “Copland-Sessions”, dedicados à música nova e, no mesmo período, planeja festivais como o “Yaddo Festival of American Music”. Em meados da década de 1930, Copland se torna não somente o mais popular compositor do país, mas um líder dos músicos clássicos norte-americanos. Embora chamasse a atenção do público, da crítica e de seus colegas de trabalho, seu prestígio não se transfigura em retorno financeiro. Até finais dos anos 1930, Copland precisa se valer da generosidade de mecenas e patronos locais e estrangeiros, ganhos com bolsas de estudo, além da remuneração incerta de suas aulas, mais do que de sua própria música. Leitor ávido e conferencista eloquente, Copland teve sua obra de escritor dedicada à música contemporânea em diversos matizes e gêneros – o clássico, certamente, mas também o jazz e o folclore. Além disso, muito embora atuasse escrevendo sobre obras específicas, compositores, eventos ou modismos, publicações e gravações, suas aparições públicas como escritor e palestrante versavam tanto sobre questões gerais quanto sobre aquelas absurdamente pragmáticas (a administração dos recursos financeiros de um artista, por exemplo). É ao final da década que ele decide escrever um inventário de suas reflexões de quase quinze anos de ensino, o livro What to Listen for in Music (1939) [Como Ouvir e Entender Música]. Trata-se de um rico manancial introdutório de informações e insights de diversos tipos, para diversos públicos. Muitos tópicos 10 · Como Ouvir e Entender Música
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 10
22/08/13 14:12
são discutidos – o processo eminentemente criativo, o problema da escrita musical, os elementos da música (ritmo, melodia, harmonia e timbre), textura e estrutura musical, formas fundamentais... ópera, dramas musicais, música contemporânea, música para filme: Copland meticulosamente explora o campo de audição de toda a nossa cultura contemporânea. Muitos de nós adquirimos maus hábitos ao ouvir música – como, por exemplo, colocar o som como fundo e acompanhamento de nossas outras atividades. Plagiando Eric Satie, música vira neste século uma espécie de papel de parede. E, já no título, Copland faz a primeira distinção definitiva para qualquer melômano de qualquer nível de compreensão musical, que é distinguir aquele que ouve música daquele que escuta música. E o que Copland quer ao longo do livro é construir uma espécie de audição inteligente, na qual o ouvinte deixe de ser um elemento passivo para tornar-se alguém que aceita com a música algum diálogo. Antes de entrar em questões técnicas do material musical ou da sua estrutura, Copland se preocupa com as formas como escutamos. Esclarece coisas decisivas como os planos de audição – “plano sensual”, “plano expressivo” e o que chama “plano musical”. É um trabalho notável e até onde pude averiguar inédito tal como posto. Esta espécie de “psicologia da música” para melômanos permite de forma concreta e simples que nos aventuremos posteriormente em dilemas definitivos de nossa cultura estética – e seus desdobramentos explicam parte do perigoso vale-tudo da recepção e crítica das obras de arte contemporânea. Copland não deixa de imaginar seu leitor com algum conhecimento musical. E isto fica claro sobretudo quando lida com questões técnicas mais específicas – os constituintes da música, as características da melodia, a necessidade do ritmo, a inovação da harmonia e o problema do timbre, ou as estruturas mais complexas, uma grande seção do livro. Muito embora jamais perca seu caráter inclusivo e pedagógico, é fato que a familiaridade prévia com partituras ajudaria a fruição do livro. Muitos termos técnicos são exemplificados pelas ilustrações, e talvez isso dificultasse um pouco a vida do leitor médio. Para contornar o dilema, a presente edição em português traz uma gravação de cada exemplo musical, o que auxilia de forma fundamental a compreensão dos exemplos; é um brinde a que apenas terão acesso os leitores de língua portuguesa. Prefácio à presente edição · 11
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 11
22/08/13 14:12
Copland sabia bem que seu papel era apenas ajudar as pessoas a pensarem musicalmente, não poderia mudar seus gostos. Neste sentido, o mais fundamental de Como Ouvir e Entender Música é que o livro deixa o campo aberto para a exploração da música em seus termos mais complexos. Sabidamente, ao trabalhar com jovens compositores, Copland considerava mais importante focar em elementos expressivos que técnicos e talvez por isso tenha tido uma longa lista de estudantes célebres e diferentes entre si. Não deixa de ser divertido imaginar que parte deste livro tenha sido resultado do contato, ou passado à mão, de artistas como Leonard Bernstein (que teve com o compositor encontros a partir de 1938, mas o considerava “seu único professor de composição de verdade”), Alberto Ginastera (seu aluno entre 1945 e 1947) ou Einojuhani Rautavaara (entre 1953 e 1954). Aaron Copland foi um dos mais respeitados compositores de toda a tradição clássica. Ao incorporar o jazz e o folclore a suas composições, cria um mundo absolutamente excepcional e inovador. Sua generosidade é a que permite o crossover de gêneros. Neste sentido, Como Ouvir e Entender Música é uma ponte para todas as tradições. Afinal, todo melômano – seja de música clássica, seja de jazz ou de rock’n’roll – tem a curiosidade inescapável, e decididamente apropriada, de saber por que ouve e gosta de música. Ajudando a entender a parte esotérica da linguagem musical, o programa de Copland, à sua maneira, ajuda o interessado a avançar por bons caminhos na compreensão do próprio gosto. Neste sentido, este é um guia fundamental para todos que queremos entender a música para além de suas sonoridades especiais. Leandro Oliveira
12 · Como Ouvir e Entender Música
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 12
22/08/13 14:12
Nota do autor para a edição norte-americana de 1957
Já se passaram quase vinte anos desde a primeira edição deste livro em 1939. é gratificante para mim perceber que ele ainda é considerado útil, dentro e fora dos Estados Unidos.1 Durante essas duas últimas décadas presenciamos um crescente interesse pela música de todos os tipos, em todo o mundo. Mudaram tanto a quantidade quanto a qualidade das músicas compostas e ouvidas, mas, para minha sorte, os problemas básicos de “como ouvir” permaneceram os mesmos. Por essa razão, apenas pequenas correções foram necessárias para esta nova edição. Dois novos capítulos foram incluídos – um sobre a difícil questão de como as composições da atualidade devem ser ouvidas e outro considerando a relativa novidade das músicas para filmes e sua relação com o público. O primeiro dos dois novos capítulos necessita de uma breve explicação diante de minha reivindicação original, apresentada no Prefácio da primeira edição, de que a composição contemporânea não ofereceria nenhum problema excepcional na sua audição. Isso ainda hoje me parece verdade. No entanto, é igualmente verdade que depois de cinquenta anos da chamada música moderna há ainda milhares de apreciadores que, apesar de bem-intencionados, acreditam que esta soe peculiar. Pareceu-me, portanto, válida a tentativa de esclarecer alguns aspectos, acerca da audição da música contemporânea, que não foram abordados nos outros capítulos. Esses novos capítulos são baseados em artigos originalmente escritos para a The New York Times Magazine. Agradeço aos editores por permitirem a reutilização de parte do material originalmente impresso na revista. Para os leitores interessados em leituras complementares, há uma pequena bibliografia no final do livro, incluindo uma lista especial de livros escritos por compositores. Eles foram selecionados na esperança de que os ouvintes queiram escutar os compositores falarem por si mesmos. Aaron Copland Crotonville, Nova York Existem traduções deste livro em alemão, italiano, espanhol, sueco, hebraico e persa. (N. E.) 1
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 13
22/08/13 14:12
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 14
22/08/13 14:12
Prefácio
O objetivo deste livro é estabelecer da maneira mais clara possível os fundamentos de uma apreciação inteligente da música. O trabalho de “explicar” música não é fácil, e não posso me orgulhar de ter sido mais bem-sucedido do que os outros. Mas a maioria das pessoas que escrevem sobre música abordam o problema do ponto de vista do professor ou do crítico de música. Este é um livro escrito por um compositor. Para um compositor, ouvir música é um processo perfeitamente natural e simples (e isso é o que deveria acontecer também com os outros). Se há alguma explicação a ser dada, o compositor logo conclui que, já que ele sabe o que se deve colocar em uma peça de música, ele deve saber melhor do que ninguém o que o ouvinte deve extrair dali. É possível que o compositor esteja errado a esse respeito. Talvez o artista criativo não possa ser tão objetivo na sua aproximação à música quanto um educador, com o seu distanciamento. Mas acho que vale a pena correr esse risco. Pois, para o compositor, alguma coisa vital está em jogo. Ajudando os outros a ouvir música com mais inteligência, ele está trabalhando para a difusão de uma cultura musical, o que mais tarde afetará a compreensão das suas próprias criações. Mas a questão permanece: como abordar o assunto? De que maneira o compositor profissional pode quebrar a barreira que o separa do ouvinte leigo? O que é que se deve dizer para que a música pertença um pouco mais ao ouvinte? Este livro é um esforço para responder a essas perguntas. Tendo oportunidade para isso, todo compositor gostaria de saber duas coisas muito importantes das pessoas que se consideram realmente amantes da música: 1. Você está ouvindo tudo o que está acontecendo? 2. Você está sendo realmente sensível a isso? Ou, para colocar a coisa de outro modo:
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 15
22/08/13 14:12
1. Você está perdendo alguma coisa no que se refere propriamente às notas musicais? 2. A sua reação é confusa, ou você tem realmente ideia de qual seja a sua resposta emocional? Essas são questões muito pertinentes, não importa de que música se trate. Aplicam-se igualmente bem a uma missa de Palestrina, a uma orquestra balinesa, a uma sonatina de Chávez ou à Quinta Sinfonia. Na verdade, elas são as mesmas questões que o compositor se impõe a si mesmo, com mais ou menos consciência, sempre que é colocado diante de música desconhecida, velha ou nova. Pois, afinal de contas, o instinto musical de um compositor não tem nada de infalível. A principal diferença entre ele e o ouvinte comum é que ele está mais bem preparado para ouvir. Assim, a ideia deste livro é preparar para ouvir. Nenhum compositor digno desse nome se daria por satisfeito em preparar você só para ouvir a música do passado. É por isso que tentei aplicar todas as lições deste livro não apenas às obras de arte reconhecidas como tal, mas também à música de compositores vivos. Tenho observado muitas vezes que a marca de um verdadeiro amante da música é o desejo irresistível de se familiarizar com todas as manifestações da arte, antigas e modernas. Quem gosta realmente de música não quer confinar a sua satisfação musical ao período ultraexplorado dos três Bs. Por outro lado, o ouvinte pode achar que já fez muito se atingiu um entendimento melhor dos clássicos consagrados. Acredito, no entanto, que o “problema” de ouvir uma fuga de Haendel é essencialmente igual ao de ouvir uma obra semelhante de Hindemith. Há um paralelismo definitivo de composição que seria tolo ignorar, deixando-se totalmente de lado a questão do mérito relativo. Na medida em que eu me propuser a discutir fugas em um livro desse tipo, o leitor deve estar preparado para um exemplo de fuga extraído dos modernos ou dos antigos. Infelizmente, seja a música nova ou velha, há sempre uma dose de coisas técnicas que devem ser explicadas. De outra maneira, é inteiramente impossível abordar algumas das formas mais complexas da criação musical. Nessas ocasiões, fiz o possível para reduzir a teoria ao mínimo. Sempre me pareceu mais importante que o ouvinte se sensibilizasse com a nota musical antes de saber o número de vibrações que produziu essa nota. Informações desse tipo 16 · Como Ouvir e Entender Música
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 16
22/08/13 14:12
não têm muita importância até mesmo para o compositor. O que ele deseja acima de tudo é encorajar o ouvinte a se tornar, na medida do possível, consciente e desperto. É nisso que reside o núcleo do problema de entender música. A dificuldade não vai além disso. Embora o livro tenha sido escrito basicamente para leigos, é minha esperança que o estudante de música também possa obter alguma coisa dele. Nos seus giros fascinados em torno da peça que estão estudando no momento, os estudantes de conservatório tendem a perder de vista a arte da música como um todo. Este livro pode servir, especialmente nos capítulos finais sobre as formas básicas, para cristalizar os conhecimentos gerais desses estudantes. Nenhuma solução foi ainda descoberta para o eterno problema de fornecer exemplos musicais satisfatórios. Todas as peças de música mencionadas no texto já foram gravadas, e podem ser ouvidas pelo leitor (umas poucas exceções foram devidamente assinaladas). Para referência dos que leem música, um número moderado de ilustrações musicais foi acrescentado ao texto. Algum dia, talvez se descubra o método perfeito de ilustrar um livro de música. Até lá, o leigo terá de aceitar como artigo de fé algumas das minhas observações.
Prefácio · 17
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 17
22/08/13 14:12
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 18
22/08/13 14:12
Agradecimentos
Como Ouvir e Entender Música foi extraído de uma série de quinze conferências feitas pelo autor na New School for Social Research, de Nova York, durante os invernos de 1936 e 1937. Dr. Alvin Johnson, então diretor da New School, merece meus agradecimentos por ter reunido o grupo de pessoas interessadas que me estimularam a escrever este livro. As conferências destinavam-se ao leigo e ao estudante de música, e não a músicos profissionais – e essa é a limitação dos horizontes deste livro. A minha finalidade não foi esgotar assuntos que são quase inesgotáveis, mas confinar a discussão ao que me parecia serem os problemas básicos de um ouvinte comum. O manuscrito foi lido por Elliott Carter, a quem devo sugestões valiosas e uma crítica amiga. Aaron Copland
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 19
22/08/13 14:12
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 20
22/08/13 14:12
1
Preliminares
Todos os livros sobre como entender música concordam em um ponto: você não pode obter uma melhor apreciação dessa arte simplesmente lendo um livro sobre ela. Se você quiser entender música melhor, não há coisa mais importante a fazer do que ouvir música. Não há nada que possa substituir esse hábito. Tudo o que eu tenho a dizer neste livro refere-se a uma experiência que você só poderá obter fora dele. Portanto, você provavelmente perderá tempo ao lê-lo se não tomar a resolução de ouvir mais música do que ouvira anteriormente. Todos nós, profissionais e não profissionais, estamos sempre tentando aprofundar nosso conhecimento da música. Ler um livro às vezes ajuda. Mas nada pode substituir a experiência direta da música. Felizmente, as oportunidades de se ouvir música são hoje muito maiores do que jamais o foram. Com a crescente disponibilidade de boa música, no rádio ou no aparelho de som, para não falar do cinema, não há quase ninguém que não tenha a oportunidade de ouvir música. De fato, como me disse um amigo há pouco tempo, hoje em dia todo mundo tem a possibilidade de não entender música. Sempre me pareceu que tem havido uma tendência a exagerar as dificuldades da compreensão musical. Nós, músicos, estamos sempre encontrando alguma boa alma que afirma com toda a segurança: “Gosto muito de música, mas não entendo nada a respeito”. Meus amigos teatrólogos ou romancistas encontram mais raramente pessoas que digam: “Não entendo nada de teatro ou de literatura”. No entanto, mantenho a forte suspeita de que aquelas
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 21
22/08/13 14:12
esmas pessoas, tão modestas a respeito de música, teriam as mesmas razões m para ser modestas a respeito das outras artes. Ou, para ser mais gentil, teriam as mesmas razões para não ser tão modestas em relação à música. Se você tem qualquer sentimento de inferioridade quanto a suas reações musicais, tente livrar-se dele; muitas vezes, é um sentimento injustificado. De qualquer maneira, você não tem razão para ser pessimista em relação a sua capacidade musical antes de ter alguma ideia sobre o que significa ser musical. Há muitas noções estranhas difundidas a esse respeito. Estamos sempre ouvindo histórias sobre pessoas que “são tão musicais que podem ir ao cinema e depois tocar no piano todas as melodias do filme”. O fato em si indica certa musicalidade, mas não necessariamente o tipo de sensibilidade à música que nos interessa aqui. O animador de auditório que imita um ator ainda não é um ator, e quem faz mímica musical não é obrigatoriamente dono de uma musicalidade profunda. Outro atributo que é sempre exibido quando se trata de provar musicalidade é o do ouvido absoluto. Ser capaz de reconhecer a nota lá quando você a ouve pode ser útil em alguns casos, mas certamente não basta para provar, por si mesmo, que você é uma pessoa musical. O ouvido absoluto indica apenas uma musicalidade de superfície que tem pouca significação diante do verdadeiro entendimento da música que nos interessa aqui. Há, entretanto, um requisito mínimo para o ouvinte potencialmente inteligente. Ele deve ser capaz de reconhecer uma melodia ao ouvi-la. Se há o que se chama surdez musical, ela significa a incapacidade para reconhecer uma melodia. Essa pessoa tem toda a minha simpatia, mas não pode ser ajudada, assim como os que são insensíveis às cores não podem interessar a um pintor. Mas se você acha que pode reconhecer uma determinada melodia – não cantar a melodia, mas reconhecê-la quando é tocada, mesmo depois de um intervalo de alguns minutos, e depois de melodias diferentes também terem sido tocadas –, então a chave da apreciação musical está em suas mãos. Não basta ouvir música considerando apenas os momentos diferentes de que ela é composta. Você deve ser capaz de relacionar o que está ouvindo em um determinado momento com o que aconteceu antes e com o que está por vir. Em outras palavras, a música é uma arte que se desenrola no tempo, e, nesse sentido, ela é como um romance, com a diferença de que os episódios romanescos ficam mais facilmente gravados na memória, em parte porque se trata de cenas da vida e em parte porque sempre se pode voltar atrás para 22 · Como Ouvir e Entender Música
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 22
22/08/13 14:12
refrescar a memória. Os “acontecimentos” musicais têm uma natureza mais abstrata, de modo que o ato de reuni-los novamente na imaginação não é tão fácil como na leitura de um romance. É por isso que você deve ser capaz de reconhecer uma melodia. Pois o que ocupa, na música, o lugar da história é, normalmente, a melodia. A melodia, em geral, é o significado da peça. Se você não pode reconhecer a melodia na sua primeira aparição e seguir as suas peregrinações e a sua metamorfose final, acho difícil que possa acompanhar o desenvolvimento de uma obra. Você estará tendo uma consciência muito vaga da música. Mas reconhecer a melodia significa que você sabe onde está, em termos musicais, e tem uma boa chance de saber para onde está indo. Esse é o único sine qua non para uma compreensão mais inteligente da música. Algumas escolas musicais inclinam-se a encarecer o valor de alguma experiência prática de música para o ouvinte. Dizem que se você tocar Old Black Joe no piano, usando apenas um dedo, vai se aproximar mais dos mistérios da música do que se ler uma dúzia de livros. Certamente, não há nada de mau em ser capaz de “batucar” um pouco no piano, ou mesmo de tocar razoavelmente bem. Mas, como introdução à música, eu suspeito um pouco do valor disso, talvez por ter conhecido tantos pianistas que passam a vida executando grandes obras e que apesar disso têm uma compreensão bastante pobre da música. Quanto aos divulgadores, que começaram por inventar histórias floridas para tornar a música mais fácil e chegaram a acrescentar versos ordinários aos temas de composições famosas, a “solução” que eles oferecem para os problemas do ouvinte está simplesmente abaixo da crítica. Nenhum compositor acreditaria que há atalhos fulminantes levando a uma melhor apreciação da música. A única maneira de ajudar o ouvinte é indicar o que está realmente contido na música, e explicar da melhor maneira o como e o porquê da questão. O ouvinte deve fazer o resto por si mesmo.
1. Preliminares · 23
Miolo Como Ouvir e Como Entender Musica.indd 23
22/08/13 14:12