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Impresso no Brasil, agosto de 2013 Copyright © 2013 Antonio Fernando Borges Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal 45321 – Cep 04010-970 – São Paulo - SP Telefax (5511) 5572-5363 e@erealizacoes.com.br / www.erealizacoes.com.br Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial Sonnini Ruiz Produção editorial Liliana Cruz Preparação Marcia Benjamim Revisão Bel Ribeiro Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É Diagramação André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Pré-impressão e impressão Gráfica Mundial Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
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À memória de minha avó materna, Maria Elisa D. Siqueira, que me iniciou na paixão de ler e escrever A José Enrique Barreiro, que me convenceu a escrever este livro.
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Prosa é arquitetura. Não é decoração de interiores. Ernest Hemingway Mas a linguagem também é o poder de cantar em coro, de encenar uma tragédia, de promulgar leis, de compor versos, de rezar em agradecimento... Eugen Rosenstock-Huessy
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SUMÁRIO
Introdução Escrever, essa aventura humana. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Arrumando a bagagem...
As três dimensões da linguagem. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17 SINTAXE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18 As palavras combinadas SEMÂNTICA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 O sentido de realidade HARMONIA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 Uma agradável sensação de beleza
Os processos de composição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28 NARRAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 A vida em movimento DISSERTAÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Por falar em ideias DESCRIÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 A aparência das coisas e pessoas DIÁLOGO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36 Conversando por escrito
Ferramentas essenciais FRASE, PERÍODO E PARÁGRAFO. . . . . . . . . . . . . . . . 40 Unidades mínimas, possibilidades máximas ESTRUTURA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 As ideias e as formas
Instrumentos complementares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54 VOZ E TOM . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54 Uma questão de identidade e de atitude
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TEMPERATURA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 Da sutileza à ênfase ESTILO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 Espalhar borboletas ou acertar na mosca
Uma pausa para reflexão...
Os “idiomas” da linguagem humana . . . . . . . . . . . . . . . 69 FORMAL x INFORMAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 70 Uma origem mais nobre ORAL x ESCRITO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72 A palavra com e sem defesa
Escolhendo o percurso...
Gêneros e Formatos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 NÃO FICÇÃO: ENSAIO, ARTIGO . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 Em nome da verdade (e da lógica) FICÇÃO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 História, tempo e personagens
Começando a viagem...
Traduzir ideias em palavras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109 TÉCNICAS E MÉTODOS – 1. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110 Vencendo o medo: do oral ao escrito TÉCNICAS E MÉTODOS – 2. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 O processo das perguntas
Grandes exercícios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114 Sugestões de leitura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120 Palavras finais Escrever, um verbo transitivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123
Referências bibliográficas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125
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I N T RO D U Ç Ã O
Escrever, essa aventura humana
Escrever é traduzir ideias em palavras. Escrever bem é conseguir traduzir essas ideias nas palavras mais exatas, verdadeiras e belas possíveis. Eis aí uma boa definição da chamada Arte da Escrita. Talvez, até seja breve demais – mas ninguém poderá acusá-la de ser simples. Afinal, ela postula um vínculo entre ideias e palavras, duas das entidades mais complexas do mundo – sem falar que atributos como exatidão, verdade e beleza também nos conduziriam, desde já, por caminhos de complexidade sem-fim, que escapam aos limites deste livro. Fiquemos, então, com a definição inicial da boa escrita: a melhor tradução de ideias em palavras. Ainda assim, a complexidade persiste – decorrente, desta vez, da natureza diferente das duas linguagens: enquanto o pensamento (a matriz das ideias) é múltiplo, circular, simultâneo – como, por exemplo, a pintura, a música e a matemática –, a escrita é necessariamente linear e sucessiva. Nessa diferença essencial reside talvez a maior dificuldade da Arte da Escrita.
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Nem todos pensam assim. O chamado determinismo linguístico (a ideia de que o pensamento está sempre limitado às categorias e estruturas permitidas pela língua) encontra defensores teóricos em várias partes do mundo, como os linguistas norte-americanos Edward Sapir e Benjamin Lee Whorf, o filósofo alemão Ludwig Wittgenstein e o psicanalista francês Jacques Lacan. Todos eles acreditam que as diferenças entre as línguas se refletem nas ideias de seus falantes. Esquecem-se de explicar que, se fosse assim, só os russos compreenderiam e admirariam Dostoiévski, e que a grandeza de Shakespeare estaria para sempre vetada a leitores que desconhecessem o idioma inglês. Mais até: além de negarem as virtudes da tradução (uma prática eficiente e consagrada), todos esses pensadores parecem ignorar o gênio não verbal do homem, e sua grandeza expressa através de outras linguagens – como a pintura, a música e a matemática. A discussão é fértil, mas este livro tem objetivos bem mais práticos. Sem ser exclusivamente prescritivo, pretende tratar sobretudo de como traduzir a simultaneidade e multiplicidade do pensamento na linearidade sucessiva da escrita. Esta vai ser aqui a nossa grande aventura. Diferente de um manual, este livro quer ser, antes de tudo, um convite à aventura da escrita. Diferente também da maioria dos guias práticos de redação, não concentra sua visão da linguagem na função exclusiva de “informar algo a alguém” – a chamada comunicação. Por entender que a
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aventura humana constitui muito mais do que meramente comunicar-se, este livro vai abordar sobretudo o potencial criador da linguagem, seu compromisso com a expressão da exatidão, da verdade e da beleza, como postularam tantos grandes filósofos, de Platão a Leibniz, ou, ainda, como definiu o filósofo contemporâneo alemão Eugen Rosenstock-Huessy, infelizmente pouco lido entre nós: A linguagem também é o poder de cantar em coro, de encenar uma tragédia, de promulgar leis, de compor versos, de rezar em agradecimento, de fazer um juramento, de confessar pecados, de fazer uma reclamação, de escrever uma biografia, de redigir um relatório, de resolver um problema algébrico, de batizar uma criança, de assinar um contrato de casamento, de encomendar a Deus a alma do pai de alguém.1
Acima de tudo, é essa capacidade que nos diferencia, por exemplo, das formigas, rouxinóis, chimpanzés e de tantos outros animais que também têm seus códigos de comunicação. Na verdade, o compromisso humano com a palavra é bem mais elevado – o que só aumenta nossa responsabilidade na hora de escrever. Deus o livre, leitor, de conversas-fiadas e introduções sem-fim. Vale acrescentar apenas que, numa época de tantas Eugen Rosenstock-Huessy, A Origem da Linguagem. Rio de Janeiro, Editora Record, 2002. 1
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investidas na irracionalidade, no desprezo pelas normas e nos coletivismos, este livro aposta na inteligência, no uso culto da língua e no esforço individual de aprender – uma tarefa que pressupõe disciplina, paciência e uma boa dose de humildade. Esta é a aventura (humana e individual) a que este livro convida. Bem-vindo a bordo!
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Arrumando a bagagem...
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As três dimensões da linguagem
Um texto – salvo os piores – não é um aglomerado de palavras, frases e parágrafos, mas uma unidade no sentido aristotélico, ou seja, um corpo integrado, com começo, meio e fim. Essa unidade formal e de propósitos – que dá a quem lê uma profunda impressão de integridade, acabamento e perfeição – deriva de sua obediência a três princípios intrínsecos e inseparáveis, que representam para o texto o que as três dimensões representam para qualquer corpo: •• a sintaxe, ou a maneira como as palavras se relacionam entre si, dentro do texto; •• a semântica, ou o significado (a mensagem ou o conteú do) que essas palavras ajudam a formar; e •• a harmonia, ou o modo equilibrado, elegante e atraente com que se faz tudo isso. Como um texto também é um corpo (no sentido aristotélico), essas dimensões são igualmente inseparáveis – cada
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uma delas corresponde a um dos três aspectos que os filósofos consideram indispensáveis a tudo que existe: exatidão (sintaxe), verdade (semântica) e beleza (harmonia). A separação a seguir é, portanto, didática – apenas para que você, leitor, possa voltar a reuni-los de maneira consciente e com pleno domínio de seu uso.
SINTAXE As palavras combinadas Sintaxe é a dimensão do texto que determina as relações estruturais entre os elementos de uma frase, período ou parágrafo. Trocando em miúdos: ela constitui o conjunto de princípios e regras que comandam a disposição e as combinações das palavras entre si dentro de um texto. Esses princípios são regidos pela gramática de cada idioma, e podem ser de três tipos (não vire a página, as definições são bastante simples): colocação, regência e concordância. Sintaxe da colocação, como o próprio nome sugere, é aquela que regula a distribuição das palavras em cada período ou frase. Essa ordem pode ser direta ou indireta. Direta é, por exemplo, a sequência formada por Sujeito + Verbo + Predicado (e seus complementos). Eis um exemplo: O mais grave de todos os equívocos do Iluminismo foi o de esconder a nudez da mais antiga violência contra o
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indivíduo (a transformação da sociedade) sob o manto transparente de sua novidade.
Veja agora o mesmo período escrito em ordem indireta: De todos os equívocos do Iluminismo, o mais grave foi o de esconder sob o manto transparente de sua novidade a nudez da mais antiga violência contra o indivíduo: a transformação da sociedade.
Já a chamada sintaxe da regência é aquela que governa a estrutura interna de uma frase ou período, estabelecendo a hierarquia (ou grau de importância e destaque) entre seus termos. Se você, leitor, não está lembrado, permita-me repassar rapidamente que toda frase, período ou parágrafo se organiza segundo dois processos universais: a coordenação (ou justaposição de termos ou orações) e a subordinação (ou correlação entre termos ou orações). Na coordenação, escreve-se por paralelismo; na subordinação, por hierarquia (com uma oração principal e outras subordinadas a ela). Veja um exemplo de período organizado por coordenação: Não fui ao cinema, preferi ficar em casa.
As duas orações são independentes e poderiam vir separadas por ponto.
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Compare com esse exemplo semelhante, mas estruturado por subordinação: Não fui ao cinema porque estava chovendo muito.
Veja como a oração subordinada causal (“porque estava chovendo”) explica e delimita o sentido da oração principal (“Não fui ao cinema”). Da combinação dos dois tipos, nascem a clareza e a exatidão de cada período e, por decorrência, de todo o texto. Por fim, a sintaxe da concordância é aquela que estabelece que alguns termos da frase ou período devem se adaptar a (concordar com) os princípios gramaticais de outros, mais fortes ou determinantes. A concordância pode ser nominal (gênero e número) ou verbal (número e pessoa).Trocando em miúdos: masculino/feminino, singular/plural, etc. Tudo isso quer dizer apenas que o praticante da Arte da Escrita deve saber, a cada período ou parágrafo do texto, como distribuir, hierarquizar e concordar as palavras de acordo com a norma gramatical. Este é o melhor caminho para garantir a clareza e a exatidão do texto. Mantido o eixo essencial do texto, nem a complexidade de sua construção sintática nem a densidade de suas ideias serão empecilhos para sua plena compreensão. Para entender melhor, observe os seguintes exemplos negativos (adaptados, acredite, de textos reais):
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Nascido durante a Segunda Guerra Mundial, os romances do escritor francês X refletem a angústia e incerteza daquele período. (O período começa falando do romancista como sujeito, mas logo o eixo do sujeito se desloca para os romances – talvez não fique confuso, mas é errado e deselegante.) Ficou prejudicada a confiança na biografia escrita pelo professor Y, baseada num testemunho anônimo, amigo aliás do romântico Bernardo Guimarães. (A confiança no texto também fica prejudicada: a sintaxe confusa não deixa claro quem é afinal o amigo do romântico: o professor ou o testemunho anônimo?) Os responsáveis pela crise administrativa, há quem diga que dois estão no próprio Governo. (Alguém localizou o sujeito da frase?)
Estas são apenas as linhas gerais. O resto – ou melhor, o essencial – o leitor vai encontrar em uma boa gramática, que a esta altura do aprendizado deverá se tornar um de seus livros de cabeceira.
SEMÂNTICA O sentido de realidade O significado das palavras, e por extensão o de uma frase, período ou parágrafo, é o objeto da dimensão semântica de um texto. Trata-se, em suma, das conexões entre as ideias, as palavras e a realidade – em miúdos, do compromisso com a verdade, indispensável a quem escreve.
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À primeira vista, pode parecer o aspecto mais simples da questão: todo mundo, ao menos em princípio, julgando-se no “pleno exercício de suas faculdades mentais”, imagina que sabe exatamente o sentido daquilo que lê ou escreve. Infelizmente, nem sempre isso acontece: a toda hora, esbarramos com tautologias, contradições e erros elementares de informação. Observe mais uma vez os exemplos negativos (adaptados, também, de textos reais): O eixo do livro gira em torno da história... (Nem dá vontade de ler o restante do período: um eixo, por definição não gira em torno de nada. Muito pelo contrário!) Às vezes, um acontecimento imprevisto pode nos surpreender... (O autor do texto, de um anúncio de seguros, talvez não tenha reparado que só as coisas previsíveis não surpreendem nunca...) Em sua adaptação de Hamlet, o diretor introduziu alguns textos de Dante Alighieri, contemporâneo de Shakespeare... (Contemporâneo é, por definição, quem vive na mesma época de outra pessoa, enquanto quase 300 anos separam Dante de Shakespeare.)
Além de um indiscutível compromisso moral de todo indivíduo, a busca pela verdade dos fatos é indispensável a qualquer texto – de uma simples notícia jornalística ao mais complexo ensaio demonstrativo de alguma tese. Mesmo na
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ficção, na qual muitos acham (erroneamente) que “tudo é permitido”, a coerência e a verossimilhança são decisivas: um personagem não pode ser ao mesmo tempo gordo e esguio, nem obstinado e preguiçoso – e, salvo nas piores histórias sobrenaturais, não pode aparecer em cena depois de ter sido assassinado páginas antes (a não ser, claro, em flashback), nem sofrer as consequências de um ato ainda não praticado por outrem. Livros de cabeceira recomendáveis, no caso: bons dicionários e um manual elementar de Lógica.
HARMONIA Uma agradável sensação de beleza Escrever bem não se limita a uma estrutura clara e correta (sintaxe) e a um sentido definido e verdadeiro (semântica). Elegância e beleza também são fundamentais. Quem cuida dessas qualidades extras é a harmonia – a terceira dimensão do texto. No dicionário, harmonia significa a combinação de elementos diferentes e individualizados que se interligam para produzir uma agradável sensação de beleza. Mas o outro sentido do vocábulo – ausência de conflitos, paz, concórdia – também não é alheio ao nosso interesse. Afinal, não é isso também o que se espera de um texto: que seus elementos (palavras, frases, ideias) convivam sem conflitos?
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Os cuidados com a harmonia do texto ajudam a evitar alguns vícios terríveis: as indesejáveis rimas internas (lembre-se: prosa não é poesia), o ritmo canhestro e os abomináveis cacófatos.Veja estes exemplos (negativos): Escrever não é uma tarefa fácil. (A frase, exata e verdadeira, perde-se pela repetição inesperada de sílabas...) Ah, o alto heroísmo, com fagulhas ainda nas unhas e o corpo ainda meio úmido. (Mesmo abstraindo o mau gosto da imagem, tente ler em voz alta: é difícil...) A flutuação da inflação impede a estabilização da moeda. (A rima impede que se leia a frase com prazer...)
A harmonia determina como se devem combinar os elementos sonoros de uma língua (fonemas, aliterações, rimas e ritmo, por exemplo) para que o texto soe agradável e desperte em quem lê a desejada impressão de beleza. Ela constitui, em suma, o chamado ajuste fino da frase – e talvez seja, das três, a dimensão textual que exige mais atenção e empenho do praticante da Arte da Escrita. Para isso, é recomendável que se tenha, não um, mas diversos “livros de cabeceira”.1
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Há uma lista com boas sugestões de leitura no final deste livro.
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Exercício: Na realidade “impura” dos textos, todas as dimensões (sintaxe, semântica e harmonia) estão sempre presentes, mas em diferentes graus. Quase sempre, a ênfase recai sobre uma delas. Analise os trechos abaixo e numere de acordo com o caso exemplar: 1. Ênfase na riqueza e sofisticação estruturais (dimensão sintática). 2. Ênfase na exatidão da mensagem e do sentido (dimensão semântica). 3. Ênfase na musicalidade e na beleza (dimensão harmônica). 4. Busca de equilíbrio entre as três dimensões.
Textos exemplares ( ) Rubem Braga, Fim de Semana na Fazenda Onde vivia a andorinha, no tempo em que não havia casas? Ela é amiga da casa do homem. Arquiteto, meu amigo arquiteto, nenhuma casa é funcional se não tiver lugar para a andorinha fazer seu ninho. Mas é na casa da fazenda que a andorinha está à vontade. Melhor do que nessas casas imensas dos coronéis e dos velhos barões, elas só se dão mesmo nas grandes casas de Deus, as velhas igrejas escuras e úmidas que elas povoam de vida e de inquietação. Nenhuma outra ave do céu é mais católica. ( ) Joaquim Nabuco, Minha Formação Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência, como a deformação utilitária da criatura (...); e, no entanto, hoje que ela está extinta, experimento
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uma singular nostalgia (...): a saudade do escravo. (...) A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do norte. Quanto a mim, (...) ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância; aspirei-a da dedicação de velhos servidores que me reputavam o herdeiro presuntivo do pequeno domínio de que faziam parte. ( ) Machado de Assis, O Ideal do Crítico Exercer a crítica afigura-se a alguns que é uma fácil tarefa, como a outros parece igualmente fácil a tarefa do legislador; mas, para a representação literária, como para a representação política, é preciso ter alguma coisa mais que um simples desejo de falar à multidão. Infelizmente é a opinião contrária que domina, e a crítica, desamparada pelos esclarecidos, é exercida pelos incompetentes. São óbvias as consequências de uma tal situação. As musas, privadas de um farol seguro, correm o risco de naufragar nos mares sempre desconhecidos da publicidade. O erro produzirá o erro; amortecidos os nobres estímulos, abatidas as legítimas ambições, só um tribunal será acatado, e esse, se é o mais numeroso, é também o menos decisivo. ( ) Olavo de Carvalho, A Natureza Invisível Para a tradição cristã, reforçada na Idade Média pelo enxerto aristotélico, a posição que um homem ocupe na sociedade é um
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acidente que em nada afeta a sua essência universal humana, igual à de todos os outros membros da espécie. Rico ou pobre, leigo ou clérigo, senhor ou escravo, o animal racional tem os dons, os limites e as responsabilidades do humano. A igualdade dos cidadãos perante a lei não é senão a formulação moderna e jurídica dessa evidência que a Igreja só a duras penas conseguiu impor a culturas xenófobas, profundamente imbuídas da falsa impressão de uma diferença natural, essencial, irredutível entre seus membros e os das comunidades em torno, impressão que, em muitas delas, se traduzia na inexistência de um termo comum para designar a uns e outros.
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