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Impresso no Brasil, outubro de 2013 Copyright © 2013 by Ivo Barbieri Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal 45321 – CEP 04010-970 – São Paulo – SP Telefax (5511) 5572-5363 e@erealizacoes.com.br/www.erealizacoes.com.br

Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Coordenador da Biblioteca Textos Fundamentais João Cezar de Castro Rocha Produção editorial Liliana Cruz Preparação Patrizia Zagni Revisão Cecília Madarás Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves Diagramação André Cavalcante Gimenez Pré-impressão e impressão Edições Loyola

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

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SUMÁRIO

| 1. José de Alencar: síntese biográfica



| 2. Descrição do conjunto da obra



| 3. Lugar de Iracema na obra do autor e contexto histórico-cultural



| 4. Estudo de Iracema



| Leituras complementares



| Bibliografia das obras citadas

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1 José de Alencar: síntese biográfica Em Olinda, onde estudava o meu terceiro ano, e na velha Biblioteca do Convento de São Bento a ler os cronistas da era colonial, desentranhavam-se a cada instante na tela das reminiscências as paisagens do meu pátrio Ceará. José de Alencar

José de Alencar nasce no dia 1o de maio de 1829, em Mecejana, na então Província do Ceará. Criança perspicaz, começa desde cedo a apreciar e interiorizar os cenários dos campos nativos onde habita com seus pais. Em 1837, viaja com a família do Ceará à Bahia – viagem memorável, descendo vales e subindo encostas, varando a caatinga e flutuando sobre o São Francisco até entrar em território baiano. As cenas vividas durante essa travessia do sertão nordestino gravaram-se, indeléveis, na memória do menino José e, mais tarde, revitalizadas pela imaginação do ficcionista, comporiam os cenários retocados pela fantasia e carregados de cor local, onde se desdobraria o jogo de tramas e aventuras que dá vida a personagens comuns e extraordinários, a seres heroicos, imortalizados em páginas de prosa iluminada pelas exuberâncias da natureza tropical e pelos ardores do s­ertão – o pórtico ­majestoso por onde penetrou no passado

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de sua pátria.1 O padre Carlos Peixoto de Alencar, parente, deputado e bom orador, foi o primeiro a aguçar-lhe a curiosidade intelectual ao iniciá-lo na arte de compor charadas. Recém-chegado à corte, o menino fraco e franzino foi matriculado no Colégio de Instrução Elementar, onde, incentivado pelo mestre Januário Mateus Ferreira, adquire o hábito da leitura que, do colégio, passou para o lar. Ali, o garoto de apenas onze anos entrega-se aos livros de ficção folhetinesca, lendo e relendo os poucos títulos disponíveis no modesto acervo doméstico: Nosso repertório romântico era pequeno; compunha-se de uma dúzia de obras, entre as quais primavam a Armanda e Oscar, Saint-Clair das ilhas, Celestina e outros de que já não me recordo.2

Leitor constante dos serões familiares, ele transmite em voz alta o conteúdo do texto com entonação adequada à temperatura emocional e às vicissitudes da trama narrativa. A boa performance do leitor-intérprete comove aquele receptivo círculo de ouvintes a ponto de induzi-lo ao choro. A mudança para o Rio de Janeiro e os constantes deslocamentos para São Paulo propiciam-lhe ocasião para apreciar as belezas e a exuberância da José de Alencar, Obra Completa. Vol. IV. Rio de Janeiro, Aguilar, 1960, p. 148. 2 Idem, Obra Completa.Vol. I. Rio de Janeiro, Aguilar, 1959, p. 134. 1

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paisagem dos trópicos, reforçando nele o sentimento da terra e instigando-lhe a ambição de se realizar como escritor eminentemente brasileiro. De sua passagem pelos bancos acadêmicos, sabe-se que lia muito e, dentre as leituras preferidas, predominavam obras de ficção romântica. Ele próprio confessa que, em 1845, “todo estudante com alguma inteligência queria ser Byron”. O jovem de apenas treze anos, porém, não se deixa levar pela onda em voga e diversifica suas leituras passando por Balzac, Dumas, Vigny, Chateaubriand e Victor Hugo. Então descobre e passa a admirar o romance, a que denomina “poema da vida real”, mundo de aventuras tecidas com elegância e beleza. Frequentador assíduo da Biblioteca São Paulo, o insaciável leitor atira-se com sofreguidão ao estudo das velhas crônicas dos portugueses Simão de Vasconcelos, Gabriel Soares e Rocha Pita e passa a copiar páginas e páginas de autores clássicos da língua portuguesa, como João de Barros e Damião de Góis, começando aí a árdua preparação de sua carreira de escritor. Lendo os escritos de Jean de Léry e André Thevet, escribas da ocupação francesa durante o primeiro século da colonização, enfeitiçados com o contato do Novo Mundo, reconhece os encantos naturais da terra que apreciara quando criança. Colhido nessas páginas, revitaliza o mito do Éden que os europeus localizaram nos trópicos. Adolescente ainda foi buscar na ­pesquisa em velhos alfarrábios as fontes primeiras de que teriam derivado a gênese e a formação da nacionalidade brasileira. Assim como foram os [ Iracema. Contemporâneo da posteridade? - 9 ]

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clássicos portugueses e os r­omânticos franceses que concorreram fortemente para a formação do estilo de nosso escritor, ao passo que o molde de sua narrativa romântica foi sendo desenhado a partir das leituras de Walter Scott, James Fenimore C ­ ooper, George Sand e Alexandre Dumas. Começa aí o diálogo intertextual com os autores antigos e modernos, clássicos e românticos que iriam fecundar, de diversas maneiras, seu estro de poeta prosador. Em 1846, já em São Paulo, organizou com outros colegas a publicação Estudos Literários, em que aparecem seus primeiros escritos sobre diversificada gama de temas, como linguagem, estilo e antropologia. Data daí seu interesse pelo indígena brasileiro ao ensaiar uma pequena biografia do potiguara Camarão, o herói legendário da fundação do Ceará que, literariamente reelaborado, reapareceria mais tarde em Iracema, como aliado dos portugueses e amigo de Martim, personagem representativo do colonizador europeu. É oportuna a incisiva avaliação de Araripe: Nunca a imaginação brasileira, posta ao serviço da história, conseguiu levantar de sua obscuridade, com a eloquência da intuição, um vulto tão exato como o que aí fica revelado em poucas linhas. É o Camarão semicivilizado que encontramos na fundação do Ceará e nas lendas holandesas.3

Araripe Júnior, Obra Crítica de Araripe Júnior.Vol. I: 18681887. Rio de Janeiro, Casa de Rui Barbosa, 1958, p. 202.

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Formado em Direito em 1850, muda-se para o Rio de Janeiro onde exerce a advocacia durante algum tempo. Como jornalista, estreia no Correio Mercantil com a coluna “Ao Correr da Pena”, em que publica crônicas e folhetins que, em linguagem ligeira, giravam em torno de temas graciosos, páginas dirigidas de preferência às moças.Além de exercitar-se no Mercantil, praticou o jornalismo no Jornal do Commercio. Em 1856, já temperado polemista, investe no Diário do Rio de Janeiro com inúmeros artigos sobre os mais diversos assuntos. Alçado à direção do jornal, a ele se dedicou por inteiro, no afã de recuperá-lo da situação de crise que atravessava, estando mesmo ameaçado de falência. Nessa mesma época, empolgado pelo sucesso do debate travado na imprensa, decide levar a polêmica à cena teatral, apresentando várias peças que versavam sobre assuntos candentes no momento. Em As Asas de um Anjo, expõe o drama da mulher decaída em busca de redenção; em O Demônio Familiar, trabalha o paradoxo do escravo que, inserido na vida doméstica, participa da intimidade da família do seu senhor. Verso e Reverso põe em cena futilidades da sociedade fluminense, ao passo que A Mãe (1860) exalta a sublimidade do amor materno. Se jornal e teatro compõem a arena onde se exercita o escritor combativo, é ainda do espaço jornalístico que explode o sucesso do ficcionista ao publicar em folhetim Cinco Minutos, Viuvinha e, principalmente, O Guarani, dado à luz no dia a dia do Diário do Rio (1856). Já nas Cartas sobre A Confederação dos Tamoios (1856), [ Iracema. Contemporâneo da posteridade? - 11 ]

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poema de Domingo Gonçalves de Magalhães, patrocinado pelo imperador, denuncia-se a lucidez ferina do polemista e definem-se as opções que iriam, mais adiante, abrir o caminho e revelar o talento do grande escritor. A crítica de Alencar ao amigo do rei desencadeou apaixonada polêmica entre ele e os defensores do frustrado poeta. São oito cartas publicadas entre 18 de junho e 15 de agosto, assinadas com o pseudônimo IG., por meio das quais denuncia o caráter fictício do poema, a falta de inspiração do poeta, a frouxidão versificatória e, ainda, as falhas e imperfeições da linguagem que, solenemente empostada, destoa da modéstia do assunto. Estudos posteriores confirmariam que, a par das críticas ao poema de Magalhães, Alencar assume aí uma atitude nova diante da missão do escritor devidamente situado no contexto histórico e cultural brasileiro daquele momento. Cita-se com frequência a passagem da primeira carta em que parece prenunciar a gestação de Iracema: [...] se algum dia fosse poeta, e quisesse cantar a minha terra e as suas Belezas, se quisesse compor um poema nacional, pediria a Deus que me fizesse esquecer por um momento as minhas ideias de homem civilizado. Filho da natureza embrenhar-me-ia por essas matas seculares; contemplaria as maravilhas de Deus, veria o sol erguer-se no seu mar de ouro, a lua deslizar-se no azul do céu; ouviria o murmúrio das ondas e o eco profundo e solene das florestas.4 4

José de Alencar, op. cit., vol. IV, 1960, p. 865.

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E, em prosseguimento, afirma que a vitalidade dessa poesia, inspirada nas maravilhas da natureza nacional, devia arrancar do seio-d’alma algum canto celeste, alguma harmonia original, nunca sonhada pela velha literatura de um velho mundo. Bem mais tarde, já nos anos cruciais da década de 1870, durante a polêmica travada com Joaquim Nabuco (1875), que, investindo provocativo no embate travado nas páginas de O Globo, mostra-se empenhado em anular tanto o político quanto o escritor, reconhecendo neste somente o mérito de uma originalidade individual: “A cadência dos seus períodos evidentemente solfejados antes de escritos, para corresponderem a uma certa melodia tropical”. Ao contestar o afoito polemista, que o acusa de literariamente anacrônico e politicamente contraditório, inconstante e inconsequente, Alencar exalta as qualidades da sua obra literária e a coerência de suas posições políticas. Apesar de abatido pela doença e ressentido da frustração política, ele mantém a argúcia e a altivez do jovem polemista, agora retemperado pela experiência de refregas pretéritas. Humilha o oponente, reduzindo-o à condição de filhote político a repetir censuras debatidas com ilustres adversários no passado e sobejamente rebatidas no parlamento e no jornalismo.5 Em um estudo recente, João Cezar de Castro Rocha renovou o entendimento da polêmica Ver Afrânio Coutinho, A Polêmica Alencar-Nabuco. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1965, p. 25 ss. 5

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no Brasil, partindo da hipótese de que “a modernidade da vida intelectual no País dependeu de uma sucessão de disputas que criou um sistema interno de emulação, responsável pela vitalidade identificada nas décadas iniciais do século XX”.6 Recapitulando passo a passo a sucessão desses embates, resulta do histórico traçado por Rocha que as cartas de 1856 contra o poema de Magalhães acrescidas da polêmica travada com Nabuco em 1875 confirmam o acerto da hipótese inicial e a relevância decisiva que se evidencia mediante a sinalização de parâmetros e paradigmas que demarcam territórios e períodos distintos na evolução do gosto literário e vigência de ideias e valores postos em questão.7 Reconhecida a constatação de que praticamente todos os intelectuais de destaque do século XIX tiveram participação ativa no cenário político daquela época, o caso de José de Alencar guarda sua peculiaridade. Com efeito, sua passagem da seara literária para a política se dá naturalmente, visto que, filho de importante senador do Império, desde criança se habituara às cenas de confronto e conspiração presenciadas no ambiente doméstico. Como ele mesmo recorda, foi ali, na Rua do Conde, 55, que, sob a liderança do pai senador, se reuniam notáveis conspiradores

João Cezar de Castro Rocha, Crítica Literária em Busca do Tempo Perdido. Chapecó, Argos, 2011, p. 73. 7 Ibidem, p. 74-85. 6

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que prepararam a antecipação da Maioridade de Dom Pedro II e insuflaram a revolução popular de 1842. Funcionário público, já em 1859 aparece como chefe de seção na Secretaria do Ministério da Justiça e, depois, como consultor. Em 1860, embarca para a província natal já em campanha eleitoral, da qual volta vitorioso como deputado eleito pela Província do Ceará para o período de 1860 a 1863. Se a tribuna parlamentar não parecia ser o lugar adequado para o brilho de seu talento, dada a decepcionante estreia na Câmara em 23 de maio de 1861, tal impressão seria radicalmente reformulada pelos sucessos colhidos mais adiante. Por outra, os encantos da terra reavivados durante a campanha do Ceará incendiaram nele a imaginação do ficcionista que, em pouco tempo, deu à luz Lucíola, Diva, As Minas de Prata e Iracema. Em 1864, casa-se com a sobrinha de ­Cockrane, o almirante que participara ativamente da história de nossa independência. Adversário dos liberais em 1865, José de Alencar contribui para a subida dos conservadores e comanda o Ministério da Justiça no gabinete de Itaboraí de 1868 a 1870, quando assina a lei que proíbe a venda de escravos em exposição pública no mercado do Valongo. Datam dessa fase o opúsculo O Sistema Representativo e artigos políticos no jornal 16 de Julho, órgão do Partido Conservador. Preterido na nomeação de Dom Pedro II para o Senado, mesmo sendo o primeiro da lista sêxtupla dos eleitos, deixa o Ministério. Diante das intrigas de políticos [ Iracema. Contemporâneo da posteridade? - 15 ]

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ambiciosos e influentes na Corte, não se entrega e, de volta ao parlamento em 1870, rompe com os correligionários do Partido Conservador e adota a atitude de aguerrido oposicionista. Aos ataques dos liberais revida com veemência e, empenhado na defesa de seus atos no gabinete, vai depurando seus dotes oratórios. Na árdua refrega travada contra adversários poderosos, altivo e combativo, conhece dias de glória colocando-se agora à altura dos mestres da oratória tribunícia, enfrentando de igual para igual figuras exponenciais do porte de Teófilo Ottoni, Cotegipe, Rio Branco, Silveira Martins; mesmo o arrogante Zacarias teve de se render diante da sátira ferina do oponente. Ressentido pela preterição ao Senado, ataca duramente o autoritarismo do monarca, ele que nas Cartas de Erasmo reclamava uma atuação mais enérgica do Poder Moderador. Se, por um lado, é verdade que as impiedosas críticas ao imperador denotam ressentimento por ter sido preterido na nomeação ao Senado, fato que determinou sua saída do Gabinete Conservador, é certo também que a perda do ministério não o magoou tão profundamente quanto o fato de ter sido desconsiderado como escritor. A partir disso, passa a fustigar duramente a Coroa e, mesmo fora da cena política, insiste em seus ataques contundentes com toques de ironia que chegam a contagiar a criação literária, infiltrando-se, sobretudo, nas páginas de Guerra dos Mascates (1871-1873). Enfastiado da política e abalado pela doença, refugia-se no retiro da [ 16 - Biblioteca Textos Fundamentais ]

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Tijuca, onde aproveita os momentos de calmaria para escrever Sonhos d’Ouro (1872). Agravando-se a doença, vai buscar saúde nas águas de Caxambu. Ali, inspirado nas festas e nos ritmos das cantigas e folguedos populares, escreve Til, transportando para o romance o folclore e a paisagem rural de Minas Gerais. Em 1875, combalido pelo agravamento da doença, volta ao Ceará, colhendo na viagem abundante material folclórico, paisagístico e humano que será aproveitado na elaboração de O Sertanejo. Entretanto, a literatura política não lhe era estranha, pois fazia duas décadas que ela lhe rendera bons frutos, como A Constituinte perante a História (1856) e a Carta aos Eleitores da Província do Ceará (1860). Por essa época, a leitura das obras filosóficas e políticas dos ingleses Stuart Mill, Bacon e Hobbes inspirara-lhe as célebres Cartas de Erasmo (1865) e as Novas Cartas de Erasmo (1867-68), em que rasga elogios ao imperador e recomenda-lhe o exercício pleno do poder monárquico. Última tentativa de recuperação da saúde, em 1867 viaja à Europa passando por Portugal, Paris e Londres, e o Velho Mundo nada acrescenta à imaginação do romancista e em nada contribui para debelar o mal que o aflige. Pressentindo a aproximação do fim, recolhe-se ao seio da família, aguardando sereno o desenlace. Morre nos braços da esposa em 12 de dezembro de 1877. A imprensa limitou-se a registrar o fato e publicar depoimentos de vários escritores. Mas, apesar do renome e da glória literária, pouca gente acompanhou o enterro. [ Iracema. Contemporâneo da posteridade? - 17 ]

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Começa, de imediato, o resgate de seu nome a partir de autores que em vida lhe estiveram próximos. Mário de Alencar, no empenho de abarcar por inteiro a personalidade de José de Alencar, define-o como “um poeta de idealizações extremas, e um homem prático e positivo, destacando na sua vida duas fases: a do poeta de ficção, de 1855 a 1868, e a do político, de 1868 a 1877”.8 Tal dicotomia, que divide a obra em duas fases distintas, parece de todo arbitrária, visto que, diplomado em 1850, Alencar exerceu exclusivamente a advocacia até meados de 1855, publicando artigos sobre assuntos jurídicos e, ao assumir a direção do jornal O Diário do Rio de Janeiro em meados desse ano, editou inúmeros artigos sobre os mais variados assuntos: política, história, economia e administração, colhendo com isso a glória de publicista atuante e combativo diante das grandes questões do momento. Por outro lado, a atividade do ficcionista continua extremamente produtiva depois de 1868, pois a primeira edição de A Pata da Gazela, O Gaúcho, A Guerra dos Mascates, de 1870, é logo seguida por O Tronco do Ipê em 1871, sendo Til, Sonhos d’Ouro e O Garatuja de 1872, Ubirajara de 1874, O Sertanejo e Senhora de 1875. Durante a legislatura de 1877, enquanto o deputado Alencar lutava bravamente pela

Mário de Alencar, “José de Alencar, o Escritor e o Político”. In: José de Alencar, Obra Completa. Vol. IV. Rio de Janeiro, Aguilar, 1960, p. 13. 8

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depuração do Partido Conservador com atuação enérgica no parlamento, mesmo debilitado pela doença que o vitimaria, nosso escritor encontrou tempo e serenidade bastantes para escrever os primeiros capítulos de Encarnação, delineados com a agilidade inventiva da fase juvenil. Assim, o itinerário biográfico do autor de Iracema, que, apesar dos conflitos e contratempos, soube conciliar a ação política com a produção literária, comprova o acerto de Luís Viana Filho quando afirma incisivo: “Surpreendia a capacidade de Alencar: tinha o dom da ubiquidade, tocando simultaneamente vários instrumentos. Conviviam nele o parlamentar, o romancista, o advogado e o jornalista”.9 O mais adequado, portanto, seria considerar o Alencar poeta e o Alencar político como duas faces concomitantes e complementares da mesma personalidade, e não como duas fases distintas e cronologicamente demarcáveis. Mas é a partir da edição conjunta de dois textos políticos fundamentais e da introdução anteposta por Wanderley Guilherme dos Santos que se pode avaliar melhor a face política de Alencar e sua indissolúvel relação com a de escritor. Francamente contrário à dicotomização, Martins Rodrigues sustenta a proposição de que nosso autor se valeu da literatura, do teatro e da política para pensar um projeto para o Brasil. Essa alternativa possibilitaria Luís Viana Filho, A Vida de José de Alencar. São Paulo, Unesp, 2008, p. 356. 9

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recompor por inteiro a ação complexa do intelectual, “que é político porque é escritor e é escritor porque é político”.10 Obviamente que o sucesso do escritor ofusca bastante a ação do homem prático e positivo, não obstante a mesma personalidade abarcasse, ao mesmo tempo, pleno domínio em amplo campo de atividades que revelava aptidões e competência em tão diferentes áreas de atuação. Quanto ao político, a crítica é igualmente impiedosa e arrasadora. Ao atacar a volubilidade do autor das Cartas, que então fazia o elogio do poder pessoal e agora, nos escritos do Dezesseis de Julho, torna-se inimigo declarado do mesmo governo pessoal, Nabuco pergunta qual seria sua posição política, qual o partido e quais as ideias que apoia, dado que o jovem liberal hoje se alinha entre os conservadores; quanto ao deputado que combateu denodadamente pela escravidão, hoje ninguém sabe o que ele quer, concluindo de m ­ aneira categórica que Alencar “nunca teve outras ideias senão as suas impressões do momento”.11 Contra-atacando, Alencar refuta ponto a ponto as investidas do oponente, argumentando que a respeito da questão do cativeiro, nunca aplaudira a escravidão, e sim sua extinção, mas esta devia resultar da revolução dos costumes, posição prenunciada já em O Demônio Antonio Edmilson Martins Rodrigues et al., O Liberalismo no Brasil Imperial. Rio de Janeiro, Revan, 2001, p. 127-62. 11 Ibidem, p. 216. 10

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Familiar (p. 58-59). Como justificativa ao voto sistematicamente contrário aos projetos da abolição gradualista, Luís Viana Filho lembra que “colocando-se em posição de ganhar tudo ou nada, o nosso autor teria repetido a frase do abolicionista Cochin: ‘Não se reforma um crime, suprime-se’”.12 A respeito do regime político, afirma que havia tempo se opunha ao poder pessoal centralizado na figura do imperador, de quem tudo e todos dependiam. Por outra, era persistente na defesa do sistema representativo, assumindo no ensaio de 1868 posições avançadas para a época, como o princípio democrático do “governo de todos por todos”, a defesa dos direitos das minorias, do voto universal e da diversidade de opiniões, visto que: “Para a dinâmica das sociedades é absolutamente indispensável a voz dissonante, a ideia nova, que, minoritária a princípio, pode vir a tornar-se majoritária”.13 Alinhado entre os conservadores, defendeu princípios liberais; contrário à escravidão, opunha-se sistematicamente aos projetos de emancipação gradual; monarquista convicto, tornou-se desafeto e adversário ferrenho do imperador, tendo-se aproximado dos republicanos em determinado momento. Paradoxal e, às vezes, contraditório, não há como negar, porém, que o político José de Alencar sempre foi homem de posições definidas e, quando exposto Luís Viana Filho, op. cit., p. 314. Cf. Wanderley Guilherme dos Santos, Dois Escritos Democráticos de José de Alencar (Sistema Representativo, 1868, e Reforma Eleitoral, 1874). Rio de Janeiro, UFRJ, 1991.

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à controvérsia, combatia ardorosamente em favor das próprias ideias. É evidente que a estatura do escritor ultrapassava em muito a do militante político, tendo colhido ainda em vida as glórias do sucesso literário desde os anos de 1850, quando do êxito prodigioso de O Guarani, que, publicado em folhetim no Diário do Rio de Janeiro, cativou de imediato a cidade, empolgando a princípio o público feminino e os círculos dos moços leitores, para, logo a seguir, apaixonar os acadêmicos de São Paulo e, finalmente, conquistar o país do norte ao sul. O estrondoso sucesso colhido em 1857 já prenunciava a consagração unânime da posteridade. Dentre as vozes dos contemporâneos, vale destacar, de imediato, a de Joaquim Nabuco que, não obstante a agressividade demolidora desferida no ardor da polêmica, não deixou de sublinhar a popularidade do oponente, reconhecendo, “nos fulgores do estilo cintilante”, o escritor, “cuja pena é uma glória do país” (ibidem, p. 17).14 Valorizado por um intelectual do porte de Araripe Júnior, o primeiro a traçar-lhe o perfil literário (1879), com um alentado e substancioso ensaio em que reconstitui o itinerário biobibliográfico do famoso conterrâneo, seguindo, passo a passo, o processo da formação da alma do poeta que, da criança apaixonada pela leitura da ficção folhetinesca ao jovem entregue ao estudo dos clássicos, foi lançando e consolidando 14

Afrânio Coutinho, op. cit., p. 17.

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os fundamentos do escritor que, associando reminiscências impregnadas do espírito da terra com o domínio da palavra, realizou a brilhante carreira de romancista, cuja culminância encontra-se em Iracema, poema que há de viver em nossa literatura como as obras consagradas das grandes literaturas. Entretanto, ninguém melhor do que Machado de Assis para sintetizar em poucas linhas o percurso literário daquele que “percorreu as diversas partes de nossa terra, o norte e o sul, a cidade e o sertão, a mata e o pampa, fixando-as em suas páginas, compondo assim com as diferenças da vida, das zonas e dos tempos a unidade nacional de sua obra”. Por isso: “Nenhum escritor teve em mais alto grau a alma brasileira”.15 À pergunta que um dia Alencar dirigiu ao Visconde de Taunay: “Você acha que chegarei à posteridade?”, a glória póstuma do romancista respondeu logo positivamente e, à medida que os anos vão passando, ela só faz aumentar – fato comprovado pelas inúmeras edições e reedições de suas obras e pela produção de uma rica fortuna crítica16. Já em 1885, o historiador Capistrano de Abreu antevê o reconhecimento Joaquim Maria Machado de Assis, “A Estátua de José de Alencar” (discurso proferido na cerimônia de lançamento da primeira pedra da estátua de José de Alencar em 1º de maio de 1897). In: Páginas Recolhidas. Rio de Janeiro, Garnier, 1900. 16 O bibliófilo Plínio Doyle computou mais de 120 edições só de Iracema, a partir da primeira em 1865 até as do ano do centenário em 1965, isto é, mais de uma edição por ano (cf. Pequena Bibliografia de Iracema, na edição do centenário. Rio de Janeiro, José Olympio, 1965, p. 405-23). 15

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unânime que há de vir: “A morte ainda não apagou, mas apagará em breve os sentimentos hostis; e então todos reconhecerão que José de Alencar é o primeiro vulto da literatura nacional”.17 Hoje, definitivamente incorporado ao cânone da literatura brasileira, a glória do grande romancista não cessa de aumentar à medida que, a cada dia, vão sendo acrescentados novos e valiosos títulos à sua já vasta bibliografia. Brito Broca é mais uma voz que, em um texto de fevereiro de 1951, além da consideração acadêmica, consigna seu testemunho a respeito da inequívoca consagração do criador de tantos personagens, imortalizados no imaginário popular: Ler Alencar é para nós um estado de alma: a costureirinha tem O Guarani na sua bolsa; o ginasiano devora As Minas de Prata, nos intervalos de estudo; aos quarenta anos, calcinado de experiência, acompanhamos ainda com interesse as proezas mirabolantes de Arnaldo; e num velho lar brasileiro é sempre fácil encontrar, num fundo de gaveta, alguma brochura amarelada e já treslida do romancista.18

Por sua vez, Augusto Meyer, exaltando a extraordinária habilidade do narrador dotado de Apud M. Cavalcanti Proença, “José de Alencar na Literatura Brasileira”. In: José de Alencar, Obra Completa.Vol. I. Rio de Janeiro, Aguilar, 1959, p. 115. 18 Brito Broca, “Introdução Biográfica”. In: José de Alencar, Iracema. (Edição do centenário.) Rio de Janeiro, José Olympio, 1965, p. xxviii. 17

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poderes mágicos e vigor descritivo, ágil na arte de tecer, desenlear tramas e graduar a intensidade da ação entremeada de comentários, surpresas, suspensões e cortes bruscos no desejo de excitar a curiosidade e, com graça, leveza e improvisação agradar o leitor, adverte que “a melhor maneira de cultivar a obra do nosso poeta do romance há de ser sempre a fruição consciente e o estudo estilístico da sua prosa”, concluindo com o elogio: “Bastaria Iracema para consagrá-lo o maior criador da prosa romântica na língua portuguesa, e o maior poeta indianista.19 Esse reconhecimento duradouro fora anunciado em 1886 por Machado de Assis, que, retrucando à preocupação de Alencar, dissera-lhe em carta “que ele tinha por si, contra a conspiração do silêncio, a conspiração da posteridade”.20 A inquietação de Alencar a respeito de seu reconhecimento pela posteridade sempre foi interpretada em relação à sobrevivência do romancista através de sua obra de criação literária. Quanto a esse ponto, a consagração pública que o autor recebeu em vida a partir da publicação de O Guarani se manteve contínua ao longo dos anos e continua hoje, um século e meio depois, tão viva como em 1857. Mas é preciso acrescentar que a perene glória literária, bem mais Augusto Meyer, “Nota Preliminar”. In: José de Alencar, Obra Completa.Vol. III. Rio de Janeiro, Aguilar, 1958, p. 11. 20 Joaquim Maria Machado de Assis, Obra Completa. Vol. III. Rio de Janeiro, Aguilar, 1986, p. 922. 19

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recentemente, foi acrescida de mais uma dimensão – a do intelectual que, além da proficiência na cena da ação parlamentar e partidária, revelou dotes de pensador político, capaz de formular teorias avançadas para a época. A edição dos Dois Escritos Democráticos, prefaciados por Wanderley Guilherme dos Santos, torna 1991 uma data memorável porque, reabilitando uma faceta menosprezada, propicia uma avaliação mais adequada da personalidade do escritor. Méritos a Wanderley Guilherme que, reconhecendo a originalidade do Alencar pensador, conclui: Desconheço formulação mais radicalmente liberal da organização e funcionamento de um sistema parlamentar, dando inclusive solução para o enigma democrático fundamental. Por isso é que, na introdução, afirmei que José de Alencar, até prova em contrário, surge como um dos mais sofisticados teóricos da democracia escrevendo no século XIX.21

Sinalizado o caminho, ficou fácil para Antonio Edmilson Martins Rodrigues esboçar de modo mais compreensivo o perfil literário do nosso imortal escritor e apontar com mais precisão o lugar privilegiado que de fato e de direito lhe cabe no contexto da cultura brasileira:

Wanderley Guilherme dos Santos, “A Teoria da Democracia Proporcional de José de Alencar”. In: Dois Escritos Democráticos de José de Alencar, op. cit., p. 50.

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[...] depois da leitura da obra política de Alencar, se conhece melhor ao Império Brasileiro, graças à inteligência de Alencar. O escritor de Senhora não foi apenas o fundador da literatura brasileira, não foi apenas o homem que mostrou a capacidade das ideias e da imaginação que o Brasil tinha, mas foi um grande descobridor do Brasil.22

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Antonio Edmilson Martins Rodrigues, op. cit., p. 162.

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