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Impresso no Brasil, novembro de 2014 Título original: Le Mal et La Souffrance Copyright © DMM, 2000. Todos os direitos reservados. Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal: 45321 · 04010 970 · São Paulo SP Telefax: (11) 5572 5363 e@erealizacoes.com.br · www.erealizacoes.com.br Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente Editorial Sonnini Ruiz Produção editorial William C. Cruz Preparação de texto Lucia Leal Ferreira Revisão de texto Lucas Cartaxo Capa e projeto gráfico / diagramação Mauricio Nisi Gonçalves / André Cavalcante Gimenez Pré-impressão e impressão Edições Loyola Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

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O mal e o sofrimento

LOUIS LAVELLE Apresentação à edição brasileira

Rodrigo Petronio Prefácio

Michel Adam Tradução

lara christina de malimpensa Revisão técnica

Carlos Nougué

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Sumário Apresentação à edição brasileira por Rodrigo Petronio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 Prefácio por Michel Adam . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 Preâmbulo sobre o tempo da guerra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

Parte I – O MAL E O SOFRIMENTO 1. O mal 1. O escândalo do mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41 2. A alternativa entre o bem e o mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 3. O mal e a dor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44 4. O uso da dor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46 5. A injustiça . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48 6. A maldade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50 7. A definição do mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 52 8. A opção fundamental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 9. Aquém do bem e do mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56 10. Nascimento da reflexão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 11. O conhecimento do bem e do mal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 12. A responsabilidade por si mesmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62

2. O sofrimento 1. Descrição da dor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48 2. A dor e o sofrimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67 3. O ato de sofrer . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68 4. As atitudes negativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 5. As atitudes positivas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 6. Conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

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Parte II – TODOS OS SERES, SEPARADOS E UNIDOS Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91 1. A separação 1. A célula secreta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 2. O risco da solidão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 3. O contato entre duas solidões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98 4. A solidão da impotência e da infelicidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101 5. A solidão do livre-arbítrio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104

2. A união 1. A consciência aberta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107 2. A saída de si . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109 3. A independência entre os seres . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112 4. A realização recíproca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114 5. O despojamento do individual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116

3. A influência 1. A presença de todo pura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119 2. O prestígio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122 3. A influência individual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124 4. A influência interindividual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126 5. A influência transindividual . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128

Epílogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131

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Apresentação à edição brasileira O mal e o nascimento da consciência O problema do mal atravessa a história do pensamento humano, seja em seu aspecto ontológico, racional ou secularizado, seja como uma demanda interna a praticamente todas as religiões do mundo. Na tradição ocidental, que Leon Chestov e Leo Strauss definiram como uma oscilação pendular entre Atenas (ontologia racional) e Jerusalém (verdade revelada), o problema do mal foi entendido a partir dessas matrizes: a metafísica grega e a revelação abraâmica. E nesse âmbito o problema do mal recebeu o nome de teodiceia. Como conciliar uma eventual perfeição finita do cosmos entendido como physis com a imperfeição, a dor e a morte? Como equacionar a infinita bondade de um Criador com a existência do mal no mundo? Desde Platão, os gnósticos, os estoicos, Agostinho, Tomás de Aquino e Espinosa até Leibniz, Hegel e Kierkegaard, essa pergunta sobre a razão do mal perturbou pensadores de orientações as mais diversas. E recebeu as mais diversas respostas, quase sempre aporéticas. A partir do século XVIII, o problema da relação que a consciência estabelece com o mal adquiriu tanta relevância que as soluções apresentadas por ontologias regionais passaram a se mostrar insuficientes. Mesmo de um ponto de vista antimetafísico, o problema do mal continuava a reaparecer em termos

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epistemológicos sob a forma do acaso e da contingência, como resíduo noético que inviabilizava o fechamento de qualquer sistema racional. Nesse sentido, é possível entender o pensamento de Kant e mesmo a doutrina do idealismo alemão como tentativas de conceber a filosofia moral e a filosofia dos valores como sendo as duas faces de uma doutrina geral da consciência, e, desse modo, solucionar o impasse lógico milenar da adequação do mal entre a contingência e a necessidade. O problema do mal estaria aquém da dimensão metafísica e além de uma dimensão moral. O imperativo categórico e o apriorismo kantianos, a fenomenologia do Espírito de Hegel, a instauração agonística e teogônica da consciência desenhada por Schelling, a doutrina do pathos, entendida como realização suprema do sofrimento divino-humano, segundo Hölderlin – diversos foram os caminhos que propuseram uma aliança entre a filosofia da consciência e a filosofia moral e meios de articulação entre consciência e valor. A axiologia e a ontologia passam a ser assimiladas ao projeto de uma gnosiologia geral, como diziam os novecentistas. Em decorrência dos desastres do século XX, essa busca de uma unidade entre filosofia moral e filosofia da consciência se intensificou. Ambas tornaram-se faces distintas de um mesmo problema filosófico, a ponto de podermos identificar em algumas obras e autores um apagamento de suas fronteiras. A fenomenologia nesse sentido se constituiu como método privilegiado por meio do qual a estrutura fundamental dos atos intencionais da consciência pôde ser transformada em um palco privilegiado para a compreensão da emergência dos valores. Em meio a pensadores de orientações extremamente diversas, mas que se aproximam em pontos específicos, em decorrência de sua abordagem fenomenológica ou conscienciológica, a obra de Louis Lavelle ocupa um lugar de destaque. Reunidos em um único volume, estes dois ensaios que o leitor tem em mãos, O mal e o sofrimento e Todos os seres, separados e unidos, impecavelmente traduzidos por Lara Christina de Malimpensa, representam por sua vez um dos pontos mais agudos da mencionada convergência entre filosofia da consciência e investigação moral.

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Escritos não por acaso no final da década de 1940, estes dois ensaios surgiram junto com a conclusão daquele que é considerado o opus magnum de Lavelle: La Dialectique de l’éternel présent, em quatro tomos: De l’Être (1928), De l’Acte (1937), Du Temps et de l’Eternité (1945), De l’Âme Humaine (1951). E também se situam cronologicamente no período de desenvolvimento de suas obras mais representativas, como La dialectique du monde sensible: Lu perception visuelle de la profondeur (1921), La conscience de soi (1933),1 La présence totale (1934),2 L’Erreur de Narcisse (1939),3 Le Mal et la Souffrance (1940), La Parole et l’Écriture (1947), e Les puissances du Moi (1948). Além desse aspecto de maturidade de seu pensamento, estes ensaios são marcados por um forte traço autobiográfico. Logo nas primeiras linhas, concentram-se sobre o problema da guerra, na qual Lavelle lutou. Marcam assim não apenas o atestado de uma época como também insinuam um pano de fundo autobiográfico. Autoconsciência e história se cruzam. Além disso, temos aqui, como nas outras obras, a prosa primorosa e límpida de Lavelle, um dos grandes estilistas do pensamento metafísico do século XX. Logo no início, Lavelle conduz o leitor a uma inflexão inesperada: a guerra não seria uma exceção ao funcionamento da vida. Seria um ponto culminante de uma estrutura ontológica do humano, enraizada no problema do mal. Não se trata de minorar o sentido do conflito. Trata-se de pensar o conflito como algo da essência humana e da presença real do mal no mundo. A partir dessa condição temporal, Lavelle parece sinalizar a própria condição ambivalente do mal. Não é possível pensar o bem sem recorrer à força contrastante de seus antípodas. Da mesma maneira, a dor e as manifestações físicas do mal são o modo mesmo pelo qual a consciência se apodera de si mesma e dota a vida de sentido e valor. Nesse ponto surge um tema nuclear, desmembrado em diversas variações: a solidão. 1 Louis Lavelle, A Consciência de Si. Trad. Lara Christina de Malimpensa; apresentação de René Le Senne. São Paulo, É Realizações, 2014. 2 Idem, A Presença Total e Outros Ensaios. Trad. Carlos Nougué; apresentação de Tarcísio Padilha. São Paulo, É Realizações, 2012. 3 Idem, O Erro de Narciso. Trad. Paulo Neves; apresentação de Alfredo Bosi. São Paulo, É Realizações, 2012.

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A redução eidética de Husserl corresponderia na obra de ­Lavelle a uma redução existencial, mais próxima de uma ontologia cristã. Diante do mal, o indivíduo não se coloca diante de uma essência catada em suspensão durante o percurso noético. Pelo contrário, vê-se despido de toda possibilidade de troca e de solidarização com outros seres humanos, vedado à troca intersubjetiva com outras almas. A guerra, a dor e a morte são paradoxais porque lançam o indivíduo para as camadas mais profundas de sua constituição subjetiva. Nesse sentido, são um meio de superação dialética da solidão, constitutiva do humano. Por isso, a vida do espírito é uma misteriosa identidade entre presença e ausência. Em Lavelle, a perspectiva fenomenológica é preenchida pelos dados da experiência existencial. A suspensão [epoché] deixa de ser um método e atinge o estatuto de uma comunicação existencial entre os seres humanos. O papel desempenhado por Deus não é apenas mostrar-se presente, pois a presença contínua de Deus esvaziaria o próprio valor de Deus, em termos metafísicos e também espirituais. Por isso, a forma de manifestação de Deus é estruturalmente igual às formas pelas quais a consciência humana se releva e se oculta a si mesma, ou seja, como ausência, solidão, separação. Cabe a Deus dar-nos a dimensão inefável de uma distância absoluta. Apenas assim a consciência pode apreender seu próprio limite e se unir a outras consciências. Sem essa dotação de distância, o horizonte último das consciências não teria nenhuma distinção ontológica em relação às manifestações superficiais, e, portanto, todas as consciências se diluiriam em um pampsiquismo. Esse caráter paradoxal de Deus e da dor é importante para a construção argumentativa de Lavelle. Inserido a meio caminho entre a tradição agostiniana, que entende o mal como privação de bem [privatio boni] e não como potência, e a tradição do rea­lismo escolástico, que confere ao mal uma realidade, Lavelle concebe a escalada de perfeição das criaturas como os modos de inscrição divina da liberdade no seio da Criação. Desse modo, à maneira de Agostinho no tratado sobre o livre-arbítrio, Lavelle neutraliza a ação divina nos desdobramentos do mal no mundo, alocando-o no coração humano das escolhas. Nesses termos, bem e mal não recebem apenas uma distinção de forma, mas

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também real. Caso não houvesse esse nível de distinção, as escolhas não poderiam dar origem a nenhuma determinação de valor, ou seja, consciência e moral se desvinculariam. No cerne desse movimento, pode-se superar tanto o dualismo moral quanto o metafísico, à medida que o mal possui uma realidade na mesma medida em que essa realidade se apresenta de modo dialético e até mesmo paradoxal. Ao reconhecer essa estrutura do mal, Lavelle faculta ao espírito a capacidade de transcendê-lo. Por outro lado, Lavelle também reconhece muitos e dadivosos bens no mal. Um deles, e um bem primordial, é o de introduzir na carne o sofrimento. Apenas pela marca temporal da finitude a substância da consciência consegue se singularizar. Deixa de ser uma consciência intencional de algo e passa a ser uma consciência existencial de alguém, como Lavelle demonstra nos argumentos finais, sobre a passagem da individualidade para a interindividualidade e desta para a transindividualidade, no seio da qual emerge a categoria de pessoa. A liberdade nesse sentido não está em um regresso ao estado de natureza, que é em si mesmo decaído. Como diz Lavelle, a inocência, depois de perdida, não pode ser recuperada, mas apenas superada. A inocência da natureza e a da criança são sempre negativas. Ela consiste em um estado no qual o espírito ainda não se conformou a seu objetivo, pertence a uma idade anterior à cisão do bem e do mal, e, portanto, anterior ao nascimento da consciência. A natureza como natureza não pode ser confundida com a simplicidade da substância divina, que não nos é nunca dada, mas proposta e conquistada mediante atos da vontade e do espírito. Como se sabe, em sua fenomenologia do ser e do nada, ­Sartre concebe a experiência da natureza como uma experiência de desintegração. A nadificação constitutiva da consciência, que intenciona objetos à medida mesma que objetivada por outras consciências, abre-se diante dos abismos infinitos de uma natureza em desintegração. Não é possível reconciliação entre o em-si e o para-si das consciências, pois ambas se desdobram como duas paralelas que não se tocam no infinito. A tentativa de transparência da consciência diante de si mesma e dos outros redunda em má-fé, porque nenhuma consciência pode superar em si a opacidade estrutural da própria atividade conscienciológica.

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Em Lavelle, a natureza também é negativa. Porém, diferentemente, a gênese das consciências ocorre a partir de um solo comum. Por isso a troca intersubjetiva e o encontro se tornam possíveis. Nesse ponto Lavelle aprofunda sua teoria da reflexão, dotada de um admirável realismo. Porque ao mesmo tempo que a reflexão, ao inaugurar a consciência, nos separa do mundo, é essa mesma separação que promove a possibilidade de uma dialética ausência-presença, essencial para a configuração da vida do espírito. A perda da espontaneidade natural nos inscreve no horizonte do conhecimento, ou seja, dos atos livres. Apenas como ­resultado de atos livres o mundo e o ser humano podem ser dotados de ­valor, pois apenas em liberdade e no nível consciente pode haver distinção entre bem e mal. A reflexão obriga a consciência a se tornar um problema para si mesma. Mais do que isso: conduz a consciência ao substrato que unifica a separação aparente dos seres. Sem a separação, não haveria a possibilidade de apreender a unidade vital dos fenômenos. A marca da dor, a solidão e a cisão reflexiva são a ação do mal sobre a superfície da consciência humana. Sem essa ação, não haveria a escolha entre bem ou mal e, nesse sentido, não haveria sequer possibilidade de distinção formal entre bem ou mal. Retornaríamos ao mundo indiferenciado e ante-humano das coisas e dos seres indiferentes. Estaríamos presos ao dualismo do cogito e da extensão, na acepção cartesiana. Desse modo, Lavelle se conecta ao milenar problema da singularização das substâncias por meio da dinâmica entre a matéria, a forma e os atributos. Ao mesmo tempo que sua chave de reflexão retorna aos antigos e aos escolásticos, inscreve-se em um horizonte de problemas oferecidos pela filosofia da consciência dos últimos quatro séculos. A matriz de sua fenomenologia da consciência não é nem Kant nem Descartes, pois não se enraíza nem em uma dimensão transcendental nem em uma concepção racionalista da atividade cognitiva. Parece antes dialogar com as filosofias da existência em sua matriz cristã e moderna, e os modos pelos quais essas filosofias renovaram o interesse pelos problemas de natureza metafísica, mediante a inversão entre existência e essência.

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Há, todavia, na obra de Lavelle uma dimensão ligada à esfera do reconhecimento, e que confere à dinâmica de espelhamento das consciências um lugar extremamente central em sua argumentação. A teoria do reconhecimento é uma das bases da fenomenologia de Hegel. Em Lavelle, o reconhecimento adquire nuances em relação à matriz hegeliana. Não se trata da assimilação das singularidades e particularidades ao regime universal do Espírito. A materialidade da dor demarca um corpo físico sobre o qual a dor incide. O problema do mal moral se refrata na consciência real de uma consciência encarnada. Nem corpo nem consciência se mostram nestes ensaios de Lavelle como dimensões puramente racionais ou formais das etapas de autorrealização do Absoluto. São resíduos não assimiláveis a um sistema e à totalidade, a não ser como mediação de ser a ser, em cadeia infinita. Por outro lado, mesmo sabendo-se que a noção de sujeito em Hegel engloba tanto a dimensão empírica quanto a conceitual e a real, nestes ensaios de Lavelle as diversas atitudes que possamos ter diante do mal e do sofrimento apenas em termos superficiais dizem respeito a problemas da esfera subjetiva. Elas sempre têm suas raízes em uma região ontológica que antecede a divisão dos papéis e das máscaras sociais. A luta, presente em Hegel como força motriz da negatividade constitutiva da dialética das consciências, surge aqui mitigada, como pano de fundo da manifestação difusa do mal, do sofrimento e da dor, paradoxalmente necessários à emergência mesma da consciência. Os desempenhos psicológicos de indivíduos não esgotam o campo fenomênico da interação das consciências entre si. São apenas um epifenômeno de uma atividade mais primitiva. A dor faz a consciência descer até essa região antepredicativa e é por meio da dor que chegamos à essência indissociável do valor. Para Lavelle esse movimento não é uma queda – é uma ascensão. No limite, esse movimento ascendente é o que poderíamos chamar de comunhão. Vicente Ferreira da Silva, talvez o primeiro e um dos mais brilhantes leitores de Lavelle no Brasil, aproximaria essa comunhão à experiência do amor, única capaz de superar a negatividade das consciências em suas trocas e buscas por reconhecimento.4 Vicente Ferreira da Silva, Obras Completas, vol. I: Dialética das Consciências; vol. 2: Lógica Simbólica; vol. 3: Transcendência do Mundo. São Paulo, É Realizações, 2009-10.

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A partir dessas imagens e conceitos de grande penetração, a filosofia da consciência de Lavelle também sinaliza para uma teoria do vínculo. Impossível separar corpos e almas que, para estarem unidos, precisam estar separados. O paradoxo dessa asserção repousa sobre o fato de que não há unidade sem a possibilidade ontológica de separação. Unidade e separação, presença e ausência são compossíveis. Por isso, mesmo afetos como remorso, ressentimento, recolhimento, apresentam, na anatomia mesma dos termos, a marca de uma remissão e de uma rememoração: o indivíduo só pode se purificar porque conseguiu se separar do que fora e fizera um dia. Só assim pode se reconectar consigo mesmo em um momento diverso do tempo. Esse movimento em espiral parece explicar muito bem as motivações implicadas nesta obra e no pensamento de Lavelle. As células secretas da intimidade demonstram a pertença de uma consciência a si mesma. Nessa condição, mesmo solitária, a consciência é rica. Porque a solidão é a condição de possibilidade para o encontro. Mais do que isso: para o encontro verdadeiro. O pensamento é o que nos constitui e o que nos encerra. É nossa liberdade e nossa clausura, simultaneamente. O problema da solidão, da indiferença aos outros ou da falta de reconhecimento consiste em reduzir a dor e o sofrimento advindos dessas situações a forças puramente exteriores que agiriam de modo adverso sobre um indivíduo. Essa exterioridade das relações inviabiliza nosso acesso à região mais profunda onde ocorre o nascimento da consciência para si mesma. Corremos o risco de nos prendermos em relações de prestígio, de vaidade e em influências individuais mútuas, como se esses bens representassem a própria consciência. Reduzimos assim a consciência a um palco. Talvez seja essa dimensão pública da consciência, brilhantemente explorada por Husserl, que Lavelle parece sutilmente contestar, advogando por um senso de interioridade espiritual pura, presente no fundo da consciência. Uma consciência aberta não seria uma consciência cujos atos intencionais a despojam de toda substância interior inalienável. Uma consciência aberta é aquela que mergulhou nos estados profundos da dor, do despojamento e da nudez para renascer como pessoa, ou seja, para

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tornar-se não apenas a consciência intencional de algo, mas a consciência moral de um valor. Nesse espaço de interioridade universal no qual o universo se torna uma imensa interioridade, perfeição e solidão se comunicam, se interpenetram e se superam. Por quê? Porque esse é o lugar propício para a abertura ontológica mais primitiva. É o espaço mesmo no qual as consciências tocam o espaço-tempo da intersubjetividade. Apenas mediante a autolimitação fornecida pela consciência da solidão que o ser-individual consegue tocar o ser-todo. A irredutibilidade de cada consciência disposta para si é o campo de abertura para a consciência rumo à totalidade do mundo. Toda escala do ser ocorre em mediações e intermediações mútuas. A inteligência abre essas possibilidades de comunicação entre todos os seres, comunicação essa que em sua expressão máxima pode ser entendida como comunhão e como a integralidade não cindida de toda a atividade consciente. Nessa teia de realizações intencionais e perceptivas, a perfeição de todos os seres se desdobra em uma coevolução e em uma contínua cocriação. Esse movimento cocriativo não visa a um telos que se realiza como consumação de uma obra, no sentido de Hegel. Está mais próximo da noção de evolução criadora de Bergson, de quem Lavelle foi aluno. Nessa conectividade dos seres, o extremo da riqueza é o extremo da pobreza, porque a abertura ao mundo emerge justamente no ponto mais agudo do despojamento. O acesso à totalidade conferido a um ser só ocorre mediante o contato desse ser com outro ser, ou seja, em escaladas e espirais. Os seres humanos se mantêm separados à medida mesma que se conhecem a si mesmos e mesmo assim permanecem incapazes de promover o salto que os lança à substância idêntica que os une para além das separações fenomênicas. Nesse momento, rompem-se as células e esferas secretas da permanência nas quais os seres permanecem enredados em si mesmos. A mediação mútua dos seres em relação a si mesmos assume o sentido de uma transindividualidade. O resultado desse encontro que suspende a solidão é a abundância infinita. Nesse espaço do espírito, pertencemos àquela intimidade do redondo, de que fala Bachelard. O interior e o exterior se superam como categorias antinômicas.

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As consciências nascem e sabem o que as divide e o que as une. Tudo isso graças à ação do mal e do sofrimento, sem os quais esse despertar jamais seria possível. Rodrigo Petronio Graduado em Letras Clássicas (USP), mestre em Ciência da Religião (PUC-SP) e em Teoria da Literatura (UERJ). No doutorado, pesquisa a interface entre Teoria da Literatura e Filosofia.

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Prefácio Durante os dez últimos anos de sua vida, Louis Lavelle (18831951) lecionou no Collège de France. Foi a conclusão de uma vida plena de atividades universitárias e de realizações de obras de rara qualidade, nas quais se conjugam a profundidade da reflexão, a pertinência das observações sobre a existência e sua abordagem por meio de uma sensibilidade que a torna presente para nós. Aos vinte livros publicados é preciso acrescentar grande número de artigos, sem desconsiderar as crônicas filosóficas do jornal Le Temps, entre 1930 e 1942, das quais as principais foram publicadas em livro. Distinguem-se comumente as obras de Louis Lavelle entre as metafísicas e as morais. A classificação é cômoda, mas não deve fazer esquecer que a metafísica sustenta o pensamento moral, como se verá aqui. As obras morais, portanto, são de fato filosofia da mais autêntica, pois a observação das condutas humanas fornece um viveiro do qual se depreendem a significação da existência e a realização da pessoa.1 O Mal e o Sofrimento pertence, portanto, às obras dedicadas à filosofia moral. Foi realizado a partir de dois artigos, datados de 1934 e 1937, e publicado em 1940. Sempre consta em bibliografias de filosofia moral; sua riqueza de análise o celebrizou, e era importante que pudéssemos lê-lo e meditá-lo uma vez mais. Realizou-se um colóquio internacional em Agen de 27 a 29 de setembro de 1985; Louis Lavelle era originário de Lot-et-Garonne. Cf. Louis Lavelle, Actes du Colloque International d’Agen. Société Académique d’Agen, 1987.

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Convida a uma reflexão sobre experiências que são características de toda existência: o sofrimento do corpo e a provocação do mal no mundo, assim como o encontro com outrem, que é sempre uma aventura, fracasso ou enriquecimento, aprimoramento da pessoa ou condenação a um retraimento em si. Rapidamente se notará a valorização de uma abordagem que torna este livro tão generoso e tão cativante. Os autores contemporâneos, diante da hostilidade do mundo, comprazem-se em atitudes negativas. A preocupação heideggeriana e a angústia sartriana serão completadas pelo absurdo de Camus. O esnobismo da derrelição invadia o mundo intelectual e determinava uma moda à qual muitos sucumbiam. Era bom chamar a atenção para a própria existência e recusar à vida qualquer sentido positivo, diante da invasão imperialista da infelicidade. Rapidamente se constatará que Lavelle nos remete à nossa liberdade. Em vez de sucumbir à aflição, convém assumir a responsabilidade por si mesmo, para poder afirmar-se. Longe de bloquear a sensibilidade e as consciências, de paralisá-las, o mundo hostil deve incitar ao desenvolvimento de uma potência criadora. Constata-se, então, que é por meio dela que eu me constituo, que minha vocação se revela a mim. Em vez de me resignar, de me deixar engolir pela infelicidade, proponho à sociedade em que vivo um exemplo de superação e um estímulo a seguir essa mesma atividade. Diante da hostilidade do mundo – e ao contestá-la –, minha liberdade se tornou uma liberdade real (p. 104). Diante da miséria do mundo – investida de minha reflexão –, a vida interior ganha tanto em profundidade quanto em intensidade, e a liberdade entra em vigília. É nessa experiência sensível que eu constato: para não ceder ao desespero, é preciso dar à alma força e luz. O mundo deixa de ser um espetáculo indiferente: é a ocasião de um enfrentamento em que as provações incitam à afirmação de si e dos outros (p. 32). O mal do mundo, que convoca minha ação, transforma-se em enunciação do bem. A consciência cessou de considerar exclusivamente o mal; minha liberdade poderá regenerar o mundo, que parecia ocasião, pela infelicidade que expressava, de uma vontade má. Minha vitória sobre o mal impregnou o real de uma significação espiritual. Essas observações

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filosóficas podem ser complementadas, aliás, por uma referência à própria realidade do mal da guerra, por meio das anotações feitas por Lavelle durante sua experiência de soldado e de prisioneiro.2 A possibilidade da luta contra o mal se revela em nós por meio desse sofrimento que nos permite vislumbrar uma vida interior que, como percebemos pouco a pouco, é a verdadeira vida. A constituição da riqueza existencial me conduz à riqueza da vida espiritual. Assim, leremos em nós a primazia da existência sobre a afirmação de nosso ser. É assim que, em seu grande livro De l’Acte [Do Ato], de 1937, Lavelle afirma que a existência precede a essência. Por meio dessa valorização da existência, envolve o homem na ação alegre. Então o mal não está no dado, no real, mas no querer. O mal que encontro é algo por superar, e não uma limitação de meu ser. O sofrimento, por exemplo, é sentido na sensibilidade; mas, se me refiro, de modo complementar, ao espaço em mim onde se expressam a vontade e a liberdade, constato que estou na presença de uma experiência espiritual. Em vez de ser restringido e humilhado por esse mal que me obceca, torno-me o princípio de uma assunção dessa infelicidade. Posso afirmar-me como princípio de vida em meu espírito, porque ele confere ao mal uma significação e faz dele um obstáculo por vencer. *** Como constato, é uma realidade espiritual o que me faz ser. No exemplo do sofrimento, constata-se que ele me leva a aprofundar minha interioridade, a indagar sobre mim mesmo. Meu ser ganha em gravidade e, ao mesmo tempo, em delicadeza. Já não posso entregar-me à indiferença nem à busca de bens exteriores. Em contrapartida, é como se eu descobrisse o acesso a bens interiores, que parecem tão invisíveis quão valiosos. Mais que isso: descubro, na mesma experiência, que alcanço uma unidade interior no centro, na fonte de minha sensibilidade (p. 83-84). Já não me é possível, então, deixar-me levar por todas as solicitações da natureza. Constato que essas solicitações tendiam a uma desestabilização do eu, a uma dispersão no mundo, a uma Louis Lavelle, Carnets de Guerre: 1915-1918. Québec, Le Beffroi; Paris, Les Belles Lettres, 1985. 2

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distração. Torno-me o foco de uma existência autônoma (p. 97). Descubro que depende apenas de mim solicitar aquela fonte viva que existe em mim para então assumir minha responsabilidade de ser eu mesmo. A ferida do sofrimento e a decepção do isolamento me mostram que existe um lugar íntimo que é realmente meu, o lugar de minha atividade espiritual. É em meu ser que encontro o princípio de minha atividade espiritual. E não será para me comprazer nela, mas para participar da dinâmica íntima, que ela me revela. Assim, é no momento em que poderia sentir-me fraco, no momento em que minha fragilidade se manifesta, em que sinto que o entorno me parece hostil, que encontro a mim mesmo. Eu não podia procurar a atividade do espírito no mundo. Esta se revela no universo do invisível, e constato que cabe ao espírito penetrar o mundo para lhe conferir um sentido capaz de se coordenar com minha atividade interior. Graças ao mal que existia no mundo, separei-me deste último e encontrei em mim o movimento espiritual que, à margem do mundo, me mostra meu dinamismo, meu ardor, meu impulso (p. 55). Esse impulso encontra sua significação na possibilidade que possui de se orientar para lá ou para cá, para o bem ou para o mal, para o alto ou para o baixo. Minha sensibilidade espiritual se revela, portanto, como presença diante do dualismo principial axiológico. Eu deveria escolher entre o bem e o mal, entre o dinamismo e a inércia, entre o abatimento e a vitalidade de espírito. O querer se sente convocado a tomar uma decisão, e esta remete à minha intimidade, a essa apreensão do eu em que se sente com clareza que o que está em jogo é o próprio eu, sua vocação e seu destino. Existe uma alternativa de escolha, mas ela se dirige a um eu que é único e que, ao escolher, se escolhe. Meu ser se fará unicamente pelo bem que ele encarnará em suas ações. É essa escolha o que lhe dará sua unidade interior e o que, em última instância, o caracterizará. Nossas infelicidades parecem criar em nós um fendilhamento, separações, uma pluralidade de possíveis. O percurso espiritual nos restitui a unidade pessoal que parecíamos estar a ponto de perder. A reflexão feita sobre nossa dificuldade de ser nos deu a

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possibilidade de recuperar nosso destino próprio. Graças à liberdade, que voltou a ser sensível diante das dificuldades da vida, o homem recupera a possibilidade de viver um sentido; é esse sentido que permitirá retomar uma atividade pessoal e um progresso espiritual. O absurdo do mal é vencido pela vivacidade do espírito e pela identificação dos valores que esperavam que eu lhes permitisse viver e irradiar-se em mim. Aqui se encontra o tema central da perspectiva lavelliana. O ser será alcançado pelo ato, mas o ato tem seu princípio na consciência viva reencontrada em mim. Essa experiência da consciência axiológica nos revelou o ser. O ser será aquele ato pelo qual o espírito faz a si próprio. *** No entanto, não se trata de nos comprazermos num solipsismo. A filosofia de Lavelle é todo o contrário disso. O eu não se retraiu em si mesmo, mas encontrou em si o lugar de uma experiência da qual os outros seres são capazes e na qual lhes é possível comungar. Pode-se levar essa interioridade até a universalidade. Encontra-se o caminho para isso por aquela apreensão de alegria criadora que vibra em nós, ao mesmo tempo que uma luz parece iluminar-nos. Vê-se a possibilidade de uma sociedade espiritual. A solidão ou o sofrimento podia fechar-nos em nós mesmos; no entanto, ao reencontrar a si mesmo em sua fonte, o eu deixou o mundo das aparências, da exterioridade. Na interioridade do espírito é possível comunicar-se, é possível comungar. A vida interior pode acolher as outras vidas interiores. Assim, sinto-me só e, ao mesmo tempo, nessa experiência, encontro os outros. Através dessa fraternidade pode constituir-se uma comunidade de alegria. Eu me separei daquilo que agia no mundo para encontrar aquilo que vive no espírito, naquela vida do espírito que é comunhão e que, com o tempo, vibrará com o próprio espírito de Deus. O sofrimento e o isolamento arruinaram meu amor-próprio. A epopeia espiritual subsequente libera o intervalo entre os seres e dá ensejo a uma comunicação que se elabora na sensibilidade a um princípio que a alimenta. Cada ser descobre a presença do princípio divino e, nesse movimento de progressão e de ascensão que se opera, reconhece uma presença que nutre sua atividade. A vida espiritual descobre, nessa superação, a própria vida do

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amor, esse movimento infinito que nos une ao Todo; ao mesmo tempo, individualmente, sentimo-nos viver. É provável que um aprofundamento dessa experiência nos levasse a encontrar-nos numa participação em Deus, que une todos os seres, que os criou para que estivessem unidos e vivessem numa sociedade de concórdia espiritual. É sob o olhar de Deus que os seres se encontram unidos e realizam seu próprio destino. Sob esse olhar encontramos o ato de bondade pelo qual o criador convidou suas criaturas ao ser; devemos participar disso pelas iniciativas que acabamos de descrever, nas quais o que nos é pedido, de certa forma, é que nos “criemos” a nós mesmos a partir da liberdade que é nossa. *** Este livro descreve, assim, uma experiência humana que solicita nossa liberdade. Vemos que, ao vivê-la em profundidade, o que se oferece a nós é que nos realizemos a nós mesmos. Nosso ser é uma atividade espiritual que acaba por nos abrir para a atividade compartilhada por todos os seres que se unifica no Espírito puro. Lavelle lia com prazer os escritos dos grandes santos da tradição cristã, ou se inspirava em seus exemplos.3 A moral e a metafísica de Lavelle, por meio dessa filosofia da liberdade, desembocam nessa expressão do eu que encontra pleno florescimento na união com o espírito divino. É por meio das dificuldades que encontramos no mundo que nos é dada a possibilidade de nos desenvolver nessa totalidade que não é outra coisa senão a comunhão mística com o Espírito do Deus criador. Como se viu, existe uma complementaridade que devo assumir entre a redescoberta de mim, à qual as asperezas do mundo me convidam, e a elevação e o retorno a Deus.4 A leitura deste livro mostra uma riqueza espiritual, uma beleza de expressão que só podem regozijar a quem se dedica a ele. Aqui se encontrará uma valorização da descrição psicológica que se distancia de tudo o que se reduz à racionalidade estéril, para Louis Lavelle, Quatre Saints. Paris, Albin Michel, 1951 (republicado com o título De la Sainteté, Paris, Christian de Bartillat, 1993). 4 Para uma apresentação geral da obra de Lavelle é preciso consultar Jean École, Louis Lavelle et le Renouveau de la Métaphysique de l’Être au XXe Siècle. Hildesheim, Olms, 1997. 3

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reencontrar o próprio dinamismo da vida do espírito. A presença do emocional na vida psíquica, quando, esmeradamente, a tornamos significante – graças à atenção da reflexão –, conduz-nos pouco a pouco à dimensão do eu em seu diálogo com a liberdade. Ao realizarmos os possíveis do eu, veremos florescer o que há de mais espiritual em nós e realizar-se uma presença do divino compartilhada entre todos os espíritos. Michel Adam Professor emérito de filosofia Universidade Michel de Montaigne – Bordeaux III Vice-presidente da Association Louis Lavelle

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