O Sacrifício

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O SACRIFÍCIO


Impresso no Brasil, setembro de 2012 Título original: Жертвоприношение (The Sacrifice) Copyright © 2011 Andrey A. Tarkovsky Copyright © 1987/2011 Schirmer/Mosel München Copyright das imagens © 1987 Sven Nykvist e Swedish Film Institute, Stockholm. Todos os direitos reservados. Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal: 45321 . 04010 970 . São Paulo SP Telefax: (5511) 5572 5363 e@erealizacoes.com.br . www.erealizacoes.com.br

Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Preparação de texto Marcio Honorio de Godoy Revisão Tereza Maria Lourenço Pereira e William Cruz Capa e projeto gráfico André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Diagramação Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É Pré-impressão e impressão Corprint Gráfica e Editora

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.


Roteiro do filme de ANDREI TARKOVSKI

O SACRIFÍCIO Tradução do original russo Anastassia Bytsenko e Adriano Carvalho Araujo e Sousa Com fotos de Sven Nykvist



Sumário

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

PRIMEIRA PARTE O Romance . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87

SEGUNDA PARTE Roteiro e Diálogos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91



Apresentação

Este livro reúne materiais do filme O Sacrifício nas suas várias etapas de rea­ lização. Não podemos deixar de sublinhar o papel engenhoso do projeto, de ca­ ráter definitivamente literário, do relato do filme, que aparece na primeira parte desta obra. Certamente foi escrito nessa forma, em primeiro lugar, para ganhar a adesão dos produtores em relação ao tema. Esta é uma curiosidade que nos remete às estratégias que Tarkovski utilizava para vencer certas dificuldades de concretização do seu cinema. A segunda parte do livro tem como ponto de partida o próprio filme; trata-se de um processo verbal rigoroso de 126 planos originais, tirados direta­ mente de uma cópia do filme, assim como a lista dos diálogos com descrições curtas das cenas. As fotos do filme foram selecionadas na mesa de montagem. O escopo da escolha foi o de respeitar o mais fielmente possível a estrutura do filme e ilustrar cada plano pelo menos com uma imagem. As fotos buscam evidenciar a poesia e a sintaxe da escrita cinematográfica de Tarkovski.


A ordem das imagens tentou seguir a dos diálogos, o que nem sempre foi possível; é por essa razão que as imagens e o texto receberam uma numera­ ção e notas na margem. Poderíamos chamar o resultado desse procedimento de “libreto com imagens-chave”: este é um instrumento que permite não somente trazer o filme à memória, mas também colabora com uma leitura, fora das telas, dos fatos relatados. Convidamos a todos, desse modo, a ter um outro tipo de experiência sensi­ tiva, fora da sala de cinema, de O Sacrifício, último filme realizado pelo cineasta russo Andrei Tarkovski.

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Andrei Tarkovski


PRIMEIRA PARTE O Romance


Fac-sĂ­mile do original datilografado, com emendas manuscritas do autor.


1. O Sacrifício

O Passeio Aproximava-se a época das noites brancas. O sol já havia se escondido

atrás das rochas, brilhava ainda o céu atrás dos cumes cobertos pela floresta, refletindo-se na água rasa da baía que transbordava entre as pedras: reinava uma calmaria plena que fazia surgir uma sensação abençoada de que o tempo havia parado. Embaixo dos pinheiros petrificados, havia uma casa escura de madeira com telhado alto e guarnições pintadas de tom claro. Sobre um terraço de madeira, as mulheres estavam cobrindo a mesa com uma toalha branca e engomada. Sentia-se o cheiro da fumaça e do biscoito ­caseiro. No escuro do bosque, branquejava a roupa pendurada no varal. Na sombra do vale, que em declive descia para o mar de costa recortada, juntava-se fumaça e permanecia algo como uma neblina imóvel, na qual os pi­ nheiros, à beira da estrada pedregosa, caminhavam melancolicamente, como se fossem fantasmas, até a baía que brilhava como chumbo.


Escutou-se o tinido de uma bicicleta e aproximou-se da casa um homenzi­ nho, com a barba por fazer e com uma bolsa de carteiro a tiracolo. – Senhor Aleksander... Opa, senhora Adelaida! Sou eu, de novo! – gritou ele. – Mais um telegrama! A senhora vai assinar, ou o senhor Aleksander? – Deixe que eu pego – respondeu do terraço uma moça alta, de vestido branco, que desceu os degraus de madeira do terraço. Ela trazia uma expressão descontente, um pouco abobalhada, que não combinava com sua idade. – Deixe que eu assino – disse ela. – Ele e o Menino desceram até a baía. – Não, não, senhorita, eu mesmo entrego. Não é difícil de bicicleta. Eu até gosto... – o carteiro, tinindo os raios quebrados das rodas, pegou impulso e jogou uma perna pelo quadro da bicicleta, se acomodando a prumo no acento. – Isso que é uma festa, isso eu entendo! – ele olhou para trás e riu. – Choveu telegramas, simplesmente! – Venha parabenizá-lo hoje, durante o jantar – gritou para ele a dona da casa, uma mulher de meia-idade com penteado volumoso e olhos inchados, como se tivesse acabado de chorar. – Obrigado, senhora Adelaida! Virei, sem falta, se me permite – ouviu-se de longe. Tiniu queixosamente a sineta da bicicleta e tudo ficou em silêncio. Por algum tempo, as mulheres seguiram-no com os olhos. No terraço, en­ trou a empregada de avental branco com um vaso cheio de flores e parou ao lado da mesa. Pôs-se a escutar. – Como está calmo... – disse baixinho. Era uma mulher esbelta de cabelos pretos, saudável, tinha o rosto corado, uns vinte e oito anos e um olhar vivo e provocador. O carteiro corria alegremente vale abaixo. Contornou um velho bosque de pinheiros por uma estrada branca e pedregosa e, após passar por uma longa sebe, freou e parou, apoiando-se num poste velho e bambo. Pôs-se a escutar.

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– Calma... Um verdadeiro silêncio... – murmurou ele em meia voz e acres­ centou, olhando ao seu redor – “...houve no céu um silêncio durante cerca de meia-hora”.1 O senhor Aleksander, abraçando o Menino acomodado no seu colo, estava sentado na beira de um precipício pedregoso, não muito longe daquele lugar onde a estrada fazia uma curva. Abaixo deles, como se fosse um espelho turvo, estava a água imóvel da baía. Recentemente, o Menino havia passado por uma pequena cirurgia nas cor­ das vocais e os médicos o proibiram de falar. Seu pescoço estava enfaixado e, por isso, ele parecia muito triste. O pai continuou a contar uma história que, pelo visto, começara há al­ gum tempo. – Eu e sua mamãe paramos o carro em algum lugar por aqui – ele olhou para os lados –, em algum lugar não muito longe daqui. E fomos a pé. Enfim, nos perdemos. Estávamos aqui pela primeira vez. Depois começou uma chuva: fina, entediante, de outono. Aquela, sabe, que estraga o humor e leva as pes­ soas a discutir sem motivo. Chegamos até a curva, lá onde cresce um pinheiro torto. Exatamente nesse instante, o sol apareceu, a chuva parou e o lugar ficou tão iluminado! Como eu fiquei triste de repente, porque não era eu, quer dizer, não éramos nós, eu e a mamãe, que morávamos naquela casa, lá embaixo dos pinheiros! Porque não há e não pode haver nada melhor do que esse lugar. Como estava bonito! Parecia que, se estivéssemos vivendo aqui, poderíamos ser felizes até a morte...

Apocalipse, 8:1. O trecho diz “Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve no céu um silêncio durante cerca de meia hora”. (N. T.) 1

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O menino olhou de soslaio para o pai. – Hã? Não tenha medo! Não tenha medo, filho! A morte não existe. Na reali­dade, há o medo da morte, e ele é muito repugnante; e esse medo, muitas vezes, leva as pessoas a fazer coisas que elas não deveriam... Agora, imagine como tudo iria mudar se nós parássemos de ter medo da morte, hein? Ou me­ lhor, do medo da morte? Embora os cientistas acreditem que esse medo seja necessário. Como um meio de proteção, algo assim... Ora, como a dor física que avisa sobre o perigo. Não penso assim, não concordo... Embora nem as crianças, nem os loucos tenham medo da morte, como diz Sêneca. A propósito, ele con­ cluiu bem esse pensamento: “Vergonha para quem a razão não proporciona a mesma serenidade...”. Ou seja, ele quis dizer, como a que as crianças têm. O Menino puxou o pai pela manga. – Ah..., sim, eu me distraí um pouco. Bem, e... Em uma palavra, eu e a ma­ mãe estávamos parados e olhamos pasmos para essa beleza, encantados, não podíamos nos desprender – o silêncio, a paz! Ficou claro que essa casa havia sido feita exatamente para nós. É isso... Depois descobrimos que ela estava à venda. A casa estava bem descuidada e não custou caro. E nós a compramos imediata­ mente, sem pensar nem por um minuto. Isso já estava no âmbito dos milagres... Você nasceu nessa casa. Você gosta dela? Gosta da sua casa, filho? De modo sério, o Menino acenou com a cabeça. Depois, ele se levantou e se aproximou do outro lado da área. Embaixo, cintilava a superfície turva e ene­ voada da baía. Estava silencioso e parecia que o ar imóvel havia paralisado os movimentos das árvores e as poucas nuvens esfumaçadas no horizonte. O senhor Aleksander também se levantou, pegou um galho seco do chão e enfiou-o, com a ponta grossa, na fenda da rocha. – Bonito, não é mesmo? – disse ele para o filho. – Uma ikebana! Mas é enor­ me, não é como as japonesas.

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O Menino se aproximou, agachou-se e começou a fixar o tronco seco na fenda com a ajuda de pedras e pedaços de terra. O tronco seco realmente ficou muito bonito, tendo como pano de fundo o mar, que transparecia nebulosamen­ te. O Menino sorriu. – Você sabe, uma vez, isso aconteceu há muito tempo, um ancião em um mosteiro – seu nome era Pamve – cravou da mesma forma, em cima de uma montanha, uma árvore seca, e ordenou ao seu discípulo, o monge Ioann K ­ ólov – o mosteiro era católico ortodoxo –, ordenou a ele para regar essa árvore todos os dias até que ela ressuscitasse... – o senhor Aleksander parecia muito sério. – E, assim, durante muitos anos, todos os dias, pela manhã, Ioann enchia um balde com água e seguia seu caminho. Para levar um balde, era necessário um dia inteiro, do amanhecer até o pôr do sol. Cada manhã, Ioann partia para a montanha com um balde de água, regava esse tronco e, à noite, já no escuro, voltava para o mosteiro. E assim foi por três anos inteiros. Eis que, um belo dia, ele sobe a montanha e observa que sua árvore estava toda coberta de flores! – De qualquer jeito, falem o que quiserem, mas o método, o sistema é uma coisa grandiosa! Você sabe, às vezes me parece que, se a cada dia, na mesma hora, se fizer a mesma ação – como um ritual, sistemática e invariavelmente, cada dia, exatamente na mesma hora, sem falta – o mundo vai mudar. Alguma coisa vai mudar! Não pode não mudar! Digamos que você acorde de manhã, levante exatamente às 7 horas, vá ao banheiro, encha um copo com água da tor­ neira e jogue essa água no vaso, só isso. O Menino riu silenciosamente, fechando o rosto com as mãos: ele também estava proibido de rir. – Após um determinado período de tempo, alguma coisa vai aconte­ cer graças a esse copo, não pode deixar de acontecer! Não, sério! Você sabia, por ­exemplo, que os soldados não podem caminhar pelas pontes em passo

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­cadenciado? Que não se pode marchar nas pontes? Não sabe? Você sabe por quê? O ritmo do passo cadenciado de muitos pés balança a ponte com muita força e ela desmorona. Sim, sim! Você nunca ouviu falar disso? Mas será que qualquer outra ação diária, uniforme – como o nosso copo de água –, não é rítmica? O sino da bicicleta tiniu. O senhor Aleksander e o Menino olharam para trás. O carteiro desceu da bicicleta e a deitou no chão, perto da estrada. – Bom, senhor Aleksander, agora o senhor não vai se livrar de mim tão facilmente: eu fui convidado a parabenizá-lo à noite, por seu aniversário. É uma grande honra para mim. – Ele tirou da bolsa um telegrama e o sacudiu no ar. – Esse já é o último. O correio está fechado e, se alguém atrasou, vai ter que es­ perar até amanhã. Por favor! – O carteiro deu o telegrama, o lápis e o formulário para assinar. O senhor Aleksander assinou e abriu o telegrama. – Eu esqueci os óculos – disse, frustrado, batendo distraidamente sobre os bolsos. – Leia para mim! O carteiro pegou a folha azul de modo cerimonioso, sacudiu-a, abrindo, e proclamou o seguinte: – “Parabéns ao nosso querido amigo no dia do seu aniversário ponto Abra­ ço para Ricardo o Grande o bom príncipe Míchkin ponto Que Deus lhe dê felici­ dade saúde paz ponto Seus ricardianos idiotianos sempre fiéis afetuosos ponto”. De novo, o Menino riu silenciosamente. – Oh, como é comovente! – disse embaraçado o senhor Aleksander. – É uma brincadeira? – ousou perguntar a carteiro. – Uma brincadeira de amigos! “Idiotianos”. Falou bem... – Que brincadeira, nada! – Entendo – reagiu rapidamente o carteiro e repetiu, como se dissesse para si mesmo: “Que Deus lhe dê felicidade...”.

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Ele entregou o telegrama para o senhor Aleksander e de repente perguntou: – Que relação o senhor tem com Deus? – Receio que nenhuma – sem entender de imediato a pergunta. – A propó­ sito, em que sentido? Ficaram em silêncio. – Sim... não nos conhecemos! Não tive o prazer de ser apresentado – pro­ nunciou tristemente o senhor Aleksander. – Bom, não há problema, não faz mal – tranquilizou-o o carteiro e, de re­ pente, concluiu. – Você, por exemplo, é um famoso jornalista, um crítico literário e teatral, dá aulas sobre estética na universidade para os jovens. E também é um ensaís­ ta... Mesmo assim, parece triste! Minha bicicleta logo vai desmanchar e vou ter que comprar uma nova. Fazer o quê? Devo dizer, não queria muito mesmo ter de fazer isso. – Ele levantou a bicicleta e a apoiou numa árvore. – Desculpe, o que você quer dizer? Em relação ao “triste”? – Não se aflija tanto, não fique triste. – Sem ouvir seu interlocutor, aconse­ lhou o carteiro. – E não fique esperando. – Como assim, “não ficar esperando”? – indignou-se o senhor Aleksander. – Quem disse a você que estou esperando alguma coisa? – Oh, não, não! – agitou as mãos o carteiro. – O senhor não pense que eu não entendo! Tenho muito respeito! Sou, por assim dizer, um admirador de longa data! – justificava-se, embaraçado, o carteiro. – Desculpe, você... não sei seu nome... – Otto! Simplesmente Otto, sempre a seu dispor! – Muito bem! E o que você acha que eu espero, Otto? – Não só o senhor! – como se tivesse se assustado, disse Otto. – Será que só o senhor? Todos nós esperamos alguma coisa! Eis, por exemplo, eu, na

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­qualidade, digamos, de um exemplo. Minha vida inteira eu espero por algu­ ma coisa. A vida inteira eu me senti como se estivesse numa estação de trem, juro! E sempre me pareceu que aquilo que já aconteceu não foi ainda a vida, mas a espera pela vida, a espera por algo verdadeiro, essencial. Com você não é ­assim? Sempre achei, não sei por que, que é assim com todos. – O carteiro Otto parecia abatido. – Não nesse sentido, é claro... Eu entendo do que você fala. Simplesmente, não pensava... que você poderia se interessar por essas questões – em tom apa­ ziguador, disse o senhor Aleksander. – Sim, interessam! Infelizmente... Às vezes vem uma bobagem na cabeça... dou minha palavra. Do tipo daquele anão... famigerado. – O carteiro definitiva­ mente se embaraçou. – Que anão? Juro por Deus, você me deixou completamente confuso! – Mas como! – Otto expressou a surpresa. – Aquele... corcunda! ­Nietzschiano! Aquele, por causa do qual Zaratustra caiu de maduro, desmaiou. – Desmaiou? Você então... Como? Você conhece Nietzsche? – perguntou o senhor Aleksander, tentando esconder a surpresa, e, em seguida, olhou para o filho. O Menino, ao perceber o olhar do pai, expressou uma admiração muda – gostava demais desse carteiro. – Você o conhece? Quero dizer, Nietzsche? – continuou o senhor Aleksander. – Não, pessoalmente não o conheci – sem demora, respondeu o carteiro – e, é claro, não o estudei propriamente. – Por que “é claro”? – se interessou o senhor Aleksander. – Mas confesso que me interessei. – E aí? – Aí, às vezes vem na cabeça alguma coisa como essa bobagem de “eter­ no retorno”, digamos. Nós vivemos, sofremos, aguardamos alguma coisa,

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­esperamos, perdemos esperança, padecemos enquanto morremos e morremos no final. E, aí, nascemos novamente, mas não lembramos nada daquilo que já passou; e tudo começa de novo, não de maneira igual, pode ser de outro jeito, mas da mesma forma, irremediável, e não se sabe para quê. Não, exatamente igual, sem o menor desvio! Absoluta, exata e literalmente igual, a próxima se­ ção, por assim dizer! – O carteiro Otto estava ficando agitado. – Eu faria exata­ mente assim, se dependesse de mim! Tem nisso alguma coisa... alegre. Não é? – Isso já aconteceu! Já foi! Mais um Svidrigáilov...2 Não pense que foi você quem inventou isso! – preocupou-se com o filho o senhor Aleksander. – Será que você realmente acredita que o homem é capaz de fazer uma construção, do tipo, uh, universal? Fazer um modelo, por assim dizer, da Lei absoluta, da Verdade absoluta? Isso é a mesma coisa que criar um novo universo, tornar-se um demiurgo! – Qual o problema, será que não parece tanto assim? – resistia Otto. – O que tem aí de tão impossível? – irritou-se o senhor Aleksander. – Você mesmo acredita nesse seu anão? Nesse seu retorno estúpido? – Às vezes acredito, sabe... E, já que eu acredito, significa que será assim. “Cada um será recompensado de acordo com sua fé” – como se estivesse se desculpando, confessou Otto. – O que é isso? Acho que aqui não tinha ne­ nhum pinheiro! O Menino sorriu satisfeito e, ao aproximar-se de sua “obra”, começou a pisar a terra na base do tronco. – Muito bonito! – elogiou o carteiro. – Nisso, há algo até... japonês. Muito lindo! Bom, acho que eu já vou, com sua licença! Logo irá anoitecer e ainda pre­ ciso pensar em um presente de aniversário. 2

Personagem de Crime e Castigo, de Fiódor Dostoiévski. (N. T.)

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O carteiro despediu-se e, ao sentar na bicicleta, desceu na direção do povoado. O Menino caiu no chão e começou a rolar na grama seca, levantando ­poeira. Assim, ele expressava sua alegria nesse período mudo. – Temos um carteiro curioso, o que dizer? – resumiu o senhor Aleksander. – Só não entendo por que foi preciso convidá-lo... E justamente hoje? O Menino grunhiu e levantou do chão. – Não, não sou contra! Apenas... É um sujeito muito curioso. Claro que não é apenas carteiro. Vai ver a vida dele se organizou desse jeito! Me parece que ele está por aqui há pouco tempo... Hã? O que você está grunhindo? O senhor Aleksander abraçou o filho, agasalhou-o em sua larga jaqueta velha. – Como se diz? “No princípio era o verbo...”.3 E você é mudo, igual a um peixe, um salmão. O pai o pegou nos braços, lançou-o para o ar e o colocou em seus ombros. O rosto do Menino imediatamente adquiriu um semblante solene: seu maior prazer era passear carregado nos ombros do pai. – Vamos descer até a água. Só não segure na coitada da minha cabeça – ­assim eu não enxergo nada, nem ouço. Assim. E então, vamos? A estrada aplanada, acompanhando as curvas da margem, passava quase ao lado da água. O Menino estava sentado nos ombros do pai. Eles caminhavam sobre a areia úmida, ao longo da beira da água quase imóvel. Em volta, não ha­ via nenhum ser vivo. – Veja, filho, nós estamos perdidos. As pessoas – todas as pessoas, a huma­ nidade – estão em um caminho errado e terrivelmente perigoso. Isso começou há muito tempo, quando nós morávamos em cavernas ou talvez ainda antes. A primeira coisa que o homem sentiu, assim que se percebeu homem, foi o medo. 3

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Evangelho Segundo São João 1,1. (N. T.)

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Ele estava com medo, temia tudo – animais, tempestades, a escuridão. Mas, em vez de conviver com a natureza, compartilhar com ela seu destino, fazer amiza­ de com ela, o homem começou a se defender. O medo é um conselheiro ruim. A comunicação entre as pessoas transformou-se em ato de violência de um so­ bre o outro. Embora o relacionamento pudesse e devesse ser o maior prazer para as pessoas. Os homens se aglomeram nas cidades, atormentam a si mesmos e a seus próximos, ao passo que não há nada mais belo do que se relacionar... Veja como tudo se deformou!... O Menino grunhiu de novo e começou a pular nos ombros. O pai se aga­ chou e o desceu para o chão. – Você ficou pesado! Cresceu! O Menino retirou da areia uma grande garrafa verde e, ao subir numa pe­ dra na beira da água, começou a limpá-la. – Você sabe – continuou o senhor Aleksander –, naquela cidade onde eu e a mamãe moramos antes, um homem construiu para si uma casa de garrafas. Obviamente, ela foi construída como deveria – com cimento, madeira e acho que até com metal. Mas a casa ficou incrível! As pessoas vinham de outras cidades, de todos os lugares, para vê-la. Isso acabou mal: ele começou a cobrar dinheiro dos curiosos que queriam ver sua casa por dentro e, dessa maneira, ele próprio se transformou num objeto de museu. Sua família não aguentou essa vida e ele ficou completamente sozinho em seu cofrinho de garrafas... Na estrada, perto do seu carro, estava parado um homem elegante, grisalho e com barba pequena, que, de longe, escutava o monólogo do senhor Aleksander. – Então, eles estão aqui? – perguntou a senhora Adelaida, saindo do carro. – Como ele tem passado recentemente, bem? – Bem, por quê? Ele trabalha bastante.

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– Não gosto dos seus monólogos... Aleksander! – gritou ele. O senhor Aleksander e o Menino viraram e começaram a agitar os braços efusivamente, em sinal de cumprimento. O Menino foi correndo até eles com toda velocidade, e o pai gritou: – Doutor! Espere! Nós vamos chegar até aí. Você não está preparado para uma caminhada desse tipo... por este Saara! Isso é uma verdadeira aventura! O doutor mostrou-se contrariado. Atrás do filho, o senhor Aleksander voltou para a estrada e, sorrindo larga­ mente, dirigiu-se até o carro. – Então, meu jovem, como vai? – perguntou o visitante. Pegou o Meni­ no pelo braço, puxou para perto de si e agitou seu cabelo. – É ruim viver em ­silêncio? Sim, mas faz bem, muito bem. Comunicação, meu amigo, é um fardo difícil, nem todo mundo consegue carregar nos ombros. O Menino sorria com toda força. – Ele é meu bom rapaz! – olhando para o filho, disse a senhora Adelaida. – Por que “meu”? – perguntou o pai. – Ele faz gargarejos na hora certa e vai sozinho para a cama – sorriu a mãe. – Faz gargarejos... Fazer gargarejo – isso não é nada! E como se comportou durante a cirurgia! Hã? Em outras palavras, o homem está crescendo! Vamos, rapaz, abra a boca... – O doutor virou o Menino para a luz e, ao se inclinar, olhou sua garganta com atenção. – Bom garoto, pode fechar a escotilha. Se continuar assim, daqui a uma semana vamos começar a falar. A propósito, Gandhi passava um dia da semana sem falar com ninguém. Sistematicamente. Durante muitos anos. – Por quê? – surpreendeu-se a senhora Adelaida. – Suponho, porque lhe provocavam repulsa, até o deixar doido – respon­ deu seriamente o doutor e abraçou o senhor Aleksander.

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– Então, muito obrigado, Viktor. Fugiu de seus pacientes. Fugiu e os aban­ donou à própria sorte. Nossa, como você está elegante! – dizia radiante o se­ nhor Aleksander. – Naturalmente... Em um dia como este, eu devo estar à altura. Parabéns, Aleksander! – acrescentou o doutor, dessa vez com seriedade. – O presente está no porta-malas e será entregue durante o jantar. – E ainda trouxe presentes! – ficou sem jeito o senhor Aleksander. – Vocês não acham que está na hora de todos nós voltarmos para casa? – propôs a senhora Adelaida. – Certamente, está na hora. E, de certo, todos nós! – sorriu sutilmente o ­senhor Aleksander. – Vamos fazer assim: vocês vão de carro, eu e o Menino va­ mos a pé. Nós temos que terminar nossa conversa. Não é mesmo, filho? – Mas não demorem, por favor – pediu a senhora Adelaida. – Tudo bem, Menino? Em casa, está quase tudo pronto. – Por onde nós vamos? Pela estrada ou pela costa? – perguntou o senhor Aleksander, quando o carro desapareceu depois da curva. – Vamos pela mar­ gem. Olhe que beleza! Seguindo suas pegadas, eles voltaram até a água e dirigiram-se na direção da casa, acompanhando as curvas caprichosas da margem. – E então, filho – continuou o pai a conversa interrompida. – O homem sempre se defendeu de outras pessoas e da Natureza na qual vivia. Ele até lutava contra ela, o tempo todo conquistava alguma parte dela. Ele a profanava incessantemen­ te. Como resultado, surgiu a civilização, baseada na força, no poder, no medo e na dependência. E todo nosso, assim chamado, progresso tecnológico sempre serviu apenas para inventar objetos de conforto, comodidade ou instrumentos de força para preservar o poder. Nós somos como os selvagens – utilizamos o ­microscópio

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como clavas. Não, não é isso, estou errado – os selvagens têm muito mais espiritu­ alidade do que nós! Qualquer avanço da ciência, imediatamente transformamos no mal. E, no que diz respeito ao conforto, um homem inteligente disse uma vez que o pecado é aquilo que não é necessário. Se for assim, então, a nossa civilização do começo até o fim está construída à base do pecado. Nós chegamos a uma ter­ rível desarmonia, a uma disparidade, isto é, entre o desenvolvimento material e o espiritual. Nossa cultura, ou melhor, a civilização está errada desde sua raiz, filho. Você vai dizer que é possível analisar um problema e juntos procurar uma saída. Talvez. Se não fosse tão tarde. É tarde demais... O Menino deu um pulo e, levantando areia, correu pela praia. Ou ele ficou impressionado demais com as profecias apocalípticas do pai, ou ainda não ca­ biam em sua mente esses raciocínios complexos. Ele pulava na areia, jogava para o alto o lixo costeiro, fazia cambalhotas, rolava na terra, em outras palavras, fazia travessuras. O pai olhava para ele com um sorriso indulgente. Por fim, cansado, o Menino caiu de bruços no chão e ficou imóvel. De longe, o pai olhava para ele. O Menino não se mexia. Um minuto se passou, e mais outro... O Menino estava deitado imóvel e parecia não estar respirando. O coração do senhor Aleksander acelerou. – Filho... – disse em voz baixa o senhor Aleksander. A voz não saía. – Me­ nino... O que foi? O que você tem?... Filho! – ele tentou gritar, em poucos passos superou a distância que os separava e desabou de joelhos ao lado do Menino. – Filho... o quê? O que há com você?... – balbuciava ele, raciocinando mal. Abaixou-se e colocou a orelha no peito do filho, para ouvir se o seu coração es­ tava batendo. O Menino não respirava.

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De repente, ele se levantou de um salto, riu, como de hábito, sem emitir sons e começou a pular ao redor do pai, muito contente com sua brincadeira. Por puro reflexo, como se estivesse defendendo a si próprio, o senhor ­Aleksander levantou a mão e, de uma maneira desajeitada, bateu no rosto do filho. O Menino caiu. – Filho... – com dificuldade pronunciou o pai. – Meu Deus, o que há comigo?... O Menino se levantou do chão e, sem olhar para os lados, caminhou em direção à estrada. – Menino! Espere! – gritou o pai, correndo atrás dele. O Menino correu e, durante o caminho, olhou para trás. Sua camisa estava toda coberta de sangue. O senhor Aleksander parou e cobriu o rosto com as mãos. Subitamente, da estrada, ouviu-se a buzina de um carro e depois a voz do doutor. – Eh, Aleksander! Menino! Onde vocês estão?! Todos já estão esperando vocês! Eh! A mesa já está posta! O Menino olhou assustado e parou desconcertado. Em seguida, apressou­ -se e começou a tirar a camisa. Ele a virou do avesso, vestiu de novo e foi cor­ rendo até a água. Pulou sobre uma pedra plana deitada na beira, ajoelhou-se, apanhou água com ambas as mãos e jogou no rosto. O pai, perplexo, observava suas ações. A todo minuto o Menino olhava para os lados furtivamente, lavou-se, pu­ lou de volta para a areia, escorregou, caiu, levantou novamente e correu até o pai. Ao chegar perto dele, estendeu os braços para cima, como se pedisse para que o carregasse nos ombros. Foi como se alguma coisa tivesse estalado no se­ nhor Aleksander. Ele entendeu: o Menino estava encobrindo os vestígios.

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O pai o colocou nos ombros. Havia um zumbido nos ouvidos. Ele olhava para os lados e não via nada.

A Guerra O senhor Aleksander estava sentado na sala, perto da janela, e folheava um

livro volumoso, dedicado aos antigos ícones russos: as páginas passavam com ruído, apareciam o ouro, uma alvura da cor de marfim, as dobras das roupas escarlate como o fogo, as palmas nos rochedos ocres fragmentos de uma arqui­ tetura fantástica que jamais existiu. O doutor estava sentado ao lado da parede oposta, perto da lareira, onde, por causa do verão, havia um vaso com flores. Ele fumava olhando através da janela. O crepúsculo se aproximava, mas sem ser tão escuro: como se estivesse sentindo a idade da luz, o atraso antinatural da escuridão que há muito tempo já deveria ter chegado, mas não chegava. – Impressionante! – com um sorriso pensativo, pronunciou o senhor ­Aleksander, folheando ruidosamente as páginas. – Que aristocratismo estranho, que espiritualidade e sabedoria e, ao mesmo tempo, uma simplicidade de espíri­ to quase infantil! A combinação de profundidade e simplicidade. Incrível! Como uma prece... E, agora, tudo isso está perdido! Nós não sabemos mais nem rezar... O doutor sorriu e sacudiu o ombro – um movimento inesperado para ele e como se não fosse peculiar. – Hoje eu tive um dia difícil – disse ele. – Na realidade, um dia que fugiu do controle. – Obrigado, Viktor. É um excelente livro. E obrigado pelo vinho. Vamos tomá-lo durante o jantar. Mas, principalmente, agradeço por você ter vindo.

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– Você não tem a sensação de que a vida não deu certo? – de repente, per­ guntou o doutor. – Não. Por quê? – respondeu com firmeza o senhor Aleksander, que, após pensar, acrescentou sem muita convicção. – Quer dizer, antes era exatamente as­ sim como você falou. Mas, depois, quando nasceu o Menino, tudo mudou. Não de imediato, obviamente. Não de imediato... Pouco a pouco. À medida que ele foi crescendo... Estou muito apegado a ele. Receio que até demais. Há algo de in­ cômodo nisso. Eu me preparei para uma vida mais... elevada, digamos... E ­ studei filosofia, história da religião, estética. E terminei colocando esses grilhões em mim, absolutamente voluntários, aliás, e estou feliz por isso. Hoje, por exemplo, nós passeamos com o Menino... – O senhor Aleksander não concluiu e se calou, numa expressão de desânimo. Na sala, entrou Marta, filha do primeiro casamento da senhora Adelaida. – Meus amigos enviaram um telegrama. – O senhor Aleksander tirou o envelope amassado do bolso. – Assinaram de modo engraçado: “idiotianos” e “ricardianos”. Os velhos amigos do teatro. Isso porque nós interpretamos juntos Shakespeare e Dostoiévski. – Eu me lembro – disse Marta, olhando para o doutor. – O quê?... – não entendeu Viktor. – O que você lembra? – Eu me lembro desses espetáculos. – Não diga! – falou rindo o senhor Aleksander. – Não, verdade! – insistia Marta. Suas bochechas ficaram coradas e com isso ela parecia ainda mais bonita. A senhora Adelaida entrou e parou na porta. A luz do crepúsculo que reinava no quarto caía-lhe muito bem. – Eu me lembro como você derrubou um vaso junto com o suporte! – con­ tinuou Marta. – E, depois disso, você estava o tempo todo chorando. Eu me

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lembro muito bem! O vaso, eu também lembro, era azul com desenhos, acho que havia crisântemos nele. – É verdade, ela lembra! – falou rindo o senhor Aleksander. – Mas, quanto às lágrimas, não foi por causa da minha genialidade, entrou alguma coisa no meu olho. Era uma dor infernal! Mal aguentei até a cortina abaixar. – Claro que ela lembra! – entrou na conversa a senhora Adelaida. – A pro­ pósito, Aleksander foi um extraordinário príncipe Míchkin! E, por isso, tornou­ -se reconhecido. Mas ele pegou e largou tudo! Teatro, tudo! Isso depois do que ele fez em O Idiota e Ricardo III! Até hoje eu não entendo. – O que é “tudo”? – ressentiu-se o senhor Aleksander. – Hã? –Você disse que eu larguei tudo. O que é “tudo”? – Bom, o teatro... Tudo! – O sucesso! – causticamente acrescentou o senhor Aleksander. – Aliás, o tea­ tro está longe de ser “tudo”. Depois, eu simplesmente não podia mais. Entende? – Em que sentido, não podia? – perguntou, do seu canto, o doutor. Nos quartos, a escuridão estava ficando mais densa. Marta acendeu a lâm­ pada que estava sobre o aparador. – Oh, para que, Marta? Apague! – exclamou assustada a senhora Adelaida. Marta apertou o interruptor. Ficou ainda mais escuro. – Vejam como é bonito – acalmou-se a senhora Adelaida. – A luz destrói tudo. Ficaram um pouco em silêncio. – De repente, eu comecei a sentir vergonha, não sei por quê – disse o senhor Aleksander. – Estava com vergonha de fingir ser outro. Representar os senti­ mentos alheios. E, principalmente, senti vergonha de ser sincero no palco. Isso não aconteceu de repente, claro. Até mesmo um crítico percebeu.

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– Você quer dizer que, para ser ator, não se pode ter o seu próprio Eu? Ser uma individualidade? – perguntou Viktor, tragando o charuto no escuro. – Não, não exatamente... Eu quero dizer que o Eu do ator se dissolve em suas personagens. Eu não queria, talvez... me dissolver. Em tudo isso, havia algo... ­pecaminoso, eu acho. Nessa dissolução. Alguma coisa feminina, sem vontade! – Ah, claro, o feminino só pode ser pecaminoso! – disse a senhora Adelaida. – Você simplesmente sabia que eu gostava de você ser um ator e fez o oposto. Só isso! – Não sei, talvez... – Não é nada “talvez”, é definitivamente isso! – insistia a senhora Adelaida. – Bem provável, eu estou falando – tentava persuadi-la o senhor Aleksan­ der. – Pois não é muito agradável quando te dão a preferência só porque você é um ator, um médico famoso ou um artista plástico. Em uma palavra, um nome! Em geral, havia algo suspeito na minha carreira artística, terrivelmente estúpi­ do, apesar de considerarem que eu não era o pior dos atores. – Tolo! – disse a senhora Adelaida. – Você foi um excelente ator! – Você foi um grande ator, Aleksander – com ênfase, disse o doutor. – Isso mesmo! – intrometeu-se Marta. – De onde você tirou isso? – disse, rindo e satisfeito, o senhor Aleksander. – Como “de onde”? Todos dizem isso! – Está vendo, Viktor, “todos”. E você se lembra o que um homem muito sábio disse a respeito? – “Esses atores são pessoas estranhas. Será que eles são pessoas?” – Você já citou seu Thomas Mann mil vezes – interrompeu a senhora Ade­ laida. – Apenas considero isso um ultraje. – Nem um pouco! – respondeu o doutor. – Nem sempre o Homem significa algo decente; por outro lado, tudo o que está fora dele nem sempre denota algo

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