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Impresso no Brasil, julho de 2012 Título original: Voir l’Invisible. Sur Kandinsky Copyright © Presses Universitaires de France Todos os direitos reservados.
Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal: 45321 · 04010 970 · São Paulo SP Telefax: (11) 5572 5363 e@erealizacoes.com.br · www.erealizacoes.com.br Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Gerente editorial Gabriela Trevisan Preparação Dida Bessana Revisão Gisele Múfalo e Liliana Cruz Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É Pré-impressão e impressão Geográfica Editora Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
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VER O INVISÍVEL Sobre Kandinsky
Michel Henry tradução
Marcelo Rouanet
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Sumário
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9
1. Interior/Exterior: o invisível e o visível . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 2. O significado de “abstrato” na expressão “pintura abstrata” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 3. A forma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 4. A forma pictórica pura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 5. A forma abstrata: a teoria dos elementos . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 6. O desvelar da pictoricidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 7. O ponto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63 8. A linha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 9. O plano original . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77 10. A unidade dos elementos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89 11. Das cores invisíveis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95 12. Formas e cores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107 13. Dificuldades da unidade das cores e das formas . . . . . . . . 115 14. A composição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 15. A arte monumental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135 16. Música e pintura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 17. A essência da arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 155 18. Toda pintura é abstrata . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 163 19. A arte e o cosmo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171
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Para Anne
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Introdução Kandinsky é o inventor da pintura abstrata, que derrubou as concepções tradicionais da representação estética e definiu nessa área uma nova era: a da modernidade. Para Tinguely, ele foi o “Desbravador”, o “Superpioneiro”. Compreender a pintura de Kandinsky é compreender essa arte tão nova, tão insólita que inicialmente só suscitou zombarias, quando não fúria e cuspes. Ao morrer em Paris, em 1944, Kandinsky ainda era desconhe cido do público francês, incompreendido pelos “críticos”. Hoje se pergunta se tal situação realmente mudou. Tem pelo menos um mérito a solidão de um dos maiores cria dores de todos os tempos, quando a pintura francesa afirmava sua primazia e, atraindo sobre si a atenção, se dizia o principal centro de descoberta no mundo: mostrar que a pintura abstrata difere inteiramente daquilo que com ela habitualmente se con funde – essa sequência histórica indo de Cézanne ao cubismo, incluindo o impressionismo e a maioria dos “movimentos” que definem, para o público, a “pintura moderna”. Os grandes nomes desse período são de fato estranhos à “abstração”. Picasso, por exemplo, é artista figurativo, para não falar de seu academicis mo. Mesmo os pintores que classificaríamos indubitavelmente entre os “não figurativos” – Mondrian com seu traçado geomé trico depurado, Malevitch, os suprematistas, os construtivistas com seus planos nus, Arp com suas formas livres, o próprio Klee com seus signos mágicos – na realidade perseguem sua obra na
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tradição pictórica ocidental, fora do campo aberto pelos pressu postos radicalmente inovadores de Kandinsky. Será sua pintura então única em seu gênero? A singularidade de Kandinsky deriva também de uma cir cunstância decisiva para nosso projeto: o “Superpioneiro” não só produziu uma obra cuja magnificência sensorial e riqueza inventiva eclipsa as de seus contemporâneos mais notáveis; ele também doou uma teoria explícita da pintura abstrata, ex pondo seus princípios com a maior precisão e clareza. Assim, acompanham a obra pintada textos que a esclarecem, tornando Kandinsky, ao mesmo tempo, um dos principais teóricos de arte. Com os hieróglifos dos últimos quadros do período pari siense, considerado o mais difícil, temos a pedra de Roseta com o significado das mensagens cifradas. Para compreender obras de arte, o homem culto já dispunha das principais estéticas clássicas, de Platão e Aristóteles ou, mais recentemente, de Kant, Schelling, Hegel, Schopenhauer e até Hei degger. Infelizmente nenhum deles entendia de pintura, tornan do suas análises pouco úteis a quem gostaria de pedir à beleza um acréscimo de seu poder de sentir, um enriquecimento de sua existência pessoal. As análises de Kandinsky se referem, em sua simplicidade exemplar, à cor, ao ponto, à linha, ao plano, ao formato do quadro, à matéria sobre a qual é pintado; designam inequivocamente o propósito da arte ao mesmo tempo que seus meios, tornando-se para o amador um guia infinitamente mais seguro e eficaz. Poucos pintores dentre os maiores – por exem plo, Dürer e Da Vinci – ou mais modestos – Vasari – tentaram ser claros no que faziam, comunicando a outros esse esclareci mento. Nenhum deles, porém, cumpriu essa ambição tão bem quanto Kandinsky, e por isso propomos ao leitor um estudo de seus escritos teóricos como acesso privilegiado à compreensão da essência da pintura – melhor ainda, talvez: para entrar nessa vida engrandecida que é a experiência estética. Não seria paradoxal, todavia, escolher a “mais difícil” pintu ra como iniciação à pintura em geral? Não conviria, depois do desenvolvimento histórico de séculos ou milênios, começar pe las obras mais recentes e sofisticadas, pelo fim, de algum modo?
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O mundo do niilismo europeu, em que todos os valores se des fazem e se autodestroem, será o meio mais apropriado para desvelar a fonte de todos esses valores, em especial os estéticos? Como, depois das gesticulações dadaístas e das pretensões va zias do surrealismo, na confusão das modas, das escolas e dos manifestos, lançados devido ao blefe dos marchands e da mídia, reconhecer o princípio verdadeiro das obras de arte autênticas? Outra objeção: a assunção rigorosa, devida ao extraordinário trabalho de elaboração de Kandinsky, dos princípios da pintura abstrata pode nos ajudar a penetrar a natureza da pintura em geral se, como dissemos, a abstração difere radicalmente das realizações tradicionais da arte ocidental? Ou seria necessário afirmar o contrário, que apesar de seu caráter revolucionário, a pintura abstrata nos reconduz à fonte de toda pintura – só a primeira nos permitindo, ademais, compreender a possibilida de da última, por ser o desvelar de tal possibilidade? Intervir tardiamente na história da cultura, como que em seu declínio, decomposição e autonegação, não a impede de nos remeter, com prodigioso salto atrás, à sua origem – não origem histórica perdida no escuro, mas fundamento sempre presente e atuan te, fonte eterna de toda criação. Se a compreensão dos princípios da pintura abstrata é a de toda pintura por ser a de sua própria possibilidade, porque toda pintura é abstrata, seu poder esclarecedor ultrapassa a obra de Kandinsky, por mais genial que ela seja; ele captura em sua luz o desenvolvimento total da pintura mundial e das obras pintadas – mosaicos, afrescos, gravuras, “pinturas” pro priamente – que chegaram até nós. E não só da pintura, mas de toda forma de arte concebível: música, escultura, arquitetura, poesia, dança. As grandes sínteses tentadas entre essas diferen tes artes, como se vê na ópera, por exemplo, de Wagner, caem sob a jurisdição dos princípios da pintura abstrata, tema de re flexão de destaque em Kandinsky. O que é essa possibilidade da pintura que será desvendada pela pintura abstrata? Se considerarmos uma pedra no cami nho, pode-se desenhá-la ou pintá-la, claro, mas ela própria ja mais pintará nada. A possibilidade da pintura inexiste em si
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mesma. Só o homem é potencialmente, necessariamente talvez, pintor e artista. Deve-se, então, perguntar: o que é o homem, o que deve ser para que uma atividade como a de pintar apareça nele como uma de suas capacidades próprias? Mas o homem não criou a si mesmo. A possibilidade de pintar nele inscrita se deve à natureza de seu ser como lhe foi dada, e assim é com a natureza do próprio Ser. O que os maiores espíritos pediram, afinal, à arte foi um co nhecimento, verdadeiro, “metafísico”, suscetível de ultrapassar a aparência exterior dos fenômenos para nos revelar sua essência íntima. Como a pintura cumpre e pode cumprir essa revelação última, já o pressentimos: não nos mostrando, representando essa essência derradeira das coisas, mas antes nos identificando com ela no ato iniciático da arte, embora ele retire da própria es trutura do Ser sua possibilidade, confundindo-se com ela. Qual é, então, essa natureza do Ser que a pintura implica e pela qual acessamos aquela, tornando-nos contemporâneos do Absoluto e de algum modo dando-nos direito a ele?
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1. Interior/Exterior: o invisível e o visível Lendo-se com alguma atenção as obras teóricas de Kandinsky, percebem-se dois termos recorrentes e centrais na análise: “inte rior” e “exterior”. O segundo grande escrito, Punkt und Linie zu Fläche [Ponto e Linha sobre Plano], de 1926, época da Bauhaus, começa assim: “Todo fenômeno pode ser vivido de duas maneiras, não arbi trariamente ligadas aos fenômenos, mas decorrentes da natureza dos fenômenos, de duas de suas propriedades: Exterior-Interior.” Essa declaração liminar deve ser imediatamente esclarecida, pois comporta o destino da pintura abstrata; ou seja, consolida remos progressivamente o destino da pintura e, mais ainda, o destino de qualquer arte concebível. Que todo fenômeno possa ser vivido de duas maneiras, exteriormente e interiormente, experimentamos constantemente com um fenômeno que justa mente nunca nos abandona: nosso corpo. Pois, de um lado, vivo interiormente esse corpo, coincidindo com ele e com o exercício de cada um de seus poderes: eu vejo, ouço, cheiro, movo mãos e olhos, tenho fome, frio, de tal modo que eu sou esse ver, esse ouvir, esse cheirar, esse movimento, essa fome, que eu me preci pito inteiro em sua pura subjetividade, a ponto de não poder me
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d iferenciar deles – fome, sofrimento, etc. – em nada. De outro lado, e ao mesmo tempo, eu vivo exteriormente esse mesmo cor po por ser capaz de vê-lo, tocá-lo, representá-lo a mim mesmo como objeto, realidade exterior próxima aos outros objetos. Ora, essa propriedade extraordinária pela qual meu corpo se oferece a mim de duas maneiras diferentes, “interiormente” ao se identificar a meu ser mais profundo, “exteriormente” enquan to se pro-põe também a mim ao modo de ob-jeto, Kandinsky es tende a todos os fenômenos. É o que aparece a nós, justamente chamado fenômeno, que permite essa distinção das “duas ma neiras”. Essas duas maneiras [diese zwei Arten] não concernem o conteúdo do fenômeno, mas precisamente a maneira pela qual esse conteúdo se mostra a nós, aparece. As “duas maneiras” são dois modos de aparecer. São o que Kandinsky chama “Exterior” e “Interior”. O Exterior não designa imediatamente algo exterior, mas a maneira pela qual esse algo se manifesta a nós. Essa ma neira consiste justamente em estar fora, olhando – de tal modo que o simples fato de estar adiante, fora, leva a exterioridade como tal a constituir a manifestação, a visibilidade. Exteriorida de em que tudo, todo conteúdo se visibiliza, torna-se fenômeno exterior, é o mundo – visível, pois mundo significa exteriorida de, que constitui a visibilidade. Um fenômeno exterior nunca é visto ou conhecido por suas propriedades – por ser grande ou pequeno, estruturado ou informe, etc. – mas só por ser exterior: pois, pertencendo ao “mundo” que significa exterioridade, ele se manifesta nela, que é a manifestação mesma. Por isso Kandinsky diz que a “maneira” não está ligada arbitrariamente ao fenôme no, pois é essa maneira – aqui, a exterioridade – que justamente o torna fenômeno, fazendo-o mostrar-se. À maneira de mostrar-se como fenômeno exterior, à exterio ridade, à visibilidade do mundo, opõe-se, segundo Kandinsky, outra “maneira”, um modo de se apresentar mais antigo, de certa forma, e mais radical: o Interior. O Exterior, como o Interior, não designa algo particular – que se revelaria interiormente – mas o próprio fato de se revelar assim, a interioridade enquanto tal. Em que consiste essa última, a “maneira” mais original de se mostrar, de “ser vivenciada”? Questão incontornável: “ser vivida
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interiormente”; essa “maneira” sobre a qual Kandinsky edifica rá sua estética não poderia ser afirmada simplesmente. Ela seria então atacada por crítica limitando-se a negar sua existência: “nada existe de semelhante!”, “a interioridade é mito!”. Em ou tros termos, o Exterior se autocomprovou, e essa prova, parece, é ele próprio, é o mundo tal como aparece em sua visibilidade incontestável, oferecendo-me incessantemente seu espetáculo e ao qual, mesmo quando fecho os olhos, adiro por todos os meus sentidos voltados a ele. Do mesmo modo, o Interior, se o to marmos como fundamento de toda nossa análise, deve se auto comprovar também, significando mostrar-se – mas de maneira própria, que não é mais a do mundo. Por exemplo, a exigência – a do cientista – dirigida ao Interior de aparecer à maneira do mun do como fenômeno exterior, para ser visto com os olhos do cor po, ou pelo menos os do espírito, seria absurdo. Assim, ao modo de algo que está adiante e que, por isso, pode ser visto, o Interior jamais se mostrará. Ele é o invisível, o que não pode nunca ser visto num mundo, nem à maneira de um mundo. Inexiste “mun do interior”. O Interior não é a reprodução internalizada de um primeiro Lá-Fora. No Interior, não há nenhum distanciamento, nenhuma colocação no mundo – nada exterior, porque não exis te nele nenhuma exterioridade. Como então se revela o Interior, se nem se assemelha a um mundo? Como a vida. A vida é sentida e experienciada imediata mente, coincidindo consigo em cada ponto de seu ser, totalmente imersa em si e, esgotando-se nesse sentimento de si, ela se cum pre como páthos. A “maneira” pela qual o Interior revela-se a si mesmo, a vida se vive a si mesma, a impressão se impressiona imediatamente a si mesma, o sentimento se afeta a si mesmo – precedendo todo olhar e independentemente dele –, é a Afeti vidade. Assim, defrontamo-nos com uma primeira formulação da grande equação kandinskyana que sustentará tanto sua obra quanto sua pesquisa teórica: Interior = interioridade = vida = invisível = páthos.
O Ser não é, portanto, noção unívoca. Duas dimensões o atra vessam para dilacerar sua unidade primitiva (mesmo só tendo
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uma): a do visível, em que na luz do mundo as coisas se mos tram a nós e são vividas por nós como fenômenos exteriores; a do invisível, em que na ausência desse mundo e de sua luz, antes mesmo de surgir esse horizonte de exterioridade que afasta tudo de nós e a pro-põe a nós a título de ob-jeto (significando o que é colocado adiante), a vida já se apossou de seu ser próprio, se apertando nessa prova interior imediata de si que é seu páthos, que faz dela a vida. Queremos tratar de pintura. Se, diante dessa divisão enigmá tica do ser, perguntarmos: a qual dos dois campos, o do visível ou o do invisível, a pintura pertence, a qual deles ela entrega seu destino? A resposta é indubitável. Pintar, desenhar, não é o artis ta pintar, desenhar o que vê, aquilo que desdobra seu ser diante de seu olhar, na luz do mundo? Pelo efeito da conexão evidente entre a pintura, o olho e o visível, nossa tradicional concepção da pintura atesta sua origem grega, pesando ainda hoje, a ponto de determinar todas as nossas concepções não só sobre a arte e a pintura em geral, mas sobre seus fins, sobre os meios que devem ser usados, sobre seus problemas, como o da representação do espaço, da perspectiva, etc. A ideia grega que se apega à fonte dessa rede de relações e implicações é a do fenômeno, justamente. “Fenômeno”, para os gregos, designa o que brilha, o que se mostra sob a luz, de tal modo que se mostrar significa mostrar-se sob a luz. O que mos tra, o que faz ver, é a própria luz. Ver é participar da luz, penetrá -la, ser iluminado por ela – é ser no mundo. O conceito de fenômeno sofre mutação decisiva quando, dei xando de se submeter docilmente às injunções do visível, ele é relacionado à vida, à existência. Desde essa transferência, como ocorre em Kandinsky, questões inteiramente novas surgem, acarretando redefinição completa dos objetivos e dos procedi mentos da pintura. Os limites até então intransponíveis da arte são também requestionados, ou melhor, suprimidos. Enquanto a pintura é a pintura do visível e, assim, a pintura do mundo, ela aparece subordinada ao modelo preexistente, do qual não passa de réplica, reprodução – uma imitação. A ideia
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platônica da arte como mimese decorre diretamente do conceito grego de “fenômeno”. O que se mostra sob a luz, desde já assim apresentado; o artista, por essa razão, só recopia. O valor da arte é o da cópia, sua maior ou menor fidelidade ao modelo. Não só tal concepção da pintura lhe retira todo significado criador ver dadeiro – já que a invenção só afetará, nesse caso, os meios capa zes de tornar o melhor possível a meta preexistente do artista –, mas a finalidade do conjunto do processo pode ser questionada quanto ao interesse da arte como imitação. A obra não é sempre inferior ao modelo, que, aliás, não necessariamente atrai? “Que vaidade é a pintura...” Evidentemente aparecem propósitos, um significado, uma abordagem inteiramente nova da atividade pictórica quando, dispensando os pressupostos gregos, especialmente o conceito grego de fenômeno, ela deixa de pretender representar o mundo e seus objetos, quando, paradoxalmente, ela cessa de ser a pintura do visível. O que pode ela, então, pintar? O invisível, o que Kan dinsky chama o Interior. Pintar, outrora, não foi sempre produzir um quadro, algo de objetivo? De fato, todo quadro deve ser considerado sob dois ân gulos. Primeiro em sua materialidade: “tela” nas pinturas mo dernas, “madeira” nas antigas, “vidro” nas pinturas sobre Vidor, como as que Kandinsky admirava nas igrejas bávaras, “tesselas”, cubinhos de pedra e vidro entalhados em mosaico, “placa de co bre” nas gravuras sobre cobre, etc. Ora, essa “matéria” sobre a qual é pintado o quadro é um fragmento do mundo diante de nós, na parede do museu ou da igreja. O quadro, contudo, absolutamente não se reduz a seu supor te material. Representa algo: paisagem, cena típica, alegoria ou mitologia, drama histórico, acontecimento religioso, retrato de homem ou de mulher. Quando olhamos o quadro, eis o que con templamos: não seu suporte material, as rachaduras da tela ou da madeira, nem as manchas coloridas e sua exibição de certo modo “física” na superfície pintada, mas o figurado a partir des ses elementos materiais: a representação pictórica, a obra em si, a cena típica, etc. O fato de a realidade representada pelo qua dro, a realidade estética enquanto tal não ser “real” no sentido de
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r ealidade material da madeira ou da tela, mas imaginária, segun do as teorias mais frequentes, não nos impede de ver também, com os olhos ou pela imaginação, a realidade intencional, com objetos visíveis ou perceptíveis a nosso espírito. O quadro e o que ele representa não se mantêm perante nós, não são “exteriores”? Se a pintura empreendesse, ao contrário, pintar o invisível, um problema singular se lhe apresentaria: como representar de maneira visível, sob a forma de quadro, que acabamos de mos trar ser “exterior” sob todos os aspectos, essa realidade interior, invisível, chamada a constituir doravante o tema da atividade ar tística? Em outras palavras: no mesmo momento em que os fins da pintura se modificassem totalmente, seus meios, o quadro e o que ele representa, com suas cores e formas lineares, não de correriam ainda do campo que sempre foi seu? A obra pintada enquanto tal, a obra de arte, deixaria de pertencer ao visível? Assim introduzir-se-ía na problemática geral da estética uma dificuldade até então desconhecida, uma dissociação entre o conteúdo e os meios da pintura, o primeiro sofrendo transferência propriamente ontológica de uma região da existência a outra, do Exterior ao Interior, os segundos continuando a expor seu ser onde, em sua aparição sensível, cores e formas se mostram e se deixam perceber: no visível, à luz do mundo. Ora, é essa dissociação entre um conteúdo interior e meios exteriores, que a pintura abstrata inicialmente parece impor, que será finalmente abolida por ela. De modo que a extraor dinária revolução de Kandinsky, pensada e cumprida por ele, poderá ser assim formulada: não só o conteúdo da pintura, em última instância “representado”, ou melhor, expresso por ela, não pertence mais ao mundo enquanto um de seus elementos ou partes – fenômeno natural ou evento humano –, mas os meios permitindo a expressão do conteúdo invisível que cons titui o tema novo da arte devem ser compreendidos agora como “interiores” em seu significado e finalmente em sua realidade verdadeira: como “invisíveis”. Impossível dissimular por mais tempo nossa surpresa. Des de que pintam, traçam linhas, delimitam espaços e os recobrem
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com cores, desde que representaram bisões nas paredes da gruta de Lascaux, os homens, nessa atividade que durante longo tempo os subjugou, deixaram de usar formas e cores? A pintura abstrata teria inventado meios mais apropriados? Consideremos os qua dros de Kandinsky: encontramos neles outra coisa além dessas linhas e massas coloridas mencionadas? Ao contrário: só se trata delas. Do mesmo modo, em seus escritos teóricos, Kandinsky considera pontos, linhas, planos, de um lado, cores, de outro, os “elementos básicos” de toda pintura. Precisamente por isso dizíamos ser a teoria da pintura abstrata a teoria de toda pintura concebível, como a própria pintura abstrata define a essência da pintura em geral. Arrisquemos dois pensamentos loucos: 1o O conteúdo da pintura, de qualquer pintura, é o Interior, a vida invisível em si e que não pode deixar de sê-lo, permanecen do para sempre em sua Noite. 2o Os meios expressando esse conteúdo invisível – as formas e as cores – são eles próprios invisíveis em sua realidade original, ou pelo menos mais apropriada a cada caso. Pintar é revelação, para nos mostrar o que não é nem pode ser visto. Os recursos dessa revelação, de outro lado, também mer gulham na Noite dessa subjetividade abissal, que nenhum raio luminoso consegue penetrar, nenhuma alvorada dissipa. Desse encavalamento de paradoxos resulta ao menos uma pri meira verdade que nos é permitido desde já perceber. Na pintura tradicional, ou antes, nas concepções habituais a respeito, con teúdo e meios eram homogêneos, pertencendo ambos ao mundo visível. Era esse mundo que se tratava de pintar, com a ajuda de cores e formas extraídas dele, elas também localizadas nele, em todo caso provenientes dele. Com o surgimento da abstração, essa solidariedade parece rompida, já que o conteúdo se torna o invisível, enquanto os meios permanecem o que são, determi nações objetivas, superfícies e planos, manchas coloridas, linhas. Mas se o ser real desses elementos aparentemente objetivos é ele próprio referenciado ao invisível da subjetividade absoluta,
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a homogeneidade ontológica do conteúdo e dos meios da pintura é restabelecida. Talvez até conviesse abolir a própria ideia de sua distinção, constituindo conteúdo e meios a mesma realidade, a única essência da pintura. Uma observação terminológica confirma essa visão. Kan dinsky chama abstrato o conteúdo que a pintura deve expressar, ou seja, essa vida invisível que somos. De modo que a equação kandinskyana aludida se escreve realmente assim: Interior = interioridade = invisível = vida = páthos = abstrato.
Ora, Kandinsky designa igualmente abstratos os meios da pintura, ainda que mal captados em sua pureza. Uma vez que são abstratos, cores e grafismos se inscrevem também na equa ção que acabamos de formular, que traduz a dimensão original do próprio Ser. Assim descobrimos o significado verdadeiro do conceito de abstração aplicado à pintura.
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2. O significado de “abstrato” na expressão “pintura abstrata” No sentido mais comum da palavra, algo é considerado abs trato quando separado da realidade à qual pertence. A abstração designa, então, o processo pelo qual, deixando de ver essa reali dade pelo conjunto de seus caracteres, escolhemos alguns para considerá-los à parte. De uma árvore, só pode ser considerado o “verde” de sua folhagem ou a “dureza” de sua madeira. Seja real ou só ideal, tal processo marca sempre um empobrecimento, uma extenuação, já que o fim só revela uma parte das proprie dades, cuja conexão interna em totalidade coerente constitui a única realidade no sentido de uma realidade concreta, ou seja, subsistindo por si. Se o Todo é concreto, o processo pelo qual se isola uma de suas propriedades para considerá-la à parte geralmente só ocorre em pensamento, é abstrato no segundo sentido: decomposição ou separação acontecendo no espírito, não na coisa. Por ser o pro cesso de abstração ele próprio abstrato, o conceito de abstração é afetado por um segundo índice de irrealidade: não só ele afas ta a maioria das propriedades que constituem por si a realidade do real, mas, por isso, permanece puramente “ideal”. Apenas quando só o Todo é real, verdadeiramente concreto, existe um só Todo afinal, uma única realidade concreta: é o mundo, o mundo visível, naturalmente.
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A noção de “pintura abstrata” como ocorre atualmente na crí tica de arte decorre do conceito de abstração que acabamos de esboçar. Decisivo aqui é que aquilo a partir de que se entende e define a abstração em questão é esse mundo de luz da pintura, por ela considerada sua única referência desde a Grécia, do qual extrai também seus meios. A “realidade abstrata” que a pintura representa em suas mais modernas expressões é sempre realida de abstrata do mundo, concebida, delimitada, decidida, elabora da a partir dele, e finalmente como seu modo de expressão mais adequado. O pacto selado desde a origem entre o olho e o visível não é nem desfeito nem contestado um momento sequer; trata -se muito mais de deixá-lo atuar segundo a infinidade de suas virtualidades, dando-lhe seu pleno efeito. Pelo fato de a abstração provir do mundo e constituir-se a cada vez uma de suas derivações possíveis é o que evidencia, pa rece, a função importante nas composições pictóricas das formas geométricas. As últimas não são abstratas justamente? Abstratas significando construídas de maneiras sensíveis e por espécie de depuração das mesmas. O que é a linha senão um traçado suge rido pelo limite de um corpo natural desconsiderando espessura, cor, etc.? Assim se passa do “redondo” ao círculo, de todas es sas incitações formais da natureza a seu arquétipo geométrico. Embora tal atividade geradora da geometria mereça ser chamada “ideação”, não “abstração” – mais ao criar um ser novo, ideal, do que ao isolar um fragmento do real –, nem por isso ela deixa de partir do mundo, a ele remetendo como fundamento. A presença dessas formas puras como princípio da constru ção do quadro – construção linear, triangular, circular, etc. – concilia-se perfeitamente na pintura clássica com seu intento de “imitar a natureza”, ou seja, reencontrar e aplicar suas leis profundas quanto mais delas provier diretamente. Quando tal composição geométrica predomina até reduzir a si a temática pictórica, como no cubismo, a origem comum dessa pintura não é rediscutida. É sempre a realidade exterior, certa representa ção dessa realidade, que serve de premissa a essas tentativas de renovação. A abstração do cubismo pertence ao projeto figurativo e deve ser compreendida como uma de suas modalidades de
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realização. No exato momento em que, pelo viés dessas arqui teturas de planos, triângulos e cubos, a realidade se torna irre conhecível (a ponto de o espectador precisar forçar a vista para saber se está olhando uma aldeia, uma montanha, uma mulher sentada, um violão ou ambos ao mesmo tempo), é sempre essa realidade que inspira os diversos tratamentos aos quais é sub metida, é o objeto que dita ao artista as regras de sua desconstrução e reconstrução. Os jogos em torno da perspectiva, a decisão (arbitrária) de aprofundá-la ou atenuá-la, a escolha de vários fo cos ao invés de um, a representação simultaneamente de frente, de perfil, de cima, de baixo ou de trás, todas essas deformações e “audácias” nada mais fazem do que explorar a estrutura da per cepção ordinária. Por isso, logo parecem monótonas. Simples procedimentos tornados impessoais e confinantes ao artífice (como distinguir um Picasso de um Braque do período cubis ta?), são imediatamente sucedidos por outra “maneira”, igual mente artificial e aborrecida. Com o projeto mais sistemático e mais ambicioso de reduzir a apresentação pictórica a um filtrado, a interseções de horizon tais e verticais ou à pura exibição arquetípica, o objeto parece desaparecer, e com ele as sequelas da figuração. Contudo, nada disso ocorre. A pura abstração de Mondrian ou de Malevitch é precisamente a abstração da geometria, proveniente do mundo e adotando sua própria natureza, ao mesmo tempo que ela pre tende formular o essencial dele. O que é o mundo, de fato, senão “algo com comprimento, largura e profundidade”? A vanguar da artística do começo do século XX está três anos atrasada em relação aos fundadores do pensamento moderno – Galileu, que eliminou os ouropéis sensíveis das coisas, reduzindo-as a por ções de matéria extensa, a suas figuras e formas cuja geometria detém o modo de conhecimento adequado; Descartes, de quem acabamos de relatar uma proposta decisiva, que acrescentou ao postulado galileano do significado cósmico da geometria a possi bilidade de sua expressão matemática. O desaparecimento do objeto na abstração geométrica é simplesmente a exposição de sua essência, daquilo que permi te a todo objeto ser ob-jeto: aquilo que está colocado lá adiante,
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nesse espaço de luz que é o mundo. É a eclosão desse mundo, o primeiro surgimento do Lá-Fora, no qual se agruparão todos os objetos, é a abertura do horizonte na tela, da qual se destaca rão todos os fenômenos exteriores – é a visibilidade do visível que nos querem mostrar, como conseguem todas essas pesqui sas “abstratas”, as mais exigentes só encontrando no fim de seu percurso o vazio puro. A pintura o povoava até então com uma infinidade de projeções forasteiras; agora ela quer pensá-lo em sua presença nua, em seu Nada. A abstração liberada pelo gênio criador de Kandinsky não tem relação com esse gênero de abstração que dominará de fato a história da criação artística desde a segunda década do século XX, voltando periodicamente sob formas diversas. Se ria até contrassenso, o mais grave, defini-la contra todas essas tentativas – cubismo, orfismo, futurismo, surrealismo, cons trutivismo, cinetismo, conceitualismo – que incessantemente se relacionam ao visível como a seu único objeto, do qual só importaria captar a verdadeira natureza e finalmente a própria visibilidade: a luz sensível (impressionismo) ou transcendental (Mondrian, Malevitch). Essa ordem de ideias leva a considerações familiares aos his toriadores da arte e a seus leitores. Uma figuração centrada ex clusivamente na representação exata da realidade exterior logo chega a um impasse, ilustrado pelo naturalismo e por suas va riantes. Nos museus sobre o século XIX abundam telas insigni ficantes, antecipadas pela pintura inglesa de paisagem do século XVIII. Nos anos de 1880 em Munique, Lenbach pintava seus fa mosos retratos – de Bismarck, por exemplo – sem fazer seus mo delos posarem, segundo fotografias. Pode-se ainda admirar na mansão com seu nome (e onde estão também, contrastantes, os Kandinsky do legado de Gabrielle Münter) essas efígies conster nadoras. Resultados tão medíocres assim, uma arte tão insossa, só podiam suscitar, primeiro nos pintores, uma reflexão sobre o projeto de objetividade, ou seja, um retorno à percepção verdadeira. Percebe-se então que as sombras não são cinzentas, mas coloridas, azul na neve, verde na barba desse velho mal barbea do: as representações convencionais e esperadas do academismo
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de modo geral não correspondem ao que realmente se produz na experiência visual do mundo. O que então acontece na última, a que convém voltar? Husserl considera o objeto polo de identidade ideal extrapolando a multi plicidade de suas aparições sensíveis. Ora, não é justamente esse polo ideal, no limite essa noção, essa identidade una e sempre a mesma – a catedral de Rouen, a moedeira de feno – que a pintura quer pintar, são essas “aparições sensíveis” em sua singularida de e mobilidade, contornos fugidios, povoada de clarões no des lumbramento da noite – deslumbramento em que a realidade, pulverizada em brilhos de luz fulgurante, se move no desconhe cido, perde toda consistência e acaba desaparecendo. Foi preci samente vendo numa exposição em Moscou em 1895 a moedeira de feno de Monet que Kandinsky sentiu uma de suas mais vívidas emoções estéticas. O ensinamento obtido se somou ao fornecido pela leitura de Niels Bohr: a realidade física não tem substância, de certo modo nem realidade, pois os quanta se deslocam nela aos saltos sem atravessá-la. Também aí a matéria pulverizada se dissolve na irrealidade, numa espécie de imaterialismo. Pode-se, então, entender a pergunta famosa de Kandinsky: se o objeto está destruído, deve ser substituído pelo quê? Essa gênese histórica, mesmo sendo correta e tendo o mérito de tornar a evolução de Kandinsky mais ou menos similar à dos outros grandes artistas de seu tempo e, portanto, “compreensí vel”, nem por isso deixa de falsear o significado verdadeiro da pintura abstrata, a ponto de ocultar definitivamente seu enten dimento. Não foi a crise de objetividade, aproximadamente aná loga, no plano estético, à que ocorreu no campo científico, em especial na física da época, que levou a se repensar o problema da representação pictórica. Do mesmo modo que não provém de re manejamento da figuração perceptiva, a abstração kandinskyana não decorreu de súbito desfalecimento do objeto, de sua incapa cidade de continuar a definir o conteúdo da obra. Essa abstração, esse conteúdo, esse “conteúdo abstrato” é a vida invisível em sua incansável volta a si mesma. É esse contínuo jorro interior da vida, sua essência eternamente viva, que, ao mesmo tempo que fornece à pintura seu conteúdo, impõe ao artista seu projeto, o
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de afirmar tal conteúdo, expressar essa profusão patética do Ser. “Abstrato” não designa mais aqui o que provém do mundo de pois da simplificação ou da complicação, depois de uma história que seria a da pintura moderna – mas Isso que havia antes desse processo não necessita dele para ser: a vida que se encerra na noi te de sua subjetividade radical onde não há nem luz nem mundo. Nenhum caminho conduz à vida senão ela própria: ela é ao mesmo tempo a meta e o caminho. Se não há evolução cultural, sociológica, econômica ou outra que explique algo no campo da arte (do mesmo modo que não explica uma paixão) é porque toda criação está na vida: ela já se produziu quando questiona mos suas condições, causas ou meios. A história, como sempre, inverte a ordem verdadeira das coisas, a ordem ontológica de sua criação. Kandinsky não se perguntou de fato pelo que seria possí vel substituir o objeto e o que a pintura poderia pintar atualmen te. Muito antes, caminhando no campo em torno de Munique, a violência de uma cor percebida num bosque suscitara nele emo ção intensa, decidindo pintar o que envolvia aquela cor – a visão daquele bosque – para representar sua emoção; ele sabia com um saber que não ilumina reflexão alguma, nem precede história al guma; esse saber constituído por essa mesma emoção era o que ele queria pintar, a única coisa que pintaria daí em diante, o con teúdo de toda pintura possível: essa profusão da vida dentro dele, sua intensificação e sua exaltação. A declaração feita alguns anos depois na Conferência de Co lônia de 1914 (que, aliás, nunca foi pronunciada) é indubitável: “Nós sabemos o quê queremos bem mais frequentemente do que descobrimos como fazê-lo”. Assim, quando se evidencia a disso ciação entre o conteúdo da pintura e seus meios (“materialização” ou “forma” do conteúdo, segundo Kandinsky), a precedência do primeiro sobre os segundos é nitidamente afirmada; essa prece dência só tem eventualmente significado histórico porque seu alcance é ontológico: “A obra existe abstratamente antes de sua materialização, tornando-a acessível aos sentidos”, acrescenta, pouco depois, no mesmo texto. A “materialização” do conteúdo originalmente “abstrato” da obra ser “o que a torna acessível aos sentidos”, com essas cores e formas que c onstituem os meios de
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toda pintura, confirma convincentemente a anterioridade do in visível numa área que sempre fora do visível, dos sentidos – isso dá à abstração kandinskyana seu significado específico. “Durante toda minha vida eu só pintei Moscou”, dirá um dia Kandinsky. Passagem magnífica de Regards sur le Passé [Olhar sobre o Passado] explica essa declaração singular do teórico da abstração. Nela, Kandinsky menciona viagem à pequena aldeia alemã medieval Rothenburg-ob-der-Tauber, que o impressio nou muito, pintando na volta maravilhoso quadro, ainda figura tivo, A Velha Cidade. “Nesse quadro ainda”, escreve Kandinsky, eu estava, para falar a verdade, em busca de certa hora, que era e permanece a mais bela hora do dia em Moscou. O sol já está baixo e atingiu sua maior força, que ele buscou o dia todo, à qual ele aspirou o dia todo. Esse espetáculo dura pouco: mais alguns mi nutos e a luz do sol se tornará avermelhada de esforço, cada vez mais, de um vermelho primeiro frio e depois cada vez mais quen te. O sol funde Moscou inteira em mancha que, ao modo de um tocador de tuba possesso, faz vibrar todo o ser interior, a alma inteira. Não, não é a hora do vermelho uniforme a mais bela! Só o acorde final da simpatia, que leva cada cor a seu paroxismo da vida e triunfo de Moscou inteira, fazendo-a ressoar como o for tíssimo final de orquestra gigante. O rosa, o lilás, o amarelo, o branco, o azul, o verde-pistache, o vermelho incandescente das colheitas, das igrejas – cada uma com sua melodia própria –, o gramado de um verde endiabrado, as árvores de tom mais grave ou a neve das mil vozes cantantes, ou ainda o allegretto dos ra mos desnudos, o anel vermelho, rígido e silencioso dos muros do Kremlin, e por cima de tudo, dominando tudo, como um grito de triunfo, como um aleluia esquecido de si, o longo traço branco, graciosamente severo, do sino de Ivan-Veliky. E sobre seu pes coço longo, esticado, estirado para o céu em eterna nostalgia, a cabeça de ouro da cúpula que é, entre as estrelas douradas e mul ticoloridas das outras cúpulas, o sol de Moscou. Reproduzir essa hora me parecia a maior, a mais impossível das felicidades para um artista.
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Essas impressões se renovavam a cada dia ensolarado, propor cionando-me alegria que abalava até o fundo da alma, levando -me ao êxtase.1
Os maiores pintores, como dizíamos, viveram e apresentaram sua arte como modo de conhecimento metafísico, atravessando a aparência sensível e, de certa forma, passando atrás dela, nos revela o mistério das coisas, o mistério do universo. De qual co nhecimento trata-se aqui? Não deixa de ser um problema, que a pintura abstrata permite compreender. Do ângulo da consciên cia ocidental culminando na ciência moderna, conhecimento significa conhecimento “objetivo”, conhecimento do mundo, o conjunto dos fenômenos exteriores. Trata-se de apreender es ses fenômenos, mesmo os fugidios da microfísica. Tal conheci mento, na verdade, quaisquer que sejam seus progressos, seus métodos cada vez mais elaborados, jamais atingirá seu fim. O insucesso não se deve ao caráter ainda provisório dos resultados adquiridos e destinados a serem substituídos por outros mais exaustivos. É o âmbito em que se move a ciência, que inicia a priori seu empreendimento, de um finito insuperável. Por ser seu objeto “exterior”, expondo seu ser no mundo, ele só se pro -põe a nós como saliência de exterioridade, praia sobre a qual o olhar desliza sem poder jamais penetrar no interior da coisa. E isso porque essa coisa não tem interior, porque não é constituída em si como interioridade. A análise, a decomposição, o exame microscópico e depois microfísico, com dispositivos cada vez mais complexos, só revelarão novos “objetos”, novos “aspectos”, também impenetráveis ao olhar, que só poderá se deportar de um a outro infinitamente, a menos que a partícula suma, ceden do a vez a partículas virtuais, novos “objetos” que não são mais os de uma intuição, por mais fugaz que seja, mas de um simples pensamento, de uma simples estimação. Regards sur le Passé (Rückblicke, Der Sturm, Berlim, 1913), apresentação e tradução francesa por Jean-Paul Bouillon. Paris, Hermann, 1974, p. 91-92. Afora o texto de Regards sur le Passé e Commentaires de Tableaux, essa obra contém as traduções dos seguintes artigos: “Sur la Question de la Forme”, “De la Composition Scénique” (no Almanaque de Der Blaue Reiter de 1912), “De la Compréhension de l’Art”, “La Peinture en Tant qu’Art Pur” (em Der Sturm, 1912-14), a Conférence de Cologne (1914), assim como La Sonorité Jaune, poemas e cartas de Kandinsky. Para todos esses escritos, remetemos a essa edição. 1
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O conhecimento propiciado pela arte é totalmente diferente: não tem objeto. Seu meio ontológico é a vida – que abarca a si mesma, jamais se separando de si, sem se colocar diante de si ao modo de um ob-jeto. Dizíamos: nenhum caminho conduz à vida senão a própria vida. É à vida que se deve ater para acessá -la, é dela que se deve partir. O ponto de partida da pintura que Kandinsky acaba de nos mostrar: é uma emoção, um modo mais intenso de vida. O conteúdo da arte é a emoção. A meta da arte é transmiti-la a outros. O conhecimento da arte se desen volve inteiramente na vida, o primeiro é o próprio movimento da última, seu movimento de crescimento, de experimentar mais fortemente a si. Por isso a arte expressa sempre formas altas da vida, por exemplo a que Kandinsky chamou de Moscou ao dizer: “Só pintei Moscou a vida toda”. Por isso também a arte não é uma imita ção, o conhecimento de uma realidade prévia, modelo preexis tente para o qual seria preciso se guiar. Porque o conteúdo que a pintura quer expressar é a vida, é no interior de um devir que a arte se situa; é a pulsão do Ser em nós à qual a arte pertence e com a qual coincide que a arte tem por missão sustentar e levar a essa extremidade, a esse “paroxismo da vida” onde a vida experi menta a si mesma até seu próprio fundo, no qual ela se precipita nessa “impossível felicidade” que Kandinsky chama o “êxtase”. Quem se engaja no caminho da arte jamais dirigirá a ver dade exterior a si mesmo, à qual ele pudesse voltar como para um ser estável e independente. Sabendo-o ou não, ele escolheu constituir o local da chegada dessa verdade, oferecer-lhe sua própria essência e sua própria carne para ser a carne dela – da Vida, que não pode ser mais do que a vida do indivíduo e o mais alto degrau de sua realização. Porque a verdade da arte não passa de transformação da vida do indivíduo, a experiência estética contrai com a ética laço indissociável, sendo ela mesma uma ética, uma “prática”, um modo de realização da vida. Tal conexão interior da vida estética invisível e da vida ética é, para Kandinsky, o “espiritual”. Do Espiritual na Arte, título do primeiro grande trabalho teó rico de Kandinsky, que teve grande repercussão ao ser publicado,
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em 1912, tem significado rigoroso. Traz duplo julgamento: sobre a época, que Kandinsky percebe como de profunda aflição, e so bre a realidade verdadeira das coisas. É tempo de aflição porque, esquecido da realidade, ele se entregou ao objetivismo crescente promovido pela ciência. O produto ideológico desse pensamento voltado ao Exterior e assim privado do Essencial é o naturalismo, contundentemente testemunhado pela arte congelada e vazia do século XIX. Sua consequência prática é o materialismo, que estende a todas as esferas da vida a negação de sua essência ver dadeira, propondo-se assim como uma espécie de niilismo con creto, cujo verdadeiro nome é morte. Ante tal situação, Do Espiritual na Arte propõe um programa de regeneração. Estabelece contra o naturalismo que a dimensão própria da arte é o “espiritual”, ou seja, a vida invisível com a qual a arte se identifica ao coincidir com seu crescimento, sus citando-o e estimulando-o constantemente. A arte é, assim, em sua própria existência, a demonstração da vida invisível, cujo direito imprescritível devemos reconhecer e restabelecer. Como todo grande pensamento, o de Kandinsky não constitui crítica ao sentido negativo do termo. Do naturalismo, das obras que se dizem naturalistas (e as quais enchem os museus onerosos a que a ideologia reinante consagra hoje a sua glória: a Nova Pinacoteca de Munique, De Orsay em Paris), mal são referidos, como se sua insignificância fosse evidente. O trabalho inteiramente positivo de Kandinsky – seu trabalho teórico nos escritos que analisare mos como sua obra criadora de pintor – visa desvelar a natureza incontestável e universal de toda obra de arte autêntica, a pintura abstrata conferindo a esse desnudamento sua maior força. Só quando a arte em geral (e a pintura em particular) revela a vida invisível da realidade verdadeira do homem sua função é dupla. Deve permitir primeiro voltar a essa realidade perdida. O significado de conhecimento atribuído outrora à arte torna-se, nesse mundo decaído, ao mesmo tempo mais preciso e mais ur gente. Quando a exterioridade estende seu poder sobre o todo do ser e o define, quando só existem verdadeiramente objetos, de modo que só o conhecimento objetivo da ciência é digno des se nome, a liberação do “espiritual”, essa realidade invisível que
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somos no fundo de nosso ser e a qual constitui o Ser verdadei ro, volta a ser conhecimento metafísico que a arte assumia no passado. A arte faz uma descoberta, propriamente inédita: mos tra-nos, diante de nossos olhos maravilhados, tal campo ainda inexplorado, com novos fenômenos, esquecidos, senão oculta dos e negados. E justamente esses fenômenos nos abrem acesso, a nós mesmos, à única coisa que importa afinal. Ora, a arte não só é a prova teórica dessa realidade invisível e essencial de nosso ser: a arte não mostra essa realidade como objeto, ela a ativa; seu exercício, seu desenvolvimento está em nós. A certeza que nos propicia experimentamos como aquilo que nos tornamos: à maneira como experimentamos um amor. Identifica-se a nossa vida. Diante dela, todas as outras certezas, especialmente a da ciência, empalidecem e decompõem-se. Ao cumprir a revelação em nós da realidade invisível, com uma certeza absoluta, ela constitui a salvação; e numa sociedade como a nossa, que afasta a vida, seja por fugir para um mun do interior, seja por negá-la explicitamente, a arte é a salvação possível e única. Mas então convém estender a arte à esfera inteira da ativi dade humana, à da fabricação dos bens materiais primeiro. A produção industrial dos objetos deve aliar à sua funcionali dade uma dimensão propriamente estética, de tal modo que, relacionada ao nosso ser no consumo ou no uso, ela nos ense je cumprir nosso destino. Tal foi a perspectiva da Bauhaus, ao qual Kandinsky se juntou em 1922, assim que foi chamado por Gropius. Ele se juntava a artistas notáveis, dentre os quais Paul Klee. Kandinsky conseguiu que compartilhassem esse ideal por um significado messiânico da arte, que ele desenvolvera desde o escrito fundamental de 1912. A própria organização dos estu dos na Bauhaus refletia esse ideal. Nas oficinas orientadas para a fabricação de objetos para venda (roupas, louça, móveis, de coração, etc.), entremeavam-se os ensinamentos fundamentais dos mestres, entre eles Kandinsky e Klee. Fato significativo: en quanto a Bauhaus era em princípio escola de arquitetura, à qual deviam se subordinar as outras artes, especialmente a pintura (Kandinsky estava encarregado de um curso de pintura mural),
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