Sinceridade e Autenticidade

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Coleção Abertura Cultural

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Impresso no Brasil, agosto de 2014 Título original: Sincerity and Authenticity Copyright © 1971, 1972 by the President and Fellows of Harvard College Publicado em acordo com Harvard University Press. Todos os direitos reservados. Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal: 45321 · 04010 970 · São Paulo SP Telefax: (5511) 5572 5363 e@erealizacoes.com.br · www.erealizacoes.com.br

Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial Sonnini Ruiz Produção editorial William C. Cruz Preparação de texto Lucas Cartaxo Revisão de texto Geisa Mathias de Oliveira Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É Diagramação e editoração eletrônica André Cavalcante Gimenez / Estúdio É Pré-impressão e impressão Intergraf Indústria Gráfica Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

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sinceridade e autenticidade A Vida em Sociedade e a Afirmação do Eu

Lionel Trilling Tradução de Hugo Langone

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Para meu primo I. Bernard Cohen

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Sum ár io

Prefácio...................................................................................................... 9

Capítulo 1 | Sinceridade: Sua Origem e Ascensão.................................... 11 Capítulo 2 | A Alma Honesta e a Consciência Desintegrada.................... 39 Capítulo 3 | O Sentimento do Ser e os Sentimentos da Arte..................... 67 Capítulo 4 | O Heroico, o Belo, o Autêntico............................................ 95 Capítulo 5 | Sociedade e Autenticidade.................................................. 121 Capítulo 6 | O Inconsciente Autêntico................................................... 149

Índice Onomástico................................................................................. 187

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Pref ác io

Estas são as aulas que, na primavera de 1970, ministrei na Universidade de Harvard como ocupante da cadeira Charles Eliot Norton de poesia. Ao escolher como tema o exame histórico dos ideais cognatos da sinceridade e da autenticidade, foi-me impossível não perceber que seis aulas jamais seriam capazes de abarcá-lo. Isso me encorajou na empreitada. Quando proferi a última delas, a certeza de sua inevitável inadequação de forma alguma diminuíra, mas já deixara de ser estimulante por ter se tornado específica: eu sabia o quanto haviam sido falhas e de que maneiras isso acontecera, e pouco me instigava então enumerar as questões e as figuras importantes que não haviam sido levadas em conta. Agora que as publico – de modo substancial, embora não exatamente como foram proferidas –, retorno naturalmente à certeza de que o tema é tão amplo, quase coextensivo à cultura de quatro séculos, que mesmo uma investigação meramente parcial pode ser de algum modo útil ao sugerir sua amplitude e sublinhar algumas das muitas ironias que ele engendra. L. T. Nova York Março de 1972

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C apí tu l o 1

| Sinc er idade: Sua O r igem

e Asc ensão

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Vez ou outra, é possível observar a vida moral revendo a si mesma, talvez reduzindo a ênfase que antes colocava num de seus elementos, talvez inventando e acrescendo a si própria um elemento novo, uma forma de conduta ou sentimento que até então não lhe parecia essencial à virtude. A notícia de um tal acontecimento é muitas vezes recebida com certo grau de ironia ou com algum outro sinal de resistência. Hoje em dia, é claro, fomos todos disciplinados a acreditar que a vida moral se encontra num fluxo incessante e que os valores – é assim que os chamamos – de determinada época não são os valores de outra. Parece-nos fácil acreditar que as mudanças nem sempre se dão aos poucos, que às vezes elas ocorrem de repente. Esse reconhecimento imediato da transformação da vida moral está implícito em nosso modo moderno de pensar a literatura. Todavia, é precisamente nossa experiência literária o que nos leva a resistir à ideia da mutação moral, a questionar se as alterações que observamos nos pressupostos morais merecem a crença que somos impelidos a depositar nelas. Em regra, nossa ciência da disparidade entre os pressupostos morais de determinada cultura e os pressupostos morais de outra é tão desenvolvida

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e ativa que nos é difícil crer na existência de uma natureza humana essencial. No entanto, todos nós já vivemos momentos em que tais diferenças, tal qual nos atesta a literatura, parecem não fazer diferença alguma, em que elas sequer aparentam existir. Nós lemos a Ilíada, tal como as peças de Sófocles ou Shakespeare, e elas se aproximam tanto do que sentimos e pensamos que acabam por colocar abaixo, ou em suspenso, a imposta certeza de que a vida moral é condicionada por uma cultura específica; elas nos convencem de que a natureza humana jamais varia, de que a vida moral é única e, a seu modo, perene, e de que apenas um pedantismo atarefado e intrometido poderia insinuar o contrário. Porém, lançando ainda outro olhar sobre o caso, esse juízo recua novamente. Percebemos então, com ávido cuidado, todos aqueles detalhes da crença, do pensamento e do comportamento que distinguem a moral de determinada época da moral de outra, e assim nos parece que uma percepção ágil e instruída da diferença das linguagens morais está na essência mesma da reação adequada à literatura. A ambivalência que descrevo aqui é aquela mesma que eu experimento ao propor a ideia de que, em determinado momento da história, a vida moral da Europa acrescentou a si mesma um novo elemento: o estado ou a qualidade do eu que denominamos sinceridade. No emprego que lhe damos hoje, essa palavra se refere sobretudo à congruência entre a declaração e o sentimento real. Seria realmente possível – faz algum sentido – afirmar que em determinado momento da história a valia atribuída a essa congruência se tornou um novo elemento da vida moral? Ela seria mesmo tão velha quanto a fala e os gestos? Mitigo esse ceticismo, porém, ao refletir que essa palavra não pode ser aplicada a ninguém sem que se considere suas circunstâncias culturais. Por exemplo, não podemos dizer que o patriarca Abraão foi um homem sincero. Essa declaração parece cômica. A sinceridade de Aquiles ou Beowulf não está em questão: eles não têm nem carecem

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de sinceridade. Todavia, se questionamos se o jovem Werther realmente é tão sincero quanto pretende ser, ou então qual das duas irmãs da família Dashwood, Elinor ou Marianne, é vista por Jane Austen como dotada da sinceridade mais verdadeira, podemos seguramente esperar uma resposta séria, com opiniões que tomem partido de ambos os lados da controvérsia. Há em Hamlet um momento de encanto singular e comovente. Polônio apressa a ida de Laertes a Paris com um conselho paternal que dificilmente será ouvido, muito menos assimilado. As máximas do velho rivalizam entre si em prudência e fastio, e acabamos por encará-las como características de um espírito que não é somente senil, mas também pequeno. De repente, porém, impressionamo-nos ao ler: This above all: to thine own self be true And it doth follow, as the night the day, Thou canst not then be false to any man. [Mas, sobretudo, sê a ti próprio fiel; Segue-se disso, como o dia à noite, Que a ninguém poderás jamais ser falso.]1

Naturalmente, nós tentamos compreender a frase final do discurso de Polônio de modo que corresponda à baixa opinião que temos do falante: “Se sempre colocares teus interesses acima de tudo, se buscares sempre ser o número um, não levarás teus sócios ao erro de achar que tens afeição por seus interesses e, assim, evitarás sua ira quando inevitavelmente frustrares as expectativas depositadas em ti”. Contudo, o trecho não se submete a essa interpretação. Nossa tendência a conciliar seu sentido com a visão geral que temos de Polônio é subjugada pelo modo como os versos soam, isto é, por seu lúcido lirismo moral. Isso nos convence de que Polônio viveu um William Shakespeare, “Hamlet”. In: Teatro Completo: Tragédias. Trad. ­Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro, Agir, 2008, p. 557. (N. E.) 1

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momento de autotranscendência, de graça e verdade. Ele concebeu a sinceridade como condição essencial da virtude e descobriu de que maneira ela deve ser alcançada. O quão imerso Hamlet está no tema da sinceridade é parte da leitura que todos fazem da peça. É categórico que, em sua primeira fala longa, o próprio Hamlet afirme sua sinceridade, declarando que não conhece “aparências”: há, de fato, uma discrepância entre o que ele diz sentir acerca da morte do pai e aquilo que ele realmente sente, mas não se trata aí daquela discrepância que, segundo crê, sua mãe lhe atribui – ele não sente menos, mas mais, do que declara; dentro, traz mais do que demonstra a superfície. A cena com os atores diz respeito aos meios artísticos pelos quais a congruência entre sentimento e declaração pode ser concretizada, e essa histriônica congruência é incongruentemente evocada por Hamlet quando este se vê junto ao túmulo de Ofélia, superando Laertes na expressão de pesar: “Vê [...] minha fala é tão pomposa quanto a tua”. Então há Horácio: Hamlet o carrega no coração porque, segundo diz, este seu amigo não é escravo das paixões; sua apatheia estoica faz dele aquilo que achamos que ele de fato é: uma mente em completa harmonia consigo mesma, um exemplo de sinceridade integral. Porém, de todos os elementos da peça que nos levam a refletir sobre a sinceridade – e existem muito mais do que mencionei –, são os famosos três versos de Polônio o que há de mais encantador – o que talvez se dê em virtude do páthos que lhe é implícito. “[...] to thine own self be true”: com que promessa essa frase ecoa em nossos ouvidos! Cada um de nós é o sujeito desse imperativo, e logo pensamos nas várias dificuldades e dúvidas que nos acometeriam se nos puséssemos a obedecê-lo. Que acordo se propõe! – um acordo entre mim e meu próprio eu: terá um dia existido dois seres tão adequados um ao outro? Quem não gostaria de ser verdadeiro para com o próprio eu? Verdadeiro no sentido de leal, da fidelidade que jamais vacila; verdadeiro no sentido de honesto, visto que não deve haver

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subterfúgios ao se lidar com ele; verdadeiro no sentido que lhe dão os carpinteiros e pedreiros, isto é, no sentido do alinhamento. Isso, porém, não é nada fácil. “Por que será”, disse Charles Dickens em carta escrita no ponto mais alto de sua carreira, “que [...] ultimamente, quando entristecido, acomete-me o sentimento da felicidade que não conheci em vida e do amigo e companheiro que jamais fiz?”.2 Nós sabemos quem é esse amigo e companheiro jamais feito. Compreendemos, com Matthew Arnold, o quão difícil é distinguir o próprio eu a fim de alcançá-lo e ser, para com ele, verdadeiro. Below the surface-stream, shallow and light, Of what we say we feel – below the stream, As light, of what we think we feel – there flows With noiseless current strong, obscure and deep, The central stream of what we feel indeed.3 [Sob a superfície do curso, raso e ligeiro, do que dizemos que sentimos; sob a corrente, assim ligeira, do que pensamos que sentimos – ali flui em silenciosa torrente, obscura e profunda, a central corrente do que deveras sentimos.]

Foi preciso que trinta anos se passassem desde a melancólica declaração de Arnold acerca da dificuldade – quiçá até da impossibilidade – de localizar o próprio eu para que Sigmund Freud desse seus primeiros passos na elaboração de uma laboriosa disciplina de pesquisa que buscaria descobrir onde esse eu poderia ser encontrado. Contudo, nós ainda quebramos a cabeça não somente quanto ao local do eu para com o qual devemos ser verdadeiros, mas também quanto à natureza daquilo que estamos buscando. W. Dexter (ed.), The Letters of Charles Dickens. London, Nonesuch Press, 1938, vol. 2, p. 620-21.

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C. B. Tinker e H. F. Lowry (eds.), The Poetical Works of Matthew Arnold. London / New York, O. U. P., 1950, p. 483. 3

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Schiller escreveu: “Pode-se dizer que todo ser humano individual carrega consigo, potencial e prescritivamente, um homem ideal, o arquétipo de um ser humano. É a tarefa de sua vida harmonizar-se, por intermédio de suas manifestações cambiantes, com a unidade imutável desse ideal”.4 O arquétipo de um ser humano: seria esse, então, o nosso eu? Sem dúvida trata-se daquilo que Matthew ­Arnold denominou “best self” [melhor eu], mas seria esse de fato um eu próprio? Não seria, antes, o melhor eu da humanidade em geral, e não aquele meu, particular? Caso seja de alguma forma possível declará-lo meu, por ser o melhor eu da humanidade, caso seja, por isso mesmo, também meu melhor eu, o fato de assim sê-lo certamente significa que não se trata (como chamou Keats) de um eu exclusivo: sei que ele coexiste com outro eu que é pior aos olhos da moral pública, mas que em virtude dessa culpabilidade mesma pode ser considerado meu de modo mais peculiar. Assim pensava Hawthorne: “Sê verdadeiro! Sê verdadeiro! Sê verdadeiro! Mostra livremente ao mundo, se não teu pior lado, ao menos um traço a partir do qual este pior lado possa ser deduzido”.5 Se o homem sincero é aquele que evita ser falso sendo verdadeiro para consigo mesmo, temos que esse estado de existência pessoal não deve ser conquistado sem um intenso esforço. Não obstante, em certo momento da história alguns homens e classes de homens passaram a conferir a tal esforço suprema importância na vida moral; desse modo, por cerca de quatrocentos anos, o valor atribuído à iniciativa da sinceridade tornou-se um traço saliente, talvez até definidor, da cultura ocidental. F. Schiller, On the Aesthetic Education of Man. Ed. e trad. E. M. Wilkinson e L. A. Willoughby. Oxford, Clarendon Press, 1967, p. 17. [Edição brasileira: F. Schiller, A Educação Estética do Homem. São Paulo, Iluminuras, 2013.]

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Nathaniel Hawthorne, The Scarlet Letter, cap. XXIV, “Conclusion”. [Edição brasileira: Nathaniel Hawthorne, A Letra Escarlate. Trad. Christian Schwartz. São Paulo, Companhia das Letras, 2011.] 5

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Uma descrição histórica da sinceridade deve ter sob seu escopo não somente o nascimento e a ascendência do conceito, mas também seu declínio, isto é, a manifesta diminuição da autoridade que antes exercera. A própria palavra veio a perder grande parte de sua elevada dignidade. Quando a ouvimos, temos ciência do anacronismo que estranhamente a toca. Ao pronunciá-la, provavelmente o fazemos com desconforto ou ironia. Em seu emprego mais comum, rebaixou-se ao plano de um mero intensivo, tendo aí um efeito que nega sua intenção literal: “Eu sinceramente acredito” tem menos peso do que “Eu acredito”; na subscrição de uma carta, “Todo seu, sinceramente” tem menos peso do que “Todo seu”. Enaltecer uma obra literária declarando-a sincera é hoje, na melhor das hipóteses, uma forma de dizer que, embora não instigue qualquer admiração estética ou intelectual, fora ao menos um coração inocente que a concebera. Quando F. R. Leavis distingue, com toda a seriedade, quais aspectos da obra de T. S. Eliot são sinceros e quais não o são, sentimo-nos inclinados a perceber essa distinção como um exemplo da qualidade encantadoramente arcaica da seriedade de seu autor. A desvalorização da sinceridade está vinculada de modo essencial, mas também paradoxal, à mística da literatura clássica de nosso tempo. Alguns de seus mestres passaram a acreditar que, com relação a suas obras e seu público, eles não eram pessoas ou eus, mas artistas. Isso significava que não eram de fato, na expressão com que Wordsworth começa a definir o poeta, homens falando para homens. As declarações que defendem essa posição ficaram famosas em sua época e são indeléveis na memória dos leitores de certa idade. Eliot afirmou que “[o] progresso do artista é um autossacrifício contínuo, uma extinção contínua da personalidade”;6 Joyce, que “[a] personalidade do artista [...] é enfim aprimorada fora da existência; ela se impersonaliza, por assim 6

A declaração de Eliot é feita em “Tradition and Individual Talent”.

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dizer”;7 e Gide – ele, mais do que qualquer outro! –, que “[o] ponto de vista estético é o único ponto de vista sensato a ser adotado no exame de minha obra”.8 A existência que tais autores alcançaram como artistas eliminou sua condição de homens que falavam para homens, e disso se segue que o critério da sinceridade, o cálculo do grau de congruência entre sentimento e declaração, não é pertinente ao juízo de suas obras. O paradoxo que devemos discernir nessa posição está relacionado, é claro, ao grau em que a obra dos grandes mestres modernos está preocupada com questões pessoais, isto é, com o eu e as dificuldades de sermos verdadeiros para com ele. Se me permitirem citar uma caracterização que certa feita fiz da literatura clássica do início do século: “Jamais houve literatura tão surpreendentemente pessoal; ela nos pergunta se estamos contentes com nossos casamentos, com nossas vidas profissionais, com nossos amigos [...]. Ela nos pergunta se estamos contentes com nós mesmos, se estamos salvos ou condenados – mais do que qualquer outra, ela diz respeito à salvação”.9 E o paradoxo continua com a percepção, obtida sem qualquer esforço especial, de que essa literatura se vê em posição de formular perguntas inadmissíveis porque seus autores levantaram essas mesmas perguntas para si. Apesar de almejarem a impessoalidade, eles figuram em nossa mente exatamente como pessoas, como personalidades de um gênero amplo e exemplar, as quais questionam o que o próprio eu é e se estão sendo verdadeiras para com ele. Assim, somos levados à emulação desse autoescrutínio. As declarações desses artistas sobre a necessidade de transcender ou

Declaração feita por Joyce no cap. V de A Portrait of the Artist as a Young Man [Retrato do Artista Quando Jovem].

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Essa declaração, supostamente reproduzida a partir de uma carta enviada por Gide ao autor, é a epígrafe que aparece no frontispício em Jean Hytier, André Gide. Trad. R. Howard. Garden City, N. Y., Doubleday Anchor, 1962; Londres, Constable, 1963).

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L. Trilling, “On the Teaching of Modern Literature”. In: Beyond Culture. New York, Viking; London, Secker, 1965, p. 8.

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eliminar o eu pessoal são por nós vistas como expressão das fadigas que o eu está fadado a suportar; ou, ainda, nós talvez as compreendamos como fruto de uma ambição ao poder xamanista: não fui eu, mas o vento ou o espírito, quem proferiu aquelas palavras. A doutrina da impessoalidade do artista foi lealmente auxiliada pela crítica que cresceu com a literatura moderna clássica. Ao lidar com a personalidade, ela se entregou a um jogo complexo, ambíguo e arbitrário. Se tentava nos tornar cada vez mais sensíveis às implicações do caráter singular da voz do poeta – incluindo, inevitavelmente, aquelas implicações que são pessoais antes mesmo de serem morais e sociais –, ela era ao mesmo tempo assaz rigorosa ao insistir em que o poeta não era uma pessoa, mas uma persona, e em que imputar-lhe existência pessoal era violar o decoro literário. Essa visão casta da literatura sem dúvida teve suas utilidades corretivas. No entanto, já parece passada a época em que a simples ­verdade de que crítica não é fofoca precisava ser reforçada por preceitos que nos proibiam de observar as semelhanças entre Stephen Dedalus e James Joyce e entre Michel ou Jérome e André Gide. Não nos é mais exigido julgar plenamente fortuito o fato de o herói do romance de Proust se chamar Marcel. Nas últimas duas décadas, os poetas ingleses e americanos esvaziaram programaticamente a sagrada doutrina da persona, a crença em que o poeta não se apresenta como pessoa e não deve se afigurar como tal em nossa consciência, isto é, como homem que fala aos homens, e sim como uma existência exclusivamente estética. O abandono desse artigo de fé crucial foi celebrado por ­Donald Davie num ensaio interessante. Segundo afirma o sr. Davie: “Um poema em que o ‘eu’ represente imediata e inequivocamente o autor” é hoje considerado “essencial e necessariamente superior ao poema em que o ‘eu’ representa não o escritor, mas uma persona sua”.10 Essa impressionante transformação da D. Davie, “On Sincerity: From Wordsworth to Ginsberg”. Encounter, outubro de 1968, p. 61-66. 10

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doutrina é vista pelo sr. Davie como um retorno à valorização romântica da sinceridade, e o título que seu ensaio recebeu foi: “On Sincerity: From Wordsworth to Ginsberg” [Da Sinceridade: De Wordsworth a Ginsberg]. Não desejo complicar as coisas: a palavra “sinceridade” serve muito bem àquilo que o sr. Davie tem em mente. Porém, acredito que chegaremos mais perto de compreender o desenvolvimento que ele descreve se utilizarmos outra palavra para indicá-lo. Sublinhada pelo sr. Davie como característica de muitos poetas contemporâneos, a exibição imediata do eu com a suposta intenção de ser para com ele verdadeiro não pode ser denominada um esforço de sinceridade porque não envolve a razão que Polônio nos dá para sermos verdadeiros para com nosso eu: a de que, se assim agirmos, não poderemos ser falsos diante de homem algum. Esse objetivo não possui mais sua velha urgência – o que não significa, porém, que a disposição moral de nossa época não valorize a fuga da falsidade: ela simplesmente não a encara mais como o objetivo que define a tentativa de sermos verdadeiros para conosco. Se a sinceridade perdeu sua antiga posição, se a própria palavra nos soa vazia e parece negar seu significado, é porque não sugere que ser verdadeiro seja um fim, e sim um meio. Se o indivíduo é verdadeiro para consigo a fim de evitar ser falso para com os outros, ele de fato estaria sendo verdadeiro com o próprio eu? A finalidade moral em vista subentende uma finalidade pública, com tudo aquilo que isso insinua com relação à estima e à reputação resultantes do correto desempenho do papel público. Não escolhi deliberadamente essa penúltima palavra. Ela me veio prontamente – “naturalmente” – à cabeça. Nós hoje pronunciamos “papel” sem pensar em seu sentido histriônico original: “em meu papel profissional”, “em meu papel de pai ou mãe”, até mesmo “em meu papel de homem ou mulher”. Porém, o velho significado histriônico se faz presente mesmo que não estejamos cientes dele, trazendo consigo a ideia de que sob todos os papéis existe o Eu, aquela pobre e velha realidade que, depois de todos os papéis terem sido

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interpretados, gostaria de murmurar “Fora com todos estes empréstimos!” e refugiar-se com seu ego original e real. Certamente não é acidental o fato de a ideia da sinceridade, do eu próprio e da dificuldade de conhecê-lo e revelá-lo só ter surgido para atormentar as mentes humanas na época que viu o florescimento repentino do teatro.11 Uma famosa obra contemporânea de sociologia traz como título The Presentation of Self in Everyday Life [A Representação do Eu na Vida Cotidiana],12 e podemos pressupor que o Hamlet de hoje diria: “Trago mais do que apresento”. Nessa tarefa de apresentar o eu, de posicionar-nos sobre o palco social, a própria sinceridade desempenha um papel curiosamente comprometido. A sociedade exige que nos apresentemos como seres sinceros, e a forma mais eficaz de cumprir essa exigência é assegurando que Ver, porém, Eric Bentley, “Theatre and Therapy”. New American Review, viii, 1970, p. 133-34. “A ideia de que ‘o mundo todo é um palco e homens e mulheres, meros atores’ não é uma improvisação engenhosa que o cínico Jacques, de Shakespeare, elabora casualmente; trata-se de um lugar-comum da civilização ocidental. É, antes, uma verdade que se via escrita na parede do Globe, o teatro de Shakespeare, numa linguagem mais antiga que o inglês: Totus mundus facit histrionem. Falar da vida como interpretação, tal como fazem muitos psiquiatras, é apenas criar uma expressão nova, e não propor uma ideia original.” Que a ideia é antiga é algo que sem dúvida devemos reconhecer – veja, por exemplo, na página 100 deste volume, o comentário de Hans Jonas acerca do elemento histriônico da moral estoica. Não obstante, como já pude sugerir, houve épocas da cultura em que os homens não se viam como seres dotados de uma série de eus ou papéis. O sr. Bentley declara adiante tanto a inevitabilidade quanto o valor positivo da interpretação. “É curioso notar”, diz ele, “como a expressão ‘fazer de conta’ tornou-se caluniosa: ela subentende a insinceridade. No entanto, os lugares-comuns que mencionei dão a entender que não há alternativa à representação; possível é apenas escolher entre um papel e outro. E é precisamente este o lado positivo da ideia: nós temos uma escolha, a vida nos oferece alternativas [...]”. Tudo isso é dito de forma muito convincente, mas não creio que silencie as insistentes reivindicações do próprio eu.

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Erving Goffman, The Presentation of Self in Everyday Life. New York, 1959; London, 1969. [Edição brasileira: Erving Goffman, A Representação do Eu na Vida Cotidiana. São Paulo, Vozes, 1992.] 12

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nós somos sinceros de fato, que realmente somos o que queremos que a comunidade ache que somos. Em suma, nós interpretamos o papel de nós mesmos, desempenhamos com sinceridade a função da pessoa sincera, e disso resulta que um juízo que se debruce sobre nossa sinceridade pode muito bem declará-la inautêntica. A palavra “autenticidade” nos vem hoje à boca com tamanha prontidão e com tantas conexões que pode muito bem resistir às nossas tentativas de defini-la, como àquela a que mais tarde me dedicarei. Creio, porém, que por ora me seja possível afirmar que ela sugere uma experiência moral mais tenaz do que “sinceridade”, uma concepção mais exigente do eu e daquilo em que consiste ser verdadeiro para com ele, uma referência mais ampla ao universo e ao lugar que o homem nele ocupa, tal como uma visão menos receptiva e cordial das circunstâncias sociais da vida. Sob as exigências do critério de autenticidade, muito do que outrora se cria formar o tecido da cultura passou a parecer de pouco valor, uma mera fantasia ou rito, uma manifesta falsificação. Ao mesmo tempo, em virtude da autenticidade que lhe foi atribuída, a muito do que aquela cultura tradicionalmente condenava e desejava suprimir foi concedida autoridade moral – à desordem, à violência e à insensatez, por exemplo. O conceito de autenticidade pode negar a própria arte, mas ao mesmo tempo figura como sua fonte obscura: assim foi para ­Yeats – ele, que esteve longe de ser um ator de segunda categoria e adorava as personae – no momento em que todas as suas atuações lhe pareceram vis e fez-se necessário descobrir como inventar novas. Those masterful images because complete Grew in pure mind, but out of what began? A mound of refuse or the sweepings of a street, Old kettles, old bottles, and a broken can, Old iron, old bones, old rags, that raving slut Who keeps the till. Now that my ladder’s gone, I must lie down where all the ladders start, In the foul rag-and-bone shop of the heart.

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[Se a imagem imperiosa, em si completa, Cresce na mente, de onde é originada? De rua suja e monte de detrito, Lata velha, chaleira arrebentada, Ferro, ossos, trapos, a rampeira abjeta A controlar a caixa. Sem a escada, Fico onde toda escada sai do chão, Na loja de osso e trapo da emoção.]13

Uma capacidade inventiva considerável fora um dia tomada co­ mo sinceridade, mas nada de fato se equipara à maravilhosa capacidade geradora que nosso juízo moderno atribui à autenticidade, a qual subentende um movimento descendente que atravessa todas as superestruturas culturais e chega ao ponto em que todo movimento termina e começa. “Volta-te para teu coração e escreve”, diz a Musa de Sir Philip Sidney ao poeta: com que alegria essa velha exortação não soa a nossos ouvidos modernos! Não há artigos de segunda mão naquele coração. Não se trata do coração das trevas. Todavia, antes de a autenticidade surgir para insinuar as deficiências da sinceridade e usurpar seu lugar em nossa estima, a sinceridade reinou no firmamento cultural e dominou a ideia de como os homens deveriam ser. iii

A própria palavra só apareceu em língua inglesa no primeiro terço do século XVI, consideravelmente depois de seu surgimento no francês.14 Deriva ela do vocábulo latino sincerus, e de início W. B. Yeats, “The Circus Animals Desertion”. In: Collected Poems. London / New York, Macmillan, 1956, p. 336. [Referência da tradução: W. B. Yeats, Poemas. Trad. Paulo Vizioli. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 143.] 13

O Oxford English Dictionary fornece 1549 como a data do primeiro emprego da palavra em francês, mas o dado é contradito pelo Dictionnaire Alphabétique et Analogique de la Langue Française (1960-64), de Paul Robert, que nos dá 1475 como ano do surgimento de sincère e 1237, de sincérité.

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significava exatamente o mesmo que significava no uso literal que lhe dava o latim: limpo, leal ou puro. Um étimo antigo e meramente fantasioso, sine cera (sem cera), dizia respeito a objetos de arte que não eram remendados e que passavam como uma coisa só, o que nos recorda de que a palavra não se referia inicialmente a pessoas, mas a coisas, tanto as materiais quanto as imateriais. Falava-se do vinho sincero não em sentido metafórico, isto é, não ao modo moderno de descrever seu paladar atribuindo-lhe determinada qualidade moral, e sim para afirmar que a bebida não fora adulterada ou, como se disse um dia, desvirtuada. Na linguagem da medicina, a urina poderia ser sincera, e o mesmo se dizia da gordura e da bile. Declarar sincera a doutrina, a religião ou o Evangelho era declarar que eles não haviam sido adulterados, falsificados ou corrompidos. Em seu dicionário, o dr. Johnson prioriza a aplicação da palavra às coisas, e não às pessoas. Tal como empregada no início do século XVI para referir-se aos homens, ela é extremamente metafórica – a vida de alguém é sincera no sentido de ser legítima, pura ou completa; ou, então, no sentido de ser consistente em sua virtuosidade. Contudo, a palavra logo passou a significar a falta de dissimulação, de fingimento, de simulação. Shakespeare só a utiliza nesse sentido, sem demonstrar qualquer consciência de seu velho uso metafórico. O século XVI se mostrou extremamente preocupado com a dissimulação, o fingimento e a simulação. Dante enviara para o penúltimo círculo do Inferno aqueles cujos “feitos eram da raposa, não do leão”, mas Maquiavel reverteu esse juízo – ao menos na vida pública – ao exortar o príncipe a comportar-se como raposa. Desse modo, ele cativou o espírito literário da Inglaterra elisabetana e tornou-se, segundo Wyndham Lewis, a figura central de seu teatro. Porém, apenas o fascínio pela ideia de Maquiavel não é capaz de explicar o grau em A palavra não figura no Dictionnaire de l’Ancienne Langue Française et de Tous ses Dialectes du IXe au XVe Siècles (1892), de autoria de Frédéric Godefroy.

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que esse teatro explorou a falsa apresentação do eu. “Não sou o que sou” poderia ter sido dito não somente por Iago, mas também por uma gama de personagens de Shakespeare em determinado momento de suas ocupações. Tão logo Hamlet escuta o que o Fantasma tem a dizer, ele opta por ser o que não é: um louco. Rosalinda não é um menino, Pórcia não é “doutora em direito”, Julieta não é um cadáver, o duque Vicêncio não é frei, Edgar não é o Pobre Tom, Hermione não está nem morta nem é estátua. Helena não é Diana, Mariana não é Isabella – a fé que o público elisabetano depositava no velho “truque da cama”, em que uma mulher se passava por outra durante uma noite de amor, sugere em que medida ele estava comprometido com a ideia da simulação. No entanto, embora o fingimento inocente desperte grande interesse, é a dissimulação a serviço da maldade a que mais exige a atenção da moral. A palavra “vilão”, tal qual usada no teatro, não carrega necessariamente o sentido da dissimulação: é possível que um vilão não oculte sua iniquidade com o logro, isto é, que torne manifesta sua intenção de prejudicar. Não obstante, o fato de apenas Iago ter sido denominado “vilão” na lista das dramatis personae do First Folio sugere que o vilão é, em sua existência característica, um dissimulador; sua natureza má é evidente ao público, mas oculta àqueles com quem ele divide o palco. E foi assim que a concepção de vilão sobreviveu durante o período vitoriano. Uma característica da cultura literária subsequente foi a descoberta de que os vilões não eram, como dizia a expressão, “fiéis à vida real”, e de que acreditar na possibilidade de sua existência era ingênuo. Consolidou-se a doutrina de que as pessoas eram “uma mistura de bem e mal” e de que parte da maldade realizada poderia ser atribuída às “circunstâncias”. A reduzida credibilidade do vilão, a ideia de que ele só era adequado à fantasia do melodrama, e não à verdade dos romances ou peças sérios, pode ser em parte explicada pela propensão moderna a identificar o mal em sistemas sociais, mas

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nunca em pessoas. Contudo, vale a pena cogitar se isso também não ocorreu porque o fingimento que definia o vilão se tornara menos apropriado às novas circunstâncias da sociedade. Talvez não devamos partir do princípio de que o vilão não passava de uma convenção dos palcos que por um tempo foi também adotada pelo romance. Há motivos para crermos em que ele foi um dia mais fiel à realidade do que veio a tornar-se. Não podemos provar mediante cálculos que houve mais vilões numa época do que em outra, mas nos é possível dizer que em determinado período existiram melhores razões – um emprego mais prático – para a dissimulação vilanesca. Tartufo, Blifil, la cousine Bette, madame Marneffe, Uriah Heep, Blandois, Becky Sharp: esses lobos em pele de cordeiro não são fantasias gratuitas; é um equívoco encará-los assim. A possibilidade de sua existência real é subscrita por realidades sociais. É um lugar-comum histórico o fato de o século XVI ter presenciado o início de um decisivo aumento na taxa de mobilidade social; isso se deu de modo particular na Inglaterra, mas também se estendeu à França. Tornou-se cada vez mais possível às pessoas deixar a classe em que haviam nascido. A classe média cresceu não apenas do modo habitual, mas de uma forma que não tinha precedentes. Ainda assim, por mais impressionante que essa nova mobilidade social fosse se comparada com aquela que se verificara no passado, do ponto de vista atual ela parece não ter sido tão adequada aos novos anseios da sociedade. O princípio das revoluções de Tocqueville se faz aqui pertinente, recordando que à medida que a satisfação dos anseios sociais se torna possível, a impaciência causada pelos obstáculos que a impedem aumenta. E o quanto esses obstáculos eram eficazes se descobre com a leitura de qualquer romance inglês ou francês de qualidade escrito no século XIX. Tocqueville forçou os franceses a atentarem para a grande estabilidade política que a Inglaterra lucrara graças ao privilégio que a cômoda ideia do gentleman conferia aos que ascendiam; todavia, parece-nos impossível

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ignorar o quão limitada essa mobilidade foi, o quão rapidamente a classe dos gentlemen percebeu os estigmas sociais que tornavam os homens inaptos a integrá-la. Até cem anos atrás, era notável na sociedade francesa e inglesa a parcimônia de profissões honráveis que pudessem servir aos ambiciosos como meios de progresso social. Para uma sociedade assim restrita, as tramas e as conspirações não parecem estranhas; a fabricação ou destruição de testamentos é uma forma natural de empreendimento econômico. O sistema de deferência social ainda encorajava a bajulação enquanto forma de agrado e progresso pessoal. O sentido social original da palavra “vilão” exerce influência decisiva sobre seu sentido moral posterior. Esse termo ultrajante se aplicava ao homem que vivia na posição mais baixa da escala feudal; o vilão das peças e romances é tipicamente alguém que deseja ir além da condição em que nasceu. Ele não é o que é: podemos afirmá-lo porque sua intenção nega e viola sua identidade social e porque só lhe é possível alcançar esse objetivo inatural por meio de atos velados, pela fraude. Pela natureza mesma de sua condição, ele é um hipócrita, isto é, alguém que interpreta um papel. É bem relevante que, no personagem de Iago, sejam manifestos tanto o ressentimento que ele nutre contra a situação de sua classe quanto o seu desejo de aprimorá-la. O vilão-hipócrita, o dissimulador consciente, tornou-se marginal, quiçá até estranho, à ideia moderna de vida moral. A situação em que alguém se adultera sistematicamente a fim de agir sobre a boa-fé de outrem não merece de imediato nosso interesse, e dificilmente merecerá nosso crédito. O engano que mais bem compreendemos e para o qual nos vemos mais dispostos a atentar é aquele em que alguém age sobre si mesmo. A vil duplicidade a que Iago declaradamente almeja não exerce sobre nós o mesmo fascínio que exercia sobre o público do século XIX; nossa curiosidade mais vigorosa muito provavelmente se voltará à condição moral de Otelo, àquilo que se encontra por trás de sua magnificência, àquilo que é disfarçado por sua persona

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heroica. Do mesmo modo, Tartufo, que dissimula de maneira consciente e declarada, nos encanta menos do que o protagonista de Le Misanthrope, o qual segundo sugere Molière não é inteiramente o que é, apesar da integridade programática de sua sinceridade. “Meu principal talento é ser franco e sincero”, diz Alceste. Toda a energia de seu ser se dirige ao aprimoramento do traço de que ele mais se orgulha. “[...] Dont son âme se pique”: eis a pista para o erro cômico. Na peça, toda pessoa ridícula possui algo que lhe enche de orgulho: para Oronte, são seus sonetos; para Clitandro, seu paletó; para Acaste, seu sangue nobre, sua riqueza e seu charme infalível. O orgulho de Alceste advém de sua sinceridade, de sua clareza desumana em prol da verdade. A obsessão e teimosia relacionadas à sinceridade não passam de húbris, aquele estado em que a verdade é obscurecida porque a vontade egoística predomina sobre a inteligência. Ao contrário do que afirma para si, é à vontade e não à verdade que Alceste oferece lealdade inflexível. Jamais uma fraqueza humana viu sobre si riso mais compungido e terno do que aquele que Molière direcionou ao autoengano de Alceste. Rousseau aparentemente ignorava isso quando forjou, na Lettre à M. d’Alembert sur les Spetacles, sua famosa denúncia de Le Misanthrope. Não é que Rousseau não se visse tocado pela compunção e pela ternura – ele falava com mais aflição do que raiva, castigando algo de que gostava muito: apesar da severidade de suas reprimendas, ele adorava Molière e, de modo especial, Le Misanthrope. Podemos supor que Rousseau tenha visto na peça seu próprio retrato, e a raiz de sua contenda com Molière está no fato de o absolutismo moral de Alceste não ser enaltecido, mas questionado e ridicularizado. Segundo Rousseau, Molière não almejava estabelecer em suas peças o modelo do homem bom, e sim o modelo de um homem do mundo, um homem agradável; ele não desejava corrigir vícios, mas apenas o que é ridículo – “e, de todos os personagens ridículos, o que o mundo menos perdoa é aquele que é ridículo por ser virtuoso”. Le Misanthrope,

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afirma então Rousseau, foi escrito para “agradar mentes corruptas”; ele representa um “falso bem” que é mais perigoso do que o mal real, fazendo com que “os costumes e princípios da sociedade sejam preferidos à exata probidade” e condensando “a sabedoria em certo meio-termo entre vício e virtude”.15 Essa é uma leitura da peça que todos devem fazer. Ela está de acordo com o que geralmente se diz ser o princípio moral das comédias de Molière, isto é, com o princípio de que a conduta correta é a conduta sensata, a qual abarca uma grande dose de acomodação pragmática às deficiências e contradições da sociedade. No entanto, essa leitura deve acompanhar ainda uma outra, a qual toma ciência do fato de que os sentimentos e opiniões de Alceste são os sentimentos e opiniões do próprio Molière; de que o afável bom senso de Filinte, leal amigo de Alceste, não tem na verdade a palavra final; de que Célimène não é apenas aquilo que George Meredith julga ser em matéria de encanto e vitalidade, mas também um sepulcro caiado e, portanto, uma alegoria da própria sociedade. Sendo nosso objetivo identificar a principal circunstância a que estiveram vinculadas a origem e a ascensão da sinceridade, não importa qual das duas leituras se mostra mais adequada: ambas colocam o conceito de sociedade no centro da peça. O que ocupa e tortura a mente de Alceste não é o fato de um dos membros de seu círculo imediato, seguido de outro, mais outro e, enfim, quase todos, emitir por mera vaidade ou interesse material declarações que contradizem aquilo que sente ou acredita; o que o faz é o fato de a vida do homem numa comunidade desenvolvida ser necessariamente uma corrupção da verdade. Quando ao final Rousseau aparentemente ignorava [...] “vício e virtude”. A Lettre à M. d’Alembert sur les Spetacles (1758), de J.-J. Rousseau, foi traduzida por Allan Bloom sob o título Politics and the Arts: Letter to M. d’Alembert on the Theatre (Glencoe, Free Press, Ill., 1960), sendo citada aqui com permissão de The Macmillan Company. Para o exame que Rousseau faz de Molière, ver p. 34-47.

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Alceste se entrega à solidão, não é por ter se decepcionado com a fascinante Célimène, e sim por ter nojo da sociedade, dessa entidade cuja natureza não deve ser precisamente definida pela natureza dos indivíduos que a constituem. Em Culture and Society [Cultura e Sociedade],16 Raymond ­Williams examina certas palavras que, tendo recebido seu sentido atual nas últimas décadas do século XVIII e na primeira metade do século XIX, têm hoje importância capital em nosso discurso: “indústria”, “democracia”, “classe”, “arte” e “cultura”. Essas palavras dão forma ao nosso modo de pensar a sociedade. E, embora o sr. Williams não o afirme, “sociedade” é ainda um desses vocábulos. A origem de seu sentido atual é mais antiga do que a das outras palavras; porém, esse sentido também passou a ser utilizado numa época específica – no século XVI –, e é possível observar não apenas o crescimento de seu uso, mas também sua gama cada vez maior de conotações. Sociedade é um conceito prontamente hipostasiado – tudo o que dizemos sobre ela sugere que possui vida e leis próprias. Agregado de seres humanos únicos, a sociedade porém é ainda algo mais, algo que vai além do humano, e o fato de ser concebida assim, como se possuísse vida própria mas não vida humana, dá origem ao nosso desejo de harmonizá-la com a humanidade. A sociedade é uma entidade que difere do império ou do reino; e até mesmo “Estado”, no emprego que lhe dá Hobbes, parece uma palavra arcaica para designar o que ele tem em mente. Em geral, os historiadores da cultura europeia concordam que, no final do século XVI e início do século XVII, teve lugar uma espécie de mutação na natureza humana. Frances Yates fala das “arraigadas transformações interiores ocorridas na psique ao longo dos

Raymond Williams, Culture and Society. London / New York, 1958. [Edição brasileira: Raymond Williams, Cultura e Sociedade: de Coleridge a Orwell. Rio de Janeiro, Vozes, 2011.] 16

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primórdios do século XVII”, considerado por ela o “período vital do surgimento do homem europeu e americano”.17 Essas transformações foram dramaticamente claras na Inglaterra, e Zevedei Barbu descreve o que afirma ser “a formação de um novo tipo de personalidade, o qual incorpora os principais traços do caráter nacional inglês durante todo o período moderno”.18 Paul Delany, em seu estudo do súbito florescimento da autobiografia na época, observa a “profunda mudança na mentalidade britânica” que deve explicar o desenvolvimento desse novo gênero. Os acontecimentos públicos aos quais as mudanças psicológicas estão associadas – também como causa e efeito, segundo observamos – são a dissolução da ordem feudal e a redução da autoridade da Igreja. Uma forma de resumir todo esse complexo acontecimento psico-histórico é afirmando que a ideia da sociedade tal qual hoje a concebemos havia enfim surgido.19 O declínio do feudalismo desencadeou a inédita mobilidade social de que falei, trazendo consigo, como era de se esperar, uma urbanização cada vez maior da população. Em 1550, a cidade de Londres abrigava mais ou menos 60 mil pessoas; em cem anos, esse número aumentaria quase seis vezes, chegando a cerca de 350 mil. Essa é uma situação que a literatura lamentou com uma ênfase muito particular, e durante várias gerações a burguesia instruída evitou as consequências morais e espirituais causadas pelas circunstâncias de que se originaram sua existência e nome. Na medida em que esclarecida e polêmica, sua visão da boa vida tem sido amplamente modelada pela imaginação da velha existência rural. Para Karl Marx, porém, a cidade deveria ser enaltecida ao menos pelo refúgio que oferecia daquilo que ele 17 F. Yates, “Bacon and the Menace of English Literature”. New York Review of Books, 27 de março de 1969, p. 37.

Z. Barbu, Problems of Historical Psychology. London, Routledge; New York, Grove Press, 1960, p. 146. 18

P. Delany, British Autobiography in the Seventeenth Century. London, Routledge; New York, Columbia Univ. Press, 1969, p. 19. 19

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denominou “idiotice da vida aldeã”.20 Ele sem dúvida tinha em mente o sentido primordial da palavra “idiota”, o qual não se refere a uma pessoa mentalmente deficiente nem a alguém grosseiro e ignorante, e sim a um indivíduo privado que “não desempenha ofício público” – isto é, a alguém que não participa da sociedade tal qual Marx a compreendia. Para ele, a solução do processo histórico – e, portanto, da vida essencial do homem – só poderia se dar nas cidades, onde cada classe confronta as outras e os homens da massa revelam a natureza e o destino da humanidade. No enxame de homens nas cidades – na Schwärmerei, como expressou Carlyle a fim de evocar desdenhosamente tanto o significado físico quanto o significado emocional da palavra alemã –, a sociedade era chamada à razão: antes, ela sempre fora uma ideia a ser ponderada, algo que deveria ser visto e ouvido.21 A sociedade era vista, ouvida e ponderada pelos homens que haviam se libertado das sanções da Igreja corporativa. Para os teólogos K. Marx e F. Engels, The Communist Manifesto. In: A Handbook of ­Marxism. Ed. E. Burns. New York, Random House; London, Martin Lawrence, 1935, p. 27. [Edição brasileira: K. Marx e F. Engels, Manifesto do Partido Comunista. São Paulo, L&PM, 2011.] 20

Peter Laslett enfatiza a “escala diminuta da vida, o pequeno tamanho dos grupos humanos antes da ascensão da indústria”. Ver o seu The World We Have Lost: England Before the Industrial Age. New York, Scribner’s; London, Methuen, 1965, p. 51. Ver também p. 9-11 e 74. A cerimônia religiosa, afirma o sr. Laslett, era a ocasião com a maior possibilidade de reunir as pessoas em grupos maiores do que o núcleo familiar. Ele também menciona as sessões dos tribunais nos condados, as sessões judiciais trimestrais, as reuniões das associações de manufatura, as assembleias do clero e dos ministros inconformistas, os dias de feira, as universidades, o exército e o Parlamento. Segundo ele, todos esses grupos eram pequenos em comparação com os grupos característicos da sociedade de massas moderna, a qual só passou a existir a partir da segunda metade do século XVIII, com o estabelecimento das fábricas. Cumpre observar, porém, que ao fim do século XVI os teatros já reuniam pessoas em quantidades consideráveis: o público dos espetáculos encenados no Globe (1598) e no Fortune (1600) costumava totalizar milhares de pessoas, e acredita-se que ambas as casas tinham capacidade para mais de duas mil. 21

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calvinistas da Inglaterra, as pregações sobre a sociedade e sobre o modo como ela deveria ser moldada e controlada eram ministradas com a mesma prontidão das pregações sobre a divindade e o governo divino do mundo. Michael Walzer sugere que esses líderes calvinistas constituem “o primeiro exemplo de intelectuais ‘adiantados’ numa sociedade tradicional”, e dá ao livro que lhes dedica, The Revolution of the Saints [A Revolução dos Santos], o descritivo subtítulo: A Study in the Origins of Radical Politics [Um Estudo das Origens da Política Radical] – isto é, uma política em que o partidarismo não se fundamenta em questões práticas discretas, mas numa concepção articulada daquilo que a sociedade é e na predição daquilo que ela deve ser.22 Os teólogos eram intelectuais por sua confiança no Verbo e sua opção por anunciá-lo claramente a todos. Para eles, tal como para o Alceste de Molière, a sociedade havia se corrompido em virtude das falsas confissões; e, também como o personagem, o que mais lhes orgulhava era o fato de serem sinceros, isto é, de dizerem a verdade nua e crua a quem quisesse ouvi-la. Falar claramente tornou-se a ordem do dia. O quão novo isso era e o quão digno era ter sublinhada sua emocionante novidade nos é sugerido por um episódio do quarto livro do Cortesão, de Castiglione. Nesse momento dos diálogos, o caráter do cortesão ideal, do homem perfeito, já foi esboçado; já se estipulou o que ele precisa fazer, em virtude de seu berço nobre, sua formação e sua atividade, para ser considerado belo. Agora, então, após muita concórdia, um dos presentes, o Signor Ottaviano, levanta a inquietante questão de saber se o esforço para produzir o eu perfeito do mesmo modo como se poderia produzir uma obra de arte poderia, afinal, ser levado a sério. A graça e o encanto alcançados, pergunta Ottaviano, não seriam mera frivolidade e vaidade, talvez até falta de masculinidade? M. Walzer, The Revolution of the Saints. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1965; Londres, Weidenfeld, 1966, p. 121.

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O esforço para alcançar essa graça e esse encanto, afirma, só deve ser enaltecido caso sirva a um objetivo bom e sério. O próprio Ottaviano, porém, descobre haver um propósito assim. O cortesão perfeito será tão encantador a seu príncipe que não correrá o risco de desgraçar-se ao falar de maneira clara, ou quase clara, para revelar-lhe – “com delicadeza” – de que modo sua forma de conduzir as coisas se afasta do que deveria ser.23 Na Itália de 1518, só poderia dirigir-se com franqueza ao soberano quem fosse disciplinado à perfeição no encanto e na graça. Cem anos depois, na Inglaterra, a única exigência para ser claro era a convicção de que não se lhe carecia o Verbo. Não desejo insistir nisso, mas de fato parece relevante que, na cultura política que então se desenvolvia, Shakespeare, naquela que é hoje muitas vezes considerada sua maior peça, desse tanta importância à fala clara e experimentasse algumas variações – como com Cordélia, que por natureza é a perfeição da cortesia, com Kent, cujo estilo nega a disciplina cortesã de Castiglione, com o Tolo e com o surpreendente camponês de Cornwall. Eis uma bem-aventurada hierarquia de ingleses francos. Na Inglaterra, a natureza do soberano havia, é claro, mudado. Quando falavam com clareza ao príncipe soberano, os teólogos calvinistas obtinham sua autoridade moral e intelectual não somente da relação que travavam com o Verbo divino, mas também da consciência da soberana maioria, isto é, do povo, aquele destinatário de seus discursos sobre a sociedade que se via pronto para receber o Verbo de forma nua e crua. Havia tanto uma ratificação externa quanto uma ratificação interna por sua confiança no Verbo. É bem verdade que a ratificação interna jamais poderia ser provada, mas seria possível reforçar sua probabilidade. Ao abordar publicamente, como indivíduo, questões de relevância, a única autoridade que se tinha era a verdade da própria experiência e a certeza veemente B. Castiglione, The Book of the Courtier. Trad. C. S. Singleton. New York, Doubleday Anchor, 1959, p. 287-95. 23

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do próprio esclarecimento – e ambas, tal como o tom de sinceridade, eram claramente identificáveis como tais. Não é de surpreender, portanto, que nesse período da história tenha surgido na Inglaterra a autobiografia. Tal como observa Delany, esse gênero não é de forma alguma exclusividade dos protestantes, mas predomina entre eles. Seus primeiros exemplos não são complexos: em regra, não passam de registros esparsos dos acontecimentos da experiência religiosa. Porém, essa forma se aproxima cada vez mais do completo escrutínio da vida interior, tendo como objetivo impingir ao leitor a conclusão de que o autor não pode de modo algum ser falso para com outros homens porque fora verdadeiro para consigo mesmo.24 As Confissões de Rousseau apresentam, claro, uma dimensão diferente dos feitos dessas primeiras autobiografias inglesas, mas lhes dá continuidade. Elas não foram escritas gratuitamente. Antes, eram a demonstração cuidadosa da autoridade que o autor tinha para falar com franqueza, para colocar em xeque todo aspecto da sociedade. Todo aquele que reaja às ideias de Rousseau de maneira positiva deve questionar se elas teriam exercido o mesmo efeito se não fossem respaldadas pelas Confissões. A pessoa que é descrita nessa grande obra pode nos causar aversão, mas é precisamente por ser o tema dela que o autor dos Discursos exerce tão grande influência sobre nós. Ele é o homem; ele sofreu; ele estava lá. A propensão à escrita autobiográfica pode ser considerada um elemento praticamente definidor das transformações psicológicas a que apontam os historiadores. Isso quer dizer – muito embora se receie dizê-lo, visto já ter sido dito tantas vezes e estar arraigado em nossa mente como o primeiro conceito psico-histórico que aprendemos – que o novo tipo de personalidade que ali surge (o verbo é enfadonhamente constante no contexto) é aquele que chamamos de “individual”: em certo momento da história, os homens se tornaram indivíduos. 24

Ver, passim, a admirável obra de Delany supracitada.

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Se lida por si só, essa declaração é absurda. Como o homem pode ser diferente do indivíduo? Alguém que nascesse antes de determinada data não teria também olhos? Não teria mãos, órgãos, dimensões, sentidos, afetos, paixões? Se o espetasse, ele sangraria; se o cutucasse, riria. Certas coisas, porém, ele só veio a ter ou fazer após ter se tornado indivíduo. Ele não tinha ciência daquilo que o historiador ­Georges Gusdorf chama de espaço interno.25 Não se imaginava, como afirma Delany, interpretando mais de um papel, colocando-se fora ou acima da própria personalidade.26 Ele não achava que poderia ser objeto de interesse para seus companheiros sem ter alcançado algo digno de nota ou testemunhado grandes acontecimentos, mas apenas por ter valor enquanto indivíduo. É quando se torna indivíduo que o homem passa a viver cada vez mais em aposentos privados; se é a privacidade que gera a individualidade ou a individualidade que gera a privacidade não é algo que os historiadores afirmem.27 O indivíduo perscruta espelhos muito maiores e mais límpidos do que aqueles que antes tinham os magistrados. O psicanalista francês Jacques Lacan afirma que o desenvolvimento do Je foi precipitado pela fabricação de espelhos: mais uma vez, não se pode declarar se o homem se julga um Je porque o artesão veneziano aprendera a produzir vidros planos ou se a demanda por espelhos 25 G. Gusdorf, “Conditions et Limites de l’Autobiographie”. In: Formen der Selbstdarstellung. Berlim, Ed. Reichenkron e Haase, 1956, p. 108. 26

P. Delany, op. cit., p. 11.

Ver Christopher Hill, The Century of Revolution: 1603-1741. London, Nelson; New York, Norton, 1961, p. 253: “Todos os caminhos de nossa época conduziram ao individualismo. Mais cômodos em aprimorados lares camponeses; o uso de vidro nas janelas (só difundido entre os foreiros e os pobres comuns após a Guerra Civil, diz Aubrey); o emprego de carvão nas lareiras; a troca de bancos por cadeiras – tudo isso ofereceu mais conforto e privacidade a pelo menos a metade superior da população. A privacidade contribuiu para a introspecção e para o autoexame do puritanismo radical, tal como para a manutenção de diários e registros espirituais”. O sr. Hill está se referindo, aqui, ao período entre 1660 e 1680, posterior à derrota do puritanismo. 27

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estimulou esse triunfo tecnológico.28 Se for um artista, o indivíduo provavelmente pintará autorretratos; se for Rembrandt, fará sessenta deles.29 Então ele começa a usar a palavra self [eu] não somente como um reflexivo ou intensivo, mas também como um substantivo autônomo que remete, segundo o Oxford English Dictionary, “àquilo [...] que em alguém é intrinsecamente ele (em contraposição ao que lhe é adventício)” – como aquilo, enfim, que deve ser cultivado pelo que é e revelado ao mundo pelo bem da boa-fé. O sujeito da autobiografia não é nada mais que um eu assim, determinado a revelar-se na plenitude de sua verdade, a demonstrar que é sincero. A ideia que ele faz de sua individualidade privada e peculiarmente interessante, ao lado do impulso que o leva a revelar seu eu, isto é, a mostrar aquilo que nele deve receber admiração e confiança, é sua resposta à recente percepção de que tem para si uma plateia, aquele público que sua sociedade havia criado.

J. Lacan, “Le Stade du Miroir comme Formateur de la Fonction du Je, telle qu’elle nous est Révelée dans l’Expérience Psychanalytique”. Revue Française de Psychanalyse, vol. xiii, 1949, p. 449-55. A influência dos espelhos no desenvolvimento do senso de individualidade é abordada por Gusdorf, op. cit., p. 108-9, e por C. Hill, The Century of Revolution, op. cit., p. 253. 28

A correlação entre espelhos, autorretrato e autobiografia é esboçada por Delany, op. cit., p. 12-14. 29

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