Poesia Bovina

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Impresso no Brasil, setembro de 2014 Copyright © 2014 by Érico Nogueira Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal: 45321 · 04010 970 · São Paulo SP · Brasil Telefax: (5511) 5572 5363 e@erealizacoes.com.br · www.erealizacoes.com.br Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial Sonnini Ruiz Produção editorial Liliana Cruz Revisão Danielle Mendes Sales Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É Diagramação e editoração André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Pré-impressão e impressão Digital Page Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

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Su mรกrio

Prefรกcio Berrante Ruminuminante por Marcelo Tรกpia. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

Estudo Barroco para um Poema Moderno. . . . . . . . . . . . . . . . 17

Ou Ela ou Eu.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

Cinco Minutos com Cavafy.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

Bucolicazinha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45 Charcutaria. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

Farra do Boi.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61

Afinidades Secretas.. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73

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Berrante Ruminuminante Marcelo Tápia

O que será a poesia hoje? Pergunta inútil. Será? Talvez se pudesse vislumbrar, no horizonte do decantado contexto pós-utópico vigente, o anunciar-se de uma pós-pós-utopia, que demonstrasse alguma possibilidade de proposição comum além da convivência de diversidades. Ainda que nada se apresente ou se possa apresentar como “movimento” articulado, certos caminhos parecem encontrar-se movidos por procedimentos análogos, que têm, no centro de sua origem, o lema explícito da reescritura como criação. A reescritura envolve a posse do alheio, a desmitificação da originalidade, a assunção de lugares-comuns, a recusa do entendimento da criação como expressão monódica de um “eu”, a reinserção da tradição (e suas vozes) num contexto que se afirma e define pela escolha da recolha, pelo papel seletivo da mente que reescreve, sempre diferentemente, o mesmo, em seu próprio tempo, em busca da intemporalidade. Esta se mostra possível pela sincronicidade dos cantos, trazidos a um mesmo coro regido pelo novo “autor”, cuja obra claramente se inseriria no – assim nomeado por Haroldo de Campos – “movimento plagiotrópico da literatura”. Se há um estado de coisas como esse, perceptível, no campo da poética brasileira, Érico Nogueira ocupa um lugar de atacante, com seu Poesia Bovina. Imagino o poeta no alto de uma montanha pastoril – talvez inserto, em sombra, como única voz humana, na paisagem pacífica, rústico-sofisticada, terrestre-elevada de um quadro como Gado na Montanha (1939), de Lasar Segall – com seu

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berrante, ecoando toques em busca de novos ecos. Poderia estar pastoreando as vacas do deus Hélio, reverente à divindade, assim como o fora Odisseu; mas certamente apreciaria, como os pobres companheiros do herói multiastucioso, uma boa costela assada, chamente feita em fogo de chão: o pastor Érico mostra conhecer os bens do alto e do baixo, do espírito e da carne. Seu repertório é elevado: latinista, bebe de fontes clássicas, entre outras; mas embriaga-se com as palavras, como se fossem goles de vinho, capazes de despertar suas próprias verdades. E conta histórias, fiel às tradições narrativa e dramática, em nossos tempos pós-rápidos. Poemas (hoje) não breves, narrativas não longas, quiçá uma medida equilibrada para uma aventura literária hodierna, recheada de ingredientes passionais, mórbidos, trágicos, heroicos, cômicos e libidinosos. Além de aproximar o céu da terra (e dos infernos) – podendo-se entrever um “lamento da terra e do céu” – o seu dizer rumina conteúdos e formas (incluindo-se referências de notação) antigos e futuros, presentificando-os na massa remastigada. O poeta – que abre seu livro com referências, entre outras, à poesia dos simbolistas Mallarmé e Verlaine – ironicamente põe em questão a própria modernidade, como se pode ver em seu “Estudo Barroco para um Poema Moderno”, no qual reescreve em dodecassílabos parte do canto IV da Eneida, de Virgílio, para falar de pathos, da paixão da “misérrima Dido” por Eneias; o poema, feito de belos versos – como “há metais e metais: ele é a liga mais dura / trabalhada no mar que marulha e martela” (em fala da rainha sobre o herói) –, parece existir para culminar em afirmação lapidar um veredicto que ultrapassa épocas e poéticas: “quando

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amor violenta amor-próprio, prudência, / a despeito do nome – loucura, paixão –, / malgrado meu, malgrado teu, malogra tudo”. Mas a paisagem predominante no trabalho de Nogueira é a da poesia bucólica (por meio da qual também evoca Virgílio, assim como seu mestre grego Teócrito), chão propício para enxertar mudas variadas no mesmo tronco, ou para encher linguiças de vária carne. Os antigos pastores-cantores poetavam, em versos hexâmetros dactílicos (o mesmo das épicas grega e latina), temas amorosos, lançando-se ao desafio, ao embate poético; tal propósito não é estranho à nossa tradição de cantadores rurais, e tampouco o é a Érico, propício à contenda, como revela o tom desafiador de sua criação. O sentido do termo bucólica é tomado pelo autor de Poesia Bovina em sua acepção primeva: em grego, βουκολικός era concernente aos boiadeiros, pastores de bois (βοῦς, “boi”), embora não se excluíssem, do contexto bucólico, as ovelhas e cabras, também pastoreadas. Mas Érico – cuja infância tem pés fincados em pastos e praças do interior paulista – desenvolve seu “gênero pastoril” em tempos do quase-caos da megamegalópole, o que traz a seu canto deformações e questionamentos inevitáveis: terá cabimento fazer a sua “Bucolicazinha”, agora? (“Como?; ‘Bucolicazinha’ – ouvi bem?; puta mico, e que mico”.) O autor assume sua poética bucólica diminutiva, ao mesmo tempo em que amplia os lindes dessa poesia: em época de incertezas, tudo-nada cabe na novantiga cesta do poeta multiurbano, incluindo-se, jocosamente, a referência sertaneja de Guimarães Rosa : “‘É, pensando melhor, Diadorim’, deu de ombros e riu, / ‘marca: dia desses te como’ – um bode cobria um cabrito, / trom, uma harpia trovoando sem dó, ‘É, agora fodeu’”.

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10 | Po e s i a B ov i n a – É r i c o No g u e i r a

Em sua mistura mutante e multiforme, diga-se, Nogueira realiza com empenho incomum uma experimentação métrico-rítmica; seus poemas são rigorosamente construídos com base em modelos adotados e alguns critérios próprios (por exemplo, certo abuso de elisões, como espaço de insubordinação calculada...). Estudioso dos padrões métricos antigos e da versificação em língua portuguesa, o poeta vale-se de opções que se afinam, cada uma, com seus objetivos e os próprios poemas, estabelecendo um apoio de precisão à variabilidade de sua temática e de sua dicção. Caso a se destacar é exatamente “Bucolicazinha”, cujos versos fulcram-se na transposição do hexâmetro dactílico para a metrificação qualitativa (acentual): embora trabalhe à maneira de Carlos Alberto Nunes em suas recriações das épicas homérica e virgiliana – há vários versos estritamente dáctilo-hexamétricos (seis unidades de ritmo ternário descendente) no poema –, Érico procede com mais liberdade que o ilustre tradutor na posição dos acentos, admitindo a presença de células binárias, o que ocasiona a dinâmica da variedade na constância dos seis acentos em cada verso, critério norteador de sua construção. Como se não bastasse o sobrenome já arbóreo, alusivo à Juglans Regia, o poeta vai buscar outra espécie de árvore, Erica Arborea, para nominar-se inteiramente em sua paisagem, feita de outros eus e de outros lugares e épocas: “E uma erica arborea e quiçá, / sim, uma doce nogueira eu espero esculpir, se gostares / do som do meu berrante”. Mas, ao transitar da vegetação aos gados, está no horizonte do poeta-carnívoro a preparação de enchidos de miúdos suínos, “malvinda” metáfora da própria criação poética: “a verdade: carne pra encher linguiça / não falta, o difícil é o tempero,

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e o quanto / de cada e por que – o segredo, a arte da charcutaria”. Ingredientes não faltam na verdadeira fábrica de embutidos do poeta, por vezes com tempero acre e pegajoso, como no sujeito de uma tragédia radicalmente urbana, paulistana, com a qual todos podemos flertar: a do sujeito que tudo perde e termina “mendigo orador, profeta de estábulo”, pregando e perecendo em público; tragédia que pode tornar-se, na poética nogueirense, uma farra – que será, claro, a “Farra do Boi”... A dinâmica de diálogos com diversas formas e poéticas, bem como de procedimentos, perseguida por Érico Nogueira abrange a “tradução propriamente dita”, reservada ao poema “Afinidades Secretas” (versão em português de “Affinités Secrètes”, de Théophile Gautier). No entanto, mesmo neste caso de boa fatura tradutória, o poeta se mostra em sua ação libertária, não abrindo mão da atitude desafiadora que faz situar o poema, por seu resultado, a meio caminho da emulação: esta constitui um eixo em torno do qual nada escapa à coerência ousadamente apropriadora e ruminante de um autor que busca o alto contato com os Numes por meio de alguns dos mais terrestres elementos de nossa bovina vida.

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“Eu, Marília, não sou algum vaqueiro que viva de guardar alheio gado.” Tomás Antônio Gonzaga

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Cansei de guardar uma xícara, a única que sobrou, no armário de secos – socado – onde meto o que aliso mas nunca uso; e cansei de tentar, bem, um poço, ou fonte, na terra avarenta do meu pedregal; é, fazer o quê?, é mais certo tomar nessa xícara o mau café deste ano, do que ter e não ter porcelana em casa, não acha?; por isso, olha, em vez de pintar duas ninfas nuas e um fauno peludo com um caniço ou outra coisa ardendo na mão, e um demônio chinês entre os juncos, só lamento “Esta carne é uma lástima e li muito livro já, tô cansado” e concedo em pingar bem no oco dela; e nem é nem não é muito bom pra nenhum de nós; e um lago lilás sobre a xícara branca, e bem pouca brisa por cima do lago, e uma música extinta em volta, e uma folha tão bonita, tão morta na brisa é o que é.

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Estudo Barroco para um Poema Moderno

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a Chris Miller

“Foi castigo ou acaso?”, pensei, quando li que na entranha um tumor (de tão cego um glaucoma) corroía a rainha, fundida em Eneias. Acenderam a lâmpada, então, da manhã, e os vapores noturnos lá fora cederam;

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mas cá dentro (a rainha pra irmã) “Já enlouqueço; sei que é sonho o que sonho – e não durmo, vigio; desde que ele chegou, foi entrando, mostrou quem e qual ele fosse, que braço, que face, pareceu-me, no sangue, no traje, um olímpico;

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há metais e metais: ele é a liga mais dura trabalhada no mar que marulha e martela; ah, não ter prometido o que já prometi – se viúva, passar quanto viva na tumba, e, morrendo, no leito, ser noiva de novo –,

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e agarrava, qual ímã, essa liga tão rara; minha irmã, te confesso: depois que um irmão abateu outro irmão, meu esposo, e seu sangue inda corre, inda cheira, inda mancha esta casa, só Eneias tocou minha corda mais funda:

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– mas não; não sei que digo; ou sei: que a terra se abra e me trague, ou bem relâmpagos me desintegrem,

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