O CINEMA ou O HOMEM IMAGINÁRIO Ensaio de Antropologia Sociológica
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Impresso no Brasil, outubro de 2014 Título original: Le Cinéma ou L’Homme Imaginaire. Essai d’Anthropologie Sociologique Copyright © 1956 by Les Editions de Minuit S.A. Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal: 45321 . 04010 970 . São Paulo SP Telefax: (5511) 5572 5363 e@erealizacoes.com.br . www.erealizacoes.com.br
Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial Sonnini Ruiz Produção editorial Liliana Cruz Preparação de texto Lizete Mercadante Machado Revisão Juliana Ferreira da Costa Capa e projeto gráfico André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Diagramação Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É Pré-impressão e impressão Gráfica Vida & Consciência
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
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EDGAR MORIN
O CINEMA ou O HOMEM IMAGINÁRIO Ensaio de Antropologia Sociológica
Tradução de Luciano Loprete
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Sumário
Prefácio de Edgar Morin à edição de 1977. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19
Capítulo I - O cinema e o avião. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21
Capítulo II - O encanto da imagem. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
Capítulo III - A transformação do cinematógrafo em cinema . . . . . . . . . . . . 67
Capítulo IV - A alma do cinema. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
Capítulo V - A presença objetiva. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143
Capítulo VI - O complexo de sonho e realidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181
Capítulo VII - Nascimento de uma razão. Desenvolvimento de
uma linguagem . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 205
Capítulo VIII - A realidade semi-imaginária do homem. . . . . . . . . . . . . . . . 239
Orientação bibliográfica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 259 Índice onomástico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283
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“A arte do cinema... quer ser um objeto digno de suas meditações: ela exige um capítulo nesses grandes sistemas onde se fala de tudo, menos de cinema.” Béla Balázs
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Prefácio de Edgar Morin à edição de 1977
Este livro é um aerólito. Ele fala do cinema, mas não da arte, nem da indústria cinematográfica. Ele se define como um ensaio de antropologia, mas não surge do espaço daquilo que é reconhecido como ciência antropológica. Ele não “abriu uma seara”, não “traçou uma via”. Em seu próprio princípio, ele não envolve nenhuma categoria de leitores, e se teve alguns leitores foi por equívoco. Espero que este novo prefácio não consiga dissipar todos esses equívocos. À primeira vista, eu mesmo poderia considerar este livro, com seu satélite, Les Stars,1 escrito depois (1957), como marginal, quase externo às linhas de força que, depois de L’An Zéro de l’Allemagne (1946),2 e L’Homme et la Mort,3 vão me fazer oscilar durante 25 anos entre a investigação no presente cambiante e a reflexão sobre a antropossociologia. De fato, em 1950-1951, no momento em que entrei no C.N.R.S. – Centro Francês de Pesquisa Científica – como pesquisador na seção de Sociologia, nenhuma necessidade interna me levava a escolher o Edgar Morin, As Estrelas: Mito e Sedução no Cinema. Rio de Janeiro, José Olympio, 1989. (N. T.) Idem, O Ano Zero da Alemanha. Porto Alegre, Sulina, 2009. (N. T.) 3 Idem, O Homem e a Morte. Lisboa, Europa América, 1988. (N. T.) 1 2
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cinema como tema de estudo. Ao contrário, eu teria preferido trabalhar com temas que me obsedavam, os do comunismo. Mas eu estava então no fundo das lixeiras da história (ainda estou, mas na superfície); eu tinha me excluído duplamente e também feito que me excluíssem duplamente: do mundo “burguês” e do mundo stalinista. Então, ousar lutar em duas frentes, no próprio centro da instituição onde mal acabara de entrar como neófito, significava me arriscar a ser triturado entre duas mós. Faltava-me coragem para abordar um assunto sociologicamente virulento, diretamente politizável, isto é, de repente, atacar ao mesmo tempo o academicismo, o empirismo acéfalo e o doutrinarismo arrogante. Quis, portanto, encontrar um tema de refúgio. Por outro lado, queria escolher um tema que agradasse a meu protetor Georges Friedmann, cuja influência teve um papel decisivo na minha admissão pelo C.N.R.S. Friedmann via e pensava em termos de “máquina”. Eu pensava primeiro na estética (tema politicamente neutro) da máquina na sociedade contemporânea. O tema convinha a Friedmann, mas, muito rapidamente, antes mesmo de qualquer prospecção, entediou-me. Escolhi o cinema. Claro, o cinema é uma máquina, uma arte de máquina, uma arte-indústria. Claro, eu fora inspirado pela ideia, já complexa e recursiva, de entender a sociedade com a ajuda do cinema e ao mesmo tempo entender o cinema com a ajuda da sociedade. Mas eu era levado por algo mais íntimo, pela fascinação da minha adolescência, e pela minha sensação adulta de que o cinema é muito mais belo, emocionante, extraordinário que qualquer outra representação. Sim, pertenço a uma das primeiras gerações cuja formação foi inseparável do cinema. Certamente, houve romances absorventes também. Mas sua possessão não era tão física. Lembro-me de filmes que me marcaram com uma intensidade por vezes alucinante entre meus 11 e 18 anos (1932-1939). Em 1932, creio, La Bru (City Girl, A Garota da Cidade, de F. W. Murnau – 1930), um filme americano, uma família de agricultores, máquinas agrícolas, colheita, um filho
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que traz uma noiva da cidade, irmãos rivais, desejos rústicos e selvagens, como em livros de Émile Zola; não me lembro muito bem do que acontecia, mas lembro-me de meu desejo. Depois, Brigitte Helm, a Antina de L’Atlantide (A Atlântida, Pabst – 1932), por quem eu poderia matar Morhange. Bocas e olhares de mulher, Gina Manes, La Voie sans Disque (Léon Poirier – 1933). Encantamentos insensatos. Mas também, talvez quando eu tinha 15 anos, o filme L’Opéra des Quat’sous (A Ópera dos Três Vinténs, Pabst – 1931); por que será que aquela música, aquela história, aquela revelação da miséria, do sarcasmo, da qual eu não entendia nada e ao mesmo tempo entendia tudo, possuíram-me para sempre e a cada vez que volto a vê-las ou a escutá-las ainda me comovem? E em 1936 ou 38, não sei mais, mas antes que se fechasse, a Sala Bellevilloise projetou Le Chemin de la Vie (Putyovka v zhizn, O Caminho da Vida, de Nikolai Ekk – 1931), e foi um dos choques mais violentos da minha existência, que, de repente, abriu-me para uma irradiação, como se vê nos quadros místicos, uma luz convulsiva, mesmo vindo de um astro já morto. O cinema? Tema marginal, epifenomenal para um “sociólogo”, tema bem afastado da vida quando se estava no centro da Guerra Fria, nos últimos anos do stalinismo, tema que, no entanto, trouxe-me à minha vida. Começo minha “pesquisa” por uma análise de questionários, estudos sobre o filme, seus públicos, seus “conteúdos”, sua “influência”, mas fico irresistivelmente tomado pelo próprio problema da “magia” do cinema. As ideias que tinham ficado de meu livro anterior, O Homem e a Morte (1951), investem e orientam minha indagação. Aquilo que me havia animado sem cessar ao trabalhar em O Homem e a Morte era o espanto diante do formidável universo imaginário dos mitos, deuses, espíritos, universo não apenas impresso sobre a vida real, mas que fazia parte dessa vida antropossocial real. Era, em suma, o espanto de que o imaginário fizesse parte constitutiva da realidade humana. À sua maneira,
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o formidável sentimento de realidade que emana das imagens artificialmente reproduzidas e produzidas na tela, colocava-me, em sentido contrário, o mesmo problema. Em O Homem e a Morte, parecia-me que havia duas fontes e apenas duas (podendo se combinar de formas diversas) para as crenças universais na sobrevida: uma sendo a crença, ou melhor, a experiência do duplo, o alter ego, o ego alter, o outro eu, reconhecido no reflexo, na sombra, liberado nos sonhos, a outra sendo a crença nas metamorfoses de uma forma de vida em outra. E parti desta questão: em que sentido e de que forma nova o universo cinematográfico moderno ressuscita o universo primitivo dos duplos? Por que o cinematógrafo, na origem uma técnica de reprodução do movimento, cujo uso parecia ser prático, ou até mesmo científico, desde seu surgimento derivou para o cinema, isto é, para o espetáculo imaginário com os filmes de Méliès, primeiramente, e para o espetáculo mágico de metamorfoses? Havia, de alguma forma, eu sentia, um laço profundo entre o reino dos mortos e o reino do cinema, era o reino das sombras, aquele, meu Deus!, aquele da caverna de Platão. Assim, então, antes mesmo de abordar o problema do cinema como fenômeno histórico-sociológico, eu precisava encarar esse problema “antropológico” ligado a algo fundamental e arcaico no espírito humano. Para mim, o cinema despertava essa indagação-chave de toda a filosofia e de toda a antropologia: o que é essa coisa que chamamos de espírito se pensarmos em sua atividade, a que chamamos cérebro, se o concebermos como órgão-máquina? Qual é sua relação com a realidade externa, sabendo que o que caracteriza o homo, não é tanto o fato de ser faber, fabricante de ferramentas; sapiens, racional e “realista”; mas sim o fato de ser também demens, produtor de fantasias, mitos, ideologias, magias? O livro partia do duplo mistério, o da
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realidade imaginária do cinema e o da realidade imaginária do homem. Meu objetivo não podia ser apenas considerar o cinema à luz da antropologia; devia ser também considerar anthropos à luz do cinema; e essas duas luzes eram, e são, uma e outra, vacilantes, incertas. Era preciso iluminar uma com a outra num processo espiral ininterrupto. Fiz, então, ao mesmo tempo, antropologia do cinema e cinematografia do anthropos, com num ciclo contínuo: O espírito humano ilumina o cinema que ilumina Eu não sabia que esse procedimento era, de fato, um método; levaria vinte anos para formular teórica e paradigmaticamente o que, na verdade, eu praticava de forma espontânea. (Mas, claro, em meu detrimento, já que esse procedimento não era senão insólito, estranho, desinteressante e confuso para o bom cinéfilo, o bom antropólogo e o bom sociólogo.) O problema era fascinante: cérebro
espírito
Não se pode dissociar esses dois termos que se remetem perpetuamente um ao outro. Esse sistema não conhece diretamente a realidade exterior. É fechado numa caixa-preta cerebral e só recebe, através dos receptores sensoriais e redes nervosas (eles próprios representações cerebrais), excitações (elas próprias representadas sob forma de trens ondulatórios/corpusculares), que ele transforma em representações, isto é, em imagens. Pode-se até mesmo dizer que o espírito é uma representação do cérebro, e que o cérebro é uma representação do espírito: em outras palavras, a única realidade da qual temos certeza é a representação, ou seja, a imagem, ou seja, a não realidade, já que a imagem remete a uma realidade desconhecida. Claro que essas imagens são vertebradas, organizadas, não somente em função dos estímulos externos, mas também em função da nossa lógica, da nossa ideologia, isto é, da nossa cultura também. Todo o real captado passa, então, pela forma imagem.
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Depois, ele renasce como lembrança, isto é, imagem da imagem. O cinema, como toda figuração (pintura, desenho) é uma imagem da imagem, mas, como a foto, é uma imagem da imagem perceptiva, e, melhor que a foto, é uma imagem animada, ou seja, viva. É enquanto representação da representação viva que o cinema nos convida a refletir sobre o imaginário da realidade e a realidade do imaginário. O leitor acompanhará, assim, esse primeiro filão: a imagem. Num certo sentido, tudo gira em torno da imagem, porque a imagem não é apenas o entroncamento entre o real e o imaginário, é o ato constitutivo radical e simultâneo do real e do imaginário. Daí, então, pode ser concebido o caráter paradoxal da imagem-reflexo ou “duplo” que, por um lado, carrega um potencial de objetivação (distinguindo e isolando os “objetos”, permitindo o recuo e o distanciamento) e, por outro, simultaneamente, um potencial de subjetivação (a virtude transfiguradora do duplo, o “encanto” da imagem, da fotogenia...). É preciso, portanto, conceber não apenas a distinção, mas também a confusão entre real e imaginário; não apenas sua oposição e concorrência, mas também sua unidade complexa e sua complementaridade. É preciso conceber as comunicações, transformações e a permutação real
imaginário. E é
isso que é muito difícil de conceber. Eu não concebia, na época, onde estava o nó da dificuldade, mas o concebo agora: é que nosso pensamento é comandado/ controlado desde a era cartesiana por um paradigma de disjunção/redução/simplificação que nos leva a quebrar e mutilar a complexidade dos fenômenos. O que nos falta, então, é um paradigma que nos permita conceber a unidade complexa e a complementaridade daquilo que é igualmente heterogêneo ou antagonista. Assim, no que concerne ao cinema, o próprio modo de pensar reinante oculta a unidade complexa e a complementaridade do real e do imaginário, cada uma das noções excluindo necessariamente a outra. Da mesma forma, esse modo de
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pensar quebra, sob a forma de alternativas disjuntivas, aquilo que é a própria originalidade do cinema: o fato de ele ser ao mesmo tempo arte e indústria, ao mesmo tempo fenômeno social e fenômeno estético, fenômeno que remete ao mesmo tempo à modernidade do nosso tempo e ao arcaísmo dos nossos espíritos. E aqui está o segundo filão: a relação entre a modernidade e o arcaísmo. Ele se religa a uma prospecção ininterrupta desde O Homem e a Morte até hoje. Não há pesquisa que eu tenha empreendido que não comporte o reconhecimento não somente de uma latência, mas, também, de um renascimento do arcaísmo no próprio desenvolvimento de nossa modernidade. Ali, para, pelo e no cinema havia o deslumbramento pelo universo arcaico dos duplos, das fantasias, nas telas, possuindo-nos, encantando-nos, vivendo em nós, vivendo para nós a nossa vida não vivida, alimentando nossa vida vivida com sonhos, desejos, aspirações, normas; e todo aquele arcaísmo ressuscitado sob a ação totalmente moderna da técnica maquinista, da indústria cinematográfica, numa situação estética moderna. Ainda que o cinema seja considerado como arte, classificado como a sétima, ocultava-se totalmente a situação estética vivida pelo espectador desde que fosse encarado como mass media e fenômeno sociológico. O que ficava oculto, era o essencial: nós, vocês, completamente sob o efeito do encantamento, possuídos, erotizados, exaltados, assustados, amando, sofrendo, fruindo, odiando, não deixamos de saber que estamos numa poltrona contemplando um espetáculo imaginário: vivemos o cinema dentro de um estado de dupla consciência. Esse estado de dupla consciência, ainda que evidente, não o captamos, não o analisamos, porque o paradigma de disjunção nos impede de conceber a unidade de duas consciências antinômicas em um mesmo ser. O que é preciso indagar precisamente é o fenômeno espantoso no qual a ilusão de realidade é inseparável da consciência de que ela é realmente uma ilusão, sem no entanto que essa consciência mate o sentimento de realidade.
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O Cinema ou o Homem Imaginário se apresentava como primeiro tomo “antropológico” de uma obra em dois tomos, o segundo, “histórico-sociológico”, deveria inserir o cinema em sua problemática cultural/social. Esse segundo tomo foi preparado, mas não escrito; percebi que, para a imersão cultural/social, eu não podia dissociar o cinema de uma indústria cultural ligada a uma tecnologia comunicacional própria (os mass media) que produzia uma cultura de massa. Portanto, ampliei meu tema, o que resultou em L’Esprit du Temps4 (1961). Ainda assim, na esteira de Le Cinéma, eu havia escrito Les Stars [As Estrelas]; esse pequeno livro ilustra bem meu propósito sociológico, que é o de considerar o cinema como fenômeno multidimensional ou, para usar minha linguagem atual, complexo. De fato, O Cinema, como cada um de meus livros, foi construído baseado numa recusa do pensamento disjuntivo, e constitui um combate contra o pensamento redutor. Aqui, recuso a alternativa presunçosa: o cinema é, por um lado, uma indústria, o que exclui a arte; por outro, uma arte, o que exclui a indústria. Ao contrário, o espantoso é que a indústria e a arte estão conjugadas numa relação que não é somente antagonista e concorrente, mas também complementar. Como tentei demonstrar, o cinema, como a cultura de massa, vive no paradoxo de que a produção (industrial, capitalista, estatal) tem necessidade ao mesmo tempo de excluir a criação (que é desvio, marginalidade, anomia, despadronização), mas também de incluí-la (porque ela é invenção, inovação, originalidade, e toda obra precisa de um mínimo de singularidade), e tudo se faz de forma humana, aleatória, estatística e cultural no jogo criação/produção. O problema não é decretar que não pode haver criação original no sistema capitalista de tipo hollywoodiano, como fazia o Jdanov passivo de nossas salas escuras; mas sim de se perguntar como é possível que uma produção tão padronizada, tão submetida à ideia de produto, tenha podido produzir sem descontinuidade uma minoria de filmes admiráveis. 4
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Edgar Morin, Cultura de Massas no Século XX. São Paulo, Forense, 1984. (N. T.)
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Resta o problema de situar socialmente o cinema. Aqui ainda reina uma alternativa disjuntiva. Ou o cinema se fecha em si mesmo e torna-se uma entidade hermética ligada apenas às suas próprias leis e regras, ou o cinema é dissolvido para se tornar puro e simples reflexo ou produto da sociedade. O cinema é um fenômeno relativamente autônomo, mas, como todo fenômeno autônomo só pode se tornar autônomo graças à ecologia sociocultural que o coorganiza. O problema é tentar conceber o tipo de articulação e o circuito que se opera entre o sistema aberto, que é o cinema, e o sistema cultural, social, ele próprio dimensional. Esse princípio de articulação sociocultural complexa é o que falta em meu livro, já que ele ficou órfão de seu segundo volume. Deixo, ainda assim, entrever que essa articulação só é possível quando se sabe integrar a produção e a produtividade do imaginário na realidade social; quando se percebe que a realidade antropossocial é feita de transmutações, circulações, misturas entre o real e o imaginário; e, acrescentemos: o real apenas emerge para a realidade quando é entremeado pelo imaginário, que o solidifica, dá-lhe consistência e espessura, em outras palavras, vem reificá-lo. Depois deste livro, houve ensaios teóricos importantes, muitas análises, muitas sutilezas, muitas logomaquias, muitas coisas estranhas, muitas arrogâncias e o acontecimento novo foi o nascimento e o impulso da semiologia do cinema. É exatamente o ponto de vista que aqui esteve ausente, ignorado, desconhecido. Efetivamente, o cinema oferece uma mina transbordante de problemas semióticos, já que o filme também é vestígio, signo, símbolo, analogon... Mas, a bem dizer, se agora sinto retrospectivamente que eu teria gostado de refletir e trabalhar sobre esses assuntos semióticos, vejo que em seu princípio meu tema é outro. Se ele para ali onde a semiótica começa, penso que ele começa onde a semiótica para; ele começa com o “duplo” e a mimésis, começa com a problemática do espírito humano, que secreta o “duplo” e efetua mimésis
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através de projeções/identificações. Da mesma forma que a linguística generativa começa onde se detém a linguística estrutural, porque ela leva em consideração o espírito
cérebro humano (“a linguagem, no fim de tudo,
não tem existência fora de sua representação mental. [...] Quaisquer que sejam suas propriedades, elas devem lhe ser fornecidas pelos processos mentais do organismo que a inventou”, diz Chomsky em A Língua e o Pensamento), da mesma forma, meu tema envolve uma antropossociologia generativa. Tudo isso para dizer que o estudo do cinema não é um entreato, uma distração na minha bibliografia, embora ele corresponda a um período de retração. Filho do acaso, ele se viu tomado por minha necessidade. Estudando o cinema, eu não apenas estudei o cinema, mas continuei a estudar o homem imaginário. E considero o cinema como um objeto, não periférico, acessório ou risível (meus colegas morriam de rir quando eu dizia que ia “trabalhar” no cinema), mas como um objeto privilegiado para uma antropossociologia séria, porque ele coloca um segundo nó górdio de indagações fundamentais. Neste livro, creio ter mantido o tempo todo a indagação, quer dizer, o espanto, a surpresa, o deslumbramento: não me apressei em encontrar o cinema evidente, normal, banal, funcional... Ao contrário, senti até o final aquilo que sentiram os espectadores das primeiras apresentações dos Lumière, dos primeiros filmes de Méliès. E não é apenas com a maravilhosa máquina de captar e projetar imagens que eu me espanto, é também com a nossa fabulosa máquina mental, grande mistério, continente desconhecido da nossa ciência. Meu trabalho atual, agora, é completamente outro. Mas, ao mesmo tempo, também é o mesmo, pela obsessão e pelo método, que não havia ainda tomado forma de método. Edgar Morin dezembro de 1977
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Introdução
O sinal sonoro nos convida. Uma lojinha entre outras oferece em seus balcões enormes rostos pintados, fotografias, beijos, abraços, cavalgadas. Entramos na escuridão de uma gruta artificial. Uma poeira luminosa se lança e dança sobre uma tela; nossos olhos se saciam; ela toma corpo e vida; ela nos leva a uma aventura errante: atravessamos tempos e espaços, até que uma música solene dissolva as sombras sobre a tela que volta a ficar branca. Saímos e falamos das qualidades e dos defeitos de um filme. Estranha evidência do quotidiano. O primeiro mistério do cinema está nessa evidência. O espantoso é que ela não nos espanta. A evidência “fura nossos olhos” no sentido literal: ela nos cega. “Que toda coisa dita habitual possa vos preocupar”, diz Brecht. Aqui começa a ciência do homem. Aqui deve começar a ciência do cinema. A arte do cinema, a indústria do filme são apenas partes emersas de nossa consciência para um fenômeno que precisamos tentar entender em sua plenitude. Mas a parte submersa, a evidência obscura, confunde-se com nossa própria substância humana – ela mesma evidente e obscura, como o bater do nosso
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coração, as paixões da nossa alma. É por isso, como diz Jean Epstein, que “nós ignoramos tudo o que ignoramos do cinema”.1 Podemos acrescentar, ou melhor, deduzir: não sabemos nem mesmo o que sabemos do cinema. Uma membrana separa o homo cinematograficus do homo sapiens; da mesma forma que separa nossa vida de nossa consciência. Inquirir o cinema, encará-lo em sua totalidade humana, esse é o propósito de nossa pesquisa.2 Se isso parece muito ambicioso, é porque a necessidade de saber a verdade é também ela ambiciosa. Este volume é uma tentativa de elucidação segundo um método de antropologia genética que sofre por ser exposto in abstracto: ele só se justifica em sua eficiência em perceber a unidade e a complexidade do fenômeno estudado. Só pudemos realizar este trabalho graças ao Centro Nacional de Pesquisa Científica da França, ao qual agradecemos por nos ter permitido empreender e prosseguir no âmbito das pesquisas do Centro de Estudos Sociológicos. Agradecemos a nossas colaboradoras do C.E.S., Suzanne Schiffman e Claude Frère, pelo apoio permanente que elas nos ofereceram. Agradecemos àqueles que, com seu concurso, forneceram-nos o bem mais precioso que nos poderia ser concedido: a confiança e a liberdade; os Srs. Max Sorre, Etienne Sorriau e, em primeiro lugar, Georges Friedmann. Um agradecimento particular nos liga a Georges Friedmann e é natural que lhe caiba uma homenagem neste livro.
Jean Epstein, Le Cinématographe Vu de l’Etna. Paris, Ecrivains Réunis, 1926, p. 25. Um segundo volume virá, dedicado aos problemas colocados pelo conteúdo dos filmes e o papel do cinema na sociedade contemporânea. [Como se viu no prefácio à edição de 1977, esse segundo volume foi preparado, mas não publicado, tendo alguns de seus elementos sido tratados no volume L’Esprit du Temps, publicado no Brasil sob o título de Cultura de Massas no Século XX. (N. T.)] 1 2
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CAPÍTULO I
O cinema e o avião
O século XIX, ao morrer, legou-nos duas novas máquinas. Uma e outra nascem quase na mesma data, quase no mesmo lugar e expandem-se simulta neamente pelo mundo inteiro cobrindo os continentes. Passam das mãos de seus pioneiros para as de seus exploradores, atravessando a “barreira do som”... A primeira realiza, enfim, o sonho mais insensato já perseguido pelo homem desde que ele começou a olhar para o céu: despregar-se da Terra. Até então, apenas as criaturas de sua imaginação e de seu desejo – os anjos – tinham asas. A necessidade de voar, que toma impulso, e bem antes de Ícaro, com as primeiras mitologias, parece aparentemente a mais infantil e a mais louca. Afinal, os sonhadores não têm os pés na terra, é o que sempre se diz. Os pés de Clément Ader, no espaço de um instante, escaparam do chão e o sonho por fim tomou corpo. Ao mesmo tempo, apresentava-se uma máquina igualmente miraculosa: o prodígio consistia, dessa vez, não mais em se lançar para além dos limites aéreos onde moravam apenas os mortos, os anjos e os deuses, mas em refletir a realidade de forma bem terra a terra. O olho objetivo – e o adjetivo aqui tinha um tal
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peso que se tornava substantivo, a objetiva – captava a vida para reproduzi-la, “imprimi-la”, segundo a palavra de Marcel Lherbier. Livre de qualquer fantasia, esse olho de laboratório somente pode ser finalmente desenvolvido porque correspondia a uma necessidade de laboratório: a decomposição do movimento. Enquanto o avião se evadia do mundo dos objetos, o cinematógrafo pretendia apenas refleti-lo, a fim de melhor examiná-lo. Para Muybridge, Marey, Demenÿ, o cinematógrafo, ou seus antecessores imediatos como o cronofotógrafo, são instrumentos de pesquisa “para estudar fenômenos da natureza”, eles “prestam... o mesmo serviço que o microscópio para o anatomista”.1 Todos os comentários de 1896 se voltam para o futuro científico do aparelho dos irmãos Lumière que, vinte e cinco anos mais tarde, ainda consideravam o espetáculo de cinema um acidente de percurso. Enquanto os Lumière continuavam incrédulos quanto à sorte de seu invento, o espaço aéreo se civilizou, nacionalizou-se e “navegabilizou-se”. O avião, hobby de sonhadores, brinquedo de cavaleiros das nuvens, deixava-se assimilar pela prática e tornava-se um meio prático para as viagens, o comércio e a guerra. Interligado permanentemente com a Terra através das redes de rádio e radar, o “office-boy do céu” hoje se tornou o expresso dos correios, transporte coletivo, diligência do século XX. Ainda sonho, ainda pertencente aos pioneiros e aos heróis, mas cada uma das proezas precede e anuncia ser um futuro negócio. O avião não fugiu da Terra. Ele a dilatou até a estratosfera. Ele a reduziu. A máquina voadora juntou-se comportadamente ao mundo das máquinas, mas “as obras criadas pelo cinema, a visão de mundo que elas apresentavam, ultrapassaram de forma vertiginosa os efeitos da mecânica e de todos os suportes
Ver as obras citadas na nossa Bibliografia (II, B), em particular de Marey e Demenÿ. As referências completas de todas as obras que serão citadas nas notas encontram-se na Bibliografia no final do livro. 1
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do filme”.2 Foi o filme que se projetou, cada vez mais alto, num céu de sonhos, para o infinito das estrelas – das “stars” –, envolto em música, povoado de adoráveis e demoníacas presenças, escapando do terra a terra do qual ele deveria ser, segundo todas as aparências, o servidor e o espelho. Esse fenômeno formidável mal chega a atrair a atenção dos historiadores do cinema, que consideram, conforme uma finalidade ingênua, o tempo da gênese do cinema como uma era de aprendizado, onde foram elaborados a linguagem e os meios predestinados, diriam, a constituir a sétima arte. Eles não se admiram que o cinematógrafo tenha sido, desde seu nascimento, radicalmente desviado de seus fins aparentes, técnicos ou científicos, para ser dominado pelo espetáculo e tornar-se cinema.3 E dizemos bem claro, dominado: o cinematógrafo também teria muito bem podido realizar imensas possibilidades práticas.4 Mas o impulso do cinema – isto é, do filme espetáculo – atrofiou esses desenvolvimentos que pareciam ser naturais. De que potência interna, de que “maná” foi possuído o cinematógrafo para ter se transformado em cinema? E não somente se transformar, mas também parecer a tal ponto irreal e sobrenatural que essas duas noções pudessem também parecer definir sua natureza e sua essência como evidentes?5 Riccioto Canudo foi precisamente o primeiro teórico do filme a ter conseguido definir através da subjetividade a arte do objetivo: “No cinema, a arte
G. Cohen-Séat, Essai sur les Principes d’une Philosophie du Cinéma, p. 26. Até mesmo os primeiros filmes científicos, aqueles do doutor Comandon, foram feitos sob a instigação de Pathé, que, em busca do maravilhoso, descobriu, de repente, a ciência. 4 Cf. Jacques Schiltz, Le Cinéma au Service de l’Industrie. Note-se também que os esforços de Painlevé muitas vezes ficaram isolados. 5 “A própria natureza do cinema... o orienta para a representação de acontecimentos irreais ou sobre naturais” – Raoul Ergmann, “Le Règne du Fantastique”. Cinéma d’Aujourd’hui, p. 37. As mesmas reflexões também em Jean Epstein, Cinéma Bonjour, p. 43-44, etc. 2 3
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consiste em sugerir emoções e não em relatar fatos”.6 “O cinema é criador de uma vida surreal”, declarava, já em 1909, Apollinaire. Na proliferação de textos dedicados ao cinema, a partir dos anos 1920, as observações desse tipo se multiplicam: “No cinema, personagens e objetos nos aparecem através de um tipo de névoa irreal, numa impalpabilidade de fantasmas...”.7 “O pior cinema, apesar de tudo, ainda é cinema, ou seja, algo emocionante e indefinível”.8 O tempo todo nos deparamos com expressões como “olho surreal”, “arte do espírito” (Jean Epstein) e, sobretudo, a palavra suprema: “Cinema é sonho” (Michel Dard). “É um sonho artificial” (Théo Varlet). “Não é também um sonho o cinema?” (Paul Valéry). “Ir ao cinema é como adormecer” (Maurice Henry). “Parece que as imagens em movimento foram inventadas especialmente para permitir que visualizemos nossos sonhos” (Jean Tédesco).9 Será que tudo é onírico apenas para os sonhadores e poético para os poetas? Teóricos, acadêmicos e eruditos usaram as mesmas palavras para qualificar o cinema e a mesma dupla referência à afetividade e à magia. “Há no universo fílmico um tipo de maravilhamento atmosférico quase congênito”, diz Étienne Souriau.10 Elie Faure evoca o cinema como “uma música que nos atinge através dos olhos”.11 Para Moussinac e Henri Wallon, o cinema traz ao mundo um sentimento, uma fé, o “retorno para afinidades ancestrais da sensibilidade”.12 Canudo, L’Usine aux Images, p. 39. Quesnoy, “Le Cinéma”. Rouge et Noir, cahier spécial, p. 103. 8 J. F. Laglenne, “Cinéma et Peinture”. Cahiers du Mois, n. 16-17, p. 106. 9 Cf. J. Epstein, Cinéma Bonjour, p. 112-13; Michel Dard, Rouge et Noir, p. 117; Théo Varlet, ibidem, p. 78; Paul Valéry, Cahiers de l’IDHEC, n. 1, Paris, 1944; Maurice Henry, “Défense du Cinéma Américain”, Rouge et Noir, p. 146; Jean Tédesco, Cahiers du Mois, p. 25. 10 E. Souriau, “Filmologie et Esthétique Comparées”. Revue de Filmologie, n. 10, p. 149. 11 Elie Faure, Encyclopédie Française, 16/64/19. 12 Cf. Moussinac, Naissance du Cinéma; H. Wallon, “De Quelques Problèmes Psycho-physiologiques que Pose le Cinéma”. Revue de Filmologie, n. 1, p. 16. 6 7
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Aqui começa o mistério. Ao contrário da maioria das invenções, que se tornam ferramentas e são guardadas em galpões, o cinematógrafo escapa desse destino prosaico. O cinema é realidade talvez, mas também é outra coisa: gerador de emoções e sonhos. É o que nos garantem todos os depoimentos. Eles constituem algo próprio do cinema, que sem seus espectadores não existe. O cinema não é a realidade, já que isso é dito. Se sua irrealidade é ilusão, é evidente que essa ilusão é ainda assim a sua realidade. Mas ao mesmo tempo sabemos que o objetivo é desnudado diante da subjetividade, e que nenhuma fantasia chega a perturbar o olhar que ele fixa ao rés do real. O cinema tomou seu impulso para além da realidade. Como? Por quê? Só poderemos sabê-lo seguindo o processo genético dessa metamorfose. Mas, antes disso, já pressentíamos que o cinematógrafo Lumière continha em estado potencial e de energia latente aquilo que deveria transfigurá-lo em “grande bufão”, segundo a expressão de G. Cohen-Séat. Se é verdade que há fantasia e alma no cinema, essa fantasia e essa alma estavam encerradas nos cromossomos do cinematógrafo. Poderíamos nos limitar a opor ciência e imaginação de forma ordenadamente lógica e cronológica? “Primeiro, foi uma ciência, apenas uma ciência. Foi preciso a imaginação grandiosa do homem...”.13 Basta. Apenas uma ciência? Em 1829, Joseph Plateau fixa o sol de verão por 25 segundos. Ficaria cego, mas, no entretempo, um brinquedo, um simples brinquedo nasceu: o praxinoscópio. Um turfista excêntrico aposta no galope de um cavalo, mas na verdade são as experiências de Muybridge nas pistas de provas de Sacramento. Curioso de gênio, que se tornaria um potentado industrial, desenvolve, entre outros achados, o kinetógrafo. Sua fama deu origem ao ancestral patético da moderna ficção científica, L’Eve Future [A Eva Futura], de Villiers de l’Isle Adam. 13
Elie Faure, Fonction du Cinéma, p. 38.
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“Os fanáticos, os maníacos, os pioneiros desinteressados capazes, como Bernard Palissy, de queimar seus móveis por alguns segundos de imagens tremulantes não são nem empresários, nem eruditos, mas sim possuídos por sua imaginação”, diz André Bazin.14 Mas o possuído pela imaginação não é ele próprio o inventor antes de ser consagrado como grande erudito? Uma ciência é apenas uma ciência e nada mais? Não é sempre filha do sonho, em sua fonte inventiva? As grandes invenções vieram do mundo dos passatempos, dos hobbies. Elas jorram não da grande empresa evoluída, mas do laboratório de um iluminado solitário ou da oficina de um improvisador (não preciso acrescentar que a grande empresa absorve rapidamente a invenção). E se generalizarmos, então, ao nível das nações, terá sido talvez seu atraso no plano da concentração e da racionalização industrial que fez da França um país de inventores! Pelo menos, é certo que, se o cinema é uma invenção internacional, foi numa França artesanal e improvisadora, que o número de achados cinematográficos foi mais alto (129 patentes no ano de 1896, contra 50 na Inglaterra). O nascimento do cinematógrafo nos levaria facilmente a formulações de sociologia comparativa da invenção,15 mas queremos aqui frisar este ponto: inventores, curiosos, sonhadores fazem parte de uma mesma família e navegam nas mesmas águas onde o gênio tem sua fonte. A técnica e o sonho estão ligados desde seu nascimento. Não se pode colocar o cinematógrafo, em momento algum de sua gênese e de seu desenvolvimento, no campo apenas do sonho ou apenas da ciência. A. Bazin, “Le Mythe du Cinéma Total”. Critique, n. 61, p. 552-57. Notadamente, o mistério da coincidência cosmopolita das grandes invenções. Uma invenção nunca nasce sozinha. É vista surgir simultaneamente em várias partes do globo, como se seus inventores fossem apenas os médiuns dispersos de um mesmo gênio subterrâneo. Edison nos EUA, William Friese-Greene na Inglaterra, o doutor Anschütz e Skladanovsky na Alemanha, outros pesquisadores na Rússia, Demenÿ, GrimoinSanson na França, trabalhavam ao mesmo tempo no aparelho que Lumière conseguiu desenvolver primeiro. 14 15
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Durante todo o século XIX, improvisadores e cientistas trocam as invenções que experimentam e, a cada um desses vaivéns um aperfeiçoamento se implanta. O praxiscópio de Plateau se transformou em zootropo (Horner, 1834), lanterna mágica animada com projeção em tela (Von Uchatus, 1853), desenho animado (praxinoscópio de Reynaud, 1887, teatro óptico, 1889). Paralelamente, o brinquedo, associado a esse outro grande folguedo para gente adulta que é a fotografia, passando pela fantasia extravagante do bilionário Lelan Stanford, volta a se tornar instrumento de pesquisas (revólver fotográfico de Jansen, 1876; cronofotógrafo de Marey, 1882). Melhor: os saltimbancos improvisadores se transformam em cientistas, e os próprios cientistas se transformam em saltimbancos: o professor de ciências naturais Reynaud se vê contrarregra em turnês pelo interior. De que se trata aquilo? De um brinquedo para o “children’s corner”? De uma carabina para cientistas captarem os movimentos das borboletas? De desenhos animados para o Museu Grévin? De um complemento visual para o fonógrafo? De um caça-níqueis? De uma ferramenta ou de uma brincadeira? Se tentarmos mergulhar nas origens, a incerteza cresce ainda mais: ciência óptica? Sombras mágicas? “A invenção do cinema resulta de uma longa série de trabalhos científicos e da atração que o homem sempre sentiu pelos espetáculos de sombra e luz...”, diz Marcel Lapierre.16 Os trabalhos científicos, lembra Martin Quigley, remontam até o árabe Alhazen, que estudou o olho humano; a Arquimedes, que usou sistematicamente lentes e espelhos; a Aristóteles, que fundou uma teoria da óptica.17 Essa incursão nos leva às fontes, não somente da ciência física, mas também, passando pela fantasmagoria, da religião, da magia e da arte. Os antecessores dos irmãos Lumière são os
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M. Lapierre, Anthologie du Cinéma, p. 13. Martin Quigley Jr., Magic Shadows, the Story of the Origins of the Motion Pictures.
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exibidores de lanterna mágica, cujos mais ilustres são Robertson (1763-1837) e o padre Kircher (1601-1682), eles mesmos herdeiros da magia primitiva: 5 mil anos antes, nas paredes das cavernas de Java, o “Wayang” dava vida a seus jogos de sombras. Os cultos dos mistérios gregos, praticados na origem em cavernas, eram acompanhados por apresentações de sombras, se seguirmos a hipótese de Jean Przylinsky, que relata ao mesmo tempo a origem do mito platônico descrito no 7o livro de A República.18 De onde vem então o cinema? “Seu nascimento... comporta todos os aspectos de um enigma e quem quer que se indague sobre isso, perde-se pelo caminho e abandona a procura”.19 Para dizer a verdade, o enigma não está nos fatos, mas na incerteza de uma corrente sinuosa entre o jogo e a pesquisa, o espetáculo e o laboratório, a decomposição e a reprodução do movimento; no nó górdio entre a ciência e o sonho; entre a ilusão e a realidade onde se preparou aquela nova invenção. O cinematógrafo cortou mesmo esse nó górdio? Ele surgiu em 1895, absolutamente fiel às coisas reais através da reprodução química e da projeção mecânica, verdadeira demonstração de óptica racional, e pareceu ter dissipado para sempre a magia de Wayang, as fantasias do Padre Kircher e os folguedos de Reynaud. Foi entronizado na Universidade e saudado academicamente. Mas essa máquina não seria a mais absurda que pode existir, já que só serve para projetar imagens pelo prazer de ver imagens?
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Communication au Congrès International d’Esthétique, Paris, 1937. A. Valentin, “Magie Blanche et Noire”. Art Cinématographique, n. 4, Alcan, Paris, 1927, p. 109.
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CAPÍTULO II
O encanto da imagem
A originalidade do cinematógrafo é relativa. Edison já havia animado fotografias; Reynaud havia projetado imagens animadas. Mas a própria relatividade do cinematógrafo – ou seja, a relação dentro de um sistema único entre a fotografia animada e a projeção – é sua originalidade. O cinematógrafo aumenta duplamente a impressão de realidade da fotografia, por um lado, restituindo aos seres e às coisas seu movimento natural e, por outro, projetando-os libertos da película e da caixa do cinetoscópio, sobre uma superfície na qual parecem autônomos.1 E é precisamente no momento em que a maior fidelidade jamais obtida deveria orientá-lo para aplicações científicas e fazê-lo perder qualquer interesse espetacular; é precisamente então que o aparelho Lumière dá a virada para a contemplação de imagens apenas.
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Cf. capítulo V deste livro, “A Presença Objetiva”, p. 143.
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Fotogenia Esse prodígio exibido em 1895-1896, diz Marcel Lherbier, “como a mulher barbada ou a vaca de duas cabeças”2 tem de prodigioso o fato de mostrar vacas com uma só cabeça e mulheres sem barba. Claro que não é surpreendente que toda nova invenção fascine e atraia a curiosidade. Certamente, desde seu nascimento e mesmo antes (Cinetoscópio), a imagem filmada devia ser acompanhada de exotismo e de fantasia, absorvida pelo burlesco (L’Arroseur Arrosé – O Jardineiro Regado), pelo fantástico (primeiros filmes de Méliès, 1896-1897), pela história (o primeiro Assassinat du Duc de Guise), pelas crianças (Coucher d’Yvette, Pierreuse), pelo grand guignol (Exécution Capitale à Berlin) e pelas festas e notícias trucadas, as coroações, as batalhas navais... Mas o deslumbramento incauto implicava um deslumbramento mais profundo. Ao mesmo tempo que essa imagem estranha, nova, divertida, uma outra imagem, banal, quotidiana, impunha seu fascínio. O embevecimento inaudito suscitado pelas turnês do aparelho dos Lumière não nasceu apenas da descoberta de um mundo desconhecido, insiste Sadoul, justamente, mas da visão de um mundo conhecido, não somente do pitoresco, mas do quotidiano. Lumière, ao contrário de Edison, cujos primeiros filmes mostravam cenas do music-hall ou de lutas de boxe, teve a intuição genial de filmar e projetar como espetáculo o que não era espetáculo: a vida prosaica, os transeuntes com seus interesses. Ele mandava seus auxiliares, Mesguish e Promio, saírem pelas ruas. Ele compreendeu que uma primeira curiosidade era dirigida ao reflexo da realidade; que as pessoas, antes de qualquer coisa, se 2
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Lherbier, L’Intelligence du Cinématographe, p. 25.
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maravilhavam ao rever o que fora dali não as deslumbrava:3 suas casas, seus rostos, o cenário de sua vida familiar. A saída da fábrica, um trem na estação, coisas já vistas inúmeras vezes, gastas e menosprezadas, atraíram as primeiras multidões. Isso quer dizer que o que atraiu as primeiras multidões não foi a saída da fábrica ou um trem entrando na estação (bastaria ir à fábrica ou à estação), mas uma imagem do trem, uma imagem da saída da fábrica. Não era pelo real, mas por uma imagem do real que as pessoas se empurravam às portas do Salon Indien. Lumière havia sentido e explorado o encanto da imagem cinematográfica. Mas será que esse encanto não se dissiparia depois das apresentações Lumière? Poderiam crer que sim, na época. O cinematógrafo se lança no mundo e torna-se um turista. Metamorfoseia-se em feérico. Todavia, as primeiras reflexões sobre a essência do cinema, cerca de vinte anos mais tarde, começam pela conscientização do inicial fascínio e a isso dão um nome: fotogenia. Essa característica, que está, não na vida, mas na imagem da vida, como defini-la? A fotogenia é “o aspecto poético extremo dos seres e das coisas” (Delluc), “a qualidade poética dos seres e das coisas” (Moussinac), “suscetíveis de nos serem reveladas exclusivamente pelo cinematógrafo” (Delluc e Moussinac). Hesitação do pensamento de uma fase infantil, candura de expressão, pobre e rica como o balbuciar da revelação mística, a grande verdade é repetida: a fotogenia é a qualidade própria do cinematógrafo e a qualidade própria do cinematógrafo é a fotogenia... Epstein dá um passo adiante, quando, além da “propriedade cinematográfica das coisas, como um tipo de potencial emocionante”, A introdução do cinema nas regiões onde ele não é conhecido provoca sempre os mesmos fenômenos. O tenente F. Dumont observa a reação dos berberes marroquinos: “A visão do ferreiro colocando ferraduras num burro, do artesão modelando o vaso de barro, de um homem comendo gafanhotos assados, de um burrico que passa, de um camelo que se ergue com sua carga desencadeia o entusiasmo geral: exclamações de alegria e espanto partem de todo lado” (“L’Utilisation des Auxiliaires Visuels au Maroc”, in: Les Auxiliaires Visuels et l’Éducation de Base, Paris, Unesco, 1952, p. 320 ss). 3
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ele define como fotogênico “tudo o que aumenta sua qualidade moral”, ou melhor, “tudo aquilo que é intensificado pela reprodução cinematográfica”.4 Essa qualidade ampliadora (não choca a união dialética dos dois termos) não pode ser confundida com o pitoresco, aquele convite à pintura que nos é enviado pelas coisas graciosas. “Pitoresco e fotogenia não coincidem a não ser por acaso” (Epstein). O pitoresco está nas coisas da vida. Próprio da fotogenia é despertar para o pitoresco as coisas que não o são. Cenas anódinas, “momentos familiares” fixados pelo cine-olho de Dziga Vertov, podem se ver exaltadas até um “paroxismo de existência” (Chavance), ou, “sublimadas, transfiguradas” (Agel), revelar “a beleza secreta, a beleza ideal dos movimentos e dos ritos de cada dia”.5 Mas de que paroxismo se trata? De qual transfiguração? Citemos inteiramente a frase de Chavance: “Vejo nesse paroxismo da existência um caráter sobrenatural”; terminemos a frase de Agel: “A virtude surrealista do cinema se cumpre da forma mais pura”.6 E, para terminar, cito A. Valentin: a objetiva confere a tudo de que se aproxima um aspecto de lenda; transporta tudo o que cai em seu campo para fora da realidade”.7 O espantoso é que a qualidade “lendária”, “surrealista”, “sobrenatural” provenha diretamente da imagem mais objetiva que se possa conceber! Breton se admirava de que no fantástico sempre houve apenas o real. Invertamos a ideia e admiremos o fantástico que se irradia do simples reflexo das coisas reais. Poderíamos até mesmo fazê-la dialética: real e fantástico, na fotografia, remetem um ao outro, sempre se identificando como numa exata sobreposição. Cf. Epstein, Le Cinématographe Vu de l’Etna, p. 25. J. Epstein, Cinéma Bonjour, p. 10. 6 H. Agel, Le Cinéma a-t-il Une Âme, p. 64-65. 7 A. Valentin, op. cit. 4 5
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Tudo se passa como se, diante da imagem fotográfica, a visão empírica se investisse também de uma visão onírica, análoga ao que Rimbaud chamava de vidência, não diversa do que os videntes chamam ver (nem talvez à plenitude que os “voyeurs” alcançam pelo olhar): uma segunda visão, como se diz, no limiar de revelar belezas ou segredos ignorados pela primeira. E provavelmente não foi por acaso que, quando o verbo ver parecia ser suficiente, os técnicos sentiram necessidade de inventar o verbo “visualizar”. Assim, segundo a expressão de Moussinac, a imagem cinematográfica mantém “o contato com o real e também transfigura o real até a magia”.8 Novamente aparece a palavra magia aplicada à mais fiel das imagens, envolvida pelo cortejo de palavras-bolhas – maravilhoso, irreal, etc. – que estouram e evaporam-se logo que se tenta manipulá-las. Não que elas queiram dizer nada; é que elas não podem dizer nada. Elas expressam o desejo impotente de expressar o inexpressável. São as senhas do indizível. Essas palavras, devemos tratá-las como suspeitas em sua insistência de repetir seu vazio. Mas, ao mesmo tempo, essa obstinação é sinal de um tipo de faro cego, como entre aqueles animais que raspam o chão sempre no mesmo lugar, ou que se põem a uivar logo que a lua aparece. O que foi que farejaram? O que reconheceram? Magia? Fotogenia? Qual é a genialidade da fotografia?
Gênio da fotografia Foi a fotografia que deu origem à palavra fotogenia, em 1839.9 E ela ainda
é utilizada. Diante de nossas fotos, achamo-nos fotogênicos ou não, conforme
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L’Âge Ingrat du Cinéma. Sadoul, L’Invention du Cinéma, p. 27.
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